Revista Ordem dos Médicos Nº131 Junho 2012

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histórias da história

Esses mapas constantemente nos informam sobre o estado dos tecidos, sobretudo o grau de contracção da musculatura lisa das vísceras ou dos vasos da derme e sobre a homeostasia do meio interno (pH sanguíneo, glicemia, etc.) -- em suma tudo aquilo que no seu conjunto se designa por interocepção. A formação dos mapas corporais é realçada pela existência das emoções que o psicólogo norteamericano William James propôs em 1884 não passarem de estados corporais determinados por certos actos mentais9. Tratar-se-ia de respostas somáticas involuntárias e inconscientes, tais como rubor e sudoração (que se podem detectar sem o sujeito saber pela medição da condutividade eléctrica cutânea), secreção lacrimal, dor abdominal, secreção de corticóides, -- em resposta a certas situações como uma ameaça na vida real ou recordada pela memória. A percepção dessas alterações corporais pelo cérebro geraria o sentimento do medo ou da zanga. Estas teses de James foram muito contestadas porque parecia mais lógico imaginar que o estímulo psicológico inicial continha já em si a conotação emocional. Mas as neurociências vieram mostrar que ele tinha razão. No caso do medo, o estímulo primário “emocionalmente competente” leva à excitação dum núcleo imerso na substância branca do lóbulo temporal – a amígdala, que por sua vez excita as áreas propriamente executoras das alterações corporais: o eixo hipotálamo- hipofisário para a secreção de corticosteróides, ocitocina ou vasopressina, ou os núcleos dos nervos cranianos causadores dos fenómenos vasomotores e das contracções dos músculos da face e da laringe que mais directamente indiciam as emoções10. De facto, macacos com ablação dos dois lobos temporais que contêm as amígdalas na síndrome de KlüverBucy deixavam de mostrar o terror característico que ocorria quando se lhes aproximava uma cobra8. E

a doente “S.” de Damásio, descrita em “O Sentimento de Si”10 com calcificação amigdalar bilateral, apesar de descrever com precisão cenas tétricas que lhe eram mostradas, não exteriorizava qualquer horror ou repugnância à vista delas. Outros mediadores de emoções, além da amígdala, são os córtices préfrontais ventromedianos adstritos à compaixão ou à tristeza e também responsáveis pela noção de risco dos actos praticados.Toda a primeira parte de “O Erro de Descartes”11 descreve o célebre Phineas Gage que após a destruição daquelas áreas por um ferro projectado por uma explosão numa pedreira continuou lúcido e até intelectualmente brilhante mas desprovido de todas as emoções ligadas ao risco e ao compromisso, que acabaram por o levar à miséria. Outros ainda são o cingulado anterior (Fig. 2) e a área motora suplementar10 (Fig.1). As imagens cerebrais das alterações emocionais corporais, os denominados sentimentos, localizam-se em locais distintos dos córtices imagéticos de projecção que inicialmente captaram os acontecimentos exteriores que deram origem ao processo (Fig. 1). Assim quando a contemplação duma cena trágica é transmitida ao córtex visual, a informação é comunicada à amígdala e desta aos núcleos dos nervos cranianos que desencadeiam as reacções somáticas que denotam medo. Mas só nos apercebemos delas através dos respectivos mapas cerebrais que geram o sentimento correspondente. Tais mapas aparecem primeiro (fMRI) em certos núcleos do tronco cerebral (Fig.2), a saber o núcleo do tracto solitário (NTS) onde termina o nervo vago, os núcleos peribraquiais (PBN) que recebem aferências do resto do corpo via medula espinhal, e os colículos superiores (estas informações são coordenadas pela substância cinzenta periaqueductal PAG); e daí para cima, via tálamo, no córtex da ínsula (Fig. 1) e na parte anterior do córtex cingulado (Fig. 2).

Em conclusão, o nível mais elementar da consciência, que nos torna conhecedores de tudo o que constantemente acontece dentro de nós, devese às imagens cerebrais dos estímulos oriundos do nosso corpo, realçados ou não pelas emoções. Esse nível primário constitui, segundo Damásio, o proto-Eu6. A dor física não é uma emoção porque não tem origem cognitiva mas é devida a uma inflamação ou traumatismo e a sua imagem forma-se no córtex somatossensitivo ou táctil, mas é também acompanhada de medo ou angústia cujo mapa tem localização na ínsula e no córtex cingulado7. Quando aqueles sentimentos emocionais são anulados por hipnose ou leucotomia dores cruciais como a nevralgia do trigémeo tornam-se suportáveis7. O estudo das crianças com hidranencefalia em que o córtex cerebral, o tálamo e os núcleos da base foram destruídos por um AVC fetal, tornou-se um instrumento valioso destas investigações6.Os hidranencefálicos têm visão e audição residuais operadas nos colículos superiores (Fig. 2) que contêm projecções retinianas e do órgão de Corti, nos quais se reproduzem os respectivos mapa sensoriais. Antigamente os colículos superiores (ou tubérculos quadrigémeos superiores) eram considerados apenas parte duma colateral da via óptica que assegurava os movimentos conjugados dos olhos e o reflexo à luz com constrição da pupila12. Hoje sabe-se que podem formar mapas visuais imperfeitos de objectos em movimento6. Assim os hidranencefálicos têm uma noção embora imperfeita do que vêem ou ouvem e nas camadas profundas

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