2016/2
REVISTA MILTON CAMPOS DE ESTUDOS JURÍDICOS
FACULDADES MILTON CAMPOS 2016
REVISTA MILTON CAMPOS DE ESTUDOS JURÍDICOS
2016 REVISTA MILTON CAMPOS DE ESTUDOS JURÍDICOS Rua Milton Campos n. 202, CEP 34000-000 Nova Lima Minas Gerais Brasil
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FACULDADE DE DIREITO MILTON CAMPOS
Entidade Mantenedora Centro Educacional de Formação Superior – CEFOS Presidente: Prof. Pedro José de Paula Gelape Vice-Presidente: Profª. Marcília Duarte Costa de Avelar Diretora Tesoureiro: Vanda Teixeira de Souza Carmo Secretária: Simone de Figueiredo Teixeira Faculdade de Direito Milton Campos Diretora: Profa. Lucia Massara Vice-Diretora: Profa. Tereza Cristina Monteiro Mafra Secretário Geral: Prof. Marcos Afonso de Souza Coordenador Didático-Pedagógico da Graduação: Prof. Jean Carlos Fernandes Coordenadora Geral da Pós-Graduação: Profa. Tereza Cristina Monteiro Mafra Direção da Revista Professor Thiago Lopes Decat Editores Professora Luciana Cristina de Souza Conselho Editorial Antonio Giménez Merino - Barcelona Beatriz Vargas Ramos Gonçalves de Rezende – Unb Elian Pregno - UBA / Argentina Felipe Asensi – FGV Fernando Dantas - UFG Francisco Mata Machado Tavares - UFG Gustavo Silveira Siqueira - UERJ Jean Carlos Fernandes – FDMC Luz Amparo Llanos Villanueva - Peru Mario Losano - Itália Miguel Polaino Orts - Universidad Sevilla Rachel Herdy de Barros Francisco – UFRJ Ricardo Adriano Massara Brasileiro – FDMC Thiago Lopes Decat – FDMC Comissão de Criação e Implementação da Revista Alberto Mateus Sábato e Sousa Andressa Cabral Dias Carolina Rodrigues de Carvalho Costa Fragoso Daniel de Pádua Andrade Gabriel Guedes Meira Henrique Soares Campos Miguel Marzinetti França Priscila Peixoto de Almeida Vilmo Barreto Teixeira Júnior Vinícius Mesquita Simões 3
Presidente da Comissão de Criação e Implementação da Revista Henrique Soares Campos Bibliotecária Emilce Maria Diniz
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Sumário ANÁLISE ECONÔMICA DA MICROEMPRESA: A AFETAÇÃO DA LEGISLAÇÃO TRABALHISTA NA PRETENSÃO ECONÔMICA DO CONTRATO DE EMPREGO ....................................................... 6
A CONVENÇÃO DE 1970 DA UNESCO E A PROTEÇÃO DOS ELEFANTES COMO PROPRIEDADE CULTURAL ........................................................................................................................................... 18
A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR NO CONTRATO LOCATÍCIO ........................................................................................................... 31
A LEI ANTICORRUPÇÃO E A INSTRUMENTALIZAÇÃO DOS PROGRAMAS DE COMPLIANCE NO BRASIL ............................................................................................................................................ 46
A PERSPECTIVA SOCIAL DO DIREITO EMPRESARIAL E A LEI ANTICORRUPÇÃO .................. 58
A POSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO CELEBRADO COM INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS POR MOTIVO DE COAÇÃO ................................................................................. 68
A REPRESENTATIVIDADE SOCIAL NO TRIBUNAL DO JÚRI E SUAS CONSEQUÊNCIAS..........81
A UTILIZAÇÃO DO HABEAS DATA PARA A PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE DOS USUÁRIOS NOS CONTRATOS ELETRÔNICOS.............................................................................................91
RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PERANTE A TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA: CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 71 DA LEI 8.666/1993........................103
A PSICOGRAFIA COMO PROVA NO PROCESSO JUDICIAL: UMA ANÁLISE PARA NOVAS GRAMÁTICAS NO UNIVERSO DO DIREITO............................................................................117
PROSTITUIÇÃO, BONS COSTUMES E NEGÓCIO JURÍDICO: UMA VISÃO CRÍTICA ACERCA DO ASSUNTO.................................................................................................................................131
SER OU NÃO SER: EIS A DECISÃO..........................................................................................146
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ANÁLISE ECONÔMICA DA MICROEMPRESA A afetação da legislação trabalhista na pretensão econômica do contrato de emprego
Henrique Perlatto Moura
Resumo As parcelas decorrentes do contrato de trabalho que possuem o condão de amenizar o desequilíbrio econômico entre empregado e empregador acabam gerando consequências nefastas para o último por meio de uma transferência de ônus estatais para o particular, onerando de forma injustificada o empregador. Palavras chave: Contrato de Emprego; Microempreendedor; Ônus contratual; Estado.
1 INRODUÇÃO As relações de trabalho oneram demasiadamente o pequeno empreendedor, que, muitas vezes, em decorrência dos diversos encargos a este atribuídos, de natureza tributária e trabalhista por exemplo, acaba por ser sufocado e não conseguindo executar o seu objeto social. A Constituição Federal, em seu artigo 3º III, constitui como objetivo da república a erradicação da pobreza. Esta norma é tida como uma disposição programática, não possuindo caráter vinculante ou mesmo coercitivo. O mesmo não ocorre com o direito fundamental à propriedade e à liberdade, constantes no caput do art. 5º da constituição, tidos como direito fundamentais e protegidos por todos os ramos do ordenamento jurídico, com disposições na constituição, código civil, penal, comercial, enfim, em todos os ramos do direito. Assim, em um contexto onde a propriedade privada e a liberdade é protegida, surge por decorrência a liberdade de contratar e dispor do esforço próprio para a circulação de 6
riquezas. Neste contexto de liberdade surge uma intervenção estatal que tem por justificativa o equilíbrio econômico do contrato, que se figura como uma afronta à liberdade de contratual prevista na constituição e no código civil, se edificando no ramo conhecido como direito do trabalho. Essas intervenções, em menor ou maior grau, oneram o empreendedor, em especial o micro e pequeno, que possuem dificuldades práticas de se inserir em mercado competitivo como o do Brasil e acabam, por vezes, não suportando o peso dos encargos 1 que lhe são atribuídos, como será desenvolvido, de maneira muitas vezes fictícia e sem lastro com a realidade. Neste diapasão, será analisado um contrato de emprego regido pelas disposições gerais da CLT, com o intuito de demonstrar com dados concretos o fator de oneração que representam os encargos trabalhistas para este contrato. Nessa mesma linha será discutida liberdade de contratar efetiva e a preservação da empresa com a transferência destes encargos sociais para o pequeno empregador.
2 FUNÇÃO SOCIAL X FUNÇÃO SOCIALIZADORA Muito se discute acerca da função social da propriedade, e diversos posicionamentos podem ser extraídos de tais discussões, nem sempre de coexistência possível, porém. O autor Eduardo Tomasevicius Filho em seu artigo Empreendedorismo e função social da empresa sumariza diversos dos entendimentos supra citados. Os posicionamentos presentes neste trabalho oscilam desde a função socializadora que a propriedade adquire pelas constituições do México e de Weimar, chegando à modernidade com a função sendo somente o lucro, que decorre da função social do contrato. Fato é que esses posicionamentos são incompatíveis entre si, devendo existir algum ponto balizador entre os mesmos. O mesmo autor chega a conclusão que ambos possuem um único elemento em comum, necessitam da existência da empresa para que possam sobreviver.
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Consoante estudo desenvolvido pelos pesquisadores SALADINI, Ana Paula e BRITO, Tiago denominado “A inflexibilidade da legislação trabalhista como obstáculo ao desenvolvimento da pequena e microempresa”, a legislação trabalhista aplicada ao grande empregador é a mesma aplicada ao pequeno, sendo ignorada a capacidade economica dos agentes. Por meio de dados empíricos, demonstra a importância do micro empreendor para a economia brasileira e a fragilidade do mesmo na conjuntura atual, enfatizando a importância da flexibilização da legislação trabalhista aplicável ao grupo citado, com a consequência do alto número de empregos informais.
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Lastreado na conclusão do supra citado autor, surge a ideia de desenvolver o presente trabalho. Sendo a função social algo de difícil apuração, tem-se algumas ferramentas estatais que oneram o particular visando o benefício da coletividade, entre elas o direito tributário e o direito trabalhista. Essa inversão de ônus, atribuindo ao particular deveres que são inerentes ao estado, gera, por muitas vezes, um peso ao empreendedor, especialmente ao pequeno e micro empreendedor, que podem, por muitas vezes, inviabilizar a própria execução da atividade empresarial2 e, relembrando da conclusão do autor acima, uma empresa que não sobrevive não pode cumprir sua função social, qualquer que seja. Finalmente, como pressuposto norteador da pesquisa em tela, será analisada a estrutura de uma microempresa no que tange aos encargos trabalhistas, bem como com a demonstração do ônus imposto pelo estado no contrato de emprego em todas as suas parcelas, com críticas pormenorizadas no que tange ao FGTS. Portanto o objetivo do presente trabalho é elucidar que, caso a pequena sociedade arque com todos os seus encargos, de forma completamente regular, existiria uma dificuldade prática na gestão e na consecução do objeto da mesma, considerando que 99% das sociedades e empresários brasileiros são micro ou pequenas empresas3 para que possa ser quantificado, ainda que em abstrato, o peso atribuído pelo estado na prática da atividade empresarial do Brasil,
3 A INFLUÊNCIA DO PRÍNCIPIO DA PROTEÇÃO E A DERROCADA DA LIBERDADE DE CONTRATAR
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Um estudo desenvolvido pela universidade Chicago Booth, denominado “Barriers to Entrepeneurship”, que tinha como objetivo estudar as barreiras para o empreendedorismo traz uma indagação sobre os impactos da legislação trabalhista neste contexto utilizando um ponto específico, sendo este uma norma que impede ou dificulta a demissão de um funcionário da empresa. Em um mercado com uma norma protetiva forte, o empregado se vincularia a uma empresa de pequeno porte, sem credibilidade do mercado, pois se encontra amparado pela legislação, reduzindo os custos de contratação para o pequeno empreendedor, além de reduzir a margem de crescimento de grandes companhias. O problema enfrentado por esse mercado, pela perspectiva do estudo, é que existem custos de consultoria e custos operacionais fixos que tornariam onerosa a inserção no mercado para o empreendedor. A conclusão do trabalho, que contou com auxílio de dados empíricos, foi de que uma legislação trabalhista muito protetiva inibe fortemente a inserção no mercado para novos empreendedores. 3
Conforme informações dispostas no sítio http://www.sebraesp.com.br/arquivos_site/biblioteca/EstudosPesquisas/mpes_numeros/dados_mpes_brasil_ 2014.pdf Acesso 13 de outubro de 2015.
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O princípio da proteção, conforme preleciona Maurício Godinho em seu clássico manual de direito do trabalho, é a imposição legal de diretrizes que tendem a trazer um equilíbrio para a parte hipossuficiente que se figura como sendo o empregado. Não diverge do posicionamento da doutrina pátria supracitada a construção de teóricos uruguaios, como Américo Plá Rodrigues4, que em sua conceituada doutrina classifica o princípio nos seguintes termos: El principio protector se refiere al criterio fundamental que orienta el derecho del trabajo, ya que éste, em lugar de inspirarse em um proposito de igualdad, responde al objectivo de estabelecer um amparo preferente a una de las partes: el trabajador. As consequências práticas desse referido princípio é uma construção de um contrato onde as partes que pactuam não possuem livre vontade, não possuem autonomia para dispor acerca da relação que venha a ser construída e, em razão deste tratamento, confere uma espécie redoma, na qual o empregado não pode decidir acerca de aspectos banais como o intervalo de jornada e pactuação salarial, que são exaustivamente trabalhados na legislação em comento e limitam o escopo da liberdade contratual, por vezes, em desfavor do empregado que se pretendeu beneficiar com a referida norma. Um exemplo claro da problemática supracitada seria a pactuação da jornada de forma diversa à estabelecida nos ditames da CLT, em que o empregado eventualmente deseje usurfruir de um intervalo intrajornada maior do que o pré estabelecido pela legislação. O empregador que conceder duas horas de intervalo ao invés do pactuado na CLT para obreiros que gozem de uma hora apenas, mesmo que requerido pelo obreiro para passar mais tempo com a família ou qualquer outra razão que o mesmo entenda como necessária a majoração, a legislação interpreta tal disposição como “período à disposição do empregador”, tendo o mesmo, por mera liberalidade, dado ao empregado, enquadrando como período laborado para cômputo de horas extras. O mesmo pode ser evidenciado para empregadores que desejam ofertar bônus de produtividade para seus empregados que se destaquem (desvinculado da produtividade dos mesmos), mas não é autorizado a fazê-lo em razão do instituto da equiparação salarial, que determina que obreiros que exercem igual função, caso não possuam
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RODRIGUES, Américo. Los Principios del derecho del Trabajo. 4ª edición. Montevideo: Fundación de Cultura Univertaria
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diferença de qualificação que impacte na qualidade do serviço, não poderão auferir remuneração diversa de outro. Nestes dois exemplos supracitados, resta claro o engessamento do empreendedor em questões de extrema importância para a dinâmica empresarial, que não são os únicos criados pela legislação trabalhista, com especificidades que dependem do ramo de atuação da sociedade empresária e ao objeto exercido pela mesma. Não objetiva o presente trabalho a tratar da dinâmica filosófica de se a norma trabalhista tem o condão de trazer uma paridade de armas para que o empregado se iguale ao empregador com uma função socializadora (sempre pensada para grandes empregadores), mas sim a implicação prática da norma em sua aplicação perante o microempreendedor, com o consequente engessamento da gestão e a dificuldade de formalizar vínculos de emprego5. Assim sendo, a legislação cria uma série de imposições que, se analisadas em conjunto com a estrutura dos empreendedores brasileiros e a realidade econômica do país, se figuram como obstáculo para a função teleológica do direito do trabalho, que seria dirimir a desigualdade por meio de condições dignas de trabalho. Acabam, assim, por dificultar a consecução da atividade empresarial e, com isso, diminuir a inserção de novos empreendedores no mercado, bem como aumentar os índices de deserção empresarial6. Dentre as imposições supracitadas se encontram: (I) Salário mínimo; (II) Terço constitucional de férias; (III) FGTS; (IV) Gratificações natalinas; (V) Aviso prévio indenizado; (VI) Indenização de 40% sobre o FGTS. Somente serão discriminados os efeitos das três primeiras parcelas em se tratando da análise de contratos de emprego em curso. Todas essas parcelas, porém, se figuram como imposições legais que tem como intuito preservar os direitos do empregado e que, conforme exposto a seguir, muitas vezes não cumprem a função esperada.
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O engessamento da gestão por meio da legislação trabalhista não se figura como benéfica em termos de competitividade internacional, conforme entrevista disponibilizada no sítio http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2013/08/1,21149/leis-trabalhistas-flexiveis-sao-vantagemcompetitiva-na-economia-global.html com o advogado norte americano Johan Lubbe, acessada dia 04 de janeiro de 2016. 6 Conforme estudo publicado no jornal Estado de Minas, houve, com a crise vivenciada pelo país, um aumento dos índices de deserção empresarial, notícia disponibilizada no sítio http://www.em.com.br/app/noticia/economia/2015/09/05/internas_economia,685356/numero-de-empresasfechadas-aumenta-68.shtml, acessada dia 04 de janeiro de 2016.
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Assim, pelo acima exposto, portanto, fica evidenciado que o direito do trabalho não se funda na premissa contratual da liberdade e sim na hipossuficiência e na tentativa de igualar partes desiguais, gerando benefícios substanciais para os empregados.
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DEMONSTRAÇÃO
DOS
REFLEXOS
SALÁRIAIS
NOS
CONTRATOS
TRABALHISTAS: A CLT estabelece disposições gerais apenas, diretrizes que são encaradas como condições mínimas para que possa ser efetuada a prática laborativa de forma regular. Em sendo o empregador em tela um microempresário sem qualquer especificidade, a única norma aplicável aos empregados seria a CLT, sem haver existência de qualquer acordo ou convenção coletiva e outro, para fins de demonstração dos efeitos basilares da transferência de ônus eminentemente estatais ao particular. As jornadas se encontram completamente regulares, sem nenhum labor em regime de sobre jornada, não ensejando nenhum adicional de horas extras, recebendo salários no importe de R$ 800,00 (oitocentos reais), sem qualquer adicional. Todos os mesmos possuem férias, sendo as mesmas acrescidas do adicional legal de 1/3, que são regularmente tiradas e pagas, o FGTS sempre pago no importe de 8% de todo o complexo salarial e os décimos terceiros salários pagos sempre com regularidade. Em se tratando de empreendimento genérico, o mesmo também não possui nenhum passivo trabalhista, nenhuma multa fruto de inspeções do Ministério do Trabalho e Emprego, nenhum litígio de nenhuma sorte. Finda a explanação da estrutura do contrato e da prestação laborativa, passa-se para consolidação e análise dos dados apresentados. Para auferir de forma mais precisa os reais impactos dessa transferência de ônus para o empreendedor, foi construída a seguinte tabela para que seja feita uma análise das informações supra apresentadas.
Parcela de cálculo
Coeficiente
Total
base Salário base
800
12
9.600
Férias
800
1/3
266,70
11
Décimo terceiro
800
1
800
FGTS
10.666,70
8%
853,34
Total
11.520,04
Os valores acima apenas consubstanciam o que foi explanado acima, em sendo o valor base do salário pago aos empregados o importe de R$ 800 reais, o adicional de férias de 1/3, décimos terceiros calculados lastreados nesse valor e FGTS calculado sobre toda a dimensão econômica do contrato. Um empregado, então, cujo custo inicial seria de R$ 9.600,00 reais anuais, custará, em um contrato regido pelas disposições gerais da norma celetista, R$ 11.520,04. O ônus apurado neste contrato que, apenas por envolver uma prestação laborativa protegida de maneira minuciosa pela CLT, custou ao contratante um adicional de R$ 1920,04, sendo que desse valor, os R$ 853,34 a título de FGTS não são repassados de forma direta ao empregado, sendo depositados em uma conta na Caixa Econômica Federal e rendendo juros inferiores aos da poupança. Para cada contrato em curso o empreendedor terá, após calculada a porcentagem, um ônus de 20% somente com os encargos trabalhistas, sem contar os impactos previdenciários e tributários. Com base nessa análise, pode se chegar à conclusão que a cada cinco empregados que este empreendimento empregue, na realidade o custo contratual será, efetivamente de seis contratos equivalentes. Quando se considera o extremo risco empregado na atividade empresarial brasileira e o altíssimo índice de deserção que existe, principalmente nos pequenos empreendimentos, 20% é uma porcentagem absurdamente expressiva para o empresário. Embora algumas das parcelas não se justifiquem no plano fático, sendo o décimo terceiro e o terço constitucional de férias em razão do não labor e, como consequência, a ausência de mérito empregados para a obtenção das mesmas, a mais preocupante parcela paga pelo empregador seria o FGTS. As parcelas pagas sem auferir mérito poderiam se justificar pelo equilíbrio econômico do contrato, a função teleológica do direito do trabalho, que é dirimir desigualdades, e mesmo que sejam argumentos contestáveis encontram amplo respaldo doutrinário e legal com a legislação paternal pátria, o que é de difícil apuração no FGTS.
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O FGTS se figura como uma parcela que foi introduzida como alternativo à estabilidade decenal, que existia na CLT antes da constituição de 1988, que era uma figura extremamente estranha à natureza econômica do contrato de prestação laborativa e, para a prática comercial, um direito de impossível concessão pelo empresário. Com o fim dessa estabilidade, a alternativa foi a obrigatoriedade do FGTS para todos os contratos, que visa garantir ao empregado uma certa estabilidade contra o arbítrio do seu contratante, que se figura como uma nobre causa, trazendo um amparo para o empregado, que deveria ser ofertado pelo estado, mas sendo integralmente custeado pelo particular. A função do FGTS só poderá ser atingida pela indisponibilidade da parcela, pois se esta for disponível para o empregado o mesmo se verá sem qualquer reserva quando ocorrer uma eventual dispensa. A legislação portanto trata o empregado como se incapaz o fosse, sem qualquer condição de se portar em face de seu empregador e o pior, sem capacidade de gerir seus próprios recursos e, enquanto o empregado não dispõe da verba do FGTS, a Caixa Econômica utiliza esse capital como se dela fosse, repassando a título de juros um valor inferior do que os pagos para a poupança, que é sabidamente um dos piores investimentos da atualidade7. Encontra-se em trâmite projeto de lei 8.2948 que visa alterar o presente quadro trabalhista com a exclusão de empregados que aufiram salários mais elevados, com duas faixas salariais, uma para escolaridade mínima correspondendo a nível superior e outra independente de escolaridade. Este projeto possui o condão de proteger os empreendedores que possuem capacidades de contratar empregados de altos cargos, pagando-lhes salários igualmente altos e, em sendo a CLT uma consolidação legal que visa dirimir desigualdades sociais, não seria aplicável a estes contratos. O pequeno empreendedor, por sua vez, se vê mais uma vez desamparado neste contexto. 7
Paulo Emílio R. de Vilhena, em sua obra Direito do Trabalho e Fundo de Garantia, que foi publicado em 1978, apenas 8 anos após o início da vigência da lei que tornou obrigatória a opção pelo FGTS com o perecimento da estabilidade decenal, já definiu o uso desvirtuado da presente parcela nos seguintes termos: "Para além da tutela das relações entre empregado e empregador e (ou) da tonificação da vontade jurídica deste, o economicamente débil, na ascepção de Gallart Folch, cumpre essa disciplina destinações ligadas a programas estatais de desenvolvimento econômico e de bem estar geral (o problema da habitação) fim esse, quanto à sua especificidade, inteiramente estranho àqueles que, direta e concorrentemente, lhe dizem respeito." Mesmo para o autor citada, que se figura como árduo protetor da matéria, o fim de destinação do FGTS lhe parece estranhos se comparados ao do que é objeto de tutela do direito do trabalho, sendo investido em programas de construção civil, como habitação popular. Por fim, o autor justifica esse desvio de finalidade com a geração de empregos e circulação de renda, justifica a qual não seria cabida para desviar uma parcela que se figura eminentemente como salarial para os cofres públicos enquanto perdurar o contrato de emprego, devendo serem feitas tais obras por meio de recursos empregados em tributos. 8 Informações contidas http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1356355&filename=ParecerCTASP-02-07-2015 Acesso em 13 de outubro de 2015.
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A legislação trabalhista gera, como demonstrado, um ônus para o empregador substancial, ele cerceia economicamente a contratação de mais mão de obra para operações de risco. Além dos encargos que esse empreendedor arca demonstrados acima, existem os que podem ser supervenientes, como os referentes à rescisão contratual. E essas verbas merecem uma atenção especial por não serem demonstrados pelos dados acima. A CLT cria um mecanismo de defesa contra a dispensa para o empregado que, a meu ver, é bem interessante pela ótica trabalhista. Existe, na lógica da rescisão, uma repartição de culpa para a aferição de quais parcelas serão devidas. O interessante é que a legislação se preocupou com a forma de dispensa, sendo ela motivada, imotivada, de iniciativa do empregado ou com culpa recíproca. Fato que todas estas gerarão diferentes efeitos econômicos, mas nos importa apenas a dispensa imotivada, que é a mais onerosa para o empregador. A atividade empresarial é dotada de altos e baixos, de oscilações econômicas, imprevisões e muitos riscos e é em razão desses riscos que se justificam os lucros do empreendedor, riscos que não são e não devem ser compartilhados com os empregados 9. Um empreendedor que queira se aventurar, portanto, nesse mercado selvagem terá que considerar, além de todos os riscos inerentes à atividade, uma mais variável, se o seu empreendimento fracassar, devedora de diversas parcelas trabalhistas sua massa falida será. No caso da dispensa imotivada, o empregador se tornará devedor, claro, do salário proporcional até a data da dispensa, do aviso prévio ou indenização do mesmo, e do décimo terceiro proporcional. Além dessas parcelas, deverá FGTS no importe de 8% sobre as parcelas acima, bem como adicional de férias proporcionais e uma multa de caráter repressivo, no importe de 40% do FGTS. Será somente no caso da dispensa que o empregado poderá ter acesso às verbas depositadas a título de FGTS, ressalvada a crítica feita acima, percebe-se que é atribuído um grande ônus para a rescisão contratual, que nada mais é do que o repasse da responsabilidade social inteira para o empreendedor, ficando o estado isento de responsabilidade. Não se encontra abarcado no corpo demonstrativo do trabalho o risco judicial, ou eventuais custos processuais decorrentes de litígios trabalhistas. Apesar de não estar demonstrado nos dados acima o risco, as eventuais condenações, se considerarmos que o rito 9
Um exemplo dissidente da assunção de riscos ocorreu com o TOYOTISMO, um sistema na qual a subordinação clássica (um dos requisitos para a formalização do vínculo empregatício) não mais existia, passando o empregado a auferir maior renda com base na sua produtividade, dividindo com o empregador os riscos da atividade empresarial.
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seguirá o devido processo legal, respeitando os mútuos direitos existentes, estes valores não serão diferentes dos que já deveriam ser arcados pelo empregador. Fato que os gastos não serão meramente da ordem do direito discutido, se estendendo para as eventuais despesas com advogados e custos com o processo, mas as parcelas referentes ao direitos se mantém as mesmas, sendo devidas apenas o que não foi pago no curso do contrato de trabalho. Existe ainda um benefício quando se acerta por via judicial para o empreendedor, que seria o instituto da prescrição. Fato que não é uma sugestão para que exista a precarização do direito do empregado, mas a prescrição, enquanto um grande vilão e impeditivo para o acesso à justiça do empregado, se figura como elemento que desonera o peso econômico do contrato para o empregador, pois se o mesmo alegar a prescrição em sede de preliminar de contestação, o direito exequível será apenas o que passou a existir nos últimos 5 anos. Assim, os efeitos de equilíbrio contratual operam também para o empregador inadimplente, que arcará apenas com parte das dívidas pelo mesmo contraídas10. O risco processual, portanto, demonstra apenas uma parcela que já não foi paga, sendo desviada para outros fins empresariais, e fazer com que o empresário não tenha um prejuízo efetivo com tais condenações, possuindo até uma certa vantagem em termos patrimoniais que, mesmo em contratos com prazos inferiores a 5 anos, em razão da majoração do prazo para quitação do passivo, sem qualquer ônus para tanto.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em linhas curtas, os encargos trabalhistas oneram o contrato de prestação de serviços, em alguns momentos de forma injustificada e, em outros, gerando prejuízos tanto para o obreiro quanto para o seu empregador. Para os contratos em curso regidos apenas pelas regras gerias da CLT, esses encargos representam 20% da pretensão econômica do contrato, ressalvando as verbas rescisórias e adicionais, que podem representar um montante ainda superior. O acesso a justiça se encontra como uma ferramenta ainda favorável para o empregador, quando analisado em conjunto como o instituto da prescrição, que torna o direito 10
O instituto da prescrição, muito discutido por diversos teóricos do direito do trabalho, possui divergências com relação ao início do curso do prazo prescricional, sendo o entendimento do autor Márcio Túlio Viana em seu artigo Os Paradoxos da Prescrição que o início da fluência do prazo deveria ser o fim do contrato de emprego, pois caso seja contado a partir da lesão do direito do mesmo seria um óbice ao acesso a justiça, que é um direito constitucionalmente garantido. Porém, mesmo sendo tal teoria muito bem fundamentada e defendida, não se foi atestada a inconstitucionalidade de tal prazo, não sendo, portanto, aplicada pelos tribunais.
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exequível do empregado o de apenas 5 anos após o fato lesivo ou 2 anos após o fim do contrato. Em suma, o Estado atribui um ônus para o empregador alto e, quando se considera o inadimplemento, o direito do empregado é mitigado no tempo, sem qualquer tipo de indenização. Em contra partida, os pequenos empreendedores que não possuem liquidez e estabilidade financeira, e, por muitas vezes, não conseguem arcar, como os grandes empreendedores, com todos os encargos trabalhistas decorrentes do contrato de emprego, gerando um desequilíbrio prático entre a teoria utilizada como norteadora dos direitos fundamentais do empregado com o plano fático de hipossuficiência, muitas vezes, não do empregado, mas do empregador. Carece, portanto, de alterações no bojo da legislação trabalhista atual para que sejam retirados da marginalidade pequenos empreendedores que, em razão de um território inóspito para o desenvolvimento da atividade empresarial, com todos os encargos tributários que já lhe são impostos, não conseguem arcar também com esse ônus que lhe é incumbido pelo estado por meio da legislação supra mencionada11.
Economical analysis of microenterprises The affectation from the laborite law in the economical pretension of the labor contract
Abstract:
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O embate existente entre estado e empregador não diz, em princípio, nada acerca da relação do empregador e seu empregado. Porém, com uma análise sistemática se evidencia o peso dos tributos no exercício da atividade empresarial, sem o respectivo retorno, seja ele social ou econômico por parte do estado. Esse retorno inexistente se revela mais gravoso quando o empregador que, já tendo arcado com todos os seus tributos, estando neles inclusos contribuições especiais que tem finalidade eminentemente social, ainda é condenado a arcar com encargos trabalhistas que o oneram ainda mais e reduzem, como consequência, a margem de lucro de sua atividade
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The parcels referent to the labor contract have the will to soften the economical unbalance between employer and employee end up generating harsh consequences to the last in result of the transfer of State burdens to the individual, burdening in an unjustified way the employer. Keywords: Labor Contract; Microenterprise; Contract Burden; State.
REFÊRENCIAS DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 10ª Edição. São Paulo: LTr 2011 ESTADO DE MINAS. Número de empresas fechadas aumenta 68%. Disponível: <http://www.em.com.br/app/noticia/economia/2015/09/05/internas_economia,685356/numerode-empresas-fechadas-aumenta-68.shtml>. Acesso em 04 de janeiro de 2016
KLAPPER, Leora; LEAVEN, Luc; RAJAN, Raghuram. Barriers to Entrepeneurship. Disponível: <http://faculty.chicagobooth.edu/raghuram.rajan/research/papers/entrepreneurship_klr_luc_la even.pdf>. Acesso em 04 de janeiro de 2016. PLÁ RODRIGUES, Américo. Los Principios del derecho del Trabajo. 4ª edición. Montevideo: Fundación de Cultura Univertaria, 2015. PORTAL DA INDÚSTRIA. Leis trabalhistas flexíveis são vantagem competitiva na economia global. Disponível: <http://www.portaldaindustria.com.br/cni/imprensa/2013/08/1,21149/leis-trabalhistasflexiveis-sao-vantagem-competitiva-na-economia-global.html>. Acesso em 04 de janeiro de 2016. SEBRAE. Dados Mpes Brasil 2014. Disponível: <http://www.sebraesp.com.br/arquivos_site/biblioteca/EstudosPesquisas/mpes_numeros/dado s_mpes_brasil_2014.pdf>. Acesso 13 de outubro de 2015. TOMASEVICIUS, Eduardo. EMPREENDORISMO E FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA. Revista dos Tribunais, 2014. VIANA, Márcio Túlio. OS PARADOXOS DA PRESCRIÇÃO – Quando o trabalhador se faz cúmplice involuntário da perda de seus direitos. Dísponível: <http://www.trt3.jus.br/escola/download/revista/rev_77/Marcio_Viana.pdf>. Acesso dia 13 de outubro de 2015 VILHENA, Paulo Emílio. Direito do Trabalho e Fundo de Garantia. São Paulo: LTr, 1978. MARANHÃO, Benjamin. Relatório Projeto de lei Nº 8.294, de 2014. Disponível: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1356355&filena me=Parecer-CTASP-02-07-2015>. Acesso em 13 de outubro de 2015.
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A CONVENÇÃO DE 1970 DA UNESCO E A PROTEÇÃO DOS ELEFANTES COMO PROPRIEDADE CULTURAL
Giorgia Araújo da Costa Val Lucas Moreira Alcici
RESUMO O presente artigo propõe a aplicação da Convenção de 1970 da UNESCO, que tem como objetivo a proteção de propriedade cultural, como mecanismo para a proteção dos elefantes. O trabalho abordará a definição de propriedade cultural, as obrigações dos Estados e os benefícios que podem ser obtidos. Palavras-chave: UNESCO. Elefantes. Propriedade Cultural. Direito Internacional Ambiental.
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1. INTRODUÇÃO A proteção da propriedade cultural é um assunto de extrema importância na sociedade internacional, ganhando destaque após o fim da Segunda Guerra Mundial. Em razão do crescimento da preocupação dos Estados sobre esta questão, foram assinados alguns tratados internacionais, dos quais três se destacam (MASTALIR, 1992, p.1034): a Convenção de 1954 da Haia12, sobre a proteção da propriedade cultural em conflitos armados, a Convenção de 1970 da UNESCO13, sobre a proteção contra o comércio ilegal de propriedade cultural, e a Convenção de 1995 do UNIDROIT14, sobre a devolução de objetos culturais roubados. A Convenção de 1970 foi adotada pela Conferência Geral da UNESCO em 14 de novembro de 1970 e entrou em vigor no dia 24 de abril de 1972 (BÁKULA, 2012, p. 2). Sua adoção foi precedida de um documento não vinculante15, que demonstrava a preocupação dos Estados em relação ao tráfico ilícito de propriedade cultural. Considerada o primeiro instrumento multilateral vinculante sobre a proteção de propriedade cultural em tempos de paz, a Convenção da UNESCO foi ratificada até o momento16 por 129 Estados, dentre os quais se destacam os Estados Unidos, a França, o Japão e a Alemanha, países considerados grandes mercados de objetos culturais. Outra preocupação crescente entre os Estados, diz respeito à conservação da biodiversidade e, principalmente, à proteção de espécies ameaçadas de extinção. Por esse motivo, foram assinadas algumas convenções internacionais, dentre as quais se destacam a Convenção sobre Diversidade Biológica e a Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (CITES)17. Dentre as espécies ameaçadas de extinção, o elefante, alvo dos caçadores e traficantes de marfim, merece destaque. A caça ilegal dos elefantes, em especial na África, continua num 12
Sobre a Convenção de 1954 da Haia, ver: POSNER, Eric A. The International Protection of Cultural Property: Some Skeptical Observations. Chicago: The University of Chicago Law School, 2006. 13 Trata-se da Convenção sobre as Medidas para Proibir e Prevenir a Importação, Exportação e Transferência de Titularidade Ilícitas de Propriedade Cultural. 14 Neste trabalho, a Convenção de 1995 do UNIDROIT não será objeto de análise em razão das suas poucas ratificações (apenas 37, até o dia 27 de outubro de 2015), de acordo com o site do UNIDROIT. 15 Sobre os antecedentes históricos da Convenção de 1970 da UNESCO, ver: PROTT, Lyndel V. Strengths and Weaknesses of the 1970 Convention: An Evaluation 40 years after its adoption. Paris: UNESCO, 2012, p.2. 16 Informação do site da UNESCO, atualizada no dia 25 de outubro de 2015. 17 Sobre o regime internacional de proteção da diversidade biológica, ver: SANDS, Philippe. Principles of International Environmental Law. New York: Cambridge University Press, 2003, pp. 499-523.
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nível insustentável, ocasionando a diminuição do número de elefantes africanos. Nos últimos anos, mais de 20.000 elefantes foram mortos anualmente no continente africano, o que é alarmante. O baixo nível de desenvolvimento econômico e fragilidade do governo dos Estados africanos, aliados à alta demanda por marfim, muito em razão do crescente e lucrativo mercado de marfim na Ásia, são considerados os principais fatores para a manutenção da caça aos elefantes em patamares tão altos.18 Este trabalho defende uma nova maneira de proteger os elefantes, utilizando-se dos principais instrumentos internacionais de proteção à propriedade cultural, em especial a Convenção de 1970 da UNESCO.19 Esta Convenção, aliada aos instrumentos de proteção à diversidade biológica, poderá alcançar resultados mais satisfatórios na proteção desta importante espécie ameaçada de extinção. Para se beneficiarem dos mecanismos de proteção da Convenção da UNESCO, os elefantes devem se enquadrar na definição de propriedade cultural. Por isso, será analisada a definição abrangente de propriedade cultural neste tratado, as obrigações dos Estados que o ratificaram e, por fim, os benefícios que poderão ser alcançados pela sua aplicação na proteção desta espécie ameaçada de extinção. 2. DEFINIÇÃO DE PROPRIEDADE CULTURAL NA CONVENÇÃO DE 1970 DA UNESCO: OS ELEFANTES COMO PROPRIEDADE CULTURAL De acordo com a Convenção de 1970 da UNESCO, determinados bens possuem significativo valor científico ou cultural para as nações, e por essa razão fazem jus à proteção especial, tanto por parte do Estado como da sociedade internacional. A mencionada Convenção define como bens culturais aqueles que, por motivos religiosos ou seculares, tenham sido expressamente designados pelo Estado como de importância arqueológica, histórica, literária, artística ou científica. Exige-se, adicionalmente, que os bens indicados como propriedade cultural enquadrem-se nas categorias listadas, de maneira taxativa, no artigo 1. 18
Sobre a situação atual da conservação dos elefantes, da caça ilegal e do comércio de marfim, ver o relatório da 65ª reunião do Comitê Permanente da CITES, disponível em https://www.cites.org/eng/com/sc/65/E-SC65-4201.pdf. 19 Este trabalho foi inspirado pelo tema do caso hipotético da 20ª edição da Stetson International Environmental Law Moot Court Competition, disponível em http://www.stetson.edu/law/international/iemcc/media/20152016%20IEMCC%20Record.pdf.
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A noção de propriedade cultural não faz sentido se desconectada de um contexto cultural específico. Por essa razão, o conceito adotado pela Convenção da UNESCO é intencionalmente amplo, a fim de delegar aos Estados a competência discricionária para definir quais os objetos eivados de significação cultural e de especial interesse para seu povo, uma vez que cada país, em razão de sua história, tem uma percepção distinta do que deve ser protegido como tal. Portanto, tal definição deve ser complementada necessariamente por lei doméstica20. Nesse aspecto, ressalte-se que a Convenção conferiu unicamente ao Estado a capacidade de dizer quais bens deverão ser entendidos como propriedade cultural, não cabendo a grupos étnicos ou indígenas fazê-lo de maneira independente do Estado de que fazem parte (MASTALIR, 1992, p.1042). A importância de se proteger de forma especial os bens entendidos como propriedade cultural diz respeito, em primeiro lugar, à preservação do patrimônio cultural comum da humanidade, cujo conhecimento se faz essencial ao progresso da civilização. Em segundo lugar, se destaca o caráter educacional e a capacidade de tal patrimônio de contribuir com a promoção da tolerância à diversidade cultural. Uma vez que são “testemunhas da cultura e da identidade dos povos” (ECOSOC Resolução 2008/23, preâmbulo) e que constituem “elemento básico da formação da civilização e da cultura dos povos” (Convenção de 1970 da UNESCO, preâmbulo), trazem-nos a informação necessária para a compreensão e a valorização da origem, da história e da tradição dos povos. Em consonância com a cultura de alguns povos, os elefantes, além de sua importância científica e ambiental como espécie que contribui sobremaneira para a manutenção da biodiversidade no ecossistema de que fazem parte – por exemplo, através da dispersão de sementes, (ARTHUR, 2014. p. 241) –, possuem também elevada estima em termos culturais e religiosos. Para diversas culturas, a imagem do elefante é carregada de simbologia, integrando a mitologia, e consequentemente, misturando-se à história e à tradição local (ARTHUR, 2014. p. 242). O corpo do elefante é a matéria-prima utilizada na produção de objetos de valor espiritual e tradicional para diversos povos africanos, normalmente utilizados com o intuito de transmitir poder ou status social. Em Camarões, por exemplo, a imagem do elefante é
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A Convenção do UNIDROIT utiliza os mesmos critérios adotados pela Convenção da UNESCO para definir propriedade cultural (art. 2), no entanto, não impõe aos Estados a obrigação de designar os itens que devem ser entendidos como propriedade cultural. A proteção dessa convenção estende-se a objetos não descobertos ou não escavados, e não é limitada aos objetos devidamente inventariados. (VERES, 2014, p.101).
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conectada à liderança. Em Angola, o elefante é parte fundamental da mitologia. A simbologia do elefante varia consideravelmente ao longo do continente africano, sendo possível identificar, em alguns locais, a imagem do elefante atrelada aos ritos de passagem e, em outros, como um amuleto representativo das qualidades do animal, tais como força, resistência, longevidade, inteligência, memória e lealdade21. Nesse sentido, os elefantes e suas partes, em especial, as presas de onde se obtém o marfim, poderiam se encaixar na definição ampla de propriedade cultural contida no caput do supramencionado artigo 1º da Convenção da UNESCO de 1970. A fim de localizar-se sobre o pálio da Convenção da UNESCO de 1970 é ainda necessário comprovar o amoldamento do elefante em uma das categorias elencadas nas alíneas ‘a’ a ‘k’ do seu artigo 1º. Considerando que o elefante é uma das espécies ameaçadas de extinção listadas nos apêndices I e II, da CITES, depreende-se que a mencionada espécie deve ser entendida como rara. Verifica-se, portanto, a justaposição do elefante à categoria de coleções e exemplares raros de zoologia, prevista no artigo 1(a) da Convenção da UNESCO. Finalmente, para que os países interessados reforcem a proteção conferida aos elefantes, basta que declarem, formalmente, sua condição de propriedade cultural através da edição de lei doméstica, a exemplo da Lei para Proteção de Propriedades Culturais22 do Japão, que engloba, além de objetos culturalmente valiosos, plantas, animais e seu habitat natural. Ainda que a inclusão dos elefantes no rol de proteção da Convenção da UNESCO de 1970 não pareça usual à primeira vista, tal atitude se justifica diante do objetivo final da mencionada convenção, que é o combate ao tráfico internacional de propriedade cultural, através da cooperação internacional. 3. PRINCIPAIS OBRIGAÇÕES DOS ESTADOS NA CONVENÇÃO DE 1970 DA UNESCO E SUA RELEVÂNCIA NA PROTEÇÃO DOS ELEFANTES A Convenção de 1970 não é um tratado autoexecutável e depende da edição, pelos Estados membros, de uma lei interna cujo objetivo seja torná-la aplicável. Por criar obrigações que requerem implementação pela legislação doméstica dos Estados, é possível dizer que sem as leis domésticas, não é possível aplicá-la corretamente (VERES, 2014, p.97). 21
Para mais informações sobre a imagem do elefante na cultura africana, ver: ROSS, Doran H. Elephant: The Animal and Its Ivory in African Culture. Los Angeles: University of California Press, 1995. 22 Para mais informações, ver a Lei para a Proteção de Bens Culturais. Japão, 30 de maio 1950. Disponível em: http://www.wipo.int/wipolex/en/details.jsp?id=6935.
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A Convenção de 1970 prevê uma série de obrigações aos Estados, que devem combater o comércio ilegal de propriedade cultural por todos os meios disponíveis (Artigo 2 da Convenção de 1970 da UNESCO), contudo, algumas merecem destaque e são diretamente aplicáveis na proteção dos elefantes como propriedade cultural. Dentro da definição abrangente de propriedade cultural, e desde que se enquadre numa das categorias predefinidas no tratado, fica a critério de cada Estado determinar o que receberá o status de propriedade cultural e, consequentemente, estará protegido pela Convenção. Para tanto, cada Estado deve classificar e declarar sua propriedade cultural como inalienável, por meio da sua lei doméstica (ARTHUR, 2014, p.239). Deste modo, para que os elefantes e suas partes, tais como seu chifre de marfim, sejam protegidos pela Convenção de 1970, os Estados, em cujo território os elefantes vivam ou transitam, devem declará-los como propriedade cultural, por meio da sua legislação doméstica (SHYLLON, 2000, p.235). Caso contrário, mesmo esses animais sendo considerados de importância histórica, científica e religiosa para muitos povos africanos, estarão à margem da proteção garantida pelo tratado. Além disso, cada Estado é responsável por proteger a propriedade cultural em seu território, devendo tomar medidas no sentido de: estabelecer instituições, tais como museus, bibliotecas e arquivos, dentre outros, para garantir a preservação e a apresentação da propriedade cultural para o público; e criar e manter atualizado um inventário da propriedade protegida. No caso em que o Estado de origem não consiga prevenir o furto da propriedade cultural, a Convenção da UNESCO prevê que os Estados de destino desta propriedade tomem medidas para protegê-la como, por exemplo, impedindo sua entrada em seu território, impedindo que os seus museus adquiram tal propriedade, e recuperando e devolvendo a propriedade ao Estado de origem (Artigo 7 da Convenção de 1970 da UNESCO). No entanto, para fazer jus a tal proteção, a propriedade cultural objeto do tráfico ilícito deve cumprir certos requisitos, como ter sido furtada de museus, ou de instituições similares, além de estar devidamente documentada no inventário desta instituição (ARTHUR, 2014, p.236). No caso dos elefantes, uma espécie de instituição usada para o abrigo e proteção de animais selvagens ameaçados de extinção, equivalente ao museu, seria um parque nacional. 23
Numa primeira análise, o conceito ordinário de museu pode parecer distante ou até incompatível com o conceito de parque, principalmente porque este abriga animais vivos. No entanto, a própria UNESCO, na Recomendação acerca dos meios mais efetivos de tornar os museus mais acessíveis para todos, definiu museu como sendo qualquer estabelecimento permanente que tenha como propósito a preservação e o estudo de espécimes de valor cultural, incluindo jardins zoológicos, jardins botânicos e aquários. A definição utilizada pela UNESCO não deixa dúvidas. Não há nada que impeça a definição de museu como uma instituição que abrigue animais vivos (ARTHUR, 2014, p. 248) e, portanto, a criação ou manutenção de um parque nacional para abrigar os elefantes estaria em consonância com as obrigações do Estado que busca proteger a propriedade cultural no seu território. No parque, os elefantes estariam protegidos e, além disso, seria possível fazer e atualizar o seu inventário, outra obrigação imposta pela Convenção. Cumpridas as obrigações pelo Estado de origem, este poderá pleitear a devolução da propriedade cultural traficada ilicitamente a outro Estado membro. O mecanismo da devolução assenta-se na noção de “propriedade” contida na definição de propriedade cultural. Considerar alguma coisa como propriedade de alguém implica no direito desse indivíduo de possuí-la, ou de tê-la sob o seu controle (MASTALIR, 1992, p.1037). Apesar da ideia de propriedade ser aparentemente contraditória diante da carga comunitária que permeia a noção de patrimônio cultural da humanidade, o reforço dessa ideia é imprescindível para que a proteção da Convenção se dê de forma efetiva. A Convenção da UNESCO não consuma, por si só, a proteção que visa oferecer aos bens culturais, por isso, compartilha a governança do patrimônio cultural internacional com os Estados. Nesse sentido, para que seja possível exigir a devolução, ou até mesmo criminalizar o tráfico ilegal de bens culturais, é necessário apontar o Estado detentor da propriedade do objeto cultural roubado, transferido ou adquirido ilicitamente, que normalmente coincide com o local onde a propriedade cultural foi encontrada ou escavada23. Por essa razão, as Resoluções do ECOSOC nº 2008/23 e 2004/34 incentivam os Estados a afirmarem sua propriedade sobre bens culturais através da emissão de “declarações A Recomendação nº. 2 da Décima Sexta Sessão do “Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno de Propriedade Cultural para os Países de Origem no Caso de Apropriação Ilícita” dá a entender que a necessidade de devolução da esfinge turca que se encontrava em território alemão encontrou fundamento no fato de que o objeto fora escavado na Turquia, e, portanto seria de propriedade turca. 23
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de propriedade” com vistas a facilitar a aplicação do mecanismo da devolução, quando reivindicada. Além do confisco e da devolução da propriedade cultural aos seus países de origem, os Estados devem impor penalidades criminais ou sanções administrativas a qualquer pessoa responsável pelo tráfico da propriedade (Artigo 8 da Convenção de 1970 da UNESCO). Contudo, a Convenção não prevê parâmetros para tais sanções, ficando a critério do Estado estabelecê-las da maneira que entender cabível. Por fim, a Convenção de 1970 prevê que os Estados devem educar seus cidadãos sobre o valor da propriedade cultural e, ainda, alertá-los sobre os danos que podem ser causados ao patrimônio cultural, pela sua comercialização ilícita (artigo 10 da Convenção de 1970 da UNESCO). No contexto da proteção aos elefantes, a educação é considerada uma importante ferramenta (ARTHUR, 2014, p.253), tanto para educar os indivíduos no país de origem, o qual geralmente conta com menos recursos financeiros24 e menores níveis de escolaridade, quanto no país de destino, no qual os indivíduos podem não ter conhecimento sobre uma cultura muitas vezes muito diferente da sua. Em ambos os casos, o conhecimento sobre a importância de preservar a propriedade cultural, dentro e fora da sua cultura, pode servir para que uma parcela maior da população mundial se engaje na proteção dos elefantes, que hoje se encontram ameaçados de extinção. 4. BENEFÍCIOS QUE SERÃO OBTIDOS PELA UTILIZAÇÃO DA CONVENÇÃO DE 1970 DA UNESCO PARA A PROTEÇÃO DOS ELEFANTES Com a utilização da Convenção de 1970 para proteger os elefantes e suas partes, que abrangem o seu chifre de marfim, produto cobiçado pelos caçadores e traficantes, inúmeros benefícios são obtidos visando à proteção dessa espécie de extrema importância para a cultura, história, ciência, religião, agricultura e ecoturismo de vários povos, principalmente na África. A proteção do elefante e de sua presa de marfim pela Convenção da UNESCO torna o tráfico ilícito dessa espécie ameaçada de extinção25, atualmente combatido pelos instrumentos 24
Das 76 apreensões de grande escala de marfim realizadas e reportadas ao ETIS desde 2009, dois terços ocorreram em países asiáticos durante o trânsito ou a importação ilegal, sendo que apenas um terço ocorreu na África antes da exportação, o que demonstra a falta de recursos dos países africanos para combater o tráfico. Informação retirada do relatório da 65ª reunião do Comitê Permanente da CITES, disponível em https://www.cites.org/eng/com/sc/65/E-SC65-42-01.pdf. 25 Além de estar listado nos Apêndice I da CITES, o elefante africano está listado na IUCN Red List of Threatened Species, disponível em http://www.iucnredlist.org/details/12392/0.
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internacionais ambientais, também tráfico ilegal de propriedade cultural. Este constitui uma ameaça ao patrimônio cultural da humanidade, enquanto aquele ocasiona a diminuição da diversidade biológica, acarretando sérios problemas ao meio ambiente, do qual os animais são parte insubstituível. No caso da proteção da fauna, a Convenção da UNESCO objetiva, portanto, servir de suplemento às medidas de conservação previstas na CITES, mas certamente não substituí-la (ARTHUR, 2014, p.251). A própria CITES reconhece, no seu preâmbulo, o crescente valor cultural das espécies selvagens de fauna e flora. Isso demonstra a convergência na proteção encetada por ambas as convenções, bem como a possibilidade da sua aplicação conjunta, a fim de se alcançar, com mais efetividade, o fim por elas pretendido. Além de servir como mais um mecanismo de proteção internacional contra a caça dos elefantes e o comércio ilegal de marfim, atingindo países que ratificaram a Convenção de 1970, mas não ratificaram os demais instrumentos aplicáveis na proteção dos elefantes, este instrumento prevê uma importante e relevante obrigação aos Estados membros, que é o confisco e a devolução da propriedade cultural traficada. No caso do tráfico de marfim, proveniente da matança dos elefantes, a devolução das presas é extremamente benéfica, principalmente pela oportunidade de repatriá-las e usá-las na educação da sua própria população sobre a importância de resguardar a sua propriedade cultural, pois muitas vezes os caçadores e traficantes encontram ajuda dos próprios cidadãos dos países de origem. 5. CONCLUSÃO Dezenas de milhares de elefantes são mortos anualmente, em razão da demanda de mercados ávidos pelo marfim proveniente de suas presas. A caça ilegal e o tráfico de marfim colocam em risco o futuro dessa espécie ameaçada de extinção. A proteção da biodiversidade conferida por tratados internacionais ambientais, como a CITES, vem se mostrando insuficiente para a proteção desses animais. Para vários povos, o elefante, mais do que uma espécie rara da fauna, é também um símbolo cultural e religioso, sendo importante não só para a história dos países em cujo território eles se encontram, mas também para a ciência e a garantia de um meio ambiente equilibrado. Por essas razões, o elefante se encaixaria na definição de propriedade cultural e, consequentemente, poderia ser protegido pela Convenção da UNESCO. Para fazer jus a essa 26
proteção, os Estados devem tomar certas medidas, sendo a mais importante delas, declarar o elefante como propriedade cultural na sua legislação interna. Nesse sentido, buscou-se demonstrar de que forma a inserção dos elefantes no escopo protetivo da Convenção da UNESCO constituiria uma medida adicional e efetiva de proteção dessa espécie. A Convenção de 1970 da UNESCO traz mecanismos eficientes para a proteção da propriedade cultural. Dentre eles, destacam-se a obrigação dos Estados membros em combater o comércio ilegal de propriedade cultural, impedir a entrada no seu território de propriedade cultural traficada, impor penalidades penais ou sanções administrativas, educar os seus cidadãos sobre a importância da preservação dos bens culturais, proteger a sua própria propriedade cultural, por meio da criação e manutenção de instituições e inventários e, talvez aquela que seja a mais importante, o confisco e a devolução ao país de origem da propriedade cultural apreendida. A Convenção da UNESCO prevê a cooperação entre os Estados como mecanismo essencial para possibilitar a preservação da propriedade cultural. É responsabilidade de toda a sociedade internacional atuar em conjunto contra o tráfico ilícito de propriedades culturais. O mesmo ocorre com a proteção da biodiversidade e, em especial dos animais ameaçados de extinção que, juntamente com o patrimônio cultural, constitui a herança comum da humanidade. Tendo em vista as inúmeras garantias, a vasta lista de obrigações dos Estados membros e a ampla aceitação da Convenção da UNESCO, aliadas à compatibilidade entre a proteção da diversidade biológica e a proteção da propriedade cultural, não há razão para se duvidar dos benefícios que podem ser alcançados pela aplicação deste instrumento na proteção dos elefantes. Por essa razão, os Estados devem classificar os elefantes como propriedade cultural na sua legislação doméstica, criar parques nacionais com o objetivo de preservar e inventariar esses animais, educar sua população sobre a importância dos elefantes não só como exemplares da fauna, mas também sob a sua importância cultural, histórica e científica. É extremamente importante que os Estados cooperem entre si, principalmente no que diz respeito ao confisco da propriedade cultural comercializada ilegalmente em seu território, o que pode acontecer com as presas de marfim retirada dos elefantes pelos caçadores e 27
traficantes ou com os próprios elefantes vivos. Além disso, os Estados devem cumprir a obrigação de devolver a propriedade cultural confiscada ao Estado de origem. Somente com o cumprimento das obrigações previstas na Convenção da UNESCO será possível garantir essa proteção adicional aos elefantes, que deve ser complementada pelos demais instrumentos internacionais de proteção da biodiversidade e da legislação interna dos Estados, principalmente no que concerne ao cumprimento das suas obrigações decorrente dos compromissos internacionais. Assim, não basta a ratificação da Convenção da UNESCO, pois o Estado deve declarar o elefante na sua legislação interna como propriedade cultural, pois só assim se tornará efetiva essa maior proteção. Na medida em que os mecanismos de proteção da Convenção da UNESCO se mostrem eficientes no combate à caça dos elefantes e ao tráfico ilegal de marfim, sustenta-se a possibilidade de aplicação da mencionada convenção na proteção de quaisquer outros animais ameaçados de extinção aos quais seja expressamente atribuído valor cultural.
REFERÊNCIAS ARTHUR, Ethan. Poaching Cultural Property: Invoking Cultural Property Law to Protect Elephants. London: Journal of International Wildlife Law & Policy, 17:4, 2014. BÁKULA, Cecilia. Combating trafficking in cultural property. The 1970 Convention: evaluation and prospects. Paris: UNESCO, 2012. Comitê Intergovernamental para a Promoção do Retorno de Propriedade Cultural para os Países de Origem no Caso de Apropriação Ilícita. Recomendação nº 2 da Décima Sexta Sessão. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0018/001896/189639E.pdf. Acesso em: 27 de outubro de 2015. Comitê Permanente da CITES. Relatório da 65ª reunião. Disponível em: https://www.cites.org/eng/com/sc/65/E-SC65-42-01.pdf. Acesso em: 27 de outubro de 2015. ECOSOC. Resolução 2008/23 “Protection against trafficking in cultural property” Disponível em: http://www.un.org/en/ecosoc/docs/2008/resolution%202008-23.pdf. Acesso em: 27 de outubro de 2015. ROSS, Doran H. Elephant: The Animal and Its Ivory in African Culture. Los Angeles: University of California Press, 1995. IUCN. Red List of Threatened Species. Disponível http://www.iucnredlist.org/details/12392/0. Acesso em: 27 de outubro de 2015.
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THE 1970 UNESCO CONVENTION AND THE PROTECTION OF ELEPHANTS AS CULTURAL PROPERTY
ABSTRACT This paper proposes the implementation of the 1970 UNESCO Convention, whose purpose is the protection of cultural property, as a mechanism for the protection of elephants. This paper will address the definition of cultural property, Statesâ&#x20AC;&#x2122; obligations under the Convention and the benefits that can be achieved. Keywords: UNESCO. Elephants. Cultural Property. International Environmental Law.
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A INCONSTITUCIONALIDADE DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR NO CONTRATO LOCATÍCIO
Laura Andra Botelho Yasmin Lanza França
RESUMO
Este artigo pretende demonstrar a plausibilidade do fundamento que considera inconstitucional essa penhora, ao contrário do que considerou o egrégio Supremo Tribunal Federal.
PALAVRAS-CHAVE: impenhorabilidade; fiança; contrato de locação; bem de família.
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1 INTRODUÇÃO
A Lei 8009/90, que trata da impenhorabilidade do bem de família, prevê em seu art. 3º, VII, a fiança concedida em contrato de locação como uma das hipóteses excepcionais em que esse bem pode ser demandado, já que, via de regra, o ordenamento jurídico proíbe essa penhora, protegendo o bem de família como garantia social, pois considera a moradia fundamental a entidade familiar. Contudo, tal garantia é conferida apenas ao locatário, o que obriga o fiador a ceder seu bem de família caso o devedor principal não cumpra com a obrigação contratual. Há a imputação legal de um ônus excessivo ao fiador, enquanto que ao locatário afiançado, será garantida a prerrogativa da proteção do seu bem de família. Há entendimentos conflitantes acerca dessa disposição legal. O STF se posiciona no sentido de considerá-la constitucional, na medida em que não afrontaria o art. 6º da Constituição Federal, no que tange ao direito à moradia, mas com ele se coadunaria. Seria uma forma de propiciar a moradia e não de restringi-la. Por outro lado, há aqueles que interpretam a proteção ao direito à moradia sobre outra perspectiva, a qual, em conjunto com o princípio da isonomia, converge para a inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador. Para solução do problema, será necessário levar em consideração os princípios e teses que se relacionam com a discussão em pauta, objetivando-se demonstrar a inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador nos contratos de locação a partir da interferência do Direito Constitucional na esfera do Direito Civil, a fim de propor uma visão mais adequada ao ordenamento jurídico.
2 FIANÇA NOS CONTRATOS DE LOCAÇÃO
A fiança é instituto legal e está adstrita aos moldes formais, sendo exigida a forma escrita e não se admitindo a interpretação extensiva, em razão das consequências gravosas atribuídas ao fiador.26 Consoante o art. 1647 do CC/02, no caso de fiador casado, exige-se outorga conjugal para que seja válida.
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JUNIOR, Nelson Nery; Nery, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado e legislação extravagante. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.509-510.
Há várias modalidades de garantir o cumprimento de um determinado negócio jurídico. Uma delas é a fiança, que é frequentemente utilizada nos contratos de locação. É estabelecida entre o locador e o fiador, com o intuito de oferecer ao primeiro maior segurança quanto ao adimplemento da obrigação contratual.
Segundo o civilista Caio
Mário da Silva Pereira, locação “é o contrato pelo qual uma pessoa se obriga a ceder temporariamente o uso e o gozo de uma coisa não fungível, mediante certa remuneração”. 27
O fiador assume a obrigação nos exatos termos do contrato ao qual se obrigou o locatário, e em caso de descumprimento por parte deste, poderá ser acionado legitimamente, cabendo a ele o direito de regresso contra o afiançado. Há uma peculiaridade no que tange à fiança no contrato locatício, tendo em vista que, quando se presta fiança, em regra, prevalece a proteção ao bem de família, considerando-o impenhorável para tal fim. Contudo, excepcionalmente, no caso da locação, existe uma previsão legal que extingue essa prerrogativa e permite que o bem de família do fiador seja atingido.28
3 FIANÇA E A IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA
A penhora, sendo algo que pressupõe a responsabilidade patrimonial e a transmissibilidade dos bens, pode ser definida como: 27
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume III. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 272. 28 Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido: I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias; II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato; III -- pelo credor de pensão alimentícia; IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar; V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar; VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. VII - por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação
33
[...] um ato de afetação, porque sua imediata consequência, de ordem prática e jurídica, é sujeitar os bens por ela alcançados aos fins de execução, colocando-os à disposição do órgão judicial para, à custa e mediante sacrifício desses bens, realizar o objetivo da execução. 29
A penhora tem a função de individualizar, apreender e depositar o bem sobre o qual o ofício executivo deverá atuar para dar satisfação ao credor e submetê-lo materialmente à transferência coativa.30 O bem de família é um patrimônio que, em consonância com a sua natureza jurídica, classifica-se como um bem afetado a um destino especial, que seria exatamente a sua vinculação à finalidade de moradia, ou seja, confere proteção ao imóvel residencial e consequentemente à entidade familiar.31 A lei 8009/90 traz em seu art. 5º uma definição do que é considerado residência para efeitos da lei:
Art. 5º Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. Parágrafo único. Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do art. 70 do Código Civil.
A expressão bem de família conceitua-se doutrinariamente como “o imóvel destinado por lei a servir de domicílio da família, estando isento de execuções por dívidas, exceto as relativas a impostos incidentes sobre a mesma propriedade”.32 Dentro de uma interpretação teleológica do instituto, no que tange ao termo família abordado pelo conceito de bem de família, cabe evidenciar que o entendimento atual é no sentido de que não é apenas a família considerada na sua forma convencional, pai, mãe e
29THEODORO
JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Processo de Execução e Cumprimento de Sentença, Processo Cautelar e Tutelas de Urgência, volume II. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 275. 30MICHELI, Gian Antonio. Derecho Procesal Civil. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-america, 1970. vol. lll, p. 155. 31 Marmitt, Arnaldo. Bem de família: legal e convencional. 1ª ed. Rio de Janeiro: Aide editora e comércio de livros ltda, 1995, p. 18. 32Marmitt, Arnaldo. Bem de família: legal e convencional. 1ª ed. Rio de Janeiro: Aide editora e comércio de livros ltda, 1995, p. 15.
34
filho, mas é inclusive sujeito legítimo desse instituto o solteiro, o casal homossexual, entre outras possibilidades, desde que concretizem o requisito de imóvel residencial.33 A lei 8009/90 disciplina o tratamento jurídico conferido ao bem de família que reflete toda a sistemática de proteção ao direito à moradia, ao princípio da dignidade da pessoa humana,
inclusos
no
rol
dos
direitos
e
garantias
fundamentais
assegurados
constitucionalmente. Excepcionalmente, é possível que ocorra a penhora do bem de família, se concretizada hipótese legal do rol taxativo trazido no art. 3º da lei 8009/90. Assim, no caso em que o afiançado torna-se inadimplente com alugueis e estes forem cobrados judicialmente do fiador, ele deverá, se necessário, dispor seu bem de família. Entretanto, o locador, em ação direta face ao locatário, não poderá penhorar tal bem. Dispõe dessa forma o inciso VII do art. 3° da Lei 8009/90, que o locatário inadimplente coloca a salvo da constrição seu próprio bem de família, e, se não possuir outros bens, o locador não alcançará seu crédito, a não ser pelo fiador.34
4 CONTRAPOSIÇÃO DE PRINCÍPIOS E TESES
4.1 Posicionamento do STF
O Supremo Tribunal Federal, ao analisar a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador locatício, decidiu pela sua procedência, ou seja, considerou lícita a penhora realizada sobre o imóvel do fiador. A tese sustentada no recurso foi a que estabelece que essa penhora afrontaria o art. 6º da Constituição Federal, já que, com a reforma e nova redação que lhe foi dada pela EC 26/2000, a moradia passou a estar no rol das garantias sociais. O julgamento contou com apenas três votos favoráveis ao recurso, sendo estes os dos ministros Eros Grau, Carlos Brito e Celso de Melo, tendo, por outro lado, sete votos
33
Marmitt, Arnaldo. Bem de família: legal e convenciona.l 1ª ed. Rio de Janeiro: Aide editora e comércio de livros ltda, 1995, págs. 26 e 27. 34 GONÇALVES, Carlos. Impenhorabilidade do bem de família, 4ª ed. Porto Alegre: Síntese, 1998, p. 194.
35
contrários, dos ministros Cezar Peluso, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. De um lado e dando provimento ao recurso, afirmou-se que o direito à moradia é garantia constitucional, não apenas norma programática, e sua impenhorabilidade é instrumento para proteção do indivíduo e sua família, isto é, da dignidade da pessoa humana. Além disso, evocou-se o princípio da isonomia na medida em que não é plausível que seja protegido o bem de família do locatário afiançado enquanto que o fiador está à margem dessa prerrogativa. Nesse sentido o ministro Eros Graus:
“Quer dizer, sou fiador; aquele a quem prestei fiança não paga o aluguel, porque está poupando para pagar a prestação da casa própria, e tem o benefício da impenhorabilidade; eu não tenho o benefício da impenhorabilidade.” “A afronta à isonomia parece-me evidente.” 35
Por outro lado, o posicionamento majoritário que desproveu o recurso foi no sentido de que é constitucional a penhora, já que ao indivíduo é conferida livre escolha, podendo este ser ou não fiador, levando-se em conta todos os encargos provenientes da garantia quando prestada, entre eles, a perda da proteção ao bem de família. Afirmou o ministro Cezar Peluso que o bem de família do fiador só será alcançado nos casos em que, ao assumir o compromisso de garantir a obrigação locatícia, não tiver outros meios para fazê-lo, se não com o próprio bem de família. Assim, se o fiador vier a invocar a impenhorabilidade deste bem, seria como se estivesse tentando fraudar o instituto da fiança, já que se obrigou a adimplir a prestação locatícia e não terá como arcar com ela. Segundo tal posicionamento, o ministro afirma “(...) ele é um fraudador: declara que pode garantir, mas, na verdade não pode, pois não tem nada para garantir!”
36
Aduziu também que o direito à moradia não está restrito à proteção da propriedade privada, ao contrário, abrange qualquer forma de moradia, considerando-se para tanto a locação. Sendo assim, ao excepcionar a regra de impenhorabilidade do bem de família na hipótese de fiança locatícia, há um incentivo a moradia arrendada, tendo em vista que, como costume de mercado e necessidade do locador, há exigência de garantias hábeis, eficazes, para o adimplemento da obrigação. O ministro César Peluso confirma esse entendimento.
35
http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/543_RE_407688.pdf > visto em 15 de dezembro de 2013.
36
http://www.sbdp.org.br/arquivos/material/543_RE_407688.pdf > visto em 15 de dezembro de 2013.
36
4.2 Princípio da dignidade da pessoa humana
Há
ainda,
teses
principiológicas
que
regem
a
discussão
em
torno
da
constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador nos contratos locatícios, dentre elas infere-se a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana como ratificador da inconstitucionalidade de tal ato. Nesse sentido,
No Estado Democrático de Direito, delineado pela Constituição de 1988, que tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o antagonismo públicoprivado perdeu definitivamente o sentido. Os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária e de erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto é, os valores essenciais – no vértice do ordenamento jurídico brasileiro, que de modo tal é o valor que conforma todos os ramos do Direito. [...] Daí decorre a urgente obra de controle de validade dos conceitos jurídicos tradicionais, especialmente os do direito civil, à luz da consideração metodológica que entende que toda norma do ordenamento deve ser interpretada conforme os princípios da Constituição Federal. Desse modo, a normativa fundamental passa a ser a justificação direta de cada norma ordinária que com aquela deve se harmonizar.37
O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no art. 1º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e é considerado basilar para a formação de um estado democrático de direito, ele norteia o sistema jurídico, servindo de fundamento para elaboração e interpretação de normas, que devem estar voltadas a concretizá-lo, como um fim a se alcançar.38 Esse princípio é marcado pela irrenunciabilidade e coloca em foco a necessidade de tratar o homem como cidadão, como sujeito de direitos e liberdades, sendo o respeito e proteção aos direitos e garantias fundamentais, essenciais à sua existência.39 Dentre os direitos e garantias fundamentais, estão os direitos sociais elencados nos arts. 6º ao 11, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. O art. 6º da CR/88, mais especificamente, traz em seu rol a proteção ao direito à moradia, o qual está
37
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 407.688-8/SP. Relator Ministro Cezar Peluso, j.08 fev. 2006, p. 34, citando MORAES, Maria Celina B. A caminho de um direito civil constitucional. Estado, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 1, 1991. 38 Zisman, Célia Rosenthal. O princípio da dignidade da pessoa humana, 1ª ed. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p.33. 39 Zisman, Célia Rosenthal. O princípio da dignidade da pessoa humana, 1ª ed. São Paulo: IOB Thomson, 2005, p. 25
37
intimamente ligado à dignidade da pessoa humana, na medida em que é um mínimo existencial, ou seja, para que a pessoa tenha condições de manter uma vida plena e digna é necessário que a ela seja garantida uma habitação. Posto isso, é preciso sobrelevar a participação do Estado para propiciar a efetivação do princípio da dignidade, o qual deve permear as relações jurídicas e sociais. Para tal finalidade, existem as normas constitucionais programáticas, as quais têm o escopo de direcionar a postura adotada pelo Estado, criar metas e objetivos para viabilizar e garantir os direitos fundamentais, os direitos sociais, considerando-se o direito à moradia e, consequentemente, o princípio da dignidade de pessoa humana.
As normas programáticas são as que indicam os objetivos sociais a serem atingidos pelo Estado, para melhoria das condições econômicas, socais e políticas da população, com vistas à concretização e cumprimento dos objetivos fundamentais previstos na Constituição. 40
Em face de todas as considerações feitas, conclui-se que as normas programáticas são genéricas e buscam garantias a todos, ou seja, a situação do fiador nos contratos de locação deve ser abarcada por essa proteção. Sendo o fiador sujeito de direitos, a ele deve ser garantido o direito à moradia para que não seja ferido princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. Não se entende por digno penhorar o único imóvel residencial daquele cidadão em virtude de garantias contratuais. O Estado deve criar normas e interpretá-las convergindo para a concretização dos direitos fundamentais, logo, seria inconstitucional preceito legal que exclua o indivíduo dessa proteção.
4.3 Princípio da isonomia
Na discussão a respeito da inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador no contrato de locação, além do princípio da dignidade da pessoa humana, aborda-se o princípio da isonomia como direcionador do conflito.
A Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 dispõe sobre tal princípio da seguinte forma:
40
http://jus.com.br/artigos/21429/controle-externo-da-administracao-publica-hipoteses-dedeterminacao-judicial-de-cumprimento-de-norma-programatica#ixzz2tuAV818s > visto em 20/02/2014.
38
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...).” O principio da igualdade consiste no direito de tratamento idêntico perante a lei, sendo vedadas quaisquer discriminações. Segundo Robert Alexy, o princípio da isonomia
[...] assumiu uma interpretação (...) não apenas como um dever de igualdade na aplicação, mas também na criação do direito. (...) o enunciado geral de igualdade, dirigido ao legislador, não pode exigir que todos sejam tratados exatamente da mesma forma ou que todos devam ser iguais em todos os aspectos. Por outro lado, para ter algum conteúdo, ele não pode permitir toda e qualquer diferenciação e toda e qualquer distinção. É necessário questionar se e como é possível encontrar um meio-termo para esses dois extremos. Um ponto de partida para esse meio-termo é a formula clássica: o igual deve ser tratado igualmente, o desigual, desigualmente.41
Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, pois faz parte do próprio conceito de justiça o tratamento desigual nos casos desiguais, na medida em que se desigualam.42 Assim, a proteção normativa diferenciada condiz com a Constituição da República quando se verifica a existência de uma finalidade proporcional ao objetivo visado. 43
Em decorrência do princípio da isonomia e da dignidade da pessoa humana, surge o princípio da proporcionalidade. Caracteriza-se por existir relações adequadas entre os fins determinados e os meios para se chegar a eles, de forma que o excesso não seja constatado.44 Segundo Stern, citado na obra de Paulo Bonavide, “A inconstitucionalidade ocorre enfim quando a medida é ‘excessiva’, ‘injustificável’, ou seja, não cabe na moldura da proporcionalidade”.45
41
ALEXY, Robert. Teoria dos direito fundamentais. Tradução por Virgílio Afonso da Silva. 5ª edição. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 397. 42
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 27ª edição. São Paulo: Atlas, 2011, p. 59. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Princípio da isonomia: desequiparações proibidas e permitidas. Revista Trimestral de Direito Público, nº 1, p. 79. 44 MÜLLER, apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 393. 43
45
KLAUS STERN, apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 398.
39
No caso em discussão, percebe-se que a medida conferida ao fiador no contrato de locação, de que, se preciso, deve ceder seu bem de família, é excessiva. A lei deve conferir tratamento proporcional aos desiguais, sendo vedada a consagração de relação jurídica desproporcional em circunstâncias normais sob pena de ferir o art. 5º da CR. Assim, no caso em questão, a proporcionalidade é violada. A lei ordinária atribui a uma obrigação acessória com muito mais ônus do que confere à obrigação principal. Nesse sentido, a norma prevê uma consequência mais severa ao garantidor do que ao devedor principal, que é o locatário. Por conseguinte, infere-se ser inconstitucional o disposto no art. 3º, VII da Lei 8009/90, isto é, que o bem de família do fiador seja penhorado no contrato de locação.
4.3.1 A penhora do bem de família do locatário em direito de regresso do fiador
Há situações em que, mesmo o locatário possuindo imóvel próprio, o fiador deve ceder seu bem de família para assegurar o contrato de locação. Isso ocorre devido à proteção conferida ao locatário pela Lei 8009/90. Dessa forma, o locador pode executar o fiador e penhorar seu único imóvel, ao mesmo tempo em que o locatário, maior interessado no contrato, não pode ser executado em seu bem de família. Nesse caso, o fiador é tratado como se devedor originário fosse. Não há sentido na discrepância do tratamento conferido se ambos, fiador e locatário, são devedores solidários. Esse tratamento constitui afronta ao princípio da isonomia, tendo em vista que os particulares são tratados de forma distinta, em se tratando de um mesmo contrato. Percebe-se que o problema está na taxatividade do rol das exceções da impenhorabilidade do bem de família. O art. 3º, VII da Lei 8009/90 não admite interpretação extensiva, e, sendo assim, tal ônus é incumbido apenas ao fiador. O que se defende, entretanto, é que o locatário pode ser demandado em ação regressiva pelo fiador, como dispõe o art. 349 do Código Civil de 2002: “A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores.” Assim, ao adimplir a dívida proveniente do contrato de locação, o fiador se subroga nos direitos do credor, sendo, de tal modo, beneficiado pelo art. 3º. VII da Lei do bem de família. Nesse sentido:
40
EXECUÇÃO - PENHORA - BEM DE FAMÍLIA - FIADOR – SUBROGAÇÃO NO DIREITO DO CREDOR – IMPENHORABILIDADE DO BEM DO DEVEDOR AFASTADA - CABIMENTO – EXEGESE DO ARTIGO 3º, VII, DA LEI 8009/90 E ARTIGO 988, DO CÓDIGO CIVIL O fiador que paga a dívida locatícia do afiançado se sub-roga nos direitos do credor principal, mercê do que, na ação regressiva contra o afiançado, este não poderá invocar a impenhorabilidade do bem de família prevista na Lei 8009/90, uma vez que se trata de obrigação decorrente da fiança. Interpretação que ensejasse ao afiançado livrar-se do pagamento regressivo ao seu fiador, sob o escudo da impenhorabilidade do bem de família, afrontaria o conceito de justiça e vulneraria o princípio da razoabilidade. E. 2TAC São Paulo - AI 701.575-00/1 - 5ª Câm. - Rel. Juiz PEREIRA CALÇAS - J. 27.6.2001 46
Dessa forma, quando o posicionamento é pela constitucionalidade do art, 3º da Lei 8009/90, entende-se que o mínimo a se defender é a legitimidade da ação regressiva do fiador contra o locatário, mesmo que recaia sobre seu único imóvel, não podendo este alegar o benefício da impenhorabilidade. 5 CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade da norma que possibilita a penhora do bem de família do fiador para o pagamento de dívidas do seu afiançado, qual seja o inciso VII, art. 3º da lei 8009/90, tendo como fundamento basilar o princípio constitucional da isonomia, bem como o direito à moradia, o qual está intimamente ligado à efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. Considerando a relevância dos contratos de locação nos dias atuais, defende o STF que a exceção da penhora do bem de família, nesse caso, seria uma modalidade de viabilização do direito à moradia. O ônus gerado ao fiador configuraria um estímulo à habitação arrendada, pois constitui reforço das garantias contratuais. Desse modo, segundo a suprema corte, o locador disponibilizaria mais facilmente seu imóvel ao mercado e, consequentemente, maior seria o acesso à habitação. Entretanto, não se pode tentar ampliar a abrangência do direito à moradia quando, simultaneamente, o direito à moradia do fiador é sacrificado. Não parece coerente desproteger aquele que tem seu bem garantido em prol do que não o tem. Se a intenção da referida norma é assegurar o direito à moradia de certa classe de indivíduos, cabe ao Estado formular novas políticas a fim de fazê-lo (que a residência 46
http://www.advogado.adv.br/artigos/2002/paulopaes/bemfamilia.htm > visto em 30 de março de 2014.
41
familiar seja protegida). Não é plausível que o modelo que se tem, sendo ele o ordenamento jurídico, seja falho e irracional em razão da inatividade do governo. Quando se infere que o fiador apenas estaria exercendo o seu livre arbítrio, na medida em que ninguém é obrigado a sê-lo e, portanto, estaria indiscutivelmente sujeito aos encargos provenientes de tal obrigação, haveria um desestímulo ao instituto da fiança locatícia. Na prática, o mercado de locação acabaria se enfraquecendo, ao considerar que o fiador não se disponibilizará tão facilmente a garantir uma dívida na qual o seu único imóvel pode-lhe ser retirado. Ademais, é plausível asseverar que não há um tratamento isonômico entre o fiador e o afiançado, não havendo, para tanto, um raciocínio jurídico coerente. A justificativa de que o encargo da penhora do bem de família do fiador serviria como incentivo à locação não é consistente e eficiente o suficiente para retirar da proteção constitucional os fiadores. Nessa perspectiva, o fiador se torna encarregado de um ônus muito mais gravoso do que o atribuído ao sujeito principal da relação obrigacional, que no caso, seria o afiançado. A fiança estabelece uma modalidade de garantia secundária, assim, não parece razoável que em face dessa característica, a obrigação secundária, de um devedor indireto, caso descumprida, traga a este um prejuízo maior do que a reservada por lei ao devedor principal. Há uma contradição e um nítido desequilíbrio no tratamento conferido ao fiador e ao afiançado. É, com toda certeza, uma afronta ao princípio da isonomia. Por todo o exposto e, amparado especialmente no princípio da isonomia, é que se conclui pela inconstitucionalidade da penhora do bem de família do fiador locatício.
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THE UNSEIZABILITY OF FAMILY ASSET OF THE GUARANTOR IN LEASE AGREEMENT
ABSTRACT
This article intends to demonstrate the plausibility of this foundation that considers unconstitutional seizure, contrary to what he considered the egregious Supreme Court.
KEYWORDS: unseizability; bail; lease agreement; family asset.
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REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direito fundamentais. Tradução por Virgílio Afonso da Silva. 5ª edição. São Paulo: Malheiros, 2008.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Princípio da isonomia: desequiparações proibidas e permitidas. Revista Trimestral de Direito Público, nº 1.
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JUNIOR, Nelson Nery; Nery, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado e legislação extravagante. 3ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
KLAUS STERN, apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011.
Marmitt, Arnaldo. Bem de família: legal e convenciona.l 1ª ed. Rio de Janeiro: Aide editora e comércio de livros ltda, 1995.
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MÜLLER, apud BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 24ª edição. São Paulo: Malheiros, 2011.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil, volume III. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE 407.688-8/SP. Relator Ministro Cezar Peluso, j.08 fev. 2006, p. 34, citando MORAES, Maria Celina B. A caminho de um direito civil constitucional. Estado, Direito e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 1, 1991.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Processo de Execução e Cumprimento de Sentença, Processo Cautelar e Tutelas de Urgência, volume II. Rio de Janeiro: Forense, 2012.
ZISMAN, Célia Rosenthal. O princípio da dignidade da pessoa humana, 1ª ed. São Paulo: IOB Thomson, 2005. <http://www.advogado.adv.br/artigos/2002/paulopaes/bemfamilia.htm> visto em 30/03/ 2014.
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45
A LEI ANTICORRUPÇÃO E A INSTRUMENTALIZAÇÃO DOS PROGRAMAS DE COMPLIANCE NO BRASIL
Sara Albergaria Oliveira
RESUMO
O presente estudo tece considerações sobre a Lei 12.846 de 01 de agosto de 2013 expondo a problemática da corrupção no Brasil e as respectivas medidas instituídas para mitigar prática da corrupção nas empresas brasileiras, em especial os Programas de Integridade, pois, conforme se observa no cenário internacional, os chamados Programas de Compliance têm se apresentado como uma das prováveis soluções para a corrupção empresarial.
PALAVRAS-CHAVE: Anticorrupção, Compliance, Ética e Integridade Corporativa.
1 INTRODUÇÃO
A corrupção é uma das maiores ameaças à boa governança e ao desenvolvimento político e econômico de qualquer Estado, pois a finalidade precípua deste é o bem comum e para atingi-lo são necessárias ações concretas que demandam recursos, os quais, se bem geridos, podem gerar resultados acima do esperado. A administração desses resultados, por sua vez, é confiada ao Estado, o qual, conforme a dicotomia público-privado, possui um dever co-respectivo a ser exercido no cumprimento de sua função. Assim, a corrupção nada mais é do que uma perversão da dicotomia públicoprivado e, lamentavelmente, esta perversão pode ser identificada de forma clara no cenário sociopolítico do Brasil. No patrimonialismo brasileiro, o Poder Estatal é tido não como um dever, mas como um direito daquele que é investido da função pública, passível de ser exercido com pessoalidade. Uma evidência disso é o estudo realizado pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), apontando que a cada ano, entre R$ 50 bilhões e R$ 84 bilhões, o equivalente a 2,3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, são perdidos para a corrupção47. Contudo, embora o Direito brasileiro já possua normas de combate à corrupção, até a edição da Lei 12.846/2013, o arcabouço jurídico nacional ainda se mostrava faltante em alguns aspectos tais como a imputação de responsabilidade às pessoas jurídicas pelo cometimento de atos de corrupção. Nesse sentido, em atendimento aos compromissos 47
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; FREITAS, Rafael Véras de. A juridicidade da Lei Anticorrupção: reflexões e interpretações prospectivas. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 156, p. 9-20, fev. 2014, p. 9.
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assumidos pelo Brasil perante organismos internacionais e através da ação catalizadora das manifestações populares ocorridas em junho de 2013, o Congresso Nacional aprovou a Lei Anticorrupção e, em 1º de Agosto de 2013, a presidente Dilma Rousseff a sancionou, entrando em vigor em 29 de janeiro de 2014. A nova Lei representa uma evolução no contexto legislativo brasileiro em termos de iniciativas de combate à corrupção, pois introduz pela primeira vez os programas de Compliance empresarial como estratégia para coibir a prática da corrupção. O termo adotado na Lei brasileira foi “Programas de Integridade”, porém a essência do instituto é a mesma do Compliance adotado no Direito norte-americano e em vários outros países. Mais de um ano após a publicação da Lei, a Presidente Dilma Rousseff assinou o Decreto 8.420 de 18 de Março de 2015 para realizar a imprescindível regulamentação da norma, esclarecendo, dentre outros aspectos, os parâmetros principais de um efetivo Programa de Integridade. Diante disso, impende analisar com cautela as disposições trazidas pelo diploma novel, tarefa a qual se dedica o presente ensaio. Para tanto, percorrer-se-á o seguinte itinerário: inicialmente, será apontado o fundamento constitucional e principiológico para a edição de uma Lei Anticorrupção para o País; em seguida, serão feitos comentários pontuais sobre os principais aspectos da Lei, tais como a sujeição passiva, a responsabilidade pelos atos, os tipos administrativos previstos, as sanções, os programas de Compliance e por fim, o acordo de leniência.
2 FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL PARA A EDIÇÃO DA LEI 12.846/2013
Conforme afirma o artigo primeiro do diploma novel, a norma “dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou mesmo estrangeira (…)”. 48 A administração aqui tratada é a Administração dos três Poderes da República, em todas as esferas de governo — União, Distrito Federal, estados e municípios —, de maneira a criar um sistema uniforme em todo o território nacional, fortalecendo a luta contra a corrupção de acordo com a especificidade do federalismo brasileiro. 49 Assim, a ratio da Lei nº 12.846/2013 se assenta no princípio da moralidade administrativa de acordo com o qual “a Administração e seus agentes têm de atuar na conformidade de princípios éticos”. 50 Contudo, os mecanismos de controle dos atos violadores do princípio da moralidade administrativa atualmente se estendem aos agentes privados que financiem tais práticas, pois, embora os indivíduos não estejam compreendidos sob o princípio da legalidade administrativa, admite-se a extensão de seus efeitos aos particulares sob a ótica do princípio da legalidade tomado em sentido amplo, ou seja, não se
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BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2015. 49 BRASIL. Exposição de Motivos do PL n o 6.826/2010. Secretaria de Relações Institucionais, Subchefia de assuntos parlamentares. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/projetos/EXPMOTIV/EMI/2010/11%20%20CGU%20MJ%20AGU.htm> Acesso em: 04 de outubro de 2015. 50 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, Editora Malheiros Editores LDTA., 2005, p. 107.
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o restringindo à mera submissão à lei, como produto das fontes legislativas, mas de reverência a toda a ordem jurídica. 51 Antiteticamente, a corrupção propicia a apropriação privada de recursos públicos que deveriam ser investidos na persecução das finalidades do Estado, em frontal violação aos objetivos de uma Constituição dirigente. Daí emana a constitucionalidade da Lei nº 12.846/2013, uma vez que esta reprime condutas de agentes privados que fomentem a prática de imoralidades por servidores do Estado, estabelecendo sanções e instrumentos administrativos para a sua persecução. 52 Contudo, como toda legislação recente, ainda não houve tempo suficiente para que a doutrina e a jurisprudência assentassem entendimento sobre os temas mais relevantes da Lei nº 12.846/2013 e alguns deles, inclusive, tem sido objeto de certa controvérsia interpretativa de como aplicá-los. Nesse sentido, a processualística da persecução de atos de corrupção (prevista no Capítulo VI, artigos 18 et seq., da Lei nº 12.846/2013) não será abordada no presente artigo, pois muitos aspectos somente serão esclarecidos na medida em que se ajuizarem as primeiras demandas judiciais aplicativas, quando os especialistas haverão de se manifestar sobre inovações e controvérsias que aflorarão.
3 PRINCIPAIS ASPECTOS DA LEI 12.846/2013
3.1 Sujeição passiva
A Lei 12.846/2013 se destina a sociedades empresárias e sociedades simples, independentemente da forma de organização ou modelo societário adotado e quaisquer fundações, associações de entidades ou pessoas, ou sociedades estrangeiras, que tenham sede, filial ou representação no território brasileiro. Na hipótese de alteração contratual, transformação, incorporação, fusão ou cisão societária, subsiste a responsabilidade da pessoa jurídica, limitada a obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado (solidariedade ou sucessão).
3.2 Responsabilidade dos atos
A responsabilidade civil é gênero do qual são espécies a responsabilidade subjetiva e a responsabilidade objetiva. Quanto à distinção, elucida César Fiuza:
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MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; FREITAS, Rafael Véras de. A juridicidade da Lei Anticorrupção: reflexões e interpretações prospectivas. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 156, p. 9-20, fev. 2014, p. 9. 52
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; FREITAS, Rafael Véras de. A juridicidade da Lei Anticorrupção: reflexões e interpretações prospectivas. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 156, p. 9-20, fev. 2014, p. 12.
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A responsabilidade que se baseia na culpa do autor do ilícito denomina-se subjetiva, por ter como base o elemento subjetivo, culpabilidade. Já a responsabilidades sem culpa recebe o nome de responsabilidade objetiva, por se basear apenas na ocorrência do dano.53
O artigo 2º da Lei 12.846/2013 estabelece a responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas por atos de corrupção, nos seguintes termos: Art. 2º As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não. 54
Assim, a nova Lei introduz a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica envolvida em casos de corrupção praticados em seu interesse ou benefício, independentemente da comprovação de ter agido de má-fé ou com negligência, ou seja, basta a existência de benefício em favor da pessoa jurídica para que esta deva ser punida. Nesse sentido, a vítima dos danos provocados pela prática das condutas ilícitas é o patrimônio público nacional ou estrangeiro, os princípios da administração pública ou os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Assim, os danos sofridos, por exemplo, pelo patrimônio público brasileiro em decorrência da prática de ato ilícito, não poderiam deixar de ser reparados meramente por não ser possível identificar o sujeito que provocou diretamente o dano, desde que a conduta seja imputável a uma empresa. Dessa maneira a Lei 12.846/2013 é a primeira entre todas as demais leis que compõem o “Sistema legal de defesa da moralidade” 55 que se encarrega de imputar sanções às pessoas jurídicas pela prática de atos de corrupção. Enquanto em outras leis o foco era no funcionário que cometia o ilícito, na nova Lei o foco está na empresa. Esta inovação reflete o crescente questionamento da sociedade sobre o papel desempenhado pela empresa envolvida em práticas de corrupção, cobrando consequências e responsabilização adequadas para o agente corruptor, não se satisfazendo com a penalização exclusiva do agente corrupto. 56 Além disso, o artigo 3o da Lei dispõe ainda que “a responsabilização da pessoa jurídica não exclui a responsabilidade individual de seus dirigentes ou administradores ou de qualquer pessoa natural, autora, coautora ou partícipe do ato ilícito.” 57 Logo, depreende-se que os dirigentes ou administradores das pessoas jurídicas envolvidas na prática de atos de corrupção só serão responsabilizados na medida de sua 53
FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 15 edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 333 e 335. BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em 04 de outubro de 2015. 55 Tal diploma ingressa no denominado “sistema legal de defesa da moralidade”, conformado pela Lei no 8.429/1992 (Lei de combate à improbidade administrativa); pela parte penal da Lei de Licitações e Contratos Administrativos (artigos 90 et seq. da Lei no 8.666/1993); pela Lei no 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência); pela Lei Complementar no 135/2010 (Lei da Ficha Limpa); pelos artigos 312 et seq. do Código Penal, que disciplinam os crimes praticados contra a Administração Pública. 56 DEBBIO, Alessandra Del; MAEDA, Bruno Carneiro; AYRES, Carlos Henrique da Silva. Temas de Anticorrupção & Compliance. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. Página 170. 57 BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2015. 54
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culpabilidade, ou seja, há que se comprovar que agiram orientados pelo dolo específico de lesionar a probidade da Administração Pública. 58 Todavia, o §1o do art. 3o da Lei 12.846/2013 prevê que “a pessoa jurídica será responsabilizada independentemente da responsabilização individual das pessoas naturais”.59 Logo, embora não seja necessário comprovar o envolvimento de nenhuma pessoa física no ato ilícito para que a empresa sofra a sanção, a lei não impede a responsabilização individual da pessoa natural que praticou o ato ilícito. Note-se, portanto, que o regime jurídico de responsabilização das pessoas naturais envolvidas em atos de corrupção é diverso do das pessoas jurídicas; enquanto para estas a responsabilidade é objetiva, para aquelas a responsabilidade é subjetiva.
3.3 Tipos administrativos previstos
A Lei 12.846/2013 cuidou de tipificar, em seu artigo 5o, o rol de ilícitos administrativos sancionáveis em seus próprios termos, cujo caput prescreve:
Art. 5o: Constituem atos lesivos à administração pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do art. 1o, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:60
Analisando mais atentamente o caput do artigo 5o da Lei Anticorrupção, observa-se que as pessoas jurídicas devem acautelar-se não só de suas relações com o poder público, como também com seus clientes, fornecedores, parceiros e outras partes, tendo em vista que podem tratar-se de agentes públicos de acordo com tal definição. Já no tocante à previsão legal que abrange atos praticados contra a Administração Pública estrangeira, esta guarda liame com o aumento dos negócios transfronteiriços e o consequente surgimento de situações nas quais funcionários públicos interagem com investidores internacionais em transações que envolvem montantes milionários, criando oportunidades para subornos.61 Nesse sentido, os parágrafos do artigo 5o da Lei 12.846/2013, trazem o conceito de 58
MAGALHÃES, João Marcelo Rego. Aspectos relevantes da lei anticorrupção empresarial brasileira (Lei no 12.846/2013). Revista Controle, Doutrina e Artigos do Tribunal de Contas do Estado do Ceará, p. 26. 59
BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2015. 60 BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em 04 de outubro de 2015. 61 RAMINA, Larissa. A Convenção Interamericana contra a corrupção: Uma breve análise. Revista Direitos Fundamentais & Democracia, UniBrasil, Vol. 06, 2009, p. 2.
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Administração Pública estrangeira e os incisos I, II e III, do mesmo dispositivo tratam dos tipos administrativos gerais, que se configuram como atos de corrupção, nos seguintes termos:
I. II. III.
Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente, vantagem indevida a agente público ou a terceira pessoa a ele relacionada; Comprovadamente financiar, custear, patrocinar ou de qualquer modo subvencionar a prática dos atos ilícitos previstos nesta lei; Comprovadamente utilizar-se de interposta pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados. 62
Quanto ao inciso I, assemelha-se ao crime de corrupção ativa previsto no artigo 333 do Código Penal: “Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício”. 63 Observa-se de plano que tanto o tipo administrativo previsto na Lei 12.846/2013, quanto o tipo penal se tratam de tipos formais, ou seja, independem da produção de resultado para que sejam consumados. A lesão ao bem jurídico tutelado por este dispositivo se dá pela simples oferta de quantia financeira pelo particular, independentemente se o servidor público aferiu acréscimos patrimoniais.64 Já as condutas previstas nos incisos II e III, tratam-se de tipos administrativos materiais, pois dependem do resultado para a sua consumação. Nesse sentido é necessário haver prova do recebimento das vantagens ilícitas constante nos autos do processo administrativo sancionatório. Ademais, o dispositivo prevê ainda o ilícito de: V. Dificultar investigação ou fiscalização de agentes públicos, inclusive no âmbito de agências reguladoras e órgãos de fiscalização do sistema financeiro.65
Por fim, o inciso IV prevê, nas alíneas “a”, “b”, “c”, “d” e “f”, atos de corrupção envolvendo licitações e contratos administrativos, nos seguintes termos: IV.
No tocante a licitações e contratos: a) Frustrar ou fraudar o caráter competitivo do processo licitatório; b) Impedir, perturbar ou fraudar a realização de ato licitatório; c) Afastar ou procurar afastar licitante por meio de fraude ou oferecimento de vantagem;
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BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2015. 63 BRASIL. Decreto-Lei n 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decretolei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2015. 64 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; FREITAS, Rafael Véras de. A juridicidade da Lei Anticorrupção: reflexões e interpretações prospectivas. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 156, p. 9-20, fev. 2014, p. 14. 65 BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2015.
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d) Fraudar licitação pública ou contrato; e) Criar, de modo fraudulento, pessoa jurídica para participar de licitação ou contrato; f) Obter vantagem ou beneficio indevido de modificações ou prorrogações contratuais; g) Manipular o equilíbrio econômico financeiro dos contratos celebrados; h) Prometer, oferecer ou dar, direta ou indiretamente. (Basta oferecer ou prometer um beneficio para criar responsabilidade). 66
Note-se que a maior parte dos tipos previstos nesse dispositivo diz respeito à prática de condutas colusivas em procedimentos licitatórios (cartéis), as quais dependem da comprovação do dolo específico do agente privado de violar o princípio da competividade das licitações.67 São estes os tipos administrativos vedados pela Lei 12.846/2013.
3.4 Sanções administrativas
Ainda que relativamente modesta na quantidade de tipos previstos se comparada a normas semelhantes de outros países, a Lei 12.846/2013 não economizou nas sanções, prevendo, aliás, penalidades bastante duras para as empresas infratoras. Na esfera administrativa, as empresas poderão ser sancionadas com multa de até 20% do faturamento bruto e, caso não seja possível estimá-lo, a multa poderá chegar até R$ 60 milhões. Diante da estipulação de montantes vultosos, capazes até mesmo de inviabilizar a própria atividade da pessoa jurídica sancionada, há que se valer, quando da fixação da sanção, do princípio da proporcionalidade e a natureza instrumental da sanção administrativa, que em hipótese alguma deve ter fins arrecadatórios, como se expôs em artigo específico sobre o tema:
No Direito contemporâneo, com o aumento da complexidade regulatória, cada vez mais se ampliam os meios postos à disposição dos reguladores para conduzir os comportamentos dos regulados na direção do interesse público. Castigar é só um desses meios — aliás, um velho meio. Mas a punição não é um fim em si mesmo: é simples instrumento da regulação, para obter os fins desejados. Como os mesmos fins muitas vezes são atingíveis de modo mais rápido, mais barato, mais certo — e mesmo de modo mais justo — com a utilização de meios alternativos, cada vez mais o Direito os vem valorizando.68
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BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2015. 67 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; FREITAS, Rafael Véras de. A juridicidade da Lei Anticorrupção: reflexões e interpretações prospectivas. Fórum Administrativo – FA, Belo Horizonte, ano 14, n. 156, p. 9-20, fev. 2014, p. 15. 68 SUNDFELD; CÂMARA. Acordos substitutivos nas sanções regulatórias. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, p. 9-26.
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Não menos severa é a sanção de publicação da decisão condenatória, pois os escândalos de fraude divulgados na mídia se encarregam de assolar a reputação dos estabelecimentos envolvidos, como é o caso dos recentes escândalos do “Mensalão” ou a “Operação Lava-Jato”. Nesse sentido o artigo 22 da nova lei cria o Cadastro Nacional de Empresas Punidas (CNEP), que visa reunir e dar publicidade às sanções aplicadas pelo Poder Público às pessoas jurídicas condenadas por eventuais descumprimentos ao referido ordenamento. Tal registro de informações é regulado pela Instrução Normativa n. 2 de 7 de abril de 2015. É importante lembrar ainda que estas sanções não excluem o dever de reparação do dano, pois a condenação torna certa a obrigação de reparar, integralmente, o dano causado pelo ilícito, cujo valor será apurado em posterior liquidação, se não constar expressamente da sentença, conforme o artigo 21 do diploma legal. Já na esfera judicial a empresa que não agir dentro das regras poderá perder bens que sejam fruto da infração, ter as atividades suspensas, além de ser excluída do recebimento de empréstimos de instituições públicas por até 5 anos e, por fim, a sanção de dissolução compulsória da pessoa jurídica, que configura verdadeira “pena de morte”. A responsabilidade da pessoa jurídica na esfera administrativa, não afasta a possibilidade de sua responsabilização na esfera judicial, portanto as sanções poderão ser aplicadas de forma isolada ou cumulativa.
3.5 Programas de integridade/ “Compliance”
Diante de tal cenário, as empresas certamente terão de adotar novas estratégias para se resvalarem do enquadramento em práticas de corrupção, tendo em vista que se um funcionário comete o ato, já é motivo suficiente para responsabilização da empresa. É bem verdade que, em consonância com o princípio da consensualidade administrativa, as entidades administrativas devem considerar a aplicação de penalidades como ultima ratio. Nesse sentido, o artigo 7o da Lei 12.846/2013 dispõe sobre critérios para a dosimetria das sanções previstas, são eles:
Art. 7o Serão levados em consideração na aplicação das sanções: I - a gravidade da infração; II - a vantagem auferida ou pretendida pelo infrator; III - a consumação ou não da infração; IV - o grau de lesão ou perigo de lesão; V - o efeito negativo produzido pela infração; VI - a situação econômica do infrator; VII - a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações; VIII - a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica;
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IX - o valor dos contratos mantidos pela pessoa jurídica com o órgão ou entidade pública lesados. Parágrafo único. Os parâmetros de avaliação de mecanismos e procedimentos previstos no inciso VIII do caput serão estabelecidos em regulamento do Poder Executivo federal. 69 (grifo nosso)
Como se pode extrair do dispositivo citado, a lei induz as empresas à adoção de mecanismos eficazes de controle interno na medida em que prevê como circunstância atenuante o fato de o agente sancionado dispor de uma estrutura interna de prevenção de atos de corrupção, que, nos moldes do inciso VIII, deve compor-se de: mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria, incentivo à denúncia de irregularidades e códigos de ética e de conduta. Tais determinações introduzem no Direito brasileiro a previsão do que internacionalmente denomina-se “Programas de Compliance”. Embora a nomenclatura “Compliance” seja aplicável, em sentido amplo, a mais de uma área do Direito, no âmbito que aqui se pretende analisar, o termo designa os esforços adotados pela iniciativa privada para garantir o cumprimento de exigências legais e regulamentares relacionadas às suas atividades bem como à observância aos princípios de ética e integridade corporativa. Quanto aos parâmetros de avaliação de tais mecanismos e procedimentos, estes foram estabelecidos nos artigos 41 e 42 do Decreto Regulamentar 8.420 de 18 de Março de 2015 assinado pela Presidente Dilma Rousseff, o qual cuida de esclarecer pontos essenciais à aplicação da norma. Contudo, frisa-se que o Compliance vai além de uma mera conformidade legal, adoção de códigos de ética e implantação de canais de denúncia, o objetivo dos programas é precisamente gerenciar riscos que devem ser analisados de acordo com as atividades e características inerentes a cada pessoa jurídica. O chamado “Compliance Risk” foi definido de forma categórica no discurso de um dos membros do Conselho de Administração da FED (Federal Reserve System) norte- americano, Mark Olson, conforme segue:
É o risco de sanções, perdas financeiras ou danos à reputação e imagem que uma Organização pode sofrer como resultado de falhas no cumprimento da aplicação de leis, regulamentações, normas e procedimentos, código de ética e conduta e das boas práticas impostas pelos órgãos reguladores aplicáveis ao negócio. 70
Destarte, pergunta-se: como os programas de Compliance poderiam se tornar uma das possíveis soluções para a o corrupção? Ora, tendo em vista a severidade das sanções previstas para atos de corrupção praticados por quem quer que seja, contanto que gerem benefício à pessoa jurídica, as empresas, evidentemente, terão interesse em se resguardar do risco de serem punidas. Para tanto, cada pessoa jurídica deverá se empenhar na estruturação de seus próprios Programas de Integridade (Compliance), demonstrando às 69
BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2015. 70 Federal Reserve Board Governor Mark Olson ́s June 12, 2006 Disponível em: <http://www.federalreserve.gov/newsevents/speech/olson20060612a.htm. > Acesso em: 25 de outubro de 2015.
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autoridades o seu empenho em evitar que a corrupção ocorra e, por conseguinte, caso algum funcionário seu pratique atos de corrupção, a empresa sofrerá uma punição menos severa do que o previsto, pois atuou de maneira diligente e preventiva ao adotar um Programa de Integridade (Compliance). Entretanto, para que os Programas de Integridade configurem, de fato, uma atenuante, é necessário o efetivo funcionamento de controles internos, planos de contingência e continuidade, identificação de perdas, treinamento de colaboradores, regulamentação criteriosa das relações com terceiros etc. pois, conforme explanado anteriormente, o Compliance deve se adaptar às atividades e características inerentes a cada pessoa jurídica.
3.6 Acordo de leniência
Outra possível atenuante de grande importância emerge do “acordo de leniência” mediante o qual a pessoa jurídica poderá obter a isenção das sanções previstas no inciso II do artigo 6o (publicação da condenação) e do inciso IV do artigo 19 (proibição de receber incentivos, subsídios, empréstimos etc.), além da redução da multa administrativa em até dois terços, não ficando desobrigada, contudo, de reparar o dano causado à Administração. Tal instituto, importado do Direito Concorrencial 71, encontra-se previsto no artigo 16 da Lei 12.846/2013, nos seguintes termos:
Art. 16. A autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública poderá celebrar acordo de leniência com as pessoas jurídicas responsáveis pela prática dos atos previstos nesta Lei que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo, sendo que dessa colaboração resulte: I - a identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; e II - a obtenção célere de informações e documentos que comprovem o ilícito sob apuração. 72
Trata-se, portanto, de uma via negocial facultada à Administração Pública pela Lei, sob algumas condições, as quais se encontram dispostas no § 1o do mesmo artigo:
§ 1o O acordo de que trata o caput somente poderá ser celebrado se preenchidos, cumulativamente, os seguintes requisitos: I - a pessoa jurídica seja a primeira a se manifestar sobre seu interesse em cooperar para a apuração do ato ilícito; II - a pessoa jurídica cesse completamente seu envolvimento na infração 71
No âmbito do Direito Concorrencial, o acordo de leniência tem previsão no art. 86 da Lei no 12.529, de 30 de novembro de 2011. 72
BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em 04 de outubro de 2015.
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investigada a partir da data de propositura do acordo; III - a pessoa jurídica admita sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento.73
Portanto, o “Acordo de leniência” consiste em um ato administrativo complexo cujo objeto é flexibilizar a aplicação de penalidades, conduta imperativa da Administração Pública, substituindo-a por outra secundariamente negociável.
4 CONCLUSÃO
A corrupção é um mal que assola toda a humanidade, assim, o cenário internacional tem se mostrado cada vez mais endurecido no combate à corrupção com a criação de novas legislações anticorrupção em vários Países, prevendo severas sanções contra atos de corrupção. A exemplo disso tem–se a lei americana de 1977 (Foreing Corruption Practices Act), cujas dez maiores autuações somam cerca de 3 bilhões de dólares. Nesse sentido, conclui-se que quando se trata da prática de atos de corrupção existe uma lógica por trás das condutas das pessoas jurídicas que se baseia fundamentalmente em uma relação de “custo-benefício”, ou seja, se o custo da integridade for maior que o benefício da corrupção, as empresas se submetem ao risco inerente às práticas corruptas. Portanto, as elevadas sanções cumprem um papel de desincentivo à corrupção, pois fazem com que a mesma deixe de “valer a pena” e, paralelamente a isto, o Compliance se encarrega de incentivar a integridade, pois garante a amenização das sanções somente para aquelas empresas que cuidam de constituir e provar que possuem um Programa de Integridade (Compliance) efetivo. Evidenciada a importância dos Programas de Integridade, ressalta-se ainda a sua colaboração para valorizar a imagem brasileira no cenário internacional na medida em que as Organizações Multinacionais terão incentivos renovados para direcionar seus investimentos ao Brasil, uma vez que o ambiente negocial do país se reveste de maior transparência e segurança jurídica. O nível de corrupção de um país é categoricamente levado em consideração por investidores internacionais quando devem escolher a localidade onde investir. Logo, a efetiva aplicação da Lei 12.846 de 01 de agosto de 2013 contribuirá não só para a solução de problemas jurídicos, políticos e sociais, como também econômicos e financeiros, ao ampliar potencialmente o investimento estrangeiro no Brasil.
5 REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>. Acesso em 04 de outubro de 2015.
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BRASIL. Decreto-Lei n 2.848 de 7 de dezembro de 1940. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 04 de outubro de 2015.
BRASIL. Lei nº: 12.846, de 1º de agosto de 2013. Presidência da República, Casa Civil,
Subchefia
para
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Jurídicos.
Disponível
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm>.
em Acesso
em: 04 de outubro de 2015. BRASIL. Exposição de Motivos do PL no 6.826/2010. Secretaria de Relações Institucionais,
Subchefia
de
assuntos
parlamentares.
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ANTI-CORRUPTION LAW AND THE APPLICATION OF COMPLIANCE PROGRAMS IN BRAZIL
ABSTRACT
This Article comments on the Law 12846 of August 01, 2013 exposing the problem of corruption in Brazil and the related measures imposed to mitigate practice of corruption in Brazilian companies, especially the Integrity Programs because, as seen in the international scenario, the so-called Compliance programs have been presented as one of the possible solutions for corporate corruption.
KEYWORDS: Anti-Corruption, Compliance, Ethics and Corporate Integrity.
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A PERSPECTIVA SOCIAL DO DIREITO EMPRESARIAL E A LEI ANTICORRUPÇÃO Wallace Fabrício Paiva Souza74
RESUMO
No contexto pós Constituição de 1988, surgiu uma concepção de empresa com forte viés social. Pretende-se, assim, estabelecer a relação entre esse novo conceito e a Lei Anticorrupção, que dispõe sobre a responsabilização das pessoas jurídicas, pela prática de atos contra a Administração Pública.
Palavras-chave: Empresa. Social. Corrupção. Responsabilidade. Compliance.
1. INTRODUÇÃO
O Direito Empresarial evoluiu bastante nos últimos tempos e as transformações sociais tiveram um papel fundamental, de modo que o conceito de empresa adquiriu forte viés social com a Constituição de 1988. Embora o lucro seja a finalidade principal das atividades empresárias, a empresa deve observar sua função social. Nesse contexto, em 1º de agosto de 2013, foi promulgada a Lei nº 12.486, mais conhecida como Lei Anticorrupção, que veio para dispor sobre a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas, pela prática de atos contra a Administração Pública. Por meio dela, percebe-se ainda mais essa obrigação da empresa em ser ética, com responsabilidade social. O presente trabalho almeja, assim, relacionar o conceito de empresa contemporânea com a Lei Anticorrupção, de modo que, para a condução deste trabalho, foi utilizado o método exploratório. Dessa forma, dividiu-se a pesquisa em 3 (três) partes, partindo-se da análise do Direito Empresarial no contexto pós Constituição de 1988. Após, fez-se um estudo da Lei 74
Advogado, Graduado em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos e Mestrando em Direito Empresarial pela Faculdade de Direito Milton Campos – Bolsista CAPES. Endereço eletrônico: wallacefabricio1@hotmail.com
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Anticorrupção e seus principais aspectos, notadamente quanto à responsabilidade das pessoas jurídicas e ao compliance. Dando continuidade, relacionaram-se os temas já mencionados, de modo a verificar a empresa contemporânea de acordo com a nova principiologia do Direito Empresarial, no contexto da Lei Anticorrupção.
2. O DIREITO EMPRESARIAL PÓS 1988 E A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
Antes de adentrar no Direito Empresarial em si, importante analisar os reflexos do contexto histórico da criação da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), promulgada em 05 (cinco) de outubro de 1988. Como explicado por João Bosco Leopoldino da Fonseca (1995, p. 80), a CRFB/88 trouxe um rompimento com o período político anterior, propiciando uma ideologia caracterizada por forte viés social, tanto que a nova Constituição foi apelidada por Ulisses Guimarães de Constituição Cidadã. Pode-se dizer que a CRFB/88 busca um equilíbrio entre o Estado Liberal e o Estado Social, garantindo a liberdade econômica com restrições para que essa não seja predatória de direitos fundamentais, falando-se em um Estado do Bem-estar Social (LOPES, 2006, p. 33/34). O texto constitucional, então, ganhou um título no qual declara os princípios fundamentais logo nos primeiros artigos, os quais informarão todo o Estado Democrático de Direito. Sendo assim, o Estado Brasileiro baseia-se numa política de bem-estar social, passando a ter uma atuação no campo social e econômico (OLIVEIRA, 2008, p. 03). Feita essa análise, possível verificar que surgiu uma nova concepção do termo empresa, o que influencia diretamente nos planejamentos econômico-empresariais, já que a ela também se aplica esse viés social. Quando se fala em empresa, “a primeira ideia que nos vem à mente é a de uma organização, de uma entidade, de um lugar em que se produz alguma coisa.” (ROCHA FILHO, 2004, p. 53). Ela seria uma “instituição que realiza a combinação de fatores com o fim de obter produtos e serviços nas melhores condições de racionalidade econômica de modo que satisfaça as necessidades dos clientes de forma eficiente” (SANTIAGO, 1994, p. 101). O Código Civil de 2002, todavia, não definiu empresa, mas pelo art. 966 verifica-se que ela se caracteriza por: habitualidade no exercício da atividade de negócios, destinada à produção e/ou circulação de bens e serviços no mercado; fim lucrativo ou de resultado
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econômico; e organização ou estrutura dessa atividade com estabilidade (NERY JÚNIOR; NERY, 2011, p. 853), havendo especial destaque para o lucro. Embora não se perceba o viés social expressamente nesses conceitos, sabe-se que todo o ordenamento jurídico deve estar conforme a Constituição. E nela se identifica o princípio da função social da empresa. Para Paulo Bonavides (2004, p. 289/290), inclusive, os princípios constitucionais seriam norma das normas, considerando o período pós-positivista que a sociedade se encontra. Extraído dos arts. 5º, XXIII, e 170, III, CRFB/88, com ele se reconhece “que são igualmente dignos de proteção jurídica os interesses metaindividuais, de toda a sociedade ou de parcela desta, potenciamente afetados pelo modo com que se empregam os bens de produção” (COELHO, 2012, p. 126). Pergunta-se, então, quando a empresa cumpriria sua função social. Fábio Ulhoa Coelho (2012, p. 127) explica que a observância desse princípio depende da geração de empregos, tributos e riquezas, o que contribui para o desenvolvimento econômico, social e cultural de toda a comunidade. Depende, ainda, de práticas empresariais sustentáveis. Como explica Maria de Lourdes Carvalho (2012, p. 17), o termo função social já é verificado quando se estuda Aristóteles, que defendia o fato dos bens terem uma destinação social, mas se cristaliza na Idade Média. Antes, a propriedade possuía um caráter absoluto, mas com a Constituição Alemã de Weimar de 1919 e Constituição Espanhola de 1932, o direito à propriedade passou a ser restringido, com limites e obrigações para se evitar o abuso que vinha ocorrendo (CARVALHO, 2012, p. 17/18). Finalmente, em 1934, o Brasil seguiu a linha das referidas constituições, seguindo esse novo paradigma desde então (CARVALHO, 2012, p. 19). Sendo assim, a função social da empresa, também denominada como função social da propriedade de produção, é o poder-dever dos empresários e administradores de buscar um equilíbrio entre a finalidade de lucro e os interesses da coletividade (CARVALHO, 2012, p. 26). Como explicado por Fábio Konder Comparato (1996, p. 44), na atividade empresarial não é suficiente apenas o atendimento dos interesses dos empresários e dos trabalhadores, sendo fundamentais também os interesses da comunidade na qual está presente. Como já afirmado, com o novo Direito Empresarial, tenta-se conjugar os valores da livre iniciativa e dos direitos fundamentais. A liberdade de iniciativa econômica privada também tem o caráter de princípio constitucional, estando preceituada nos arts. 1º, IV e 170, caput, da CRFB/88, mas, ao se fazer uma interpretação sistêmica, ela é exercida no interesse
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da justiça social, sendo ilegítima quando visar a um puro lucro e realização pessoal do empresário (SILVA, 2001, p. 772). Inclusive, cita-se aqui o Enunciado 53 da I Jornada de Direito Civil: “Art. 966: Devese levar em consideração o princípio da função social na interpretação das normas relativas à empresa, a despeito da falta de referência expressa.” (AGUIAR JÚNIOR, 2012, p. 22). Contudo, deve-se ter muito cuidado ao analisar esse princípio da função social da empresa, uma vez que uma interpretação ampla pode até inviabilizar a atividade empresarial. Afinal, gerar desenvolvimento econômico, social e cultural para a comunidade não é a função precípua da empresa, e sim o lucro, até para manutenção da atividade. Mas esse princípio estabelece limites à busca pelo lucro, o que deve ter o respaldo do ordenamento jurídico brasileiro, sob pena de responsabilização por eventuais abusos e desvios. Pode-se dizer que ele traz requisitos para que seja exercida a atividade empresarial. Feita essa análise, passa-se no próximo tópico ao estudo de uma lei criada em 2013 que está diretamente relacionada aos limites de atuação das empresas: a Lei Anticorrupção.
3. A LEI ANTICORRUPÇÃO: RESPONSABILIDADE E COMPLIANCE
Em 1º de agosto de 2013, foi promulgada a Lei nº 12.486, a qual ficou conhecida como Lei Anticorrupção e veio para dispor sobre a responsabilização administrativa e civil das pessoas jurídicas, pela prática de atos contra a Administração Pública, sendo regulamentada posteriormente pelo Decreto nº 8.420, de 18 de março de 2015. Corrupção, que significa, em suma, perversão, suborno e dano (CEGALLA, 2005, p. 247), constitui no ordenamento brasileiro crime qualificado, sendo punível pelo Código Penal, seja na forma ativa (art. 333), seja na forma passiva (art. 317). Presente em todos os países, a corrupção constitui um dos grandes flagelos da humanidade, já que propicia “a apropriação privada de recursos públicos que poderiam ser investidos na realização de inúmeras políticas funcionalizadoras de direito fundamentais de que o País tanto carece” (MOREIRA NETO; FREITAS, 2014, p. 09). Para se ter ideia de quanto a corrupção custa ao Brasil, de acordo com o relatório da Federação das Indústrias de São Paulo (FIESP), o custo médio variaria entre 1,38% a 2,3% do Produto Interno Bruto brasileiro, ou seja, a corrupção pode chegar a um custo de R$84,5 bilhões por ano (MOREIRA NETO; FREITAS, 2014, p. 10).
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Ocorre que, apesar da tipificação do crime de corrupção no Código Penal, faltava uma legislação que alcançasse também as empresas, uma vez que a punição positivada era apenas no âmbito de pessoa natural. A única punição que havia no sistema jurídico brasileiro era a da Lei de Improbidade Administrativa, Lei nº 8.429, de 2 de junho de 1992 (SIDNEY, 2014, p. 21), mas o terceiro, pessoa jurídica ou não, precisava estar vinculado de alguma forma ao agente público, observados os arts. 2º e 3º da Lei nº 8.429/92 (CARVALHO FILHO, 2007, p. 913). Então, como resposta aos inúmeros protestos sociais que ocorreram no ano de 2013 durante a realização da Copa das Confederações no Brasil, o Congresso Nacional votou e criou a referida Lei Anticorrupção, também denominada como Lei da Empresa Limpa (SIDNEY, 2014, p. 22). Ao atender a compromissos internacionais firmados pelo Brasil, essa nova norma tem como novidade principal estender as punições dos empresários e funcionários envolvidos em crimes de corrupção às empresas nas quais trabalham. Ressalta-se que a lei não é sancionatória no plano penal, mas sim no administrativo (CARVALHOSA, 2014). A Lei nº 12.846/2013, então, criou uma série de comportamentos caracterizados como ilícitos, denominados como atos lesivos à Administração Pública em face do exercício do poder geral de polícia do Estado (POZZO; POZZO; POZZO; FACCHINATTO, 2014, p. 11). Sendo assim, foram dispostos no art. 5º da referida lei os atos que considerados como lesivos à administração pública. Dentre eles, citam-se: prometer ou dar vantagem indevida a agente público, financiar a prática de atos ilícitos, fraudar licitações e dificultar a fiscalização do Poder Público. Feita essa abordagem preliminar, passa-se à análise da responsabilidade na lei e do Programa de Integridade, também conhecido como compliance.
3.1. RESPONSABILIDADE NA LEI ANTICORRUPÇÃO
Sobre a responsabilidade num âmbito geral, ela nasce no contexto das relações jurídicas, funcionando como um atributo coercitivo, exigindo o cumprimento de um direito e uma obrigação, de modo que, sem a coercitividade, as normas jurídicas poderiam se tornar letra morta (POZZO; POZZO; POZZO; FACCHINATTO, 2014, p. 17). A responsabilidade, no que tange à culpa, pode ser classificada em objetiva e subjetiva. Quando a responsabilidade se baseia na culpa do autor do ato, trata-se da subjetiva,
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enquanto a responsabilidade sem culpa, por sua vez, recebe o nome de objetiva, por se basear apenas na ocorrência do dano (FIUZA, 2010, p. 284). Como observa Rui Stoco (2011, p. 183), “a multiplicação das oportunidades e das causas de danos evidenciou que a responsabilidade subjetiva mostrou-se insuficiente para cobrir todos os casos de reparação.”. Para o citado autor, “a exigência de provar a vítima o erro de conduta do agente deixa o lesado sem reparação, em grande número de casos.” (STOCO, 2011, p. 183). Sendo assim, ganhou força a responsabilidade objetiva, mas as duas convivem no ordenamento jurídico brasileiro. No caso da Lei nº 12.486/13, há os dois tipos de responsabilidade também: objetiva quando se tratar de pessoas jurídicas e subjetiva para pessoas naturais, nos termos dos arts. 1º a 4º, dando-se destaque ao art. 2º: “As pessoas jurídicas serão responsabilizadas objetivamente, nos âmbitos administrativo e civil, pelos atos lesivos previstos nesta Lei praticados em seu interesse ou benefício, exclusivo ou não” (BRASIL, 2013, p. Art. 2º). Quando se fala em pessoa jurídica, trata-se de uma ficção jurídica, um ente que existe no mundo do Direito, mas que sua vontade, em suma, nada mais é que a vontade que externam as pessoas qualificadas por seus estatutos e contratos. (POZZO; POZZO; POZZO; FACCHINATTO, 2014, p. 25). Ocorre que a responsabilidade das pessoas jurídicas no âmbito da Lei Anticorrupção se assemelha à responsabilidade do Estado, de modo que aquele que age em nome da empresa e comete um dos atos do art. 5º da Lei, estará atribuindo o ato diretamente à pessoa jurídica, como se fosse ela mesmo quem tivesse praticado o ato, independentemente do ânimo ou do elemento subjetivo de quem agiu (POZZO; POZZO; POZZO; FACCHINATTO, 2014, p. 25). Fundamental, então, para a responsabilidade objetiva da pessoa jurídica, o nexo etiológico entre a conduta e o ato lesivo, ainda que o ato seja de mera atividade e não exija um resultado para se consumar. Além disso, é preciso que haja uma relação jurídica entre o agente e a empresa, não havendo responsabilidade da pessoa jurídica quando alguém age sem estar autorizado ou age para, deliberadamente, prejudicar a instituição que representa. Importante salientar que a responsabilização da pessoa jurídica não elide a responsabilização das pessoas físicas. (POZZO; POZZO; POZZO; FACCHINATTO, 2014, p. 26/29).
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3.2. COMPLIANCE
Como já explicado, a denominada Lei Anticorrupção trouxe medidas legais para punir as pessoas jurídicas que possuam relação contratual com o poder público, quando isso se dá com uma atuação interativa com os agentes públicos corruptos. O art. 6º da referida lei, então, estipulou sanções, como a possibilidade de publicação da decisão condenatória e multa, cujo valor na Lei Anticorrupção é bem mais expressivo que na Lei de Improbidade Administrativa. Isso, por usar como parâmetro o faturamento bruto, e não o valor do acréscimo patrimonial no caso de enriquecimento ilícito, do dano se houver prejuízo ao erário, ou o valor da remuneração percebida pelo agente ímprobo. De toda forma, a Lei Anticorrupção instituiu o incentivo para que as empresas adotem um Código de Conduta, denominado como Compliance, até como forma de atenuar eventuais sanções. Para que atendam a essa disposição, as empresas devem criar “mecanismos internos de fiscalização e de incentivo à denúncia de irregularidades, ou seja, que busquem descobrir desvios de conduta ética e, pois, incentivar também a elaboração ou o aperfeiçoamento de Código de Ética.” (POZZO; POZZO; POZZO; FACCHINATTO, 2014, p. 106). O termo compliance vem do verbo to comply, o qual significa aquiescer, concordar, cumprir, obedecer e estar de acordo, isto é, aderir ao compliance é ter obediência ao estabelecido, que no caso são as normas éticas da pessoa jurídica. (POZZO; POZZO; POZZO; FACCHINATTO, 2014, p. 106). Não se pode confundir, contudo, o compliance com o mero cumprimento de regras formais e informais, pelo seu alcance ser bem mais amplo, no sentido de estar diretamente relacionado à concretização da missão, da visão, dos valores de uma empresa. (RIBEIRO; DINIZ, 2015, p. 88). Para implantação do compliance, embora não haja apenas uma forma possível considerando os inúmeros documentos e regras sobre o assunto, exige-se, dentro da realidade da empresa, o estabelecimento de um Código de Ética e Conduta, com a criação de um comitê específico e treinamento constante de toda a equipe, além da criação de um canal confidencial para denúncias (RIBEIRO; DINIZ, 2015, p. 89-90). Além disso, deve a empresa observar a legislação nacional, internacional, regulações de mercado e normas internas da empresa, mantendo-se transparente e não admitindo ganhos pessoais indevidos (CANDELORO; RIZZO; PINHO, 2012, p. 37-38). Implantado, a empresa tende a obter mais confiança dos investidores e maior credibilidade no mercado (RIBEIRO; DINIZ, 2015, p. 90).
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No âmbito do Decreto nº 8.420/2015, que regulamenta a Lei Anticorrupção, há o capítulo IV, com o nome “Do Programa de Integridade”, que é o
conjunto de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e na aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta, políticas e diretrizes com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira. (BRASIL, 2015, Art. 41)
Esse programa de integridade, além de observar os parâmetros do art. 42 do referido Decreto, deve sempre ser adequado aos riscos das atividades de cada pessoa jurídica, além de sempre ser aprimorado e atualizado, visando a maior efetividade. Finalizado esse tópico, importante relacionar os temas já abordados, de modo a verificar a empresa contemporânea de acordo com a principiologia do Direito Empresarial em função da CRFB/88, no contexto da Lei Anticorrupção.
4.
A
EMPRESA
CONTEMPORÂNEA
E
A
LEI
ANTICORRUPÇÃO:
RESPONSABILIDADE ÉTICA E SOCIAL
A empresa contemporânea, por estar inserida na engrenagem da ordem econômica, está comprometida com o atendimento de uma função social, como já explicado em capítulo anterior. Contudo, não se pode ter a função social como um fator para prejudicar o lucro da empresa, sua finalidade principal. Como afirma Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias (2012, p. 389), a função social não incide sobre os fins empresariais, como o lucro, mas sobre os meios pelos quais esses fins serão atingidos, impondo responsabilidade social aos empresários, vedando práticas abusivas. Verifica-se, então, para a empresa contemporânea, um conteúdo ético às suas atividades. Com a CRFB/88, as empresas, de extrema importância para toda a economia, não podem fazer uso de seu poder empresarial para ferir direitos fundamentais. O exercício da atividade econômica deve estar conforme as diretrizes trazidas pela Constituição, notadamente a dignidade da pessoa humana e solidariedade social. (ROSENVALD; FARIAS, 2012, p. 390).
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Jean Carlos Fernandes (2015, p. VIII), inclusive, afirma que a empresa está sendo até proclamada como cidadã, falando-se em cidadania da empresa, sendo que ela é local de criação de riqueza, emprego e laço social. A empresa não é meramente uma atividade exercida pelo empresário, de forma que tenha uma função muito mais ampla, embora o lucro ainda seja o fator condicionante para a manutenção da atividade produtiva. Ocorre que o êxito do empresário hoje é medido tanto pelos seus resultados, como por sua contribuição com a comunidade na qual está inserida. E isso agrega valor à empresa. Nas palavras de Sainsaulieu e Kirschner (2006, p. 27), o social não seria mais importante que o econômico, mas ele estaria “no coração da produção, como um verdadeiro cadinho de integração possível entre os atores da produção, conduzindo a uma qualidade de sociedade que se tornará um trunfo importante da economia”. No Brasil, há relatos sobre as primeiras discussões do tema responsabilidade social no âmbito empresarial datados de 1965, com a criação da Associação dos Dirigentes Cristãos de Empresas (ADCE). E hoje, com a economia globalizada, o debate sobre a responsabilidade social é tema principal nos fóruns empresariais, como ferramenta de estratégia para incrementar os negócios. (CARVALHO, 2012, p. 36-38). Principalmente com a Lei Anticorrupção, ficou claro que a responsabilidade social e ética das empresas atuais deixou de ser uma mera diretriz ou recomendação, passando a ser uma exigência, chegando a ser até um requisito para a atividade que, caso não seja respeitada, haverá a responsabilização da pessoa jurídica e dos envolvidos no caso, como explicado em capítulo anterior. Há duas formas de a empresa adotar a prática de um comportamento ético no âmbito empresarial: imposição ou cooperação, contudo quando se dá pela cooperação, há muito mais eficiência, por serem as medidas duradouras. O compliance, por exemplo, deve estar arraigado à estrutura organizacional da empresa, ser uma estratégia da empresa, senão ela se tornará um empecilho. Claro que tudo gera um custo, mas a longo prazo o mercado valorizará isso e reverterá em benefícios para a própria atividade empresarial, como no caso dos “selos verdes”. Antes, adotar medidas ambientais responsáveis era um custo elevado, mas hoje quem não adota perdeu espaço no mercado (RIBEIRO; DINIZ, 2015, p. 95). O mercado está cada vez mais crítico das atitudes empresariais e podem ser citados diversos exemplos, como as empresas que utilizaram mão de obra escrava, havendo campanhas para que seus produtos não sejam adquiridos, ocorrendo o mesmo com a corrupção. Segundo Alberto Augusto Perazzo (2007, p. 152), “somente serão duradouras neste século as empresas que souberem criar uma sociedade nova, as organizações
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empresariais que possam ser reconhecidas como ética, social e ambientalmente responsáveis”. Notadamente quanto à corrupção, de acordo com um estudo realizado pela ONG One, a corrupção custa à sociedade aproximadamente 1 (um) trilhão de dólares por ano, contribuindo fortemente para o aumento da desigualdade e desintegração social em países mais pobres (XAVIER, 2015, p. 15). A corrupção, então, retira investimentos das mais variadas áreas, como saúde, educação, moradia, infra-estrutura, e alimentação. Desse modo, atrasa a efetivação dos direitos fundamentais e todo o desenvolvimento do país, contrariando totalmente a nova principiologia do Direito Empresarial, vindo a Lei Anticorrupção para corroborar o que a CRFB/88 já estabeleceu. A responsabilidade ética e social é mais do que uma recomendação, é uma obrigação jurídica. E Direito e Economia se alinharam, de forma que o mercado valoriza as empresas que estão conforme o ordenamento jurídico, isto é, não ser corrupto será bom e necessário para o empresário, e não somente mais um custo. Por fim, Fábio Ulhoa Coelho (2011, p. 8) diz que para firmar mais ainda esse novo Direito Empresarial seria importante que fosse aprovado um novo Código Comercial, estando em debate o Projeto de Lei nº 1.572/2011. Para ele, normas claras e adequadas são importantes não só para as empresas, mas para os próprios consumidores e investidores (COELHO, 2011, p. 14). É fato que o Brasil precisa modernizar sua legislação empresarial, visando a uma maior competitividade na economia globalizada. A Lei Anticorrupção está sendo muito importante no quesito de valorização das empresas, principalmente quando se fala em compliance, antiga exigência internacional. Sendo assim, percebe-se que essa lei está diretamente relacionada ao novo direito empresarial e ao conceito de empresa contemporânea.
5. CONCLUSÕES
A empresa representa um papel de extrema relevância no desenvolvimento de toda a sociedade, sendo fundamental para o desenvolvimento econômico de uma região. Mas também há valores muito importantes e que estão acima de qualquer interesse financeiro, como a dignidade da pessoa humana. Sem sombra de dúvidas, não se deve obstaculizar a possibilidade das atividades empresárias gerarem lucros, afinal são elas que geram empregos, tributos e riquezas em geral para a comunidade na qual estão presentes, com desenvolvimento econômico, social e
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cultural. Contudo, esse lucro não pode ser obtido de qualquer forma, devendo ser observadas práticas sustentáveis, com um parâmetro ético e social. A CRFB/88, assim, buscou uma harmonia entre o econômico e o social, buscando privilegiar tanto a livre iniciativa como direitos fundamentais. É inegável a existência da função social da empresa no ordenamento jurídico brasileiro, não sendo meramente uma nova estratégia empresarial, mas uma imposição jurídica. Contudo, isso acabou não sendo apenas um ônus para o empresário, mas um instrumento de valorização de sua empresa. O mercado, hoje em dia, exige que as empresas cumpram com sua função social, sob pena de perderem investimentos, por exemplo. E, com a Lei Anticorrupção, ficou claro que a ética deixou de ser uma mera diretriz ou recomendação, passando a ser uma exigência, que, caso seja desrespeitada, haverá a responsabilização da pessoa jurídica e dos envolvidos no caso. Para a empresa, então, o melhor é cooperar e colocar no seu planejamento e estrutura organizacional práticas contra a corrupção, pois a luta contra ela não é o mero cumprimento de regras, e sim uma missão a ser sempre perseguida. Em caso de eventual ato passível de sanção por alguém da empresa, o compliance pode até atenuar eventual pena imposta. Portanto, como a corrupção prejudica diretamente a efetivação dos direitos fundamentais, uma responsabilização mais dura com aqueles que a praticam está diretamente relacionada com a busca de efetivação do princípio da função social da empresa e, consequentemente, com o novo Direito Empresarial. Ressalta-se, porém, que a importância das empresas jamais deve ser deixada de lado, considerando o desenvolvimento que geram para a comunidade. Apenas aquelas que abusarem de seu poder que devem ser penalizadas, sob pena de inviabilizar a atividade comercial e consequentemente o desenvolvimento do mercado.
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THE SOCIAL PERSPECTIVE OF BUSINESS LAW AND ANTICORRUPTION LAW ABSTRACT
In the post-constitutional context of 1988, a new concept of company with a strong social bias emerged. This analysis intends to establish a relation between this new concept and the Anti-Corruption Law, that features the Legal Entitieâ&#x20AC;&#x2122;s responsibility for the practice of acts against the Public Administration.
Keywords: Company. Social. Corruption. Responsability. Compliance.
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A POSSIBILIDADE DE ANULAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO CELEBRADO COM INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS POR MOTIVO DE COAÇÃO
Talita Fernanda da Silva Marques
RESUMO
O artigo trata a possibilidade de anular negócios jurídicos celebrados entre fiéis e instituições religiosas analisando como se manifesta a coação nas igrejas e a maneira que o Poder Judiciário tem respondido a essa demanda, ponderando o direito a liberdade religiosa e a garantia da prestação jurisdicional na discussão de negócios jurídicos.
Palavras-Chave: Anulação de Negócio Jurídico; Coação; Direito Civil; Doação; Liberdade Religiosa.
1. INTRODUÇÃO
A liberdade religiosa está elencada no rol dos direitos fundamentais da Constituição Federal de 1988 nos termos do art. 5, VI: É inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias. Tal garantia abrange a faculdade que o cidadão brasileiro tem de adotar, mudar ou não ter religião.
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O foro íntimo da escolha da religião do cidadão para o Estado de regra só interessa para fins de proteção da prática deste direito, porém uma vez que o exercício deste tem como resultado a celebração de um negócio jurídico cujo coacto não realizaria caso não tivesse tido seu ânimo influenciado por um líder religioso a apreciação do mérito dessa questão pode sim ser submetida a analise pelo Poder Judiciário. A constituição também protege o direito de ingresso em juízo no mesmo rol de direitos que se encontra a liberdade religiosa que são os direitos fundamentais. O princípio da Inafastabilidade da Prestação Jurisdicional está positivado no art. 5, XXXV: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Nesse sentido é inequívoco que não há direito absoluto. Religião é um termo muito abrangente que abarca vários tipos diferentes de fé, por isso, este artigo centraliza-se no cristianismo, que adota a Bíblia como seu livro sagrado, com enfoque maior nas igrejas católicas e evangélicas.
2. LIBERDADE RELIGIOSA
Embora seja facultativo a cada cidadão aderir ou não um seguimento religioso, quando se possui e se pratica uma fé ou crença religiosa, implica-se conviver com uma sociedade aderente daquela crença. Um núcleo religioso geralmente é composto por um guia, que é o líder espiritual e os fiéis, que seriam os membros. Na maioria dos diversificados tipos de fé, têm-se um manual a ser seguido, que seria um livro sagrado, como por exemplo, a Bíblia e o Alcorão. A figura de um líder religioso é importante para os fiéis, que o veem como uma pessoa especial consagrada por uma divindade espiritual a orientar os fiéis durante a vida na terra. A prática religiosa ganha importância no ordenamento jurídico principalmente para fins de proteção, porém uma vez que as entidades religiosas passam a desviar-se do fim precípuo que é o exercício da fé e usam da religião para tirar vantagens de seus fiéis, arrecadando dinheiro para enriquecimento pessoal à custa da exploração da fé, pode-se dizer que a questão passa a se tornar relevante para o direito, que deve proteger os fiéis.
2.1 Forma de doação segundo a Bíblia
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Tanto a igreja evangélica quanto a católica adotam a Bíblia Sagrada como fonte sacramental e esta prevê o pedido de dízimos e ofertas e vai mais além, dizendo sobre a forma como devem ser doados pelos fiéis. A Bíblia menciona em muitas passagens sobre o pagamento de dízimos e ofertas: Trazei todos os dízimos à casa do tesouro – Malaquias 3:10; Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus, o que é de Deus – Marcos 12:17; Que cada um dê sua oferta conforme resolveu no seu coração, não com tristeza nem por obrigação, pois Deus ama quem dá com alegria – 2 Coríntios 9:7. A Bíblia é clara quanto a forma em que os dízimos e as ofertas devem ser pagos, de modo livre, espontâneo, com alegria, com amor, por vontade própria e não por obrigação. E todos ficarão sabendo que vocês deram ofertas porque quiseram e não porque foram obrigados – 2 Coríntios 9:5. O livro sagrado não usa de quaisquer ameaças ou coações para pedir aos seus fiéis contribuições para a manutenção dos templos religiosos. Todavia, tem-se observado o crescimento no número de fiéis que acionam o Poder Judiciário alegando que doaram para igrejas, quantias de valor significativo, ou bens, em troca de algo, seja uma benção ou cura, ou doaram simplesmente por medo de serem amaldiçoados. Dessa forma o argumento de que a cobrança feita de forma intimidadora a ponto de coagir o fiel seria o exercício da liberdade religiosa não se sustenta uma vez que não há respaldo em texto bíblico que fundamente essa prática abusiva, porém é nesse sentido que corre a defesa das instituições religiosas que figuram em juízo, por exemplo, na apelação cível nº 17268252.2011.8.09.0097 a Igreja Universal do Reino de Deus recorre da decisão que lhe obrigou a devolver a doação de 41 mil reais de uma fiel alegando que: A recorrente afirma inexistência de coação moral, sustentando que os cultos realizados em suas dependências baseiam-se nos textos bíblicos e que sua liturgia encontra proteção constitucional, o que afasta a ocorrência de qualquer vício de consentimento.
2.1 Relativização da liberdade Religiosa
O assunto é polêmico, uma vez que trata de um conflito de direitos: o direito de se exercer práticas religiosas e o direito de exigir a anulação de negócios jurídicos realizados através do
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abuso do exercício da liberdade religiosa. Antes de adentrar no tema é válido ressaltar que não existe direito absoluto. O cidadão, assegurado pelos direitos fundamentais, pode exigir a tutela jurisdicional estatal para ter seu direito garantido. Porém (CARVALHO, 2014, p.685) reforça a relatividade desse direito:
“Não existe direito Absoluto, entendido como o direito sempre obrigatório, sejam quais forem as consequências. Assim, os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados. Encontram limitações na necessidade de se assegurar aos outros o exercício desses direitos, como têm ainda limites externos, decorrentes da necessidade de sua conciliação com as exigências da vida em sociedade, traduzidas na ordem pública, ética social, autoridade do Estado, dentre outras delimitações, resultando, daí, restrições dos direitos fundamentais em função dos valores aceitos pela sociedade”.
A liberdade religiosa postulada na constituição deve ser interpretada de forma que a religião deve ser tolerada e que não cabe ao Estado impor ao foro íntimo de alguém determinada religião oficial, é nesse sentido que deve ser entendida a proteção religiosa, proteger a faculdade do indivíduo de escolher professar ou não uma fé, a liberdade religiosa assim sendo não deve servir de escusa a práticas abusivas, o Estado deve proteger o exercício da religião, mas não deve fechar seus olhos para aqueles que são vítimas de coações religiosas. Nesse mesmo sentido é o entendimento do julgado RTJ 51/344: A constituição federal assegura o livre exercício do culto religioso, enquanto não for contrário à ordem, tranquilidade e sossego públicos, bem como compatível com os bons costumes. Embora haja emprego do termo liberdade no texto constitucional para garantia do exercício da religião, esta é sujeita a limites e talvez a falta de monitoramento efetivo do Estado que se mantém inerte mesmo com a significativa quantidade de pessoas acionando o Poder Judiciário para discutir esse mérito faça com que essa prática continue frequente, viciando a livre manifestação da vontade dos fiéis, permitindo assim, que os responsáveis não sejam responsabilizados. Sendo assim, extrai-se esse mesmo entendimento do TJ/GO que de acordo com notícia do web site Migalhas mandou a mesma igreja devolver carro para a mãe de ex-fiel: O debate
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recursal não está no campo bíblico, ou seja, em se discutir o dízimo preconizado pela igreja, mas sim em efetuar uma interpretação jurídica dos fatos. Qualquer relação negocial submete-se à legislação civil vigente, independente de seu cunho religioso. Para concluir, a questão das pregações e curas religiosas deve ser analisada de modo que não obstaculize a liberdade religiosa garantida constitucionalmente, nem tampouco acoberte práticas ilícitas. Obviamente, assim como as demais liberdades públicas, também a liberdade religiosa não atinge grau absoluto, não sendo, pois, permitido a qualquer religião ou culto a realização de atos atentatórios à dignidade da pessoa humana, e esta deve se sujeitar as sanções previstas na responsabilização civil e criminal.
3.
COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL RELIGIOSA NO CONTRATO DE
DOAÇÃO
3.1
Doação
Doador é a pessoa que faz uma doação. Doações são caracterizadas na maioria das vezes pela boa vontade do doador, seu ânimo geralmente é fazer uma caridade ou agradar alguém, ou seja, pode-se dizer que a doação está ligada a livre vontade do doador de beneficiar alguém segundo sua motivação pessoal, sem que o beneficiado influa no ânimo do doador. Doação, define o código civil no art. 538: Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra. É requisito essencial o animus donandi para que a doação se aperfeiçoe, esse termo significa a liberdade, a ação de dar a outrem algo sem qualquer interesse, é dispor do próprio patrimônio sem estar obrigado a fazê-lo. Segundo (LÔBO, 2014, p.276) no direito italiano alude-se a “espírito de liberdade”, o qual não se aperfeiçoa apenas com a atribuição patrimonial sem contraprestação, mas com a existência, no agente, da intenção de doar pela consciência de conferir a outrem uma vantagem patrimonial sem ser obrigado (liberalitas nullos iure cogente in accipientem facta). O objeto da doação conforme os termos do art. 538 do código civil é a transferência de bens ou vantagens de um patrimônio para outro. É necessário que a vantagem seja patrimonial bem como também deve haver enriquecimento do patrimônio do donatário criando assim um nexo causal entre o empobrecimento do doador e o aumento no vulto do patrimônio do donatário.
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Lembrando que empobrecimento deve ser essencialmente uma liberalidade do doador sem que este esteja contaminado por qualquer influência externa. Quando estivermos falando de bens móveis de pequeno valor, basta tradição e quando bens imóveis a transferência se dá por escritura pública e registro respeitando as exigências do art. 108, CC.
3.2 Coação
Entende-se por coação o ato que através de uso de força física ou convencimento psicológico estimula alguém a praticar um ato que sem esse impulso não o praticaria. Nessa mesma linha de raciocínio conceitua (GONÇALVES, 2013, p.424), que coação é toda ameaça ou pressão injusta exercida sobre um indivíduo para forçá-lo, contra sua vontade, a praticar um ato ou realizar um negócio. O que a caracteriza é o emprego da violência psicológica para viciar a vontade. Focando na análise da coação moral, ou vis compulsiva, esta serve como argumento jurídico para anulação de doações feitas a instituições religiosas que estejam contaminadas por esse vício do consentimento. (PEREIRA, 2012, p.443) ensina que se entende por coação moral: “A violência moral ou vis compulsiva, que atua sobre ânimo do paciente, levando-o a uma declaração de vontade viciada. Há uma declaração volitiva, embora imperfeita, porque ela não aniquila o consentimento do agente; apenas lhe rouba a liberdade; A violência moral perturba o querer sem aniquilá-lo, permitindo que o coato formule uma emissão de vontade, se bem que maculada. Há aqui uma atuação sobre o psiquismo, por via de processo de intimidação, que impõe ao agente uma vontade. Daí dizer o direito romano “quamvis coactus tamen voluit”, isto é, a pessoa coagida pronuncia uma declaração de vontade”.
Corretamente, os romanos empregavam o termo metus (mentis trepidatio) e não vis (violência), porque é o temor infundido na vítima que constitui o vício do consentimento e não os atos externos utilizados no sentindo de desencadear o medo. É esse medo que leva o coagido a emitir uma vontade não querida e pelo fato da coação estar enquadrada no rol de vício do consentimento parece essencial uma análise aprofundada sobre o princípio da autonomia da vontade.
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3.3 Autonomia da vontade
Cabe lembrar que a discussão deste artigo é voltada para possibilidade de anulação do negócio jurídico celebrado com instituições religiosas por motivo de coação, sendo esse negócio jurídico a doação, que é elencado na legislação pátria como contrato, em regra gratuito, unilateral e formal ou solene. Sendo a doação negócio jurídico é indispensável a análise do art. 104 do código civil brasileiro que elenca o rol dos requisitos para validade, art. 104: A validade do negócio jurídico requer: I – agente capaz; II – objeto lícito, possível, determinado ou determinável; III – forma prescrita ou não defesa em lei. Por mais que não esteja expressamente tipificado a livre manifestação de vontade é requisito essencial indispensável para a validade de qualquer negócio jurídico, tanto é que a coação quando é realizada através de violência física não se alcança nem o plano da existência e o negócio jurídico será inexistente. A respeito da forma como que deve ser manifestada a vontade dispõe o art. 107, CC que: A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. Em seus ensinamentos (NONATO, 1957, n.37) definiu princípio da autonomia da vontade sendo aquele segundo o qual toda pessoa dotada de capacidade tem a liberdade de celebrar negócios jurídicos, desde que estes sejam lícitos, podendo as partes definir seu conteúdo desde que não contrariem dispositivos legais. A alusão á famosa doutrina da autonomia da vontade obriga-nos a dar-lhe os traços mais conspícuos. Seu ponto de partida se encontra na afirmação da eficácia plena da vontade formada normalmente. Segundo (DEMOGUE, 1898, p.82), o princípio da autonomia da vontade grandeou de importância em face das tendências individualistas do século IX e consiste em tomar a vontade por medida quase única em matéria de obrigações. Uma vez que o emprego de discurso religioso baseado em promessas divinas ou represálias religiosas estimulam o agente a prática de uma doação, pode-se concluir que essa vontade não é espontânea, nem é dotada de livre manifestação de vontade, pois através de receio de maldição expectativa de benção divina o coacto foi induzido a realização de uma doação que certamente sem essa influência não praticaria.
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4.
ESTUDO DE CASO
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO. DOAÇÃO A IGREJA. ART. 541, CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE INSTRUMENTO PARTICULAR. DOAÇÃO DE ALTO VALOR EM DINHEIRO. IMPOSSIBILIDADE: ART. 548, CC. SUBSISTÊNCIA DO DOADOR. COAÇÃO MORAL IRRESISTÍVEL. VÍCIO DE CONSENTIMENTO. EXPECTATIVA DE RECEBIMENTO DE RECOMPENSA ESPIRITUAL. AUSÊNCIA DA VONTADE CONSCIENTE DE DOAR. NULIDADE DECLARADA. SENTENÇA MANTIDA. I – A forma escrita, modalidade de instrumento particular para a realização da doação de dinheiro em valor elevado, faz-se essencial à validade do ato de liberalidade, conforme o art. 541, Código Civil.II – Reconhecida a nulidade do ato de liberalidade praticado em ofensa a dispositivo legal (art. 548, CC), não remanescida renda suficiente à subsistência da doadora após dispensa do numerário doado. III – A doação representa ato de liberalidade que exige elevado grau de consciência, comprometida quando a violência psicológica mostra-se tão ampla e profunda que anula, por completo, a sensatez e a manifestação de vontade, influindo na espontaneidade do querer. IV – Apelo improvido.
O presente caso relata que no ano de 2009 uma fiel da instituição religiosa Igreja Universal do Reino de Deus que enfrentava dificuldades pessoais com o falecimento dos genitores e dissolução do casamento, razão pela qual, a convite de uma amiga, passou a frequentar a instituição religiosa ora recorrente. A fiel afirma ter participado do ritual denominado Fogueira Santa de Israel promovido pela igreja, e alega ter sido coagida a realizar doações que somadas ao dízimo pago, perfizeram o valor de R$ 41.645,00 (quarenta e um mil, seiscentos e cinquenta e cinco reais), em lapso temporal de aproximadamente 3 (três) meses. A questão sob análise retrata notícia de sofrimento pela perda dos genitores da apelada, também pela dissolução de seu casamento, motivos que a levaram a frequentar a igreja recorrente, em busca de auxílio espiritual. Em decorrência dos problemas enfrentados e na esperança de reconciliação com o ex-esposo, a fiel aconselhava-se com os pastores da instituição religiosa, os quais lhe disseram para doar todo o dinheiro que tinha para a igreja e participar da fogueira santa, que Deus iria restaurar seu casamento.
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É evidente que a fiel se encontrava em situação de vulnerabilidade emocional que, associada aos outros problemas por ela relatados, contribuiu para a transferência imoderada de patrimônio para a igreja. No estado de fragilidade emocional a que estava subordinada, a recorrida foi desafiada a fazer donativos, até mesmo superiores à sua capacidade econômica para provar sua fé sob ameaça de não ser abençoada. O Juiz de primeiro grau condenou a igreja e declarou nulas as doações narradas na inicial e condenou a instituição religiosa no pagamento de R$ 41.645,00 (quarenta e um mil, seiscentos e cinquenta e cinco reais) à fiel, a título de restituição, devidamente corrigido da data de cada doação, acrescido juros de mora e em razão da sucumbência, condenou a igreja ao pagamento das custas processuais e honorários advocatícios. A igreja recorreu da decisão e nas razões recursais afirma inexistência de coação moral, sustentando que os cultos realizados em suas dependências baseiam-se nos textos bíblicos e que sua liturgia encontra proteção constitucional, o que afasta a ocorrência de qualquer vício de consentimento. Discorre sobre as fundamentações religiosas que embasam os cultos e alega que o ordenamento pátrio não contempla temor reverencial como vício de consentimento capaz de contaminar os atos dele decorrentes. A igreja ainda registra a violação à norma constitucional que garante a liberdade de consciência e de crença. Afirma ainda que a fiel teria conhecimento de que suas doações seriam atos gratuitos de fé e que não aduz constituir dever da instituição religiosa recusar o donativo de qualquer um de seus fiéis. A Desembargadora Beatriz Figueiredo Franco relatora do recurso da ementa supracitada entendeu que não cabe ao judiciário tecer quaisquer comentários ou críticas à fé professada pelo cidadão e que em regra, a questão é cuidada como ato de disposição voluntária voltado à colaboração com o templo religioso do qual faz parte a pessoa e o dízimo e as ofertas são classificados como doação. De molde que se a oferta parte de seus rendimentos ou bens ao templo em que professa sua fé, o religioso realiza uma doação, geralmente verbal, haja vista inexistir contrato expresso. Nas palavras da relatora é da essência do contrato de doação de bem móvel de elevado valor, sua realização por instrumento particular, como prevê o art. 541 do código civil e que na hipótese dos autos que versam sobre dinheiro, mas em valor elevado, a forma escrita para a realização de doação faz-se essência à validade do ato de liberdade. Negligenciada a formalidade de confecção do instrumento particular alinhada na legislação civil pátria, deve ser considerado nulo o ato de liberdade pretensamente exercitado e que a quantia em questão
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corresponde a 55 salários mínimos e que por isso além de não poder ser considerado de pequeno valor o ato de doação haveria de ser aperfeiçoado mediante a confecção do instrumento particular a lhe conferir forma de direito. Além da inobservância a forma prescrita em lei para o contrato de doação a relatora ressalta que a lei impõe ao doador certas restrições para a realização do ato de liberdade, tais como a generosidade excessiva representada pela doação de todos os bens ao donatário (art. 548, CC) e a doação inoficiosa (art. 549, CC). O art. 548, CC preconiza a proteção à dignidade do doador, em harmonia com o postulado constitucional da dignidade da pessoa humana. Referidos limites às doações são aplicáveis ao dízimo e às ofertas, de modo que o doador não pode dispor de todos os seus bens em favor do templo religioso do qual participa sem a reserva de parte ou renda suficiente para a própria subsistência e de mais da metade de seu patrimônio, caso possua herdeiros necessários. Nesse sentido, concluiu que a expressiva soma doada comprometeu a subsistência da doadora, impossibilitando-a de desenvolver sua vida com regularidade nos momentos que sucederam o ato de disposição, tendo inclusive a fiel se submetido à falta de alimentos, obtendo colaboração de amigos para suprir suas necessidades básicas com mantimentos. Sobre a liberdade religiosa a relatora se manifestou registrando que o ato verberado não se mostra contrário à liberdade de consciência, crença ou religião, haja vista que todas as instituições, públicas, privadas ou religiosas estão, em maior ou menor grau, submetidas aos princípios do Estado Democrático de Direito objetivo da democracia em que está firmada a dignidade da pessoa humana. Em virtude de todo o exposto e de acordo com a fundamentação da relatora o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, por unanimidade de votos, decidiu em conhecer e desprover o apelo nos termos do voto da relatora.
5.
CONCLUSÃO
Quanto à liberdade religiosa, é inequívoco que essa está sujeita a limites e a frequência de fiéis que acionam o Poder Judiciário com o objetivo de reaver os bens que foram doados através de coação religiosa, que pode ser baseada em dois aspectos: promessas de recompensas divinas ou medo de que algum mal injusto lhe sobrevenha – maldição; faz-se
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necessário refletir a respeito de qual solução seria mais eficaz. Não há tratamento específico na doutrina, mas sim divergência nos julgados, o que acaba fazendo com que o coacto fique à mercê da sorte de qual juiz irá julgar sua causa. A inflação legislativa do Estado Brasileiro mostra que a quantidade excessiva de leis para tratar de assuntos específicos afasta a hipótese de acionar o Poder Legislativo para que este regule o assunto com a criação de novas leis, uma vez que o legislador pode pecar pelo casuísmo e a coação não é restrita, podendo ser aplicada as instituições religiosas que estão submetidas às normas da legislação pátria, mesmo com a prerrogativa da liberdade religiosa, pois como já mencionado não há direito absoluto. A constituição também protege o direito de ingresso em juízo no mesmo rol dos direitos que se encontra a liberdade religiosa que são os direitos fundamentais. O princípio da Inafastabilidade da Prestação Jurisdicional está positivado no art. 5º, XXXV: A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Nesse sentido é inequívoco que não há direito absoluto. O operador do direito que tiver que lidar com tal situação, deve entender que é necessário que se faça uma separação entre a liberdade do exercício da fé e a relação contratual. Essa segunda é independente, e todos os contratos estão sujeitos à apreciação do Poder Judiciário. A imputabilidade dos que abusam do exercício da religião para ludibriar a fé de fiéis e se enriquecer de forma ilícita acaba fazendo com que estes não se intimidem nem se envergonhem de tais práticas, uma vez que as reclamações de fiéis não são novidade e o Estado não toma nenhuma providência eficaz, permanecendo inerte. Regulamentação legal para o tratamento da coação moral irresistível em doações feita a instituições religiosas já existe, o problema é que muitas vezes o Poder Judiciário tem deixado de aplica-la pautando-se em outras fundamentações jurídicas. Como por exemplo, o julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás na Apelação Cível nº 128407-6/188, que ampliou o conceito de doação universal para abranger a hipótese em que um fiel doador fez a doação do seu único bem de certo valor (automóvel) que possuía. No caso a simples aplicação da coação como vício do consentimento seria suficiente, uma vez que foi alegada pelo fiel que no caso disse ter sido ludibriado pela expectativa de recompensa religiosa que não experimentou. Em outro caso semelhante, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na Apelação Cível nº 70051621894, fundamentou sua decisão em abuso de direito (Art. 187, CC) ao anular uma doação de oferta de bens à igreja em que o fiel também alegou a ocorrência de coação moral irresistível.
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Para concluir, a coação não possuí restrição quanto a sua aplicação a instituições religiosas e poderá sim ser utilizada pelos magistrados como causa de anulação de negócios jurídicos celebrados com instituições religiosas por motivo de coação, seja promessas divinas ou temor que um mal injusto lhe sobrevenha. A aplicação da coação protege o fiel que se sentir coagido sem ferir a esfera da liberdade religiosa que possuí limites e não pode servir de escusa para práticas abusivas.
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THE POSSIBILITY OF A CONTRACT INVOLVING RELIGIOUS ENTINY TO BE DEEMED AS VOID DUE TO COERCION IN THE EXECUTION
ABSTRACT
The article deals with the possibility of canceling executed legal transactions between believers and religious institutions analyzing how it manifest itself coercion in churches and the way that the Judiciary has responded to this demand, considering the right to religious freedom and the guarantee of adjudication in the discussion legal business.
Keywords: Civil Right; Coercion; Donation; Legal Business Cancellation; Religious Freedom.
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A REPRESENTATIVIDADE SOCIAL NO TRIBUNAL DO JÚRI E SUAS CONSEQUÊNCIAS
Gustavo Castro Belém
RESUMO Este artigo analisa os critérios postos pela legislação e pela doutrina para selecionar os jurados e questiona se o resultado reflete a configuração real da sociedade brasileira. Constatada a discrepância entre ambos, procede-se com o estudo dos efeitos da homogeneização decorrente e até que ponto o Júri é uma instituição democrática e popular. Palavras-chave: Tribunal do Júri. Jurados. Ideologia. Habitus.
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1 O RECRUTAMENTO DOS JURADOS NO DIREITO BRASILEIRO O Código de Processo Penal estabelece no caput do art. 436 que o serviço do Júri – além de ser obrigatório – contará somente com indivíduos que sejam maiores de dezoito anos de idade e notoriamente idôneos. Em seguida, o parágrafo primeiro veda quaisquer formas de discriminação quanto ao alistamento de jurados por conta de “cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução” (BRASIL, 1941). Existem ainda outros requisitos que não se encontram no texto legal: somente poderão exercer a função de jurado aqueles que sejam brasileiros e alfabetizados, além de ser imprescindível que estejam no gozo tanto de perfeita saúde mental e física quanto de seus direitos políticos (NUCCI, 2012, p. 833). A fim de reunir nomes em quantidade suficiente para formar as listas anuais de jurados, a legislação processual penal estipula – especificamente no §2º do art. 425 do referido diploma - que o juiz presidente deverá recorrer a certos órgãos da sociedade, como associações de classe e de bairro e instituições de ensino, e tomar nota dos indivíduos que lhe sejam indicados. A lição de Nucci, entretanto, revela que a prática forense se dá de forma diferente do que se encontra previsto na lei: A colheita dos nomes de jurados para compor as listas do Tribunal do Júri se faz, na maioria das Comarcas brasileiras, de modo aleatório, sem conhecimento direto e pessoal do magistrado em relação a cada um dos indicados. Utiliza-se, há anos, como regra, a listagem dos cartórios eleitorais, que coletam vários nomes, enviando ao juiz presidente. Dificilmente cumpre-se o disposto no §2º deste artigo, perscrutando interessados em associações de classe e de bairro, entidades associativas e culturais, instituições de ensino, universidades, etc. [...] O máximo que se faz, após o recebimento das listas formadas aleatoriamente nos cartórios eleitorais, é uma pesquisa de antecedentes criminais. Posteriormente, verifica-se a aptidão do jurado e sua idoneidade para a função na prática, quando já se encontra sorteado para as listas de sessões de julgamento (NUCCI, 2012, p. 821).
À data da sessão de julgamento, deverão estar presentes pelo menos quinze e idealmente vinte e cinco jurados, sendo estes previamente sorteados dentre todos os nomes que constam da lista anual. Haverá ainda novo sorteio para escolher sete pessoas, as quais, juntamente com o magistrado togado, formarão o conselho de sentença responsável pela decisão do caso em questão. Formado o conselho de sentença, o juiz tomará o compromisso dos jurados, recitando a fórmula presente no art. 472 do Código de Processo Penal. Feito isso, proceder-se-á no andamento da sessão.
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2 A IDEOLOGIA NA SELEÇÃO E FORMAÇÃO DO JÚRI
Por óbvio que a vedação à exclusão de alguém da lista de jurados por razões discriminatórias - conforme o já citado §1º do art. 436 – apenas torna possível a participação ampla e irrestrita de todos os membros da sociedade na composição do Júri, mas não a garante de forma alguma. De fato, verifica-se que o legislador não adotou quaisquer medidas ativas que assegurassem esta diversificação do tribunal popular. Outro ponto que merece ser criticado é o uso da expressão “notória idoneidade” pelo art. 436, caput, do Código de Processo Penal. Por se tratar de um conceito jurídico indeterminado, sua característica essencial é, segundo Luís Roberto Barroso, “o emprego de linguagem intencionalmente aberta e vaga, de modo a transferir para o intérprete o papel de completar o sentido da norma, à vista dos elementos do caso concreto” (BARROSO, 2009, p. 312). Tem-se na doutrina conceituações bastante semelhantes para definir o que seja idoneidade e qual o perfil desejável dos jurados. Borges Rosa, por exemplo, defende que: [...] na lista geral de jurados só deverá ser incluído o cidadão que tiver idoneidade moral e intelectual. Tanto vale dizer que o corpo de jurados se deve compor de cidadãos mais notáveis do município por seus conhecimentos, experiência, retidão de conduta, independência e elevação de caráter (ARAÚJO, 2004, p. 43).
Este processo de atribuição de sentido à palavra idoneidade não consiste em exercício puramente científico, imparcial e livre de quaisquer máculas. Pelo contrário, ao estabelecer um significado, tanto o juiz quanto o doutrinador produzem um discurso fundamentado em valores ideológicos e apresentam-no como se universal fosse. De acordo com Mészáros: Nas sociedades capitalistas liberal-conservadoras do Ocidente, o discurso ideológico domina a tal ponto a determinação de todos os valores que muito frequentemente não temos a mais leve suspeita de que fomos levados a aceitar, sem questionamento, um determinado conjunto de valores ao qual se poderia opor uma posição alternativa bem fundamentada, juntamente com os seus comprometimentos mais ou menos implícitos (MÉSZÀROS, 2004, p. 58).
São igualmente elucidativas as palavras de Lênio Streck sobre o tema:
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No âmbito do Tribunal do Júri, a noção de "cidadão de notória idoneidade" pode ser vista como uma definição persuasiva, que expressa as crenças valorativas e ideológicas do magistrado (e quem o auxilia/influi) sobre o modo de escolha dos jurados. A designação/nomeação do que seja um cidadão de notória idoneidade estará permeada pelo poder de violência simbólica que se estabelece. O resultado desse processo é a formação/introjeção no imaginário social de um padrão de normalidade acerca do que seja "notória idoneidade". Constrói-se, desse modo, aquilo que Ferraz Jr. chama de "arbitrário socialmente prevalecente" (STRECK, 2001, p. 53).
O que esta arbitrariedade velada importa é exatamente o oposto do já referido §1º do art. 436 do Código de Processo Penal. A título de exemplo, considerar-se-á a situação dos analfabetos. Para Nucci, “[...] a alfabetização é elemento indispensável, para que o jurado possa ler os autos, sem quebrar a incomunicabilidade durante o julgamento” (NUCCI, 2012, p. 833). Ora, esta exclusão se fundamenta unicamente no grau de instrução do indivíduo – apesar da oposição ao dispositivo legal supracitado – e na decorrente incapacidade de se adequar às peculiaridades da prática jurídica. Mais do que isso, o analfabetismo é característica das classes mais baixas da sociedade: de acordo com estudo publicado pelo Ministério da Educação e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP - em 2003, a taxa de analfabetismo era de 1,4% nos domicílios de rendimento superior a dez salários mínimos e aterradores 29% naquelas residências com renda inferior a um salário mínimo (INEP, 2003). Ou seja, a restrição ao analfabeto vai também de encontro à proibição de que o sujeito deixe de fazer parte do Júri por questões de profissão, classe social ou econômica e origem, que, a priori, não poderiam impedir seu alistamento. Existem, na doutrina, outros argumentos contra a implantação da participação popular ampla e irrestrita no tribunal do Júri. Edílson Mougenot Bonfim oferece o seguinte ponto de vista: Existe, por outro lado, uma corrente – da qual falávamos alhures – pretendendo a ‘máxima democratização’ da lista de jurados, a qual se inibe de incluir na referida ‘lista’ os mais despreparados comarqueanos – inclusive os analfabetos, porque agora ‘cidadãos’ – aduzindo que a sociedade é composta por pessoas de diferentes quilates e matizes e, por tal, em sendo o Júri ‘o Julgamento do homem por seus pares’, os representantes dos diversos segmentos sociais deveriam adentrar a justiça, como jurados. Não entendemos assim, aliás, bem ao contrário. Propugnamos pela melhoria nos critérios seletivos dos referidos cidadãos. [...] Nesse contexto, ‘democratizar’ não encontra sinonímia em ‘desqualificar’. Assim, se por um lado é certo que a ratio do Júri é a não exigência de qualificação técnica, do jurado, por outro também, a minus valia intelectiva e de caráter não abandona a pretensão de ver-se incluído na citada ‘lista’. [...] Ademais, a complexidade da causa, a aferição de provas, o cipoal da quesitação e de teses jurídicas, enfim a solução das equações lógico-jurídicas propostas necessitam encontrar supedâneo, ao menos, para frutificar em justiça, em terreno fértil que seja a inteligência não viciada ou infecunda dos jurados (ARAÚJO, 2004, p.42).
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Esta presunção de que os jurados devem ser aqueles dentre o povo que possuírem maior instrução e retidão moral – considerando-se o caráter ideológico mascarado dos valores usados como medida para se apurar quão correto é o indivíduo – ignora o fato de que a noção de justiça admite formulações que não a consideram como universal Neste sentido, Bourdieu aponta que “[...] a sensibilidade à injustiça ou a capacidade de perceber uma experiência como injusta não está uniformemente espalhada e depende estreitamente da posição ocupada no espaço social” (BOURDIEU, 1989, p. 232). Em uma sociedade caracterizada principalmente por disputas entre as classes, estas supostas representações de todas as camadas sociais escondem o desejo de manutenção da ideologia dominante. “Antagonismo de classe significa que não existe um todo neutro na sociedade – cada ‘todo’ privilegia em segredo certa classe” (ŽIŽEK, 2002, p. 31). Assim, ao se apresentar como sendo uma instituição democrática e popular, o Tribunal do Júri brasileiro se adequa com perfeição ao que diz Žižek e mantém discreta sua contribuição para com certos interesses das camadas dominantes do corpo social. Acerca do tema cabe recorrer novamente a Mészáros: Naturalmente, aqueles que aceitam de modo imediato a ideologia dominante como a estrutura objetiva do discurso “racional” e “erudito” rejeitam como ilegítimas todas as tentativas de identificar os pressupostos ocultos e os valores implícitos com que está comprometida a ordem dominante. Assim, em nome da “objetividade” e da “ciência”, eles precisam desqualificar o uso de algumas categorias vitais do pensamento crítico. Reconhecer a legitimidade de tais categorias seria aceitar o exame dos próprios pressupostos que são assumidos como verdadeiros, juntamente com as conclusões que podem ser – e efetivamente o são – facilmente delas extraídas (MÉSZÀROS, 2004, p. 58).
A exclusão dos membros das classes baixas das listas de jurados retira do Júri todo seu potencial democrático. De fato, o que se verifica na realidade fática é uma instituição distante do que sugere a alcunha de “tribunal popular”, agindo em defesa da ideologia dominante. Citando Gladston Araújo: Em verdade, não há representatividade popular, pois nos moldes atuais o Tribunal do Júri apresenta-se discriminativo e centralizador. Entre os sete jurados que constituem o conselho de sentença nas sessões de julgamento nunca se encontra o feirante, o ascensorista, o lavrador, o autônomo ou o profissional liberal. Será que nessas faixas profissionalizantes não se encontram “cidadãos de notória idoneidade” ou será que houve supressão de vocábulos adjetivados no art. 436 do Código de Processo Penal que pretendia, cidadãos de notória idoneidade econômica e/ou “intelectual”? (ARAÚJO, 2004, p. 40).
Esta seleção fundada em preceitos ideológicos de classe contribui para que as listas de
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jurados sejam homogeneizadas, afetando diretamente os resultados dos julgamentos – como se verá na próxima parte deste trabalho.
3 OS EFEITOS DA HOMOGENEIDADE DOS JURADOS
Referindo-se a uma obra publicada em 1934 por Odecio Camargo, Fábio Goulart mostra que esta uniformidade entre os membros do Júri não se trata de um fenômeno recente ou mesmo ultrapassado. Nas palavras do autor: Em seu estudo, Odecio Bueno Camargo adverte também quanto ao fato de que os jurados são recrutados geralmente em uma só classe social, com interesses, hábitos de vida e educação semelhantes, e tais fatores acabam por influenciar na sua tomada de decisões (“um ladrão absolvido hoje pode nos roubar amanhã”) (GOULART, 2008, p. 21).
Apesar de transcorridos mais de sessenta anos desde as conclusões obtidas por Odecio Camargo, Nucci, em 1997, empreendeu uma pesquisa junto ao 3º Tribunal do Júri de São Paulo e apurou o seguinte: Ora, o número de pessoas da elite cultural brasileira, consequentemente de classes sociais mais favorecidas, é bastante elevado na composição do corpo de jurados, bastando assinalar que há mais pós-graduados entre os juízes leigos do que instruídos com o 1º grau. Numa visão global, tem-se 72,48% com curso superior (completo, incompleto e pós-graduação) (GOULART, 2008, p. 24).
Esta participação maciça das classes média e alta pode ser confirmada na prática com uma observação das listas de jurados publicadas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais75. Em 2014, os quatro maiores contingentes de jurados por profissão em Contagem eram os professores (18,4% do total), auxiliares de diversas áreas (10,1%), estudantes (9,2%) e bancários (6,3%). No município de Bocaiúva, verificou-se a predominância dos professores uma vez mais, seguidos pelos advogados. Em Ouro Preto, por sua vez, somente estavam alistados indivíduos descritos como funcionários públicos. Ter um tribunal do Júri marcado de forma tão forte pelo caráter de classe implica na reprodução do discurso ideológico dominante através de sua imposição. Aqueles que forem levados ao banco dos réus e que porventura não se adequem ao padrão de comportamento desejável de uma sociedade liberal-conservadora serão tratados com maior rigor pelos jurados, e, portanto, tenderão a ser condenados com mais frequência. 75
O sítio do TJMG disponibiliza as listas referentes a alguns municípios do Estado em <http://www.tjmg.jus.br/portal/conheca-o-tjmg/a-justica/colaboradores-da-justica/> Acesso em 26 de outubro de 2015.
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Esta categoria de desviantes inclui os vagabundos, inimigos por excelência da ordem social liberal-conservadora em virtude de “sua posição nociva no processo de produção, dado que se recusam ao trabalho” (FONSECA, 2002, p. 31), de acordo com Foucault, assim como as prostitutas, os viciados em drogas, os delinquentes, etc. Em suma, são aquelas pessoas “[...] engajadas numa espécie de negação coletiva da ordem social” (STRECK, 1998, p. 118). Sobre este tema cabe trazer a observação de Lênio Streck: É razoável afirmar que, no âmbito do Tribunal do Júri, sofrem maiores condenações aqueles que são apresentados como os mais inadequados ao modelo de comportamento social implícito nos códigos e explicitado na sua aplicação. Isto porque, há – necessariamente – uma estreita relação entre o resultado dos julgamentos e a composição do corpo de jurados de cada cidade/comunidade. Pode não ser o fator determinante por si só, mas é elucidativo o fato de que o elevado grau de participação das camadas médio-superiores no júri tem como consequência um elevado número de condenações (STRECK, 2001, p. 129).
Jurados que pertençam à mesma classe social tendem a julgar de forma semelhante por compartilharem os mesmos habitus – pelo que se entende como a “estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas” (BOURDIEU, 2013, p. 164). Este processo tem início na educação familiar: o habitus primário constitui-se em função da posição ocupada pelos pais de determinado indivíduo na dinâmica do corpo social. “É adquirir disposições para reproduzir espontaneamente, em e por seus pensamentos, suas palavras e suas ações, as relações sociais existentes no momento da aprendizagem” (BONNEWITZ, 2003, p. 78), afirma Bourdieu. Desta forma, interiorizam-se uma série de conceitos e definições marcados pela ideologia de cada uma das classes que compõem a sociedade. Prosseguindo na explicação de Bourdieu, observa-se o seguinte: À medida que esse primeiro programa é inscrito num agente, este tende a perceber cada vez mais as experiências novas em função do seu habitus primário, de tal modo que as disposições já adquiridas condicionam a aquisição posterior de novas disposições. Assim, sobre o habitus primário enxertam-se, ao longo do vivido do agente, habitus secundários entre os quais é preciso sublinhar a importância particular do habitus escolar que vem, em regra geral, continuar e redobrar o habitus familiar. Efetivamente, se é verdade que as aquisições mais antigas condicionam as mais recentes, cada aquisição nova se integra ao conjunto, num só habitus, que não para de adaptar-se, ajustar-se em função das necessidades inerentes às situações novas e inesperadas (BONNEWITZ, 2003, p. 79)
É importante ressaltar que indivíduos inseridos nos mesmos habitus não terão necessariamente a mesma visão de mundo. As oportunidades particulares de socialização e convivência encontradas por determinado sujeito serão fundamentais na construção de suas
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próprias condutas e representações. Por outro lado, considerada a realidade social do Brasil, é bastante provável que os membros das classes média e alta compartilhem entre si diversos habitus – a escola particular, a educação superior, os cursos e afins, o ambiente tipicamente gerencial de seu trabalho, os clubes sociais, eventos e círculos de amigos, etc. Não surpreende, pois, que haja tamanha similaridade entre as formas de agir e pensar destes grupos sociais. De acordo com a lição de Streck, “é razoável afirmar que há uma forte relação de causa e efeito entre os resultados dos julgamentos e a correlação de forças que existe entre as classes/camadas sociais que julgam e são julgadas” (STRECK, 2001, p. 117). Em face de todo o exposto, a constatação de Carlos Antônio Costa Ribeiro é pontual: As penas resultantes das condenações de processos criminais de competência do Tribunal do Júri no Rio de Janeiro variavam, principalmente, de acordo com a classe social e a cor dos acusados. A análise levou o autor à triste constatação que os mais pobres e especialmente os mais ‘pretos’ tinham maior probabilidade de serem condenados e receberem penas mais elevadas (ARAÚJO, 2004, p. 40).
A discriminação racial que parece nortear os julgamentos pelo Júri se verifica de forma ainda mais clara nas palavras do próprio Costa Ribeiro: Dentre todas as características dos acusados e das vítimas nos processos criminais de acusação de ‘crime de sangue’, a que está estatisticamente mais relacionada à decisão dos jurados é a cor dos acusados. A cor preta do acusado aumenta, mais do que qualquer outra característica, a probabilidade de condenação no Tribunal do Júri. O acusado preto tem 31,2 pontos percentuais a mais de probabilidades ou chances de ser condenado do que o acusado branco, e o acusado pardo tem 15,8 pontos a mais de chances de condenação do que o acusado branco (ARAÚJO, 2004, p. 40).
Retornando à pesquisa de Nucci junto ao 3º Tribunal do Júri, a conclusão alcançada pelo renomado penalista apenas confirma que esta instituição está contaminada pelo antagonismo entre as classes. Isto porque as classes economicamente mais favorecidas: [...] dificilmente são colocadas nos bancos do júri – salvo casos de crimes passionais, disputas de herança ou mesmo brigas de trânsito – até porque os crimes típicos do tribunal popular não lhe são comuns. Muitos homicídios, como se mencionou, são cometidos em ambientes hostis, onde há armas ilegais em profusão, alcoolismo e vida familiar desagregada. Infanticídios dificilmente são praticados por mulheres que contam com o apoio da família e possuem condições financeiras para sustentar seus filhos. Abortos praticados por mulheres de nível econômico elevado dificilmente são descobertos, pois praticados em clínicas particulares, com toda a assistência. Daí por que é natural supor que, ao menos no 3º Tribunal do Júri de São Paulo, classes sociais sentam-se de lados opostos no tribunal popular. Pessoas cultas e bem formadas julgam, na maioria das vezes, indivíduos incultos, analfabetos e miseráveis (GOULART, 2008, p. 25).
É interessante traçar um paralelo entre tal fenômeno, verificado por estes juristas, e os
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dados publicados no Censo do Poder Judiciário (CNJ – Conselho Nacional de Justiça, 2014). Questionados acerca de sua “cor ou raça”, 84,5% dos magistrados responderam que se consideram brancos enquanto 14% se classificaram como pardos. Quase irrisórios são os 1,4% que se afirmaram como negros ou os 0,1% que se dizem indígenas.
4 CONCLUSÃO A identidade existente entre aqueles indivíduos responsáveis por julgar – o juiz togado e o jurado – é tão sintomática quanto aquela que se nota entre os que estão sendo julgados – os membros das classes mais baixas da sociedade. A exigência de idoneidade é interpretada de forma ideológica e assim se excluem todos aqueles indesejáveis que porventura não sejam compatíveis com quaisquer definição adotada por um ou outro magistrado. Que esta divisão exista e corresponda precisamente à distribuição das várias formas de capital pela coletividade brasileira não pode ser vista como coincidência ou de qualquer forma surpreendente. A semelhança entre os habitus compartilhados pelos jurados tenderá a julgamentos em que são condenados com mais frequências todos aqueles indivíduos que não se adequam ao padrão de comportamento desejável e imposto por uma sociedade liberal-conservadora – e por isso entenda-se todos aqueles que se situam na parte de baixo da pirâmide social. De certa forma, o próprio Tribunal do Júri se transforma em um habitus na medida em que se torna uma ‘estrutura estruturante’ e contribui para a que o discurso ideológico seja produzido e reproduzido. Diante disto, nota-se que o Júri e a Justiça penal são semelhantes na medida em que estas instituições não podem ser tidas como verdadeiramente democráticas e/ou populares; seu compromisso não é orientado pela defesa ou pela consecução destes dois valores, mas pela manutenção da ordem social vigente.
REFERÊNCIAS ARAÚJO, Gladston Fernandes. Tribunal do júri: uma análise processual à luz da Constituição Federal. Niterói: Impetus, 2004. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2009. BONNEWITZ, Patricia. Primeiras lições sobre a sociologia de P. Bourdieu. Trad. Lucy Magalhães. Petrópolis: Vozes. 2003.
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BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. 2. ed. rev. 1. reimpr. Trad. Daniela Kern e Guilherme J. F. Teixeira. Porto Alegre: Editoria Zouk. 2013. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. Rio de Janeiro: Editoria Bertrand Brasil. 1989. BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm> Acesso em 20 de outubro de 2015. CNJ - Conselho Nacional de Justiça. Censo do poder judiciário. Brasília: 2014. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/images/dpj/CensoJudiciario.final.pdf> Acesso em 25 de outubro de 2015. FONSECA, Márcio Alves. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad. 2002, p. 31. GOULART, Fábio Rodrigues. Tribunal do júri: aspectos críticos relacionados à prova. São Paulo: Atlas, 2008. INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Mapa do analfabetismo no Brasil. Disponível em <http://www.oei.es/quipu/brasil/estadisticas/ analfabetismo2003.pdf>. Acesso em 29 de dezembro de 2015. MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. Trad. Paulo Cezar Castanheira. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2004. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 11ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2012. STRECK, Lênio Luiz. Tribunal do júri. Símbolos e rituais. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2001. ______.______. 3ª ed. rev. mod. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1998. ŽIŽEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. Trad. Rogério Bettoni. São Paulo: Editora Boitempo, 2002. THE SOCIAL REPRESENTATIVITY IN THE JURY’S COURT AND ITS CONSEQUENCES
ABSTRACT
This paper undertakes an analysis of the criteria stipulated by the law and the doctrine for the selection of jurors and inquires if the result reflects the real status of Brazilian society. As there is a difference between both, it studies the effects of the resulting standardization and whether the Jury is a democratic and popular institution. Key-Words: Jury’s Court. Jurors. Ideology. Habitus.
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A UTILIZAÇÃO DO HABEAS DATA PARA A PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE DOS USUÁRIOS NOS CONTRATOS ELETRÔNICOS
Ana Carolina Valtudes
RESUMO
A proteção da privacidade do consumidor nos contratos de internet se dá tanto pela CR/88 quanto pelo Marco Civil da Internet, Código Civil, CDC e, em especial, pelo Habeas Data, ação constitucional que visa preservar o direito de informação do indivíduo, previsto na Lei 9507/97.
PALAVRAS-CHAVE: Privacidade; Internet; Contratos; Consumidor; Habeas Data
1-
INTRODUÇÃO
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman faz uma análise da sociedade pós-moderna, marcada pelo consumismo e refém desse sistema. Segundo ele, esse processo se inicia quando a sociedade passou de um estado sólido para líquido,
(...) ou seja, para uma condição em que as organizações sociais (estruturas que limitam as escolhas individuais, instituições que asseguram a repetição de rotinas, padrões de comportamento aceitável) não podem mais manter sua forma por muito tempo (nem se espera que o façam), pois se decompõem e se dissolvem mais rápido que o tempo que leva para moldá-las e, uma vez reorganizadas, para que se estabeleçam. (BAUMAN, 2007, p. 7)
Dessa forma as relações, tanto pessoais como acadêmicas e profissionais passaram de presenciais para virtuais e, mediadas pelas redes sociais, deixaram de ser apenas uma opção de plataforma de comunicação para uma necessidade real, generalizada e urgente (BAUMAN, 2008, p. 8). Cada vez mais as pessoas estão mais conectadas e publicando suas vidas em “posts” no Facebook, blogs e vídeos. Nesse cenário destacam-se as denominadas empresas.com, aquelas que prestam serviços pela internet, e tem como principais fontes de renda campanhas publicitárias e de marketing. Essas empresas monitoram seus clientes, compram e vendem informações pessoais destes de forma a traçar o perfil de seus
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consumidores e assim manipulá-los. (VIEIRA, 2007, p.197). Assim, colocam em risco a privacidade dos usuários ao manter registro de seus gostos, opiniões, hábitos de consumo, fotos, vídeos, impressões digitais e faciais, entre outros dados, cuja coleta nem sempre é feita de forma clara e previamente autorizada pelo usuário, podendo ser utilizados contra seus próprios interesses. O direito à privacidade, previsto na Constituição da República de 1988 em seu artigo 5º X, deve ser assegurado independentemente da plataforma de comunicação utilizada para a criação dos contratos. Apesar disso é possível perceber um frequente desrespeito a esse direito nos contratos feitos em ambiente virtual, que são contratos de adesão, em que as cláusulas não são discutidas, mas simplesmente impostas por uma das partes e aceitas pela outra. A inserção de cláusulas abusivas, que ferem o direito do consumidor, são frequentes e podem comprometer a privacidade do usuário quando permitem que a empresa possa armazenar certos dados pessoais deste e repassá-las a outras empresas ou ao governo sem o conhecimento ou anuência prévia do consumidor ou sem autorização legal ou judicial. Isso se deu devido à aparente falta de regulamentação do ambiente virtual, que por ser considerado um espaço livre muitos não reconheciam que a ele se aplicavam as mesmas normas do mundo dito real, entendimento que por muito tempo prevaleceu. A necessidade de garantir a efetividade de direitos fundamentais em ambiente virtual fez com que fosse sancionado em 2014 o Marco Civil da Internet - Lei 12.956- que estabeleceu regras, princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. Dessa forma, os contratos feitos na internet são por essa lei, bem como pelo Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor, regulados.
2-
CONTRATOS
Christiano Farias e Nelson Rosenvald definem contrato como “todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamentos jurídicos atribui os efeitos designados como queridos pelas partes, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pelo sistema jurídico que sobre ele incide”. (FARIAS, e ROSENVALD, 2012, p. 59) Os contratos são regidos pelos seguintes princípios definidos no Código Civil de 2002: Autonomia Privada, definida como “voluntária submissão do indivíduo à limitação de sua liberdade.” (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p. 142) Tendo como seus principais aspectos: “a) liberdade contratual, como livre estipulação do conteúdo do contrato, sendo suficiente à
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sua perfectibilidade a inexistência dos vícios subjetivos do consentimento; b) intangibilidade do pactuado- o pacta sunt servanda exprimia a idéia da obrigatoriedade dos efeitos contratuais pelo fato de o contrato ser justo pela mera razão de emanar do consenso entre pessoas livres; c) relatividade contratual, pautada pela noção da vincularidade do pacto, restrita às partes, sem afetar terceiros, cuja vontade é um elemento estranho à formação do negócio jurídico.” (FARIAS e ROSENVALD, 2012, p.142) Outro princípio é a Função Social do Contrato, expresso no art. 421 do Código Civil de 2002 “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.” (BRASIL, 2002), que legitima a liberdade contratual, que é plena, mas deve se submeter ao ordenamento jurídico, principalmente aos valores contidos na Constituição. A Função Social se faz necessária para que seja concretizado o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e evitar que os contratantes deixem de ser sujeitos de direitos e passem a objetos de direito. O Marco Civil da Internet trouxe a expressão finalidade social da rede, em seu artigo 2º VI, e reforça a ideia de que o privado também traz consequências a toda sociedade e, portanto, deve se tornar um instrumento útil a toda coletividade. A internet, em especial, é o meio mais propício para desenvolvimento cultural e de integração, pois as distâncias são encurtadas e sua propagação é imensurável. A função social da rede é um fundamento que acarreta questões de solidariedade humana. A lei 12.065/14 desprende-se do cunho patrimonialista, exaltado anteriormente em legislações patrimonialistas e promove a dignidade da pessoa humana como o centro gravitacional do ordenamento jurídico, adotando a postura de vanguarda dos países democráticos e das legislações mais atuais. (...) Portanto, na função social da rede verifica-se que deve conter reflexos sociais, voltados para o bem estar social e a melhoria de condição do ser humano. No âmbito econômico, devem buscar a geração de riquezas. No que tange ao político, deve estar estruturado no ordenamento jurídico com possibilidades de estratégia de desenvolvimento. Por fim, a função pedagógica-cultural que está no fato de propiciar conhecimento técnico ou cultural. (BRANT, 2014, p. 70)
O princípio da Justiça Contratual preza que deve haver equilíbrio entre as partes contratantes, de forma com que as prestações não se tornem uma fonte de enriquecimento sem justa causa em detrimento da outra parte. Devendo o contrato evitar a disparidade das prestações entre os contratantes ao não manter somente o equilíbrio formal, mas também o equilíbrio material.
Busca-se alcançar a realização da chamada justiça contratual por meio da exigência de um comportamento leal, ético e transparente entre os contratantes, que garanta a preservação da equação e do justo equilíbrio do contrato, seja
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mantendo a proporção entre direitos e obrigações dos envolvidos, seja permitindo a correção de desequilíbrio supervenientes. (LEAL, 2007, p. 94/95)
Os contratos eletrônicos são aqueles cuja formalização, ou seja, quando a manifestação da vontade das partes, determinando deveres e obrigações jurídicas, se deu em ambiente virtual. Esses contratos são regidos tanto pelos princípios gerais dos contratos expressos no Código Civil, quanto por princípios específicos. Entre os princípios gerais encontra-se o princípio da Boa-fé Objetiva, segundo o qual as partes contratantes devem agir pautadas no exercício da lealdade, honestidade e ética, não podendo utilizar do contrato para alcançar objetivos diferentes daqueles concordados quando da formação do contrato. Para tanto é necessário que o contrato traga clausulas claras para que seja justo. Há algumas funções decorrentes da boa-fé objetiva, como a função interpretativa e a função interativa. A função interpretativa consiste no fato de não deixar incertezas no contrato no que tange à honestidade, lealdade e transparência. Dessa forma, havendo dúvidas sobre determinado contrato, o intérprete deve o conduzir de tal forma, que não acarrete sua ilicitude ou a imoralidade, provocando um desequilíbrio na relação contratual. Dessa forma, deve interpretar, no que sentido que fique mais próxima, a boa-fé objetiva. A hermenêutica interpretativa deverá buscar um significado mais justo consoante à boa-fé, de modo a preservar o máximo a continuidade do contrato. (BRANT, 2014, p. 173)
Esse princípio está presente no Código Civil nos artigos 113, 187 e 422, no Marco Civil da Internet nos artigos 7º e 8º, e no Código de Defesa do Consumidor nos artigos 4º e 51. Os princípios específicos que regem os contratos eletrônicos são o da Equivalência Funcional dos Contratos Realizados em Meio Eletrônico com os Contratos Realizados por Meios Tradicionais “Do mencionado preceito se extrai que não deve ser negada validade a um contrato pelo simples fato de ter sido realizado em ambiente virtual. Essa equiparação visa dotar os documentos eletrônicos- nos quais estão- da mesma validade das mensagens escritas, verbais ou tácitas.” (LEAL, 2007, p. 90), sendo a eles aplicadas, por força do princípio da Conservação e Aplicação das Normas Jurídicas Existentes, as mesmas normas gerais dos demais contratos, pois “(...) a modificação do meio de contratação (a eletrônica) não afasta a regulamentação jurídica tradicional. Os operadores do Direito, valendo-se da analogia e da interação, devem aplicar a legislação vigente, naquilo que for possível, às novas formas de contratação via internet.” (LEAL, 2007, p. 91/92).
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E, por fim, o princípio da Neutralidade e Perenidade das Normas Reguladoras do Ambiente Virtual, segundo o qual, “As normas devem ser neutras para que não se constituam em entraves ao desenvolvimento de novas tecnologias e perenes no sentido de se manterem atualizadas, sem a necessidade de serem modificadas a todo instante.” (LEAL, 2007, p. 90/91). Os contratos eletrônicos são classificados de acordo com a forma de sua celebração. Os contratos intersistêmicos são aqueles celebrados entre sistemas aplicativos préprogramados em que, após essa programação não há mais manifestação da vontade humana, e assim as máquinas operam automaticamente (LEAL, 2007, p. 83). Já os contratos interpessoais “(...) a comunicação entre partes, pessoas físicas ou jurídicas, opera-se por meio do computador, tanto no momento da proposta, quanto no memento da aceitação e instrumentalização do acordo. Usualmente, esse tipo de contratação é feito por correio eletrônico e-mail, videoconferência ou salas de conversação- chats.” (LEAL, 2007, p. 85), podendo ser simultâneos, quando a manifestação de vontade das partes ocorre em um mesmo momento ou não simultâneos, quando decorre maior espaço de tempo entre elas. (LEAL, 2007, p. 86) Os contratos interativos “(...) são aqueles nos quais a comunicação entre as partes é obtida por meio da interação entre uma pessoa e um sistema aplicativo previamente programado. Como exemplos, têm-se os contratos realizados quando se acessa um site, ou uma loja virtual, que mantém de forma permanente no ambiente digital a oferta de produtos, serviços e informações.” (LEAL, 2007, p. 87). Muito comuns no mercado de consumo, são considerados contratos de adesão, visto que as cláusulas são previamente estabelecidas por uma das partes e simplesmente aceitas pela outra sem discussão do conteúdo do contrato. A todos os contratos eletrônicos são aplicadas as normas referentes a contratação a distância. O Marco Civil da Internet, lei 12.965, promulgada em 23 de abril de 2014, surgiu como necessária regulamentação ao ambiente virtual tendo em vista as constantes violações a direitos fundamentais por usuários, empresas e até mesmo governos. Tem seus fundamentos no artigo 2º, no qual se destaca o inciso “V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor;” (BRASIL, 2014). O artigo 2º da lei federal 8078, de 11 de setembro de 1990 -Código de Defesa do Consumidor- define consumidor como toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final, equiparando-se a este a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. (BRASIL, 1990). É ainda aplicável nas relações de consumo em ambiente virtual o Decreto 7962, de 15 de março
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de 2013, que “Regulamenta a Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, para dispor sobre a contratação no comércio eletrônico”. A proteção dos direitos do consumidor se faz por meio dos seguintes princípios: Força Vinculante da Oferta e da Publicidade, segundo o qual a oferta, declaração unilateral pela qual o fornecedor deixa clara a intenção de contratar com o consumidor, é vinculatória e irretratável, sendo este direito básico do consumidor. (LEAL, 2007, p. 70). Pelo princípio do Consentimento Informado, previsto no art. 54 do CDC, o contrato só obriga os contratantes caso o consumidor tenha conhecimento prévio e esclarecido do conteúdo do contrato, para que sua vontade seja livre de vícios “A necessidade de consentimento informado ganha especial destaque diante da proliferação dos chamados contratos de adesão, nos quais as cláusulas são pré-redigidas unilateralmente pelo fornecedor, sem qualquer participação do consumidor, quanto ao estabelecimento do conteúdo do contrato e das condições de seu cumprimento. Tais cláusulas, não raro, são de difícil compreensão para o consumidor, justificando perfeitamente a inclusão deste dispositivo no Código de Defesa Do Consumidor.” (LEAL, 2007, p. 71/72) O Princípio da vulnerabilidade do consumidor (artigos 4º e 47 do CDC) ou da interpretação favorável ao consumidor prevê que “Assim, havendo cláusulas dúbias ou obscuras, ou, então, na hipótese de contrariedade entre o que está posto no formulário e alguma cláusula inserida, posteriormente, prevalescerá esta última, no interesse do consumidor (contra stipulatorem)”. (LEAL, 2007, p. 73) Por fim, o princípio da Onerosidade Excessiva/ Nulidade Contratual Reconhece o CDC, em seu artigo 4º, a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo e também tem como princípio a coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo que possam causar prejuízos aos consumidores. Dessa forma considera nulas de pleno direito, em seu artigo 51 §1º, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que presumem exageradas vantagens que ofendam os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertencem, restringem direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual ou se mostram excessivamente onerosas para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso. (BRASIL, 1990)
3-
PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE EM JUÍZO
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Tanto a legislação específica no que tange ao tratamento das relações de consumo, Código de Defesa do Consumidor, quanto a legislação que se refere às relações ocorridas em ambiente eletrônico, Marco Civil da Internet, trazem a preocupação com a preservação dos dados e da intimidade dos consumidores/ usuários, parte mais frágil das relações, frente às empresas ofertantes de produtos. Ambos tratam do direito à autodeterminação garantindo ao indivíduo a possibilidade de tomar suas próprias decisões quanto a sua vida e seus dados, tanto em frente ao Estado quanto em frente aos particulares detentores de informações pessoais dos indivíduos com quem se relacionam.
Com relação ao tratamento de dados nas relações consumeristas, o CDC, com o objetivo de estabelecer relações de consumo mais justas envolvendo produtos e serviços, estabelece no seu artigo 43, que qualquer consumidor terá livre acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes. O CDC determina que a penalidade por violação desse direito de acesso é detenção de seis meses a um ano, ou multa. A mesma penalidade pode ser aplicada em caso de violação da obrigação de retificar imediatamente qualquer informação de um consumidor incluída em tais bancos de dados, que seja ou devesse ser reconhecida como imprecisa. Note-se que essa proteção vem estritamente alinhada com o direito constitucional ao habeas data. (LEITE e LEMOS, 2014, p. 688)
O instrumento jurídico adequado para tal proteção seria Habeas Data- ação constitucional que tem como objeto a preservação do direito de informação do indivíduo, no que diz respeito ao próprio interessado- regulamentado pela Lei 9507, de 12 de novembro de 1997. Surgido a partir da ação de habeas corpus- instituída pela Carta Magna Inglesa de 1215 e previsto na Constituição da República de 1988 como uma das garantias fundamentais, que protege amplamente o direito à liberdade daqueles presos de forma ilegal- em função da necessidade de coibir condutas arbitrárias do Poder Público, bem como de particulares que detém bancos de dados públicos, no que tange à manipulação de dados dos indivíduos. Essa preocupação com os dados particulares adveio do grande receio de serem repedidas condutas do governo ocorridas no período anterior à Constituição da República de 1988, durante o regime militar, quando as liberdades individuais foram amplamente desrespeitadas, bem como em função das novas tecnologias que, cada vez mais, utilizam das informações pessoais e alteram as relações humanas. A ação de habeas data tem natureza civil, personalíssima- na medida em que assegura o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante- conteúdo e rito sumário. É classificada por Sérgio Luiz de Almeida Ribeiro como: habeas data informativo- quando da hipótese expressa na primeira parte no inciso LXXII “a” do artigo 5º da CR/88- quando
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garante o conhecimento de informações relativas ao impetrante; habeas data retificadorprevisto na alínea “b” do já referido artigo- para retificar dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo; habeas data complementar- hipótese ampliada pelo inciso III, artigo 7º da Lei 9507/97- que possibilita a atualização das informações para acrescentar ou suprimir algo que não faz jus à realidade. (RIBEIRO, P. 40). A súmula 02 do Superior Tribunal de Justiça prevê o não cabimento da ação de habeas quando não houver recusa de informações da autoridade administrativa, reforçando a necessidade da utilização da via administrativa antes da judicial. Deverá a prova ser préconstituída e acompanhar a inicial. Poderá a ação ser impetrada quando na ausência de resposta daquele que deve prestar as informações em dez dias, se o pedido for de acesso às informações, ou de quinze dias, quando do pedido de retificação ou anotação das informações. São legitimadas ativas todas as pessoas físicas ou jurídicas, brasileiras ou estrangeiras, que buscam informação pessoal. São legitimados passivos tanto o Poder Público quanto particulares que detenham informações pessoais de outros em bancos de dados de caráter público. O julgamento da ação de habeas data tem preferência em relação às ações comuns, devendo ser apreciada após as ações de habeas corpus e mandado de segurança. A decisão tem natureza declaratória quando da hipótese de conhecimento de informações, constitutiva, quando das hipóteses de retificação e anotação de dados, e mandamental, em qualquer das hipóteses, quando emite uma ordem para o agente coator para apresentar, retificar ou anotar dados. A utilização do Habeas Data como instrumento de proteção da privacidade do usuário já foi utilizada em países vizinhos, como Argentina em que foi determinada a retirada de um endereço de email eletrônico de um banco de dados que enviava propagandas não solicitadas (spam) sob o argumento de que esse envio invade a esfera íntima das pessoas (LEONARDI, 2012, p. 200), e na Colômbia, em um caso similar sob argumento de que a autodeterminação informativa é “novo direito fundamental que tem por objeto garantir a faculdade de as pessoas conhecerem e acessarem as informações, que lhes dizem respeito, arquivadas em bancos de dados, bem como controlar sua qualidade, o que implica a possibilidade de corrigir ou cancelar dados indevidamente processados e dispor sobre sua transmissão.” (LEONARDI, 2012, p. 201)
4-
CONCLUSÃO
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Diante o exposto é possível concluir que a sociedade da informação, apesar de ter trazido inúmeros benefícios quanto a democratização do conhecimento e da informação também trouxe novas preocupações referentes à proteção da privacidade e intimidade dos usuários/ consumidores. A desconstrução das relações humanas presenciais que passam, cada vez mais, a serem virtuais fez com que o indivíduo se tornasse ainda mais dependente das tecnologias da informação e, consequentemente, passasse a se expor cada vez mais. Essa exposição dos dados dos usuários na rede fez com que fossem criados verdadeiros sistemas de vigilância, coleta, compartilhamento e manipulação da informação, utilizados tanto pelos Estados quanto por particulares, nesse caso as empresas.com, para o direcionamento de produtos a serem consumidos. Dessa forma, o direito à privacidade, direito fundamental e personalíssimo é, todos os dias, desrespeitado quando o indivíduo adere a contratos abusivos firmados em ambiente virtual. Esses contratos ao colocar cláusulas ambíguas, de difícil entendimento e, muitas vezes, em outra língua que não o português, expõe ainda mais o consumidor ao não permitir que ele determine as condições para utilização de seus dados pessoais, ficando à mercê da vontade da empresa que possui seus dados. Apesar de existir a legislação Constitucional e de Proteção aos Direitos do Consumidor, que prevê a proteção à intimidade e a aplicação de princípios gerais dos contratos que assegurem o equilíbrio da relação contratual, foi necessária a edição de lei específica- Marco Civil da Internet- para que essa proteção fosse efetivada. Assim, cabe ao Estado a regulamentação das relações entre particulares no ambiente virtual para que não haja desproporcionalidade entre as partes contratantes e sejam assegurados os direitos fundamentais da parte hipossuficiente. O instrumento jurídico adequado para a efetivação do direito à autodeterminação informativa é a ação constitucional de Habeas Data- garantia fundamental- que permite que o indivíduo receba, corrija ou anote determinado dado pessoal constante em banco de dados mantido pelo Poder Público ou por particular de caráter público, nesse caso as empresas.com.
REFERÊNCIAS
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THE USE OF HABEAS DATA FOR PRIVACY PROTECTION OF USERS IN ELECTRONIC CONTRACTS
ABSTRACT The protection of consumer’s privacy on the internet contracts occurs by Constitution of 1988 as the Internet Regulatory Mark, Civil Code, Consumer Protection Code and, in
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particular, the Habeas Data, constitutional action that seeks to preserve the right to information of the individual, provided of Law 9507/97.
KEYWORDS: Privacy; Internet; Contracts; Consumer; Habeas Data
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RESPONSABILIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PERANTE A TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA: CONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 71 DA LEI 8.666/1993
Rafael Rocha Braga
RESUMO
O presente artigo objetiva demonstrar que a constitucionalidade do artigo 71 da Lei 8.666/1993 não impede que a Administração Pública, como tomadora de serviços terceirizados, seja responsabilizada quando a prestadora de serviços inadimplir direitos trabalhistas devidos ao empregado. Por meio da revisão de normas, doutrinas e jurisprudências atuais do ordenamento jurídico brasileiro, estabeleceu-se o conceito de terceirização e sua natureza jurídica, abordou-se a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16 e seus reflexos na Súmula 331-TST, bem como o Projeto de Lei 4.330/2004, o qual pretende regulamentar especificamente a terceirização trabalhista e generalizá-la no setor público e privado; por fim, delimitou-se a responsabilidade do ente estatal perante casos de terceirização lícita e ilícita. Dessa análise, verifica-se que a Administração Pública, como tomadora de serviços terceirizados, apenas será responsabilizada se houver culpa in vigilando e subsidiariamente. Conclui-se que a constitucionalidade do artigo 71 da Lei 8.666/1993 não afasta a responsabilidade da Administração Pública, mas tão somente reforça a responsabilidade original da prestadora de serviços e o consequente direito de regresso daquela; destarte, se o projeto de lei supracitado for aprovado, as hipóteses de terceirização serão ampliadas, consequentemente a Administração Pública celebrará mais contratos de prestação de serviços e o número de ações trabalhistas visando a sua responsabilidade subsidiária também será maior, daí a necessidade de enfatizar o poder-dever de o ente estatal fiscalizar esses contratos, pois a sua responsabilização só será possível se ele incorrer em culpa in vigilando.
PALAVRAS-CHAVE: Administração Pública. Terceirização. Responsabilidade. Culpa. Lei 8.666/1993. 1
INTRODUÇÃO
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Não há uma lei própria acerca da terceirização, fazendo com que seus preceitos sejam estabelecidos pela jurisprudência e pela doutrina. Assim, segundo a Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em apenas quatro hipóteses a terceirização será lícita. No entanto, o Projeto de Lei 4.330/2004, que teve seu texto principal aprovado pela Câmara dos Deputados em 08/04/2015, pretende aumentar esse rol. O que atingirá, além do setor privado, a Administração Pública ao permitir a contratação de terceirizados de modo amplo e irrestrito. Diante dessa premente mudança, que implicará em amplos reflexos na gestão estatal, faz-se mister delinear a responsabilidade da Administração Pública (tomadora) quando a empresa contratada (prestadora) inadimplir obrigações trabalhistas dos empregados (terceirizados). A Súmula 331-TST é o principal instituto regulador da terceirização trabalhista e, em seu inciso V, claramente denota a responsabilidade da Administração Pública perante o inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do empregador. Senão, veja-se: IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada (grifo nosso).
No entanto, o artigo 71, § 1º, da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, em um primeiro momento, parece afastar essa mesma responsabilidade da Administração Pública: Art. 71. O contratado é responsável pelos encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato. § 1º A inadimplência do contratado, com referência aos encargos trabalhistas, fiscais e comerciais não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, nem poderá onerar o objeto do contrato ou restringir a regularização e o uso das obras e edificações, inclusive perante o Registro de Imóveis (grifo nosso).
Destarte, o artigo supracitado seria inconstitucional? A Administração Pública responderia pelo inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do prestador de serviços? Quais os limites dessa responsabilidade? Para melhor compreender esses reflexos no âmbito estatal, inicialmente, faz-se necessária uma ponderação acerca da terceirização trabalhista.
111
2
TERCEIRIZAÇÃO TRABALHISTA
2.1 Conceito
O termo terceirização advém de terceiro e é compreendido como intermediário, interveniente. Segundo Salvino e Ferreira (2009, p.121), a terceirização trabalhista é: Conceituada como instrumento de gestão, através do qual são transferidas determinadas atividades periféricas ao núcleo do empreendimento a terceiros. Ou seja, em tese, há uma agregação da atividade-fim de uma empresa (prestadora de serviços) com a atividade-meio de outra (tomadora de serviços), envolvendo a produção de bens e serviços.
Segundo Delgado (2012, p.435), por tal fenômeno insere-se o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços (a Administração Pública, por exemplo), mas os laços justrabalhistas não são fixados com esta, mas com a entidade interveniente contratada, ou seja, com o prestador de serviços. Assim, diferentemente da relação bilateral do clássico modelo empregatício (empregador e empregado), a terceirização provoca uma relação trilateral: tomador de serviços, prestador de serviços e o empregado. Este (empregado) realiza suas atividades laborais perante aquele (tomador de serviços), mas é com esse (prestador de serviços) que firmará seus vínculos jurídicos e trabalhistas.
2.2 Origem
A terceirização é um fenômeno recente no Brasil, que obteve clareza estrutural apenas nas últimas três décadas. A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1º de maio de 1943, à época apenas citou duas figuras delimitadas de subcontratação de mão de obra: a empreitada e a subempreitada. Tão somente na década de 1960 é que surgiu referência jurídica mais destacada quanto à terceirização, não obstante ainda não ser conhecida por esse epíteto. Curiosamente tal fato originou-se no âmbito da Administração Pública, consoante Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967, que estabeleceu em seu artigo 10 que “a execução das atividades da Administração Federal deverá ser amplamente descentralizada” Só a partir da década de 1970 é que tal instituto foi especificamente previsto para o setor privado, inicialmente por meio da Lei nº 6.019/1974, a qual dispõe sobre o trabalho temporário.
112
A Constituição de 1988, evidentemente, também não regulou de modo específico a terceirização, mas lhe trouxe alguns limites de modo a compatibilizá-la com a ordem jurídica brasileira. Não havendo nenhuma lei própria acerca da terceirização e não obstante a sua ocorrência tanto no setor público quanto no privado, coube à jurisprudência trazer a principal regulamentação a respeito. Na década de 1980 o Tribunal Superior do Trabalho (TST) fixou a Súmula nº 256, já cancelada, que assim previa: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. (cancelada) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003
LEGALIDADE
Salvo os casos de trabalho temporário e de serviço de vigilância, previstos nas Leis nº 6.019, de 03.01.1974, e 7.102, de 20.06.1983, é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador dos serviços.
Em 1993 o TST editou a Súmula nº 331, a qual foi retificada em 2000 e em 2010, nessa última ocasião em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal acerca da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16. A Súmula 331-TST é, atualmente, o principal instituto regulador da terceirização. Ela dispõe que: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE (nova redação do item IV e inseridos os itens V e VI à redação) - Res. 174/2011, DEJT divulgado em 27, 30 e 31.05.2011 I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
113
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.
2.3 Constitucionalidade do artigo 71 da Lei 8.666/ 1993 (Lei de Licitações)
Como tratado anteriormente, a Súmula nº 331-TST, em seu inciso V, estipulou a responsabilidade da Administração Pública perante o inadimplemento das obrigações trabalhistas por parte do prestador de serviços. No entanto, o artigo 71, § 1º, da Lei de Licitações parece afastar essa mesma responsabilidade ao prever que “... não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento...”. Esse aparente conflito ensejou julgamentos tanto a favor da Lei n. 8.666/1993 quanto a favor da Súmula 331-TST. Visando a encerrar essa controvérsia, em 05 de março de 2007, o Governador do Distrito Federal ajuizou a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16 em face do artigo 71, § 1º, da Lei de Licitações. Em 24 de novembro de 2010 o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do artigo 71. Nesse sentido, considerou que o simples inadimplemento trabalhista por parte da prestadora de serviços não é suficiente para fixar a automática responsabilidade das entidades estatais, fazendo-se necessária a presença da culpa in vigilando desta, haja vista seu dever de fiscalização. Ademais, observa-se que a Súmula 331-TST, editada quando a Lei de Licitações já estava em vigor, no tocante à responsabilização, não excepcionou o Estado no seu texto original. Segundo Delgado (2012, p.467–469) nem poderia fazê-lo, afinal, a ideia de Estado irresponsável não é condizente com a Constituição de 1988, a qual, pelo contrário, ao tratar da responsabilidade do Estado, o fez para acentuá-la, de modo a prever a sua responsabilidade objetiva, conforme seu artigo 37, § 6º. Desse modo, considerando a compatibilidade de ambos os institutos, caberá aos tribunais fazer uma análise pontual em cada caso, haja vista que a isenção de responsabilidade da Administração Pública apenas ocorrerá quando estiver ausente a sua inadimplência fiscalizatória quanto ao correto cumprimento das obrigações trabalhistas pela empresa prestadora de serviços. Havendo a culpa in vigilando, será responsabilizada subsidiariamente.
114
2.4
Extensão da responsabilidade da Administração Pública perante a terceirização trabalhista
Para Martins (2003, p. 139) não há dúvidas quanto à possiblidade de terceirização de serviços na esfera pública. Di Pietro (2002, p.177-178) reforça essa posição ao destacar que a terceirização na prestação de serviços é perfeitamente possível no âmbito da Administração Pública, haja vista o artigo 37, XXI, da Constituição de 1988, que prevê o processo licitatório, inclusive, como um meio legal de realizá-la. Assim, a Administração Pública pode firmar contratos com particulares. No entanto, os encargos trabalhistas, previdenciários, fiscais e comerciais resultantes da execução do contrato, serão de responsabilidade do empregador contratado, conforme dispõe o caput do artigo 71 da Lei n. 8.666/93. Ou seja, na relação trilateral característica da terceirização, o empregado firmará seu vínculo justrabalhista com o prestador de serviços, e não com a Administração Pública, não obstante os serviços serem prestados para esta. No âmbito privado, a responsabilidade do tomador de serviços será subsidiária quando se tratar de terceirização lícita, ou solidária, se ilícita. A terceirização lícita comporta apenas quatro situações excepcionais, conforme explicita a Súmula 331-TST: (i) serviços de vigilância, (ii) serviços de conservação e limpeza e, (iii) serviços ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta; além desses, há também o (iv) trabalho temporário, regulado pela Lei nº 6.019/1974. Todos os demais casos serão tidos como terceirização ilícita e implicarão na nulidade do contrato entre o empregado e o prestador e, consequentemente, na formação de vínculo laboral entre o empregado e o tomador, o que não ocorre na terceirização lícita. A Súmula 331-TST corrobora com isso ao dispor que “a contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário”. Já no âmbito público, a responsabilidade da Administração Pública, como tomadora de serviços, é diferente. Sua responsabilidade será sempre subsidiária e dependerá de culpa, não formando o vínculo de emprego entre ela e o empregado, mesmo se a terceirização for ilícita. Nesse sentido a Súmula 331-TST dispõe que “a contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional”. Segundo Delgado (2012, p. 455) essa não formação do vínculo de emprego entre eles se dá em razão do artigo 37, II e § 2º da CF/88, que exigiu a aprovação prévia em concurso público como requisito insuplantável para a investidura em
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cargo ou emprego público, sendo nulo o ato de admissão efetuado sem a observação dessa exigência. Martins (2003, p. 142) faz a seguinte indagação: não havendo tal vínculo, o empregado teria direito a verbas trabalhistas? A jurisprudência não se pacificou nesse sentido, ensejando várias correntes a respeito. A primeira corrente defende que se não há vínculo, não deve ser paga qualquer verba ao trabalhador; já a segunda entende que apenas os salários devem ser pagos, pois o tomador não poderia enriquecer-se às custas do trabalhador; a terceira corrente entende que os salários e verbas rescisórias devem ser pagos. Há também uma quarta corrente que defende a possibilidade de formação do vínculo jurídico com o ente estatal tomador de serviços, mas ela é minoritária, haja vista contrariar o artigo 37, II, CF/88. Na jurisprudência vem sendo mais aceita a corrente intermediária, segundo a qual não se forma o vínculo trabalhista entre o empregado e a Administração Pública, mas a ele devem ser asseguradas todas as verbas trabalhistas legais e aplicáveis ao empregado estatal direto que cumpra a mesma função no ente estatal tomador de serviços, ou a verbas específicas da função exercida, em observância ao princípio da isonomia. Nesse sentido é a OJ 383/SDI-1TST: OJ-SDI1-383 TERCEIRIZAÇÃO. EMPREGADOS DA EMPRESA PRESTADORA DE SERVIÇOS E DA TOMADORA. ISONOMIA. ART. 12, “A”, DA LEI N.º 6.019, DE 03.01.1974. A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com ente da Administração Pública, não afastando, contudo, pelo princípio da isonomia, o direito dos empregados terceirizados às mesmas verbas trabalhistas legais e normativas asseguradas àqueles contratados pelo tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções. Aplicação analógica do art. 12, “a”, da Lei n.º 6.019, de 03.01.1974.
No tocante à terceirização lícita, a ideia de isonomia remuneratória ainda tem sido minoritária na jurisprudência trabalhista. Segundo Delgado (2012, p. 475), não se justifica essa resistência à aplicação do critério isonômico remuneratório mesmo para as situações de terceirização lícita, pois ela não pode ser tida como uma modalidade de contratação inferior à contratação empregatícia clássica. Desse modo, tanto na terceirização lícita quanto na ilícita, em um primeiro plano, a prestadora responderá por tais verbas, cabendo à entidade estatal (tomadora), tão somente, a responsabilidade subsidiária, conforme entendimento consubstanciado na Súmula 331, IV do TST:
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IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial (grifo nosso).
Santos (2010, p. 101) observa que essa subsidiariedade é uma espécie de benefício de ordem, onde, primeiramente executam-se os bens do devedor primário (prestador de serviços), não sendo encontrados ou se insuficiente para quitação da dívida, só então os bens do devedor subsidiário (tomador de serviços) serão executados. Porém, para que haja a responsabilização do tomador, é necessário que ele seja incluído no polo passivo da ação trabalhista e que ocorra o trânsito em julgado da decisão, como observa Martins (2010, p. 101). Por óbvio, o tomador poderá ingressar com ação regressiva em face do prestador. Ademais, essa mesma súmula, em seu inciso V, especifica a necessidade da conduta culposa por parte da Administração Pública e reforça que não basta a mera inadimplência das obrigações trabalhistas por parte do prestador para configurar a automática responsabilidade daquela: V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada.
A culpa exigida para configurar a responsabilidade civil do ente estatal, decorrente dessa relação contratual, é a chamada culpa in vigilando, didaticamente definida por Salvino (2010, p. 101) ao compará-la com a culpa in eligendo: Quando a Administração Pública celebra um contrato de prestação de serviços, fica investida no poder de fiscalizar o serviço. Com efeito, é dever de o tomador exigir uma prestação em caráter geral, permanente, regular e eficiente. E, para garantir a qualidade deste serviço, à Administração Pública é concedido o poder-dever de fiscalização sobre as empresas prestadoras de serviços, com amplos poderes de aferição de sua administração. A não-observância desse poder-dever ou, cumprindo-o, constatadas irregularidades sem tomar as providências devidas, caracteriza culpa in vigilando. Da mesma forma, quando a Administração Pública contrata empresa prestadora de serviços sem idoneidade financeira capaz de adimplir os créditos trabalhistas dos empregados contratados, age com culpa in eligendo.
Destarte, o novo texto da Súmula 331, V, do TST adequa a jurisprudência trabalhista à decisão do STF quando à Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, eliminando a
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ideia de responsabilidade objetiva e também de responsabilidade subjetiva por culpa in eligendo. Como bem observa Delgado (2012, p.470), a responsabilidade é subjetiva (contratual) e por culpa in vigilando, ou seja, deriva da omissão do dever fiscalizatório, e não diretamente do artigo 71 da Lei de Licitações, pois a mens legis deste não visa a eliminar a responsabilidade subsidiária da entidade estatal, mas sim resguardar a responsabilidade original do efetivo empregador terceirizante, deixando hígido o direito de regresso do tomador de serviços estatal. 2.5
Projeto de Lei 4.330/2004
O Projeto de Lei 4.330/2004, de autoria do ex-deputado Sandro Mabel (PMDB/GO), regulamenta, de forma ampla e generalista, a terceirização no país, de modo a abandonar os limites já sedimentados no Direito brasileiro que consagra a terceirização em excepcionais quatro hipóteses. O projeto permite que o setor público e o privado contratem trabalhadores terceirizados para exercer qualquer função. A proposta legislativa teve seu texto principal aprovado pela Câmara dos Deputados em 08 de abril de 2015 e foi posteriormente encaminhada ao Senado. O presidente deste, Senador Renan Calheiros, anunciou que fará sessão temática sobre o projeto e que não aceitará votação apressada nem “pedalada contra o trabalhador”. O relator do projeto, deputado Arthur de Oliveira Maia (SD-BA), disse que a regulamentação da terceirização traz “segurança jurídica” aos contratos e que buscou uma “uma linha média capaz de atender aos trabalhadores, empresários e à economia brasileira”. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) divulgou nota dizendo que a regulamentação da terceirização é necessária para que as empresas brasileiras ganhem competitividade e se adaptem às exigências do mercado global. Já os deputados do PT argumentaram que a terceirizações vai “precarizar” as condições de trabalho e que ela “não permite que nenhum trabalhador, de qualquer setor, possa pensar em ascensão futura em cargos de comando”. O ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência, Miguel Rossetto, afirmou que “o projeto é ruim, pois permite que toda a relação de trabalho seja terceirizada, portanto, precarizada. Reduz os salários e os fundos de seguridade social. Não é bom para os trabalhadores. Não é bom para o país.” O Colégio de Presidentes e Corregedores dos Tribunais Regionais do Trabalho (Coleprecor) manifestou-se contrariamente ao projeto de lei sob os seguintes argumentos:
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O PL autoriza a generalização plena e irrefreável da terceirização na economia e na sociedade brasileiras, no âmbito privado e no âmbito público [...] A diretriz acolhida pelo PL nº 4.330-A/2004, ao permitir a generalização da terceirização para toda a economia e a sociedade, certamente provocará gravíssima lesão social de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários no País, com a potencialidade de provocar a migração massiva de milhões de trabalhadores hoje enquadrados como efetivos das empresas e instituições tomadoras de serviços em direção a um novo enquadramento, como trabalhadores terceirizados [...] O rebaixamento dramático da remuneração contratual de milhões de concidadãos, além de comprometer o bem estar individual [...], afetará fortemente, de maneira negativa, o mercado interno de trabalho e de consumo [...]. Irá provocar também, obviamente, severo problema fiscal para o Estado, ao diminuir, de modo substantivo, a arrecadação previdenciária e tributária no Brasil. [...] provocarão também sobrecarga adicional e significativa ao Sistema Único de Saúde (SUS), já fortemente sobrecarregado. É que os trabalhadores terceirizados são vítimas de acidentes do trabalho e doenças ocupacionais/profissionais em proporção muito superior aos empregados efetivos das empresas tomadoras de serviços [...] Assim, se o polêmico Projeto de Lei supracitado for aprovado, o número de terceirizados na Administração Pública será maior, gerando mais demandas acerca da responsabilidade civil do ente estatal.
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CONCLUSÃO
Havendo o inadimplemento das obrigações trabalhistas devidas pela empresa regularmente contratada, a Administração Pública poderá ser responsabilizada, desde que esta tenha incorrido em culpa in vigilando. Nesse sentido, o artigo 71, § 1º, da Lei de Licitações, ao prever que “... não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento...”, não está afastando a responsabilidade subsidiária do ente estatal, mas tão somente reforçando a responsabilidade original da prestadora de serviços e o consequente direito de regresso daquela, uma vez que não havendo a culpa, não há que se falar em responsabilidade subsidiária da Administração Pública. Esse entendimento foi consolidado no ano de 2010, quando o STF julgou a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, asseverando que o art. 71 da Lei de Licitações é constitucional e que a presença da culpa é indispensável para responsabilizar o ente estatal tomador de serviços.
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Se o texto do Projeto de Lei 4.330/2004 entrar em vigor, a terceirização será ampla, não se limitando àquelas quatro hipóteses previstas na Súmula 331-TST. Assim, além do grande impacto no setor privado, também haverá reflexos na Administração Pública, pois a quantidade de terceirizados aumentará exponencialmente, destarte, consequentemente haverá mais ações judiciais pleiteando direitos trabalhistas não adimplidos pelo prestador de serviços. Desse modo, deve-se reforçar o poder-dever de fiscalização da Administração Pública quanto ao cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço. Pois, se caracterizada a culpa in vigilando por parte da Administração Pública, ela será responsabilizada, sem qualquer afronta ao artigo 71 da 8.666/1993 (Lei de Licitações).
REFERÊNCIAS
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THE RESPONSABILITY OF THE PUBLIC ADMINISTRATION IN THE OUTSOURSED LABOR: THE CONSTITUTIONALITY OF ARTICLE 71 OF LAW 8.666/1993
ABSTRACT
The present study aims to show that the constitutionality of article 71 of Law 8.666/1993 does not prevent the Public Administration, as borrower of outsourced services, to be liable when the service provider not comply with labor obligations of employees. Through the review of standards, current doctrines and jurisprudence of Brazilian law, established the concept of outsourcing and it's legal nature, addressed the Declaratory Action of Constitutionality No. 16 and the effects on Precedent 331-TST, as well Law Project 4.330/2004, which is specifically intended to regulate labor outsourcing and generalize it in the public and private sector; finally delimited to the responsibility of the state entity dealing with cases of lawful and unlawful outsourcing. From this analysis, it appears that the Public administration, as borrower of outsourced services shall only be liable if any fault in vigilando and alternative. It is concluded that the constitutionality of Article 71 of Law 8.666/1993 does not remove the responsibility of the public administration, but only reinforces the original responsibility of the service and the consequent right of return; Thus, if the above bill is approved, the outsourcing hypotheses will be expanded accordingly Public Administration conclude more
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contracts to provide services and the number of labor actions to its secondary liability will also be higher, hence the need to emphasize the power and duty of the state entity overseeing these contracts because their accountability is only possible if he incur guilt in vigilando.
KEYWORDS: Public Administration. Outsourcing. Responsibility. Guilt. Law 8.666/1993.
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A PSICOGRAFIA COMO PROVA NO PROCESSO JUDICIAL: UMA ANÁLISE PARA NOVAS GRAMÁTICAS NO UNIVERSO DO DIREITO
Érica Vieira de Loiola Sousa
RESUMO Este artigo discute sobre o uso de cartas psicografadas como meio de prova nos processos judiciais brasileiros, bem como sua classificação, recepção e valoração pelo órgão julgador. Busca-se demonstrar sua admissibilidade, e que negar sua utilização pode impedir a justa aplicação da lei. PALAVRAS CHAVE: Prova Documental – Psicografia – Direito Processual – Prova Ilícita – Estado Laico.
INTRODUÇÃO No ordenamento jurídico brasileiro, a regra adotada é a da liberdade probatória, permitindo que as partes produzam qualquer meio de prova, desde que respeitadas certas garantias fundamentais, como a proteção à intimidade, o direito de imagem, ou o direito à ampla defesa e contraditório. Isto significa que as provas previstas pelo legislador são meramente exemplificativas, não taxativas – seria impossível exaurir todos os meios de provas existentes. O legislador do Código de Processo Civil, datado do ano de 1973, mal poderia prever o exame de DNA, criado doze anos depois, amplamente utilizado hoje como elemento probatório em diversas causas. Corroborando este entendimento, José Carlos
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Barbosa Moreira sustenta que o "direito à prova implica, no plano conceitual, a ampla possibilidade de utilizar quaisquer meios probatórios disponíveis. A regra é a admissibilidade das provas; e as exceções precisam ser obrigatoriamente justificadas por alguma razão relevante” (MOREIRA, José Carlos Barbosa. 1997). Tourinho Filho conclui que a não taxatividade pode ser extraída do comando contido no art. 155 do Código de Processo Penal (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. 2014). Já a conclusão que o Código de Processo Civil implicitamente adota o princípio da liberdade de provas, é pela análise do artigo 332, o qual dispõe que todos os meios legais, assim como quaisquer outros não especificados em lei, desde que moralmente legítimos, são hábeis para provar a verdade dos fatos em que se funda a ação ou a defesa.. O CPC prevê expressamente os seguintes meios de prova - o depoimento pessoal das partes; a confissão; a exibição de documento ou coisa; a prova documental; testemunhal; pericial; e inspeção judicial. Além das provas assinadas acima, outros meios legais, não especificados no Código, desde que moralmente legítimos, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa. Não sendo a carta psicografada explicitada como meio probatório, e nem proibida, decorre o questionamento quanto à possibilidade de seu uso como prova documental nos processos judiciais. No conteúdo das cartas, o de cujus com ligação à causa, como por exemplo, a vítima de um homicídio, cujo julgamento está em trâmite, transmite mensagem com informações relevantes ao deslinde da ação, seja contando como ocorreu o fato, ou então até mesmo inocentando o indivíduo a quem está sendo atribuído o delito. E tais cartas são então juntadas como argumento de defesa. Há pelos menos dez casos de maior repercussão, nos quais a psicografia integrou a fase probatória do processo. Dentre eles, somente um foi no âmbito cível: o renomado médium, Chico Xavier, compilou obras por meio da psicografia, atribuindo-as ao espírito do falecido escritor Humberto de Campos. A família do escritor interpôs ação contra o médium mineiro, e contra a Federação Espírita Brasileira, editora das obras, pedindo diversas coisas – que o juiz declarasse se as obras pertenciam ou não à Humberto, sendo que, na primeira hipótese, fossem os direitos autorais assegurados à família do escritor; já no segundo caso, fossem os réus proibidos de usar o nome de Humberto de Campos. Em meio à defesa de Chico Xavier, fora apresentado texto psicografado pelo médium, e assinado pelo “espírito de Humberto”, no qual ele - o espírito - incoforma-se com os atos da família, que “não precisava
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movimentar o exército dos parágrafos e atormentar o cérebro dos juízes.” (TIMPONI, Miguel. 2010.). Os outros casos foram em ações penais, como em duas no ano de 1976, julgamentos pelo crime de homicídio, em que novamente as cartas psicografadas de Chico Xavier foram aceitas como prova, tendo sido os réus absolvidos; e mais recentemente, em 2006, no Rio Grande do Sul, duas cartas foram usadas como argumento de defesa da ré, Iara Barcelos, sendo ela inocentada posteriormente, por 5 votos a 2, da acusação de mandante de homicídio (POLIZIO, Vladimir. 2009). O tema é de tamanha polêmica que projetos de leis federais foram propostos, buscando obstar o uso da psicografia em sede processual. Em que pese tais projetos de lei, a nossa legislação, até então, não veda o uso da psicografia como instrumento probatório. A corrente doutrinária que se coloca contra a admissibilidade aponta diversos aspectos: que não se pode misturar fé com a racionalidade do processo; que o Estado é laico, e sendo assim, não se pode admitir a psicografia, manifestação da religião Espírita; que se trata de prova ilícita; que fere o princípio do contraditório e ampla defesa; que a morte encerra a personalidade jurídica da pessoa natural, portanto o falecido não poderia praticar qualquer ato jurídico; que isto abre espaço para fraudes e charlatões; que se baseia em fato impossível de ser demonstrado – a vida após a morte; dentre outros. Eis o posicionamento de Guilherme de Souza Nucci: O perigo na utilização da psicografia no processo penal é imenso. Fere-se preceito constitucional de proteção à crença de cada brasileiro; lesa-se o princípio do contraditório; coloca-se em risco a credibilidade das provas produzidas; invade-se a seara da ilicitude das provas; pode-se, inclusive, romper o princípio da ampla defesa. Ilustremos situação contrária: o promotor de justiça junta aos autos uma psicografia da vítima morta, transmitida por um determinado médium, pedindo justiça e a condenação do réu Z, pois foi ele mesmo o autor do homicídio. Até então nenhuma prova da autoria existia. Aceita-se a prova? E a ampla defesa? Como será exercida? Conseguiria o defensor uma outra psicografia desautorizando a primeira? (NUCCI, Guilherme de Souza. 2006.)
A relevância de uma análise acadêmica sobre o assunto se faz devido ao fato ser tratado como uma verdadeira “aberração jurídica”, aliado à falta de estudos à respeito. Reconhece-se a controvérsia que gira em torno do ponto, no entanto, este artigo não busca uma pacificação ou solução do tema, mas sim demonstrar que a utilização da psicografia não implica em um retorno à época das ordálias. DA PSICOGRAFIA E DO ESPIRITISMO
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A psicografia, segundo o doutrinador e espírita Allan Kardec é “[...] a transmissão do pensamento dos Espíritos por meio da escrita pela mão do médium. No médium escrevente, a mão é o instrumento, porém, a sua alma ou espírito nele encarnado é intermediário do espírito estranho que se comunica.” (KARDEC, Allan. 1996.) Diversamente do que se pensa, a psicografia teve surgimento há muito tempo atrás, sendo mais antiga do que o Espiritismo, nascido em 1857 com Allan Kardec (CAVALCANTE, José Benevides. 2011.) Somente com o Espiritismo, no entanto, é que passou a ser denominada “psicografia”. A doutrina espírita trata da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o mundo corpóreo. Sua concepção da realidade se dá pela relação entre três formas clássicas do conhecimento: moral, ciência e filosofia. DO CARÁTER CIENTIFICO DA PSICOGRAFIA A comunicação com o mundo espiritual é pesquisada e estudada há anos pela ciência. Miguel Reale Júnior, no seu artigo “Razão e Religião”, relatou a trajetória do criminalista italiano Cesare Lombroso, que em 1909 escreveu o livro “Hipnotismo e Mediunidade”, sobre experiências paranormais, vividas por ele e outros cientistas, bem como com os povos antigos, indígenas, na Idade Média e no Renascimento. (REALE JÚNIOR, Miguel. 2009.) Após 27 anos de pesquisas em Transcomunicação Instrumental (TCI), Sonia Rinaldi, uma das principais pesquisadoras deste ramo do conhecimento, aponta a possibilidade de comunicação entre as várias dimensões da vida, concluindo pela existência dos espíritos em sua obra “Espírito – O Desafio da Comprovação”. (RINALDI, Sônia. 2000.) No ano de 1848, iniciaram-se os primeiros estudos e experiências cientificas quanto aos fenômenos espirituais, no intuito de comprovar o ceticismo perante os mesmos tais como a das mesas girantes ou dança das mesas, ocorridos na América – por diversos profissionais: cientistas, físicos, químicos, médicos, filósofos e juristas, sábios e eclesiásticos (DELLANE, 2004). Frederic William Henry Myers foi um intelectual, ensaísta e pesquisador. Tornouse um dos pioneiros na pesquisa de fenômenos paranormais no final do século XIX, e cofundador da "Society for Psychical Research”. Em um experimento realizado conjuntamente
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com o médium Geraldine Cummins, este chegara a psicografar duas mil palavras por hora. Myers observou que: "Em todas as variedades desse fenômeno, o conteúdo dessas mensagens parece vir de três fontes diferentes. A Primeira de todas é o cérebro daquele que escreve; tudo aquilo que nele entrou pode sair, embora seja esquecido. A segunda é que há uma pequena proporção de mensagens que parecem telepáticas, isto é, indicam fatos que o autômato ignora completamente, mas que são conhecidos de alguma pessoa viva que está em relação com ele ou assiste à sessão. A terceira é que resta pequeno número de mensagens que me é impossível explicar dos dois modos precedentes: mensagens que contêm fatos desconhecidos daquele que escreve e de seus amigos ou parentes ou parentes, masconhecidos de uma pessoa morta, às vezes completamente estranha ao ente vivo que escreve" (apud Alfred Erny. 1889).
Na obra “A psicografia ante os Tribunais”, o jurista Miguel Timponi apresenta diversos casos, demonstrando diversos estudos realizados na Inglaterra, Itália, Alemanha, França e Estados Unidos, os quais abordaram, dentre outros temas, o fenômeno da transmissão de relatos de supostas entidades espirituais, a respeito de acontecimentos ocorridos em vida. (TIMPONI, Miguel. Op. Cit.) São várias as obras e experiências, datadas desde o século XVII, sobre relações entre encarnados e entidades espirituais. Um dos argumentos mais usados pela corrente contrária à admissibilidade da carta psicografada, a qual acredita tratar-se de material religioso, é de que o Estado é laico. Na verdade, a psicografia corresponde à um fenômeno real, e independente de qualquer religião ou crença. O que ocorre é que o Espiritismo acredita na vida após a morte, e na possibilidade de comunicação daqueles que se foram, com aqueles que ainda se encontram em vida terrestre. E isso é justamente o que ocorre na psicografia: muitos médiuns que psicografam são adeptos ao Espiritismo. A partir disso é que surge a crença popular, vinculando as cartas psicografadas à crença espírita. DAS PROVAS A palavra prova vem do latim proba, de probare- isto é, demonstrar, formar juízo de. Em âmbito jurídico, corresponde à demonstração por meios legais, da veracidade de um fato material ou ato jurídico, firmando sua certeza ou existência (SILVA, de Plácido. 1987.) Em sede processual, tem por intuito convencer o juiz, a fim de que a sua pretensão levada até ele possa ser deferida. O ônus de sua produção, por regra, é de quem alega. No
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ordenamento jurídico brasileiro, preza-se pela liberdade de produção de todo tipo de prova, salvo os que a lei expressamente proíbe. O Código de Processo Civil, em seu artigo 332, prevê que “todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa". As cartas psicografadas podem ser classificadas como prova inominada (não especificada em lei), e também, equiparadas à prova documental particular, definidas pelo Código de Processo Penal, no artigo 232, como quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares. Vicente Greco Filho, por sua vez, faz a seguinte definição: "O documento liga-se à ideia de papel escrito. Contudo, não apenas os papéis escritos são documentos. Documento é todo objeto do qual se extraem fatos em virtude da existência de símbolos, ou sinais gráficos, mecânicos, eletromagnéticos, etc. É documento, portanto, uma pedra sobre a qual estejam impressos caracteres, símbolos ou letras; é documento a fita magnética para a reprodução por meio do aparelho próprio, o filme fotográfico, etc." (GRECO FILHO, Vicente. 2000.)
EFETIVIDADE DO PROCESSO Segundo Proto Pisani, a efetividade do processo consiste na sua aptidão de alcançar os fins para os quais foi instituído (apud FUX, Luiz. 1996.) O artigo 5º, XXXV, da Constituição da República, garante que qualquer lesão ou ameaça a direito não deixará de ser apreciada pelo Poder Judiciário. Para isto, não somente deve ser assegurada a possibilidade de se ingressar em juízo, mas também que o processo possua mecanismos efetivos para tutelar os interesses em conflito. Sendo assim, a efetividade do processo está condicionada à possibilidade de se reconstituir os fatos o mais próximo possível da verdade, a fim de que o convencimento do julgador corresponda, tanto quanto puder, à realidade (BARBOSA MOREIRA, José Carlos. 1983). É necessário garantir às partes a possibilidade de produção de todas as provas necessárias à comprovação dos fatos relevantes de determinada demanda – inclusa nesse raciocínio, a admissão da carta psicografada. O direito à produção de provas está intimamente ligado ao direito de ação, ambos tutelados pela Carta Magna. PROVA ILICITA O direito à prova, garantia constitucional, é amplo, conforme visto acima. No entanto, ele não é absoluto (assim como qualquer princípio ou garantia constitucional).
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Limita-se na medida em que vai de encontro com outra garantia, que de acordo com o caso concreto, será tida como “mais valiosa” (CAMBI, Eduardo. 2006). Nisso se enquadram as provas ilícitas, veada pela Constituição (artigo 5º, LVI), buscando coibir e desestimular a violação às garantias que ela mesmo almeja tutelar, os quais foram instituídos como regra indispensáveis à dignidade humana e manutenção do império da lei. Ada Pellegrini Grinover nos leciona que a prova ilegal é gênero, da qual decorrem as espécies prova ilícita e prova ilegítima (GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães ; FERNANDES, Antônio Scarance. 2008). Esta é a que a lei processual obsta sua produção. Já aquela é a que infringe a lei material, estabelecida para proteger as liberdades públicas, e especialmente os direitos da personalidade, como o direito à intimidade, imagem, honra, comunicações, domicílio – todos protegidos pela Lei Maior. Os meios para sua obtenção ou produção são proibidos pelo ordenamento jurídico Para a mestra, a prova ilícita também pode ser caracterizada como prova vedada, isto é, contrária, em sentido absoluto ou relativo, à uma específica norma legal, ou a um princípio de direito positivo; e que a consequência de sua produção, é que serão tidas como “não-ato, categoria de inexistência jurídica. Simplesmente não existem como provas; não tem aptidão para surgirem como tal, daí sua total ineficácia”. Como visto anteriormente, a psicografia não pode ser tida como prova ilegítima, dado que as leis processuais cíveis e penais nada dispõem contra. Também não pode ser vista como prova ilícita, uma vez que os meios de sua realização são lícitos, e seus resultados não violam direitos. GRAFOSCOPIA E SUA UTILIZAÇÃO PARA VERIFICAR A AUTENTICIDADE DA PSICOGRAFIA De acordo com Carlos Augusto Perandréa, perito judiciário em Documentoscopia, e autor do livro “Psicografia à luz da Grafoscopia”, a grafoscopia é um exame pelo qual se analisa o escrito de uma pessoa, capaz de verificar a sua autenticidade ou falsidade gráfica, bem como para verificar a autoria (PERANDRÉA, Carlos Augusto. 1991). O artigo 174 do Código de Processo Penal estabelece os requisitos para se proceder ao exame. Perandréa realizou o exame em mais de 400 cartas psicografadas por Chico Xavier, comparando a grafia das cartas com a das pessoas que supostamente estariam transmitindo a mensagem, vindo a concluir que se tratavam da mesma caligrafia, e por vezes,
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da mesma assinatura do falecido. Outros peritos da área confirmaram 398 dentro das 400, o que acarreta em uma confiabilidade de mais de 99,5% (DENIS, Lauro. 2005). Os resultados da investigação comprovam e impõem a certeza dos documentos psicografados, dando autenticidade à eles, através de uma prova técnica e científica. Isto quebra o argumento quanto à falta de confiabilidade da carta psicografada. Não obstante, qualquer meio de prova aliás, está sujeito à fraudes e erros - a falibilidade é um problema comum. DA EXTINÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA COM A MORTE É cediço que com o óbito de uma pessoa, cessa também sua personalidade jurídica - artigo 6º, Código Civil - isto é, ela deixa de ser sujeito de direitos e obrigações. Por consequência, não poderia realizar qualquer ato jurídico válido. No entanto, a psicografia, quando juntada aos autos, será tratada como um documento, e não como prova testemunhal. De todo modo, ainda que a mors omnia solvit, isso não exclui o conteúdo do documento que por ventura traga informações cuja obtenção não seja explicável por meios normais. AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO Para preservar-se a isonomia entre as partes do processo, contrapondo-se à garantia de ação, há a garantia da ampla defesa. Esta confere à uma parte, o direito de se utilizar e produzir toda as provas necessárias para rebater os fatos tragos pela outra parte, segundo os ônus que lhes são atribuídos. Aqui também há o direito à prova. A ampla defesa está prevista no artigo 5º, LV, da Constituição. Vicente Greco Filho aponta que a ampla defesa é constituída a partir de cinco fundamentos: 1.
Ter conhecimento claro da imputação; 2- Poder apresentar alegações contra a acusação; 3- Poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; 4- Ter defesa técnica por advogado, cuja função é essencial à Administração da Justiça; 5- Poder recorrer da decisão desfavorável (GRECO FILHO, Vicente. 2002.)
Assim também o está a garantia do contraditório. Esta é composta pela ciência bilateral dos atos do processo, e sua possibilidade de contradita-los. As partes devem poder conhecer as razões e argumentações expendidas pela outra, e também dos motivos e fundamentos que levaram que conduziram o órgão judicial a tomar determinada decisão, possibilitando-se sua manifestação a respeito em tempo adequado, mediante recursos, incidentes, contraditas, etc. Deve-se abrir à cada parte, a possibilidade de se participar do juízo de fato, tanto na indicação da prova, quanto na sua formação. Em síntese, o contraditório
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é constituído por dois elementos: informação e reação (SOUSA, André Pinheiro de. 2010). O contraditório permite a atuação positiva da parte em todos os passos do processo, influindo diretamente em quaisquer aspectos, – sejam fatos, provas, pedidos da outra parte – que sejam importantes para a decisão do conflito (LEITE, Ruano Fernando da Silva. 2010). Não há violação do contraditório e ampla defesa com a admissão da carta psicografada, pois uma vez posta em juízo, poderá ser rebatida. Se tratando de uma visão, relato do ocorrido pelo “espírito do falecido”, como uma atribuição de culpa na carta, por exemplo, poderia ser rebatida por outras evidências produzidas nos autos, como um álibi. Ademais, mediante prova pericial, reconhecimento grafotécnico, seria possível examinar a autenticidade da carta.
LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO DO JUIZ Dentre os três sistemas de apreciação das provas existentes, o Brasil optou pelo da verdade real ou livre convencimento motivado (GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antônio Magalhães; FERNANDES, Antônio Scarance. 2007). Esse método se encontra instrumentalizado no Código de Processo Civil, artigo 131, e Código de Processo Penal, artigo 157. Segundo ele, o juiz, destinatário das provas, pode apreciá-las livremente, sem estar adstrito ou vinculado à nenhuma. Isto porque, em nosso ordenamento jurídico, não há uma hierarquia entre as provas. O juiz tem a liberdade para formar o seu convencimento, não estando preso a qualquer critério legal de prefixação de valores probatórios, avaliando-os segundo critérios críticos e racionais. O magistrado analisa o caso concreto e tem livre escolha de aceitar as provas e valorá-las de acordo com sua convicção, contudo, fica submetido às provas que estão nos autos, ou seja, não pode tomar sua decisão baseada em elementos alheios a ele, e também está obrigado a motivar sua decisão, sendo necessária a devida fundamentação,
evitando-se assim,
arbitrariedades
incompatíveis
com
um
Estado
Democrático de Direito. Assim como qualquer prova produzida em sede instrutória, a carta psicografada será avaliada em conjunto com os demais elementos de convicção formados nos autos. O fato dela ser aceita não significa que ela será fundamental ao julgamento da causa, ou fazer prova absoluta. Ela é relativizada pelos demais meios probantes constantes no processo. Isto é
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demonstrado pelo fato de que em algumas ações a que fora juntada, a decisão final de mérito da causa foi contrária ao que tentou demonstrar a carta. LEGISLAÇÃO VIGENTE A Constituição do Estado do Pernambuco, de 1989, reconhece expressamente a paranormalidade, em seu artigo 174: O Estado e os Municípios, diretamente ou através do auxílio de entidades privadas de caráter assistencial, regularmente constituídas, em funcionamento e sem fins lucrativos, prestarão assistência aos necessitados, ao menor abandonado ou desvalido, ao superdotado, ao paranormal e à velhice desamparada.
Para o Promotor de Justiça, Valter da Rosa Borges, graças à este dispositivo constitucional, os fenômenos paranormais poderão fundamentar decisões judiciais, com a admissão da utilização da paranormalidade nos trâmites processuais (POLIZIO, Vladimir. Op. Cit.) O projeto de lei 1.705/2007, proposto pelo Deputado Federal Robson Rodovalho – que também é professor de teologia e bispo evangélico – objetivava alterar o artigo 232 do Código de Processo Penal, passando a ser essa a nova redação: Consideram-se documentos quaisquer escritos, instrumentos ou papéis, públicos ou particulares, exceto os resultantes de psicografia (DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. 2007)
Já o projeto de lei 3.314/2008, proposto pelo Deputado Federal Costa Ferreira, buscou manter o caput do artigo 232, mas acrescentando dois parágrafos, sendo que um deles assim dispõe: “não se considera documento o texto psicografado” (DIÁRIO DA CÂMARA DOS DEPUTADOS. 2008). Ambos os projetos tramitaram conjuntamente, mas foram arquivados nos termos do artigo 105, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, em 02 de fevereiro de 2012 (MEMORANDO N.º 7/12 COPER. 2007) CONCLUSÃO Como exposto ao longo do artigo, o uso da psicografia como elemento de prova nos autos, não viola a laicidade estatal, nem a lei material e processual. Se trata, na verdade, de um fato real, verificado e estudado há tempos na história da humanidade. Há uma
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estigmatização atual sobre o tema, fruto de conceitos rudimentares populares. Isto explica as opiniões distorcidas a respeito. A atividade estatal jurisdicional deve buscar, no máximo possível, a verdade material. A psicografia entra em cena, tal como qualquer outra prova, para reconstruir os fatos ocorridos, a fim de dar substrato ao juízo para dizer o direito ao caso concreto. Chico Xavier, ao ser questionado sobre a questão controvertida, afirmou que as mensagens que recebia sempre eram destinadas à família daquele que se foi, a fim de confortá-la. Nunca a intenção foi para que se prestassem à defesa de alguém, sendo utilizada perante o Judiciário (POLIZIO, Vladimir. Op. Cit.). O juiz de direito aposentado, Orimar de Bastos, foi um dos magistrados que sentenciou um julgamento no qual admitira como prova, uma carta psicografada. À seu entendimento, a utilização desse meio de prova pode influenciar no decisório quando estiver em consonância com outras provas produzidas (GARCIA, Ismar Estulano. 2006). Inexistente hierarquia entre as provas, o julgador é livre para aprecia-las. A psicografia, estando em harmonia com as demais evidencias carreadas nos autos, seria avaliada reforçando-as, adquirindo uma função integrativa às provas testemunhais, periciais ou outras quaisquer realizadas. Sozinha, não deve ser considerada como absoluta e fundamental. Eventuais fraudes não estão descartadas – nenhuma prova está imune à falibilidade. Por isso, deve ser dada oportunidade à outra parte impugna-la, bem como deve o juiz, de ofício, determinar realização do exame grafotécnico. O Direito deve refletir a sociedade. Não pode se fechar à realidade que lhe é apresentada, mas acompanhar as suas mudanças constantes. A interdisciplinaridade com outros ramos da Ciência é indispensável. A psicografia, vista como uma realidade fática, é passível de ser estudada, não se tratando meramente de um dogma religioso. A unanimidade quanto à admissibilidade da psicografia como prova documental é utópica. Estamos longe de encerrar as polêmicas à respeito. Entretanto, a discussão acadêmica é um primeiro passo para esclarecer as controvérsias, e quem sabe, futuramente o assunto seja mais pacificado.
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n.º
7/12
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THE PSYCHOGRAPHY AS EVIDENCE IN JUDICIAL PROCESS: AN ANALYSIS FOR NEW GRAMMARS IN THE UNIVERSE OF LAW
ABSTRACT This article discusses the use of psychographic letters as evidence in Brazilian’s judicial process, its classification, reception and evaluation by the judge. Seeks to demonstrate its admissibility, and that denying its use may prevent fair law enforcement. KEY WORDS: Documentary Evidence - Psychographics - Procedural Law - Illegal Evidence - Secular State.
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PROSTITUIÇÃO, BONS COSTUMES E NEGÓCIO JURÍDICO UMA VISÃO CRÍTICA ACERCA DO ASSUNTO
Sofia Perez de Carvalho
RESUMO O presente artigo tem por finalidade analisar a validade do negócio jurídico, que tem por objeto a prostituição de pessoas maiores e capazes. Ao longo da pesquisa foram feitos estudos teóricos e empíricos, buscando a resposta para o tema abordado. Outro aspecto analisado é no que tange ao conceito tradicional de "bons costumes" e a violação da moralidade imposta pela sociedade e pelo Estado. Importante ressaltar que não se trata de defesa de casas de prostituição, mas sim do auto uso do corpo como objeto de trabalho. Além disso, primordial é observar o quão necessário é que os princípios constitucionais assegurados sejam aplicados, juntamente com uma interpretação moderna da lei.
PALAVRAS-CHAVE: Bons Costumes. Contrato. Moral. Negócio Jurídico. Validade.
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1
INTRODUÇÃO
É preciso estar ciente de que os costumes são construídos por um longo processo de fatos e atos humanos, que carregaram consigo inúmeros conceitos e pré-conceitos que impregnam a atitude humana, formando o que a sociedade tradicional rotula como “bons costumes”. Estes são costumes padronizados que são aceitos pela organização tradicional da sociedade e refletem uma busca pela manutenção do status quo. O ordenamento pátrio é um reflexo da sociedade que está inserido, sendo impossível afirmar que os dispositivos normativos não trazem consigo um resquício do que é aceitável pela comunidade. Ao analisar-se a lei, deve-se levar em conta um sistema muito além da pura hermenêutica, pois a norma traz consigo elementos do que a sociedade julga ser moral ou imoral. Nesse sentido, destaca-se que o Código Civil Brasileiro, no artigo 13, vale-se da expressão “ou contrariar os bons costumes”. Essa é uma prova de que a interpretação de tal dispositivo deve estar amparada no questionamento acerca deste conceito amplo e de difícil quantificação, qual seja, os “bons costumes”. Artigo 13: Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. 76
76
MECUM, Vade. Código Civil Brasileiro. Ed.Saraiva. Edição 11ª. 2015
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2
NEGÓCIO JURÍDICO
Por negócio jurídico, depreende-se ser uma conduta humana, de manifestação de vontade e celebração entre as partes, respeitando os requisitos de validade do artigo 104 do Código Civil Brasileiro de 2002, estando ciente de que há um vínculo formado entre as partes, devendo atender à forma e às convenções estabelecidas entre elas. Adentrando nos planos do negócio jurídico, Pontes de Miranda afirma que é preciso analisar os três pontos, enxergando uma “escada ponteana.” No primeiro degrau, tem-se o plano da existência, que é representado pelos requisitos mínimos para que o negócio exista e produza efeitos. Dessa maneira, extrai-se dos entendimentos de Marcos Bernardes de Mello:
No plano da existência não se cogita de invalidade ou eficácia do fato jurídico, importa, apenas, a realidade da existência. Tudo, aqui, fica circunscrito a se saber se o suporte fáctico suficiente se compôs, dando ensejo à incidência. 77
Constata-se assim que, diante dos entendimentos acerca da existência, os requisitos basilares desse plano são os agentes, a forma, o objeto e a manifestação de vontade exteriorizada. Em uma comparação com o tema em discussão, não há questionamento sobre a existência da prostituição como negócio jurídico, no qual os agentes são maiores e capazes, visto que nessa celebração estão presentes os agentes – contratado e contratante; o objeto – o sexo como prestação de serviço; a forma – sendo escolhida entre as partes, pois não há previsão de solenidade e a manifestação de vontade – ambas partes querem e exteriorizam o interesse. Uma vez verificado o “primeiro degrau”, possível será analisar o segundo. Trata-se da validade. Como mencionado anteriormente, para que o negócio jurídico seja considerado válido, fundamental será a análise dos requisitos dispostos no artigo 104 do Código Civil.
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MELLO, Marcos Bernardes de. . Teoria do Fato da Jurídico – Plano da Existência. cit., p 87.
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A) AGENTE CAPAZ
Agente capaz, é todo que aquele que dentro dos ditames dos Arts. 3º78 e 4º79 do Código Civil pode praticar atos da vida, manifestando sua vontade de maneira livre, arcando com as consequências e efeitos de tal ato. Tal observação faz-se necessária, pois a capacidade está diretamente ligada a possibilidade de praticar atos aptos a ingressar no universo jurídico produzindo efeitos e consequências, que sem observar a devida declaração de vontade, podem gerar a invalidade do negócio. Diante disso, pode-se afirmar que cumprindo os requisitos legais de capacidade, os agentes envolvidos na celebração do negócio jurídico - prostituição- estão praticando um ato existente e que acrescido dos demais requisitos, pode vir a ser dotado de validade. (ingressa no mundo jurídico através de uma manifestação consciente de vontade, gerando obrigações recíprocas para ambas as partes nos termos do Art 1º)80.
B) OBJETO LÍCITO, POSSÍVEL, DETERMINADO OU DETERMINÁVEL
Para que se caracterize um negócio jurídico, necessária é a caracterização atual ou futura do objeto da manifestação da vontade. É isso que dota o negócio de concretude e possibilidade de sua efetiva entrada no mundo jurídico. Sem dotar-se o objeto de um mínimo de caracterização, a execução do ato negocial se tornaria impossível, eivando todo o negócio de uma possível invalidade. Nesse tocante, vale expor o entendimento de Marcos Bernardes de Melo do que seria um objeto ilícito, violando os bons costumes e a moral da sociedade.
A questão da imoralidade do objeto, que pode acarretar a nulidade do negócio jurídico, implica alguns problemas no que diz respeito aos parâmetros segundo os quais o juiz poderá declarar imoral um objeto. Em face da inexistência de regras morais positivadas e da indeterminação legislativa, o juiz se defronta com uma extraordinária tarefa para a solução dos casos concretos. A maioria das legislações, inclusive a brasileira atual, como vimos, inclui a imoralidade no âmbito da ilicitude quando declara ilícitas as condições contrárias à ordem pública e aos bons costumes, ombreando-se às contrárias à lei (art.ao Código Civil, art 122). Portanto, não nos parece haver mais dúvidas de que é nulo, por imoral, negócio jurídico que infringe
78 79 80
Art 3º - "São absolutamente incapazes" (...) Art. 4 - "São incapazes, relativamente a certos atos" (...) Art. 1º - "Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil".
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os bons costumes (Código Civil, art 123, II). No entanto, não há na legislação, uma conceituação, genérica ou específica, do que se deva entender por bons costumes. 81
No que pese os fundamentos apresentados na citação acima, depreende-se que diferentemente do que se esperava, os motivos expostos são ínfimos diante de uma sociedade mutante e cada vez mais atenda aos meios, onde o caso concreto e a situação em questão podem e devem ser analisadas de maneira a gerar um ganho social e não uma perda. É mister destacar que a norma é reflexo da sociedade e do tempo em que se insere o legislador originário, trazendo consigo resquícios do que se tinha por aceitável. Portanto, deve o intérprete estar atento ao contexto que está inserido para que faça a devida correlação entre a legislação (marca de um período anterior) com a atualidade. Positivar conceitos indeterminados como “bons costumes”, deixa para o intérprete um papel substancial na concretização do texto legislativo, dando-lhe um arbítrio elevado, podendo levar a distorções na aplicação das normas. Tal ressalva feita quanto o intérprete é de suma importância, pois o direito é obra viva, dinâmica e passível de diversas mutações interpretativas e muitos são métodos utilizados para isso. Adequar norma à realidade é algo complexo e desafiador, porque a realidade muda muito mais rápido do que o texto da lei, não tendo o legislador a capacidade de produzir um resultado plenamente adequável a todas a situações e, principalmente ao futuro. Legislar é refletir no texto jurídico o contexto atual de uma sociedade, que sujeita mudanças requer do intérprete uma análise detida e integralizadora do sistema jurídico. Feita essa ressalva, pode-se passar para a análise da mutação dos efeitos do negócio jurídico. Diante da sociedade atual, não se pode assegurar com tanta convicção que um negócio jurídico celebrado entre duas partes capazes e cientes, tendo como o objeto a prestação de serviço sexual de natureza onerosa seja um confronto direto ao ordenamento. Muito antes pelo contrário, é necessário analisar e averiguar outros elementos, tais como: a liberdade negocial, o livre uso do corpo e a autonomia da vontade, uma vez que se trata de contrato de prestação de serviço em âmbito privado. A discussão, não diz respeito às casas de prostituição, mas à prostituição como escolha de trabalho autônomo, de livre e independente iniciativa trabalhista. Sobre a moralidade, convém destacar:
81 108.
MELLO, Marcos Bernardes de. . Teoria do Fato da Jurídico – Plano da Validade. cit., ps.107 e
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Por isso, não se podem levar em consideração comportamentos amorais e imorais que se identificam em camadas sociais específicas. A tolerância social com certo tipo de prática imoral não faz a moral, nem a faz lícita. A exploração da prostituição, por exemplo, embora milenarmente a sociedade conviva com tal procedimento, a sua imoralidade ressalta e, mesmo que não houvesse normas penais que a tipificassem como crime, não poderia jamais ser considerada atividade moral e , portanto, lícita. Os meios conducentes a possibilitar a sua prática (como alugar uma casa para que se instale um bordel), mesmo que não estejam previstos proibitivamente na lei penal, são ilícitos por imoralidade. 82
Diante de tal pensamento, não há outra forma de refletir, senão perguntar o que seria "bons costumes". Quem impõe o conceito de bons costumes? Como se caracteriza se uma conduta fere os bons costumes ou não? E, chega-se a conclusão de que não há e não deve haver um conceito concreto e estagnado, pois direito é obra dinâmica e interpretativa que não se adéqua a conceitos estanques. Em um mundo onde os grupos são tão distintos, os meios tão controversos e os entendimentos tão subjetivos, não há porque se falar de bons costumes focados em uma visão tradicionalista, haja vista ser um critério tão pessoal. Talvez, a questão da validade do objeto da prostituição não fosse tão polêmico e difuso. A compreensão deve ser entre as partes, uma vez que a relação e prestação do serviço gera efeito inter partes, não afetando terceiros. Não se deve focar a interpretação das leis olhando para trás, pois a sociedade evoluiu e aceita comportamentos que em outrora eram rotulados como “imorais”. É este passo que deve dar a ciência jurídica, adequando seus institutos a uma nova visão de mundo que a sociedade brasileira já tem. Pois, a ciência social aplicada é reflexo do meio que se insere, e deve estar atenta as mutações que ocorrem no seio da coletividade. Aliado a este papel do intérprete de “modernização” e “humanização” da aplicação das leis, está uma visão contemporânea de Estado, pois a prostituição não se trata de uma matéria que deve ser regulada pelo arbítrio estatal, pois os cidadãos devem ser vistos sob uma ótica emancipatória. Deve-se efetivar uma esfera de livre atuação das pessoas, pois os assuntos de foro íntimo, como é sem dúvida a utilização do próprio corpo, devem estar sob o império da vontade, e não da lei. Deixar que as pessoas determinem o uso do próprio corpo, é reconhecer a sua capacidade de julgar o que lhes é melhor, retirando do Estado a ocupação com assuntos que não são de esfera pública e que não devem ser objeto de sua atuação efetiva. Haja vista que os indivíduos não podem ser tutelados por um ente abstrato que não detém legitimidade e capacidade para determinar o que é certo ou errado, pois tais conceitos além de abstratos estão 82
MELLO, Marcos Bernardes de. . Teoria do Fato da Jurídico – Plano da Validade. cit., p. 110.
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sujeitos aos desígnios dos governantes que, dependendo da ideologia, podem alargar ou estreitar conceitos frágeis como são os "bons costumes". Nesse ínterim, destaca a professora Mariana Lara:
De fato, uma autonomia plena é irrealizável. É possível resistir a determinados tipos de poder e fazer escolhas, mas um mundo livre de qualquer forma de poder é mera utopia. Nesse contexto, deve-se buscar uma autonomia possível, dialógica e que objetive atingir níveis mais elevados de emancipação. A autonomia é uma construção intersubjetiva, que, por estar inserida em um contexto social, sofre influências de diversos fatores. Portanto, é preciso visar a um nível de autonomia entre a dominação completa e a liberdade absoluta. Mas sem jamais abrir mão de ser um sujeito autônomo.83
Essa tutela estatal gera um ordenamento jurídico baseado em uma eventual manifestação de vontade do grupo dominante, podendo gerar uma legislação perseguidora, que suprime direitos e que não se adéqua aos interesses coletivos. Por isso, mais uma vez, destaca-se o papel fundamental do intérprete e também do operador do direito. Pois independente do que venha a entender ser "bons costumes" e "moralidade", deve-se buscar uma socialização dos que pensam diferente e uma proteção dos que estão em vulnerabilidade.
C) FORMA PRESCRITA OU NÃO DEFESA EM LEI
Geralmente, a forma pode ser livre, de acordo com o que as partes acordarem. Porém, uma vez exigida pela lei, esta deve seguir a forma que a legislação prevê. Dessa maneira, dispõe o artigo 107 do Código Civil: “a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente exigir”. É importante salientar que é vedado as casas de prostituição, a exploração e subordinação sexual, sendo diferente o entendimento para a prostituição autônoma.
3
CONTRATO – PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Com consagração na Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana é direito positivado e, deve ser alcançada e almejada pelos cidadãos. A atividade trabalhista tem grande
83
LARA, Mariana. O Direito à Liberdade de Uso e (auto)Manipulação do Corpo. cit., p. 72.
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vínculo com o dispositivo 1º, inciso III da Constituição da República, visto ser essencial e vital o verdadeiro incentivo ao trabalho. Assim sendo, o contrato de prestação de serviços é toda atividade que tem como partes um tomador e um prestador, que acordam, entre si, a prestação de um determinado ato, observando seu objeto e sua remuneração, no qual o serviço é de natureza humana, manual ou intelectual. Para Beviláqua, “é o contrato pelo qual uma pessoa se obriga a prestar certos serviços a uma outra, mediante remuneração.”84 Depreende-se que a profissional do sexo celebra um contrato de prestação de serviço junto ao tomador, uma vez que há uma vontade, um acordo prévio e uma remuneração pelo serviço prestado. Diante desse contrato, o objeto constitui uma obrigação de fazer, qual seja, a execução da relação sexual. Em sua grande maioria, formata-se em contrato verbal por um período estipulado.
3.1 Liberdade Negocial
A construção de um conceito acerca da liberdade negocial é um tanto quanto difícil, em se tratando de vontade das partes. O princípio da autonomia privada, deve ser conjugado ao entendimento de que os sujeitos realizam as escolhas, mediante o que julgam como correto e moral, sendo esse entendimento extremamente subjetivo. Uma vez que o contrato gera efeito entre as partes contratantes, a liberdade negocial é direito de ambas que estão inseridas no acordo, impondo seus limites dentro do que estimam ser adequado.
4
PROSTITUIÇÃO E OS BONS COSTUMES
Dizer que a prática de prostituir confronta os bons costumes, seria, no mínimo, tapar os olhos para a atual situação vivenciada em todo o mundo. As crenças mudaram, os grupos aumentaram e as formas de usar o próprio corpo se vincularam à maneira de trabalhar e de obter a forma de sobrevivência. Por isso, a interpretação restrita do que seriam bons costumes e moralidade deve ser abandonada, uma vez que se trata de escolha e entendimento pessoal. 84
BEVILAQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, v, IV, obs. 1 ao art. 1.079
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O atual entendimento do que seriam bons costumes não se faz prudente, haja vista que em uma sociedade mutante, onde o homem supera e modifica a cada instante, uma interpretação estanque do significado não é viável. Talvez, correto seria concluir que, na verdade, não há significado, mas sim consciência de que os bons costumes se fazem presentes em cada ser humano, diante daquilo que ele julga e compreende ser correto. Sendo assim, incorreto é julgar a prostituição como método de violação à moralidade e aos bons costumes, impostos por um ordenamento engessado e por parte da sociedade. Correto é analisar os pontos mais eficazes e fundamentais ao ser humano, tais como os princípios consagrados na Constituição Federal Brasileira. A dignidade da pessoa humana, é disposta como princípio fundamental no artigo 1º, inciso III. Apesar de nenhum direito ser absoluto, é essencial que toda pessoa seja capaz de possuir e viver sua própria autonomia , com resguardo à dignidade e à certeza de que está amparada pela legislação maior vigente no país. Nesse sentindo, é o entendimento da professora Mariana Lara:
Um Estado que se pretenda democrático, plural e secular não pode negligenciar a autonomia do cidadão. A Constituição da República Federativa do Brasil exige como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, em seu artigo 1º, III, a dignidade da pessoa humana, reforçando a perspectiva de que a pessoa deve ser o centro e o fim de todo o ordenamento jurídico.85
Ainda como princípio fundamental, fazem presentes os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, conforme artigo 1º, inciso IV da Constituição da República. Diante desse entendimento, a prostituição carece de todo amparo acerca do que dispõe o artigo, por se enquadrar no que se entende como trabalho - labutação; ocupação manual e/ou intelectual mediante remuneração. O trabalho é valor prioritário e assegurado pelo constituinte.
O trabalho é concebido como uma atividade produtiva, organizada e finalística desempenhada pelo homem em troca, normalmente, de uma contraprestação monetária, o salário. Para o desempenho das mais diversas formas de trabalho, o corpo é sempre requerido, seja em sua força física ou intelectual (...). Nesse sentido, pode-se afirmar que qualquer trabalho remunerado envolve o uso do corpo e a venda do esforço físico ou mental.86
Por não existir vedação legal para a prática de prostituir-se, não há porque enxergar a prostituição como algo imoral e vergonhoso. Por isso, faz-se mister a busca pela autonomia e 85
LARA, Mariana. O Direito à Liberdade de Uso e (auto)Manipulação do Corpo. cit., p.73.
86
LARA, Mariana. O Direito à Liberdade de Uso e (auto)Manipulação do Corpo. cit., p. 77.
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o direito aos princípios constitucionais assegurados. Se a vontade da pessoa é ter como profissão a prestação de serviço sexual, os benefícios e as consequências só dizem respeitos à ela. “O corpo pertence tão somente à pessoa e só ela pode decidir o que fazer com ele.”87
4.1 O Sexo Como Tabu
Um dos motivos que levam - muitos - ao entendimento de que a prostituição infringiria os bons costumes está relacionado ao fato de que falar de sexo sempre foi proibido e visto como um tabu. Talvez, essa visão se relacione ao fato de ser algo de foro tão íntimo, que requer total exposição do corpo e entrega pessoal. Mas, como já dito anteriormente, vivese uma fase de extrema mudança nos grupos sociais e, juntamente com essas mudanças, vem a necessidade de quebrar certos tabus, tal como o sexo. Falar de sexo não deve ser visto como algo vulgar e proibido. Se antes não se cogitava um relacionamento homossexual, por exemplo, hoje - felizmente - é realidade em quase todos os países do ocidente. É preciso compreender que a superação de preconceitos que guiavam a sociedade patriarcal e a aceitação de condutas que já foram vistas como “ruins” deve significar um sopro modernizador do direito e da sociedade como um todo. Não se deve superar apenas no campo da retórica, mas também no cotidiano, nas relações pessoais e profissionais e, na aplicação das leis, que devem andar em conjunto com a quebra de conceitos e de pré-conceitos. A prostituição, nada mais é do que uma opção de trabalho feita por uma pessoa capaz e consciente de sua escolha, devendo ser respeitada e amparada pelo ordenamento.
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CONCLUSÃO
Após estudos e debates acerca do tema, chega-se, primeiro momento, à conclusão de que a consolidação de um amparo legal para a atividade da prostituição ainda é caminho longo a ser percorrido. Percebe-se que a prostituição é foco de vulnerabilidade, provocações e proibições por parte do Estado e da população. Entretanto, percebe-se também que uma parcela considerável 87
LARA, Mariana. O Direito à Liberdade de Uso e (auto)Manipulação do Corpo. cit., p. 81.
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busca alterar esse quadro, compreendendo que não se trata de confronto à legislação e àqueles que enxergam a atividade como algo imoral. Trata-se, na verdade, de pessoas que por escolha pessoal, optaram por usar o próprio corpo como trabalho. Como dito anteriormente, vive-se uma fase de extrema mudança nos grupos sociais e, juntamente com essas mudanças, vem a necessidade de romper com os conceitos e préconceitos, pois situações que não se enquadram na visão da sociedade do que seja “bons costumes”, não podem ser vistas automaticamente como ilícitas ou imorais. Não se pode transportar para o ordenamento jurídico visões da sociedade que importem em segregação e ou discriminação, pois isso fere o tratamento igualitário. Insistir em um pensamento tão remoto não abolirá entendimentos e pensamentos tão restritos e estanques. É necessário evoluir e compreender que num Estado Democrático, a convivência com o próximo é constante, e deve ser também, saudável. Assegurar o acesso aos Princípios fundamentais da carta constitucional é dever do intérprete e meta do legislador. Escolher pelo caminho de uma interpretação mais tradicional e restritiva, como é a aplicada aos dos bons costumes e da moral, faz com que situações como as os profissionais do sexo sejam tão banalizadas e pouco solucionadas, negando-lhes o pleno exercício de seus direitos, e em uma última análise, e a vida digna. Marginalizar não um caminho digno e integralizador perante a Constituição, que exige dos seus operadores uma visão social e humana, principalmente nas situações que invertem o status quo. Enquanto não se alcança a regulamentação expressa, é preciso que a liberdade pessoal seja capaz de ser suportada em âmbito coletivo e que, a convivência entre os diferentes que fazem escolhas também diferentes seja harmônica e respeitada. A liberdade, o respeito, a aceitação e a humanização são requisitos fundamentais para atingir patamares mais justos e igualitários. Somente assim, haverá a consagração dos princípios constitucionais da dignidade e da livre iniciativa.
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PROSTITUIĂ&#x2021;Ă&#x192;O, MORALITY (GOOD MANNERS) AND LEGAL BUSINESS A CRITICAL VIEW ON THE SUBJECT
ABSTRACT
This article aims to analyze the validity of the legal business , which is engaged in the prostitution of capable people . During the research were made theoretical and empirical studies , seeking the answer to the topic discussed . Another aspect is analyzed with respect to the traditional concept of " morality " (good manners) and the violation of morality imposed by society and the State. Importantly, this is not the defense of houses of prostitution , but rather the self use of the body as a working object. In addition, primary is to observe how necessary it is ensured that the constitutional principles are applied , along with a modern interpretation of the law.
KEYWORDS: Morality (good manners). Agreement. Moral. Legal business. Validity.
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SER OU NÃO SER: EIS A DECISÃO
Dayse Gracielle Soares de Araújo de Figueiredo
RESUMO
Devido discussões calorosas a respeito do tema que divide opiniões, anencefalia, o presente artigo tem como escopo evidenciar ideias para esclarecer um pouco mais sobre o tema. Além de ressaltar mecanismos que poderão contribuir para preencher lacunas em nosso ordenamento jurídico, no que tange ao agasalhamento e as dificuldades vivenciadas por mães de fetos anencéfalos. Serão correlacionados os principais direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, vez que tais direitos e garantias não podem ser considerados como uma concessão do Estado e sim como direito adquirido de todo e qualquer ser humano. A Bioética e o Biodireito serão o fio condutor deste trabalho que contará com outras importantes ferramentas norteadoras; os direitos humanos como desígnio o respeito a dignidade, com proteção do poder estatal, a garantia das condições mínimas de vida, o desenvolvimento do ser humano e a necessidade de incentivar o planejamento familiar. PALAVRAS-CHAVE: Anencefalia. Dignidade Humana. Aborto.
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INTRODUÇÃO
Há discussões perenes a respeito do tema que divide opiniões: Anencefalia. Trata-se de uma má formação fetal congênita decorrente de defeito no fechamento do tubo neural (sistema nervoso central), durante o estágio embrionário que é totalmente incompatível com a vida extrauterina, conforme entendimento da medicina trazido pelo mestre França. (2008, p. 280)
Esta anomalia pode ser diagnosticada no período pré-natal através da dosagem de alfa-fetoproteína no soro materno ou no líquido amniótico ou, ainda, por sonografia. Segundo constatou o ministro Marco Aurélio no início de seu voto no julgamento realizado pelo STF em abril de 2012, a respeito da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54 ajuizada em 2004, o Brasil é o quarto país do mundo em casos de fetos anencéfalos, ficando atrás do Chile, México e Paraguai. No que tange à etnia, os caucasóides são mais afetados que os negróides, bem como as mulheres são mais afetadas que os homens (2:1). A sazonalidade também é relevante no nascimento de anencéfalos, sendo mais freqüente quando as concepções se dão no outono. Em relação à idade materna existe um maior acometimento em filhos de mulheres com mais de 40 anos e com nível socioeconômico desfavorável.
2
O ARCABOUÇO - BIOÉTICA E BIODIREITO
Os fatos que geram tamanha discussão em torno de temas como o aborto, em especial, os de anencéfalos, são polêmicos e deve-se ao bem mais preciso concedido por Deus e protegido pela Constituição Federal, a vida. Na tentativa de garantir que a ciência como um meio de preservar a vida, seu fim maior, e de explicar os diversos fenômenos e adaptá-los a
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realidade contemporânea, sem deixar de lado a ética, a moral e os costumes, tem-se o binômio que oferece subsídios para favorecer tal fim, a Bioética e o Biodireito. A Bioética como estudo sistemático e transdisciplinar do comportamento humano, incide na biotecnologia e em seus reflexos no cotidiano. Bioética - bíos, palavra de origem grega, que significa vida; normas éticas em relação à vida humana - é um termo que foi empregado pela primeira vez, em 1970, pelo oncólogo, Van Rensselaer Potter, em um artigo intitulado "The Science of Survinal". (TEODORO, 2008, p. 21) A missão da bioética é elevar ao clímax a dignidade da pessoa humana, partindo de uma visão integralizadora, por meio do respeito a uma sistematização ética da responsabilidade e da elaboração de princípios universais e autônomos, que traçam diretrizes que impedem o ser humano de se autocorromper ou se destruir. (ZINI, 2011, p. 219-260) Toda estrutura bioética é internalizada no ordenamento jurídico por meio do princípio da dignidade da pessoa humana: e os princípios bioéticos são as ramificações desta raiz, quais sejam: a) O Princípio da Autonomia ou do Consentimento, b) Princípio da Beneficência, c) Princípio da Não-maleficência, d) Princípio da Justiça, e) Princípio da Prevenção, f) Princípio da Precaução e g) Princípio da Ladeira Escorregadia. Esses princípios bioéticos são caracterizados como prima facie, e, portanto, não são incompatíveis entre si, pois se complementam e são aplicados conforme o caso concreto, podendo variar de acordo com a situação do caso concreto trazendo nuances diferentes. As ciências da bioética quando concatenadas ao biodireito, que é o conjunto de normas jurídicas que regulam a proteção da vida humana, formam as diretrizes de como tornar impositiva as regras da bioética na proteção dos direitos fundamentais, entre as quais a dignidade da pessoa, a integridade e a inviolabilidade do corpo humano devem, primordialmente, serem respeitadas. É notório que o tema objeto desse artigo, demanda adequação das normas com respostas condizentes à Carta Magna e a realidade (moral, costume, religião, entre outros) do país. É nesse intuito que a Bioética e o Biodireito ganham a cena como atores principais desse texto, pois trazem embasamento científico para que haja melhor configuração dessas normas
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às demandas, minimizando os dissensos e trazendo esclarecimentos ora encoberto pelos equívocos e pela ignorância de muitos operadores do direito. Sendo assim, partilhar os caminhos que possam acrescentar e de alguma forma atender às necessidades ora surgidas defendendo a pessoa humana da terrível ameaça de reificação é o propósito a ser alcançado. Como preleciona Maria Helena Diniz o "estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas a bioética e a biogenética, teria a vida por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem limites jurídicos, os destinos da humanidade". (DINIZ, 2006, p. 09) 3
RELEVÂNCIA CONSTITUCIONAL E CIVIL
A Constituição Federal de 1988 é a base, a espinha dorsal do ordenamento jurídico brasileiro. Ela é superior a todas as regras e normas jurídicas vigentes, portanto, as demais deverão subordinar-se a ela e não poderão contrariá-la. A interpretação constitucional e de toda a ordem infraconstitucional deve observar os princípios - mandamento nuclear -, dogmas e regras constitucionais, para que haja efetividade na aplicação das normas jurídicas vigentes, ainda mais, para a prevalência da própria constituição, atendendo-se assim ao princípio da supremacia da Constituição. A Constituição é repleta de dispositivos que comprovam a importância dada pelo constituinte à tutela dos direitos fundamentais. Ela é implantada com o preâmbulo que anuncia um novo Estado. (SILVA, 2002, p. 04) A dimensão da expressão "dignidade da pessoa humana", na perspectiva desse trabalho, está-se a referir - num primeiro momento - à complexidade da própria pessoa humana e do meio no qual desenvolve sua personalidade. Visto que a dignidade como qualidade intrínseca da pessoa humana é irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja concedida a dignidade. (SARLET, 2008, p. 19) O reconhecimento e a consideração da dignidade humana apresentam-se como o fundamento dos direitos fundamentais, inclusive como fundamento do direito à vida, devendo
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o princípio da dignidade humana, portanto, também dirigir a interpretação à aplicação dos direitos fundamentais. A Carta mestra não tratou expressamente do tema objeto deste trabalho, "O Aborto de Anencéfalos" , seja para autoriza-lo, seja para proibi-lo. Isto não significa por óbvio que o tema da interrupção da gravidez seja um indiferente constitucional. Muito pelo contrário, a matéria esta fortemente impregnada no conteúdo constitucional, na medida em que envolve o manejo de princípios e valores de máxima importância consagrados na nossa carta magna. Mercê de tais considerações, cabe ainda lembrar que foi julgado em abril de 2012, pelo STF, a ADPF n. 54, ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS). O objetivo da entidade era que fosse declarada inconstitucional qualquer interpretação do Código Penal no sentido de penalizar o que a entidade chama de “antecipação terapêutica de parto de fetos anencéfalos”. ADPF n. 54, o que foi deferido pela maioria dos ministros e causou grandes dissensos.
3.1
Da pessoa natural
Pessoa: é toda criatura humana. Melhor dizendo, é todo aquele sujeito de direitos. (MONTEIRO, 2009, vol. 6) Toda e qualquer pessoa natural dispõe, inexoravelmente, de personalidade jurídica, podendo titularizar relações jurídicas. É, pois, sujeito de direito. Contudo, a personalidade tem uma medida para a prática de atos determinados, que é a capacidade. Assim, qualquer pessoa humana pode ser titular de direitos e obrigações, porém nem toda pessoa praticará os atos da vida civil pessoalmente (somente aqueles que dispõem de plena capacidade). O Direito ampara a vida humana desde a concepção. Com a formação do ovo, depois embrião e feto, começam a tutela, a proteção e as sanções da norma penal, pois daí em diante se reconhece no novo ser uma expectativa de personalidade que não poderia ser ignorada.
3.2
Abordagem jurídica do nascituro
Percebendo que a controvérsia traz como pano de fundo a discussão acerca do próprio início da personalidade jurídica, é possível observar que três teorias foram arquitetadas, enxergando a questão sob diferentes prismas, sendo: a) A Teoria Natalista
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Para esta teoria, a personalidade civil somente se inicia com o nascimento com vida, teoria adotada pelo Superior Tribunal Federal (STF). É possível identificar a aceitação dessa teoria pela maioria dos ministros. Pode-se citar como exemplo as decisões proferidas pela descriminalização do aborto de anencéfalos na ADPF n.54. A maioria deles deferiu o pedido, a partir da tese de que não se tratava de um ser vivo e sim de uma expectativa. No entanto, não são todos que comungam da mesma opinião, pois nos dois votos pela improcedência da descriminalização do aborto, proferidos pelos ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso ficou evidente, a partir de respostas embasadas cientificamente e com coerência, que o feto gerado é um ser vivo e merece ter o seus direitos tutelados desde a concepção. Como bem assinalou o ministro Cezar Peluso “O anencéfalo morre, e ele só pode morrer porque está vivo”. (BRASIL, 2012, p.54) b) A Teoria da personalidade condicional Afirma que a personalidade tem início a partir da concepção, porém ficando submetida a uma condição resolutiva, o nascimento com vida, assegurados, no entanto, desde a concepção, os direitos da personalidade, inclusive para assegurar o nascimento. c) Concepcionista Inspirada pela ideia do direito francês assegura que a partir da concepção o nascituro tem personalidade jurídica, sendo, portanto, sujeito de direitos, apenas ressalvados os direitos patrimoniais, decorrentes de herança, legado e doação, que ficam condicionados ao nascimento com vida. Um detalhe, de qualquer sorte, parece incontroverso: a Lei Civil de 2002, no artigo segundo, resguarda expressamente os direitos do nascituro, servindo para afastar, peremptoriamente, a tese natalista, por pregar que somente seria possível reconhecer direitos do nascituro depois de nascer vivo. A teoria da concepção se mantém como a mais forte entre todas e é a mais compatível com a tutela dos direitos do nascituro e consequentemente com os direitos fundamentais, sendo ela utilizada no nosso ordenamento jurídico. A concepção inaugura o início da vida humana e o concepto é protegido a partir da fecundação visto surgir um novo ser.
3.3
Dignidade Humana
O mais precioso valor da ordem jurídica brasileira, erigido como fundamental pela Constituição de 1988 é a dignidade da pessoa humana, conforme já dito. Assim, como consectário, impõe reconhecer a elevação do ser humano ao centro de todo o sistema jurídico,
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no sentido de que as normas são feitas para a pessoa e para a sua realização existencial, devendo garantir um mínimo de direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana, pois, serve de mola de propulsão da intangibilidade da vida humana, dela defluindo como consectários naturais: a) o respeito à integridade física e psíquica das pessoas; b) a admissão da existência de pressupostos materiais mínimos para que se possa viver; c) o respeito pelas condições fundamentais de liberdade e igualdade. Dessas ideias, exsurge lícita a conclusão de que o Direito Civil não mais assegura apenas o direito à vida, mas, necessariamente, reconhece e tutela o direito à vida digna. (ROSENVALD, 2011 p. 137 e 277) A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que leva consigo a pretensão ao respeito por parte dos demais. Surge, pois, em razão dessa nova perspectiva jurídica proporcionada pela Lex Mater, um conceito contemporâneo de personalidade jurídica, desenhada a partir de um mínimo ético e de um mínimo existencial, que não podem ser violados nem pelo Poder Público, nem pelos demais membros da sociedade privada. Após a dignidade humana ter sido ressaltada e reconhecida com o grau de importância que lhe cabe, surge a necessidade de pô-la sob guarda e proteção de todas as possíveis ofensas as quais pudessem vir a feri-la ou cerceá-la. Urge perquirir se esse princípio ganha prevalência entre os demais, ainda mais por se saber que não há hierarquia entre os princípios - prima face - e regras constitucionais. Interessante lembrar que não raro, ocorre a colisão, o conflito, entre diferentes valores de igual hierarquia. Pois bem, a resolução dos conflitos normativos não mais pode estar sustentada pelos critérios clássicos estabelecidos, como os pouco eficientes e insuficientes “norma posterior revoga a anterior” e “norma especial revoga a geral”, dentre outros. Especialmente na nova estrutura jurídica descortinada pela CF, que afirma a cidadania como valor superior e intangível. Assim, surge a ponderação de interesses (ou proporcionalidade) como critério seguro para as colisões normativas, sempre centrada no valor máximo constitucional – dignidade da pessoa humana. A ponderação de interesses é a técnica disponibilizada para a solução dos conflitos normativos, devendo ser sopesados para que se descubra qual dos valores colidentes respeita, com maior amplitude, a dignidade humana.
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4
DIREITOS MAIS DO QUE HUMANOS
A vida é um bem tão intangível que é supérfluo dizer, apenas, que está protegida pela Constituição Federal, pois como bem mais fundamental ela transcende e excede todos os seus dispositivos. É a partir da vida que emergem todas as necessidades de legislar. Os direitos humanos ganham destaque por serem os direitos e liberdades básicos de todos os seres humanos e independe de qualquer atributo para usufruí-los. Normalmente o conceito de direitos humanos tem a ideia também de liberdade de pensamento e de expressão, e a igualdade perante a lei. (BRASIL, 1948, p. 38) Os fetos anencéfalos, como muitos pesquisadores deixam evidente, são quase que improváveis suas chances de vida extrauterina por muito tempo, no entanto, existem outras dezenas de doenças que seguem a mesma linhagem e que não é possível realizar o aborto. Os direitos humanos cabem para todo e qualquer ser humano, sem qualquer distinção, de nascituro a idoso. O direito à vida é tutelado pela constituição como um dos princípios primordiais, logo, práticas contrárias ou que não as obedecem deveriam ser fadadas ao fracasso. Porém, não foi o que ocorreu na decisão dos ilustres ministros do STF em Abril de 2012 ao serem favoráveis, em sua maioria, por descriminalizar apenas o aborto de anencéfalos a partir de argumentos inconsistentes e sem critérios.
4.1
Aborto sob a ótica dos direitos humanos e fundamentais
A fim de proporcionar ferramentas apropriadas a desenvoltura e fortalecimento dos direitos humanos o PNDH institui ações padronizadas para todos. Em sua última versão, o PNDH III, seguiu as diretrizes prescritas pelo Decreto nº 7.177, de 12.05.2001. No programa foram estabelecidos objetivos estratégicos de que a garantia dos direitos das mulheres para o estabelecimento das condições necessárias para sua plena cidadania, tais como ações programáticas de "desenvolver ações afirmativas que permitam incluir plenamente as mulheres no processo de desenvolvimento do País, por meio da promoção da
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sua autonomia econômica e de iniciativas produtivas que garantam sua independência" e de "considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do acesso aos serviços de saúde". Enfrentar com seriedade esse fenômeno significa entendê-lo como uma questão de saúde e direitos humanos, devendo ser tutelados pelo Estado com efetividade. Para eficácia da redefinição política da abordagem desses temas há algumas tendências que se mantêm nos estudos à beira do leito com mulheres que abortaram e buscaram o serviço público de saúde: a maioria é jovem, pobre, católica e já com filhos. Não há se falar em legalização de aborto sem antes analisar se há estruturas e condições para tanto. Deixando as crenças, os valores e os princípios morais, focando primariamente na legalidade do ato "abortar", é notório a presença de diversos dispositivos legais, em vigor, que resguardam a vida intrauterina, como por exemplo o artigo segundo do CC/2002 que ressalva os direitos do nascituro e até mesmo a própria Constituição Federal em seus princípios, especialmente no da dignidade da pessoa humana. Decisões levianas, além de tolher os direitos do nascituro ferem os princípios norteadores do ordenamento jurídico como um todo. Os fetos anencéfalos, como muitos pesquisadores deixam evidente, são quase que improváveis suas chances de vida extrauterina por muito tempo, no entanto, existem outras dezenas de doenças que seguem a mesma linhagem e que não é possível realizar o aborto. Os direitos humanos cabem para todo e qualquer ser humano, sem qualquer distinção, de nascituro a idoso. O direito à vida é tutelado pela constituição como um dos princípios primordiais, logo, práticas contrárias ou que não as obedecem deveriam ser fadadas ao fracasso. Porém, não foi o que ocorreu na decisão dos ilustres ministros do STF em abril de 2012 ao decidirem, em sua maioria, por descriminalizar apenas o aborto de anencéfalos a partir de argumentos inconsistentes e sem critérios bem fundamentados, tanto na medicina como no direito.
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CONCLUSÃO
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O zelo pelos direitos fundamentais deve ser exaltado e preservado sobre qualquer perspectiva leviana que induz ao "falso direito" exclusivo da maternidade. Não há falar em disputa de vidas e sim no predomínio e na preservação das pessoas inseridas neste contexto, mãe e filho. Preocupar estritamente com a interrupção da gestação da mãe de um bebê com anencefalia é ineficaz, pois a temática demanda intervenções mais abrangentes que apenas autorizar a prática do aborto. A proposta deste estudo é ampliar os debates sobre as questões vivenciadas por tantas famílias que não são guarnecidas por nenhuma política de saúde pública específica, mas tão somente por uma determinação legal que autoriza a interrupção da gestação de fetos anencéfalos. A perspectiva não deve parecer insensibilidade e indiferença ao sofrimento dos pais e familiares de uma criança que não consegue sustentar sua vida de maneira autônoma. Nem ao menos manifestar indiferença às dificuldades que somente eles sabem o quanto lhes custa e dói, mas propiciar alternativas embasadas no ordenamento jurídico, a fim de agasalhar o tratamento desprendido a essas famílias que decidem seguir com a gestação. Qualquer que seja o estágio da ciência, qualquer que seja o avanço da biotecnocracia que tudo quer saber e tudo explicar, não existe argumento capaz de justificar a disposição incondicional sobre a vida de um ser humano, propondo sua destruição baseada em justificativas que se sustentam na "relação custo-benefício”. É urgente e vehemente a necessidade de agasalhamento jurídico específico para estes seres desprovidos da aparência física desejada e da capacidade de se auto sustentar.
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BRASIL. Lei (Lei Ordinária) 10/01/2002. Código Civil. Disponível em: Endereço eletrônico: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2002/L10406.htm>. Acesso em: 12 dezembro 2012. DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito, 3ª Edição, São Paulo, Saraiva, p. 09, 2006. HERCULES, Hygino de Carvalho. Medicina Legal. São Paulo. Editora Atheneu, p. 586, 2005. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. Vol. 6, 37ª ed., Atualizada por Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto, São Paulo, Ed. Saraiva, 2009. TEODORO, Momesso. Aborto Eugênico, ed. Juruá, Curitiba, p. 21, 2008. ROSENVALD, Nelson e FARIA, Cristiano Chaves. Direito Civil – Teoria Geral. 9. Edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, p. 137 e 277, 2011.
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TO BE OR NOT TO BE: THAT THE DECISION
ABSTRACT
Heated discussions about the subject divide opinions concerning anencephaly, this article is scoped to show ideas to clarify a bit more on the subject. Besides emphasizing mechanisms that may contribute to fill gaps in our legal system, with respect to and the difficulties experienced by mothers of anencephalic fetuses. Constitutionally guaranteed fundamental rights will be correlated, since such rights and guarantees cannot be considered as a grant from the State but as vested right of any human being. Bioethics and the Biolaw
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will be the guiding thread of this work which will include other important guiding tools; human rights and respect for the dignity design with protection of state power, ensuring minimum conditions of life, human development and the need to encourage family planning.
KEYWORDS: Anencephaly. Human Dignity. Abortion.
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