Philos v.3 n°.11 (2017)

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LITERATURA BRASILEIRA

EXPERIM.

Rotas da lusofonia

A SEGUNDA VIDA DE GREGOR SANSA por Sammis Reachers 1

Não posso ver: tudo é sensação, para além ou de antes do visual, transcendência táctil: energias? Não lembro completamente quem sou. Lembro trechos. Pedaços de rostos, cadeias de palavras que já não entendo, e são música boa ou ruim. Estou nalguns braços. Alguém me move. Energias fluem, posso senti-las quase como odores. Atravessamos linhas de campos magnéticos. É magnífica este novo sentido, este meu único multisentido, seu caudal de silenciosa epifania. Lembro-me de destruir o jardim. Apanhei o taco e destruí as roseiras de alguém de quem não me lembro, alguém muito importante, alguém que importava. Destruí todas aquelas plantas de nomes débeis e frescos que não sei, aqueles nomes inúteis que sempre mantive aquém de mim. Espalhei as terras, derribei as pequenas contenções, como meios-fios, que delimitavam aquele inferninho verde. Estranho como disso me lembro bem. Cada movimento acertado. Parei de ser movimentado: sinto o vento, quentura. Ela é como uma canção. Suas ondas borrifam o que quer que sejam meus receptores, me deitam num torpor adocicado. Sou feliz. A pulsação que me movimentou aproxima-se, sinto seu avanço pelas linhas do campo magnético, ela deita água em meus pés. Não posso movê-los, nem tento: não anseio o movimento, anseio os movimentos que me vêm: flutuações do campo, comunicações que ainda não decodifico – mas o farei – a viscosidade do calor solar que me banha, e este furor, esta fome consumindo meus pés: este fausto manjar de águas. Água. Água. Como nunca percebi? Como ela pode ser tão doce, e ter me passado incógnita, obscurecida? Para cada nova sensação faltam-me as palavras, conceitos de perfeito encaixe, mas tal abismo se avoluma ao toque da água. Fruição, tepidez… uma quase promiscuidade, coquetel de psicotrópicos conflitando e equalizando-se, a um só tempo, em meu corpo possuído. Agora percebo que o céu é feito de água, e para ela e para a luz é o meu desejo. Os campos magnéticos ondulam. O sol cintila. Meus pés alimentam-me. Dormi furioso ontem, não falei com Maria (agora me aflora tal nome), mal lavei as mãos sujas de terra, rolei como um diabo antes de conciliar o sono. Acordei dentro da paz. Sou planta.

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Sammis Reachers (Niterói, 1978). Poeta, escritor, antologista e editor. Autor de cinco livros de poesia e um de contos. 1


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