Revista Pontos de Vista Edição 21

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OPINIÃO DIA DA FLORESTA AUTÓCTONE

João E. Rabaça (jrabaca@uevora.pt), ICAAM, Universidade de Évora

Floresta Autóctone, Capuchinho Vermelho e Biodiversidade Na Europa, a relação entre o Homem e a floresta conta-nos uma história intensa e milenar, feita de usos, abusos e adulterações que modificaram profundamente as paisagens naturais. Mas nos dias de hoje, o conhecimento que temos assinala um caminho de sustentabilidade necessariamente ancorado num ordenamento do território equilibrado.

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ara as sociedades humanas ancestrais, a floresta era uma fonte de enigmas: assegurava o sustento mas acoitava riscos e perigos diversos. E porque alguns não eram compreensíveis, os temores convergiam na sacralização como resposta instintiva à busca de uma explicação. Alguns desses temores atravessaram os séculos, persistiram para além das revoluções, sobreviveram à aculturação e, em certos casos, resistiram até às evidências da ciência. Para se afirmar perante os poderes da

gens do continente, num processo de avanços e recuos que durou séculos (5070% do coberto florestal europeu desapareceu na Idade Média). Mas apesar de circunscritas a uma expressão quase residual em muitas regiões, o encantamento das florestas permaneceu sobre as populações de camponeses. E quando há mais de 150 anos os irmãos Grimm balizaram a versão mais disseminada da história do Capuchinho Vermelho, aí convergiram os mitos da floresta: o lobo como arquétipo dos perigos sobranceiros quando se ultrapassam as fronteiras

“O futuro sustentável assenta numa política de ordenamento do território, onde é urgente conservar a paisagem, preservando a biodiversidade e mantendo os ciclos de vida dos sistemas naturais fundamentais à vida dos portugueses.” Gonçalo Ribeiro Telles sem descurar as funções produtivas. Esta perspetiva reúne hoje um forte consenso na opinião pública e nos decisores, graças ao reconhecimento da relevância da biodiversidade e dos serviços dos ecossistemas para o bem-estar humano.

Estrelinha-de-cabeça-listada: uma das aves das florestas portuguesas

Floresta, o Homem destruiu-a: edificou povoados, alargou horizontes, reclamou terras para cultivo e, quando os desígnios das guerras ou epopeias marítimas falavam mais alto, a transbordante necessidade de madeira fez o resto. Bosques de carvalhos caducifólios, florestas de faias e matagais mediterrânicos foram dizimados por toda a Europa, alterando significativamente as paisa-

“Em síntese, o conhecimento atualmente disponível e a experiência acumulada ao longo do último século assinala um caminho de sustentabilidade ancorado num ordenamento do território equilibrado. Talvez por isso, nunca como agora as palavras do Arq. Gonçalo Ribeiro Telles que sinalizaram este texto devem servir de mote a todos nós. Para bem do nosso futuro”

do que se conhece (não tivesse a menina da história saído do caminho…). Mas a perceção da floresta mudou com as mudanças da História. Como também mudou a floresta: as necessidades crescentes de matéria-prima originaram as chamadas “florestas” de produção e, fruto em parte do êxodo rural para os grandes centros, o abandono de antigas terras de cultivo promoveu o desenvolvimento de bolsas de vegetação autóctone regenerando localmente alguns bosques afins à floresta pristina. E até o lobo, graças ao conhecimento científico produzido nas últimas décadas (mas também devido à diminuição crítica dos seus efetivos), já não representa os perigos de outrora. Já não é o tempo dos medos, feitiços e divindades, nem tão pouco dos abusos e degradação das florestas. Neste século, o sentido do justo equilíbrio deve impulsionar-nos para lógicas de reabilitação e sustentabilidade, assumindo a multifuncionalidade das florestas autóctones,

Mas quando avaliamos a biodiversidade das florestas autóctones (que é superior à que registamos nas matas de produção), o que é que devemos valorizar nessa avaliação? O n.º de espécies (riqueza) é a medida mais intuitiva da biodiversidade, mas não é a única; por outro lado, a generalidade das pessoas perceciona as espécies numa floresta (ou em qualquer sistema) de um modo distinto, conferindo maior empatia às espécies mais apelativas. Este caráter diversificado de apreciação sugere que se utilizem diferentes formas de valorização da biodiversidade nos processos conducentes à sua avaliação. Eis alguns dos mais expressivos: 1. Conservação – as espécies prioritárias em termos de conservação (i.e. que exibem um grau de vulnerabilidade das suas populações de tal modo que se nada for feito para travar essa ameaça, poderão atingir os limiares de extinção) podem despertar uma motivação ética que se traduz na necessidade de evitar a extinção devida à ação humana de uma entidade única na Terra, frequentemente com milhões de anos de história natural. 2. Singularidade – as matas de produção assemelham-se independentemente do contexto geográfico onde se encontram.

Mas as florestas autóctones são únicas em diversos aspetos: correspondem a relíquias do coberto vegetal de outrora, podem ocorrer em zonas remotas exibindo um caráter selvagem e podem albergar cortejos de espécies por vezes ímpares servindo de suporte a alguns endemismos. 3. Resiliência – constitui um conceito relevante em ecologia e fornece uma medida da capacidade de um sistema retornar, após uma perturbação, à sua situação inicial. No caso de uma floresta que num dado momento tenha sofrido uma perturbação provocada por fogo, a sua resiliência é tanto maior quanto mais rápida for a sua recuperação até ao estado que precedeu a perturbação. É importante referir que, na maior parte dos casos, as florestas autóctones apresentam uma maior riqueza e diversidade vegetal em espécies evolutivamente adaptadas às condições biogeográficas da região, facto que lhes confere uma maior resiliência comparativamente com as matas de produção. 4. Serviços dos ecossistemas – a polinização, o controlo biológico de potenciais pragas, a proteção do solo e a retenção da água são alguns dos serviços prestados pelas florestas autóctones com claras vantagens para o bem-estar humano e que, na generalidade, transpõem uma expressão local. Em síntese, o conhecimento atualmente disponível e a experiência acumulada ao longo do último século assinala um caminho de sustentabilidade ancorado num ordenamento do território equilibrado. Talvez por isso, nunca como agora as palavras do Arq. Gonçalo Ribeiro Telles que sinalizaram este texto devem servir de mote a todos nós. Para bem do nosso futuro.

LabOr - Laboratório de Ornitologia, Dept de Biologia, Grupo de Investigação em Ecossistemas e Paisagens Mediterrânicos, ICAAM, Universidade de Évora, 7002-554 Portugal http://www.labor.uevora.pt icaam@uevora.pt


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