Estrofe: Lembranças

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Àqueles que nos ajudaram até aqui.

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Índice Ivete Nenflido………………………………………………………………………………………………………………………6 Alberto Arecchi…………………………………………………………………………………………………………………….9 Maurício Régis…………………………………………………………………………………………………………………….12 Sammis Reachers…………………………………………………………………………………………………………………14 Juliane Mena Tôrres…………………………………………………………………………………………………………….16 Araldo Chagas……………………………………………………………………………………………………………………..17 Denise Veras……………………………………………………………………………………………………………………….22 Arlindo Kamimura………………………………………………………………………………………………………………24 Júlia Mascaro Alvim…………………………………………………………………………………………………………….27 Luísa Lima…………………………………………………………………………………………………………………………..31 Ana Oliveira………………………………………………………………………………………………………………………..37 Mayara Lopes……………………………………………………………………………………………………………………..43 Patricia de Campos Occhiucci……………………………………………………………………………………………….44 Elaene Suzete………………………………………………………………………………………………………………………45 May Poetisa………………………………………………………………………………………………………………………..49 Isabella Costa………………………………………………………………………………………………………………………51 Silvana Helena Liz……………………………………………………………………………………………………………….53 Guiga Soares……………………………………………………………………………………………………………………….55 Marcelino Rodrigues Cutrim Netto………………………………………………………………………………………..57 Ivy Gobeti…………………………………………………………………………………………………………………………..60 Rogério Rodrigues……………………………………………………………………………………………………………….62 Fabio Lindbergh………………………………………………………………………………………………………………….64 Naiara Mariano Saqueto [Aeris].........................................................................................................66 Reinaldo Fernandes……………………………………………………………………………………………………………..67 Edih Longo…………………………………………………………………………………………………………………………70 France Gripp……………………………………………………………………………………………………………………….72 Dandara Arouche [Dantesca]..............................................................................................................75 Willy Bortulini…………………………………………………………………………………………………………………….76 Nathália Rodrigues [Artista com TH].................................................................................................78 Kéren-Hapuque…………………………………………………………………………………………………………………..79 Alexandra Lopes da Cunha…………………………………………………………………………………………………..80 Alex Rosa……………………………………………………………………………………………………………………………83 André Tourinho…………………………………………………………………………………………………………………..85 David Ehrlich……………………………………………………………………………………………………………………..88 Deborah Oliveira de Fusco……………………………………………………………………………………………………93 Diogo Libana………………………………………………………………………………………………………………………94 Fernanda Martins Almeida…………………………………………………………………………………………………..95 Luciano Lanzillotti………………………………………………………………………………………………………………96 Maria de Fátima de Barros Neves………………………………………………………………………………………….98 Mario Miranda…………………………………………………………………………………………………………………..102 Mauricio Carraro……………………………………………………………………………………………………………….105 Tomaz Fantin…………………………………………………………………………………………………………………….110 Viviane Cabrera………………………………………………………………………………………………………………….111 Roberta D'angelo Mellis………………………………………………………………………………………………………113 Bianca Carvalho dos Santos…………………………………………………………………………………………………115 4


Neila Reis…………………………………………………………………………………………………………………………..117 Fabio Minervi…………………………………………………………………………………………………………………….118 Evandro Valentim de Melo………………………………………………………………………………………………….120 Maria Eunice Silva de Lacerda…………………………………………………………………………………………….122 Valéria Pisauro…………………………………………………………………………………………………………………..124 Renato Massari………………………………………………………………………………………………………………….126

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Ivete Nenflido Com 48 anos, natural de São Bernardo do Campo – SP, Ivete Nenflidio é escritora, pesquisadora, curadora de festivais e articuladora cultural especializada em Sustentabilidade Aplicada aos Negócios, desde 1996. Publicou: “Memórias Difusas”, “País Estrangeiro”, “Cartografias da saudade” e “Calendas de Março” (Prêmio: Lei Aldir Blanc). Está em fase de lançamento de outras duas publicações: “Ataque” e “O sereno que habita meus olhos”, com previsão de lançamento para junho de 2022 pela Editora Telha. **

Todas as mulheres Trago dentro de mim todas as mulheres: a líder, a esposa, a santa, a dama, a puta “Penhas” sem pernas, Nossa Senhora, Pachamama, Antonieta de Barros, Violeta Parra, meninas liberadas para a escola. Trago dentro de mim todas as mulheres: as que escreveram no “Bello Sexo”, as que lutaram nas guerras, as que sofreram com a fome, as sufragistas, as mulheres quilombolas, indígenas. Trago dentro de mim todas as mulheres, as lágrimas de todas que sofreram com a tortura, com a violência verbal, moral e brutal. Trago dentro de mim todas as mulheres: Marielle Franco, Amelinha Teles, as três mulheres de Barcarena. No meu corpo, minhas marcas, muitas cicatrizes; o sangue que jorra em mim é o mesmo que escorreu torrente em tantas mulheres. 6


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Mar profundo (Para Alfonsina Storni) Na desabitada costa de La Perla, fitando a amplidão de horizonte intocável, com passos lentos caminha a poetisa... Seu pequeno corpo busca o descanso, seus desajeitados passos marcam a areia fina e macia, no aveludado caminho, recorda amores que não viveu, viagens de uma vida não vivida, sucessiva caminhada... Em seu derradeiro olhar, assiste a cores, recorda seu breve destino, idealiza cada cena, visões trágicas! Busca o aconchego das águas, encontra nas profundezas do mar a esperada paz, agora adentra o mar com passos cravados e o coração cheio de incertezas, busca espumas, sangra os olhos, busca o sal! Sua cama agora é úmida e fria, no remanso das águas, entre devaneios e ouvidos selados, concebe notas de antigas árias, cantigas dos anjos. Calmamente adormece! No entorpecido sono, no repouso merecido, relembra alegres distrações de menina... Corpo padece, coração que cessa, triste desfecho... Sua despedida foi como suas palavras, vestida de encantamento, triste epílogo... 7


Sentiu a única saudade possível, sua face marcada por dores e amores não revelou seus mais profundos segredos, não encontrou respostas. A poetisa de olhos negros não soube morrer, mas a morte a abraçou, as águas a acolheram e os seres marinhos a ampararam. A noite chorando encheu de orvalhos sua vegetação litorânea. A Lua, assistindo à triste partida, se escondeu atrás do breve nevoeiro. **

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Alberto Arecchi Alberto Arecchi (1947) é um arquiteto italiano, mora na cidade de Pavia. Tem longa experiência em projetos de cooperação para o desenvolvimento em África, como especialista em tecnologias apropriadas. Presidente da Associação Cultura Liutprand, edita estudos sobre a história local e as tradições, sem descurar as relações interculturais (https://www.liutprand.it). Escreve contos e poemas em italiano, português, espanhol e francês. **

Saudade do oceano Saudade do oceano, saudade de você, desde o primeiro momento que te vi, desde o primeiro momento que você olhou para mim, o primeiro abraço, o primeiro beijo. Saudade das reflexões do sol nas ondas, dos passarinhos cantando, falando, nos galhos ao nosso redor. Saudade pelos estalidos das palmeiras, o chilrear incessante das cigarras, a vaga quente do ar que nos envolvia. Saudade pela noite estrelada, e a descoberta de nós dois, sozinhos, sob o céu infinito. **

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Céu de África Sempre que olho para o céu, Bayuma, penso naquela noite, no quintal da tua casa, no topo da colina. Fizemos amor, como se estivéssemos em outro mundo, na frente de todos e de ninguém, sob um céu de cristal, protegidos apenas por telas de palha e pelo sono da família. A lua cheia dos trópicos inundou a noite estrelada, em uma cidade devastada por confrontos fratricidas. As explosões inundavam a cidade, como fogos de artifício duma festa. Seu peso no meu corpo, um desejo de paixão, deusa negra de um amor vivido no meio de uma noite. Sinto falta da sua presença, sinto falta dos dias da minha vida passada na África. A mesma lua, as mesmas estrelas me observam esta noite, do meu céu e sugerem que elas estão olhando para você também, do mesmo céu. Uma esperança secreta me diz que ali, além do trópico, você ainda me espera atrás de uma persiana de sândalo, no aroma intenso do incenso. Você vai me cumprimentar como se eu tivesse acabado de ir ao mercado, poucos minutos antes. Como um membro da família, cujo ritmo você conhece, o cheiro, a forma dos ombros quando vai 10


e o som do passo em seu retorno. **

Amor no morro Em um pátio suburbano, uma cadeira por cima do morro, estávamos fazendo o amor como num outro mundo. Teu peso sobre meu corpo, um anélito de paixão, deusa mandinga de um amor vivido no coração de uma noite. Você veio à minha cama, silenciosa como uma pantera, na escuridão sem lua iluminada por mil estrelas. Jovem negra flexuosa, no esplendor dos vinte anos orgulhosa da sua beleza e do seu corpo de mulher. Comprida foi a noite na brisa e no murmúrio da água que doce fluía entre as palmeiras trazendo a vida aos jardins. Despertamo-nos no calor dos raios da alvorada dourada, com o canto dos galos, unidos em nosso suor. **

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Maurício Régis Baiano. Maurício Régis é poeta e estudante de Letras. Cursou Produção Textual e Editoração Eletrônica de Revista, no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA); possui a Formação de Jornalismo e Empreendedorismo Digital promovida pela Conexão Lusófona e participou do 1o Encontro Literário Internacional Virtual “Dia Mundial da Palavra-2020” Hermandad Rosa Blanca. Tem alguns livros solos publicados e está integrado a inúmeras antologias. Destacando-se como poeta. É ganhador de vários prêmios: finalista dos concursos literários promovidos entre 2009 a 2022. **

O lado bom da vida Jovelina é uma senhora que tem lá os seus setenta e três anos de idade. Não gosta de ficar deitada até as sete horas da manhã, isso para ela é mais do que uma vergonha. Pois, esta senhora tem o ritmo de acordar cedo e levantar da cama para cuidar das plantações de berinjela, das pimenteiras mexicanas, dos pés de jiló, das alfaces e das tantas ninhadas de galinhas e dos patos trazidos de Parságada. Descendente de Dandara, a esposa de Zumbi, Jovelina é dura na queda. Mesmo com a idade que tem hoje, não é muito de se entregar a qualquer resfriado não. Apesar de conhecer do poder das ervas, essa ascendente de escrava sequer murmura sobre as dificuldades que a enfrenta. O problema do quotidiano vai e vem, sendo uma certeza que ela internaliza, porém evita ficar se martirizando. Mas, que também evita partilhar dos momentos desagradáveis para com os outros. Atitude essa que é do caráter dela. Além de viver uma vida bastante simples, a residência dessa senhorinha é vista na zona leste de uma cidade que contabiliza uma soma de uns milhões de pessoas. Ela vive sozinha, no entanto, não desprezada. Quem costuma se manter em atividade, fugindo do ócio jamais se sente abandonada ou sem ninguém. Os cuidados com as plantas e os animais são os possíveis remédios para fazerem escapar do mal da angústia. Compreender muito bem sobre o que fazer para deixar em paz a saúde do espírito e mental é agir através da sabedoria no que pode estar presente por dentro de cada uma de nossa descoberta pessoal. Uma pessoa na idade de setenta e três anos, vivendo de forma saudável, longe da companhia de ninguém e fazendo o que ela faz é um espelho para muitos jovens que vegetam por aí. Quando mais jovem, Jovelina precisou sair da casa de seus pais, porque teve a necessidade de trabalhar. O trabalho, assim a recorda, tinha que ser na cozinha de uma família de franceses. Esse pessoal foi com a minha cara. Que sorte eu tive. Lembro-me de ter quebrado duas louças de porcelana. Raríssimas. Além de mim, não havia ninguém. Mas, ao caírem no chão de azulejo português o eco cortava todo o silêncio. De maneira que fez um barulho que despertava a atenção do motorista e da neta da patroa. O motorista, por sua vez, puxava o saco dos patrões. Era um daqueles homens atravessadores que fazia de tudo para ganhar a atenção. Foi numa dessa oportunidade que o motorista causador de problemas disse para o meu patrão sobre as louças que se quebraram “senhor Patrick, a Jovelina lhe causou um prejuízo, 12


quebrando duas louças caras da família.” Apesar de ter tentado me colocar sob qualquer encrenca, o senhor Patrick foi ao meu favor, ignorando a conversa do motorista. Após a retirada do patrão daquele recinto, o motorista faria uma menção para beliscar o ombro dela. Falava coisas feias para ela, com tons agressivos. Atrás da porta do primeiro quarto, a neta assustada ouvia aquela encenação. Percebendo a rigidez de Jovelina, mesmo que calada, porque em silêncio percebia que o pior não poderia acontecer. Desde de cedo eu me mostrei com personalidade. A infância fugia de mim, não porque dei a permissão, mas o motivo maior urgia com mais força. Ou tinha que trabalhar ou teria que assistir a pobreza extrema morando em meu lar. A neta de senhor Patrick foi fundamental para mim. Ela me ensinava a falar o idioma francês. E por incrível que parecesse, nunca tive dificuldades para combinar o sujeito e o predicado naquela língua. Os bons modos, a maneira de me comportar diante de pessoas finas também devo essas maneiras a ela. A vida agora é outra. As pessoas mudam, embora as circunstâncias são sempre as mesmas, porém em outro tempo. Alguns continuam com o coração explodindo por maldade, outros preferem plantar e compartilhar o bem. Entre plantar o mal e cultivar a bonança, o bem sempre vai prevalecer. Então, por que reclamar tanto de pequenas coisas desde que são das simples atitudes que melhor podemos existir? **

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Sammis Reachers Nascido em 1978 em Niterói, mas desde sempre morador de São Gonçalo, ambos municípios fluminenses, Sammis Reachers é poeta, escritor e editor, autor de dez livros de poesia e três de contos/crônicas, organizador de mais de quarenta antologias e professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa. **

Retorno proseado à latrina da História Stálin matou [Ossip] Mandelstam e tantos outros; Franco matou [Federico] García Lorca. Pinochet desejou mas temeu matar [Pablo] Neruda; Nixon desejou mas temeu matar [Allen] Ginsberg. No Brasil, a Ditadura quase matou [Alex] Polari, mas ele também tentou matá-la, ele por isso duas vezes poeta. Veredito da história? Uma cultura que mata seus poetas está em vias de suicidar-se. O assassinato de um poeta é como um involuntário pedido de socorro.

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Retorno ao morro do Areal Éramos eu e Flávio Aos dez anos apagando Incêndios nas matas A mata que era nossa, miseráveis Joões-sem-terra, néscios sabíamos De certeza atávica Que era a nós mesmos que salvávamos Os meninos-preás Sufocamentos, contato Inocente/homérico Com o terror e sua turbidez Pés queimados por pepitas de fogo, 14


Brasa. Faces enrubescidas A chance de morrer era tão grande E nossas mães uma tão tanta distância Ensurdecidos de sede - Onde estavam os homens, que isso era trabalho deles! – Éramos o moreno Juba e o doirado Lula, A Armação Ilimitada, e os G. I. Joe’s, Transformers E Thundercats – éramos deuses imortais Sami Maluco e Flávio Sarará, Frágeis como bonequinhos Playmobil Emissários sem patente do Doador de Eternidade. Aos dez anos (é possível ter apenas dez anos?!) Estávamos homens, Desavisadamente. De dentro das chamas, aquela morte bailarina, Nem havia quem dissesse: “Vocês não podem”. **

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Juliane Mena Tôrres Juliane Mena Tôrres, natural de Belo Horizonte, é psicóloga, psicanalista e autora do livro Concavidades, pela editora Viseu, com previsão de lançamento para maio de 2022. **

Depois do fim dos tempos Sentei-me ao canto esquerdo cinza da sala quase vazia e fiquei a observar: em todos os entardeceres ela ia a enamorar-se das nostalgias de cores e aromas. Uma a uma, se demorava nas copiosas fotografias – feitas de ranhuras e amassados, gastas pelo tempo delgado. Seus olhos, ao tocar as lembranças, abraçavam as bordas dos cílios ralos e, quase cerrados, diziam de uma saudade desmedida. Até a sua respiração desenhava em ritmo saudoso, como quem cheirava lírios e damas-da-noite, e repousava sob a sombra de um abacateiro. Lenta e intensa, como seus batimentos cardíacos. Seu toque era tão macio que parecia refletir alguém a cuidar do peso dos dedos esguios para não deformar a boa memória. E assim como as veias do seu corpo lívido, os retratos iam também esvaecendo com o circular do relógio. Contenta! Seu quintal só pertence ao tempo, eu disse à senhora a fim de provocar-lhe afetos factuais. Com olhar terno e voz de carícia perguntou: Quando é que foi diferente? e logo em seguida disse que vivia e morria em cada uma das fotografias, todos os dias ao fim dos dias, e que nada lhe parecia tão real e infinito quanto aquilo. Aconselhou-me ao lembrar: Eu, assim como você e o jardim, também só pertencemos ao tempo, nada mais, e logo dispersou a palavra com um esotérico suspiro de pajé.

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Arnaldo Chagas Arnaldo Chagas é escritor, psicólogo, psicanalista e sociólogo. Me. em Psicologia Social e Dr. em Ciências da Comunicação. Foi prof. Universitário por 20 anos. Tem 6 livros publicados (livro de contos para ser lançado. Um romance em andamento). Diversas publicações em jornais e revistas. Produziu, dirigiu o documentário: “Desconhecidos”. Mais 2 contos e 6 nano contos selecionados em concursos e publicados em livros. Dois contos em “Coletânea de contos. Seis contos minimalistas publicados em “Coletâneas”. ** Ando preocupado com meu gato cinza, ele sente muita preguiça, dorme muito, anda prostrado sobre um banco, isso tanto durante o dia quanto durante a noite. Vi meu gato em cima da cama tapado com lençol e só com a cabeça de fora, mais parecia um bêbado ressecado. Pensei: só pode estar hipotenso. Dei-lhe um copo de cappuccino forte... “Ele chamava para si cafuné de seu dono...”

Mico meu Quando criança, tive um gato que se chamava Mico. Ele ficou famoso no bairro. Os amigos faziam piadinhas em por conta do nome dele: mico teu, mico meu, o teu mico vai fazer tu pagar mico, o micuzinho é mais cuzinho do que mico, teu mico é um mico empresário, a religião do mico é gatólica, vou fazer um gato da Net com teu mico. Vamo combiná! Uns chatos! Não humanizo bichos, eles lá e nós “a cá”, mas vou te passar a visão malandro, meu Mico era um felino medonho, sujeito de muita “gatiguria”, só faltava falar. Folgado era ele, de vez em quando sumia pelas madrugadas para vadiar, cair na gandaia. Pura boemia. Ouvia suas algazarras pelos telhados e quintais dos vizinhos. Mais parecia um jornaleiro: jorrnaaauu! Jorrnaaauuu! Ouvi dizer que esse é o som romântico dos gatos. Mico não dava mole, por isso não deixava ninguém dormir direito com suas ladainhas junto da gataria. Não tardou muito e passou um perrengue danado, levou uma surra do Sultão, o cachorro do vizinho. Eu já tinha avisado: bota fé meu irmão! Esse barato de vender jornal às três da manhã não vai terminar bem. Deu ruim, tava se achando! Te falei! Mas a surra só surtiu efeito naquela noite. Na outra, os gatos estavam todos novamente namorando a Joana (nome que atribuí à gata fogosa que atraía os amantes). Descobri depois de adulto, com Túlio, amigo veterinário, que tudo começa quando a gata entra no cio. Para aliciar os gatos, ela emite um miado característico que chama a atenção deles. Caraca meu! A mim pouco importava quem dava início à sacanagem, afinal, era a vida do meu Mico que estava em jogo. Era isso que importava. Gostava tanto do bichano que implorei para meus pais não mandarem cortar as bolas do Mico. Deu no que deu! 17


Naquela altura do campeonato, certamente as bolas do Mico corriam perigo, e pouco eu podia fazer para evitar o estrago, tamanho era o ódio dos vizinhos. Meu pai enfurecido volta e meia dizia: “Vou cortar o saco desse desgraçado”. Eu pedia arrego, na moral: “Faz isso não papai, qual é! Tu é ruim, hein!”. Ficava só no papo, na vontade. Eu pensava comigo: Será que se castrarem o Mico ele vira um gato gay? Coisa de guri. Na verdade, Túlio me disse que a gritaria dos gatos, nesses casos, só tende a crescer. A gata grita e os gatos machos respondem com sons cada vez mais alto, se concentrando em torno dela. Daí travam um duelo seguido de briga. É uma gritaria só! Caraca velho! Fala sério! Devido ao burburinho, eu sempre achei que quem ganhava a felina, ganhava no grito, aliás, por isso mesmo me dei mal certa vez. Desde criança era muito imaginativo. Vivia criando teorias pra tudo, tá ligado? Nesse caso, imaginei que as gatas deveriam ter problemas de audição, ou era mesmo o poder do grito que as afetava. Pensando nessa última hipótese, procurei testar minha tese. A Ana era a mina mais filézinha do beco, nós moleques, que mal tínhamos pentelhos, competíamos para conquistá-la. Todos os dias brincávamos em grupo de amigos: de pega-pega, pula-pula, esconde-esconde e pula corda. Assim, no meio das brincadeiras, de vez em quando eu soltava um berro: ANAAAAA...! TO AQUIIIII!... ANAAAAA...! Surtiu efeito contrário. Foi mal, deu ruim! Ana ficou impressionadíssima, estava sem entender aquilo tudo e se afastava cada vez mais mim. Meus camaradas tiravam onda com a minha cara, choravam de tanto rir. Na sequência, viram que a coisa não estava pra brincadeira e começaram a achar que eu estava pirando de verdade. “Tá doido meurmão! Deixa quieto!”. Os compadres até pensaram em me oferecer um cachimbo da paz pra ver se eu me acalmava. Voltando à gritaria dos gatos, o troço realmente era insano. Incomodava por demais. Todas as noites a balburdia infernizava meu pai e os vizinhos. Todos estavam de cara com o Mico. A adrenalina da gaiatada à mil e a suruba correndo frouxo, queria que vocês vissem! Era o maior barato! Eles todos doidão, estavam nem aí pra os humanos. Eu vendo tudo da janela do meu quarto, tirava onda: “Seu Mico fedorento, vai te aquietar maluco, tu tá se achando!”. No outro dia, zonzo da zuera, o malandro dormia o dia todo”. Era uma festa. O Mico gritava, “jorrnaaauu!”, Joana respondia: “nãooouun”. A gata gritava: “saaaiiiiiii!”, o lindão respondia: “nãooouun”. Mico gritava, “dez reááuuus”, a gata, “nããoooon”. O Mico: “vinte reááuuus”, a gata, “nãããooounn”. De repente, a gata saltou na frente no Mico e gritou: “milreaaaullss!” e o Mico imediatamente respondia: “nããooounn”. Os gritos mais pareciam um bebê chorando. Eu da janela do meu quarto, só no bico, via, ouvia e curtia tudo. Era o maior barato aquele namoro bombando. Era agressivo, doido, tipo sadomasoquista. Uma combinação de prazer e dor. Véio! Na real, ficava de cara com aquela doidera toda. O troço é porrete! Gatos são foda, meu! De repente, depois de uma noite de boemia, o Mico não voltou mais pra casa. As noites silenciaram. Passaram-se dois, três dias e nada. Eu andava jururu, gostava muito do meu gatinho. Começava a sentir sua ausência. Achei que a cachorrada da rua ou os vizinhos poderiam tê-lo assassinado. Mas, acreditem, no quarto dia, depois de desaparecido, cedo da manhã, ao abrir a porta da frente da casa, avistei um ser irreconhecível saindo de um bueiro e vindo em minha direção. Era o Mico! O molambento estava irreconhecível. Estava todo lanchado, um legítimo desvalido: magricelo, os olhos cobertos de remela, uma orelha rasgada e o lombo todo ferido. Pobre miserável, estava todo esfarrapado. Dava dó só de olhar. 18


Mancando, se aproximou de mim e tentou erguer a cabeça para me ver. Juro que só vi que era um gato porque miou. Na hora percebi que o bichinho estava tomado de profunda angústia e sentimento de desvalia. Por falta de aviso que não foi! A situação era trágica e cômica ao mesmo tempo. A criatura, naquele estado deplorável, tentava com muito esforço me enxergar e se comunicar comigo: miaááuuuu, miaááuuuu, miaááuuuu. Não consegui segurar o deboche. Confesso que caçoei dele: - Mas, ah, Mico velho boêmio de guerra. Não tá morto quem peleia tchê! Levanta essa cabeça, putero véio! Na hora me veio em mente a música do Adelino Moreira, “A volta do boêmio”, aliás, canção que fez muito sucesso na década de 60 e 70. Até lembro que cantarolei um pouco em homenagem ao pobre desmilinguido: boemia aqui me tens de regresso e suplicando te peço, a minha nova inscrição... (riso). Alheio ao meu espanto e à minha homenagem musical, o Mico se aproximou ainda mais de mim. Parei com a brincadeira na hora, percebi que a coisa era séria, que a situação era caótica. Andava devagar, rengueando, havia suspeita de fratura, pelo menos em uma das patas. Olhando de perfil, mais parecia uma raposa velha do que um gato. Soltava miados anêmicos, dava ares de quem pedia socorro. Era um gemido de dor misturado com tristeza. Os lamentos não paravam: miaááuuuu, miaááuuuu. A situação lastimável do Mico me tocou fundo o coração. Não sabia nem como agarrá-lo, daí com o maior cuidado peguei ele no colo e o enrolei numa toalha, levei ao banheiro, fechei a porta e lasquei-lhe um banho morno. Sinceramente, achei que ele estava em estágio final, pois jamais admitiria banho sem reclamar e tacar as unhas, e nesse dia aceitou sem contestações. Molhado, o esqueleto ficou à mostra, parecia um zumbi. Segurei ele no colo mais uma vez e o enxuguei. Depois o enrolei num pano e o coloquei num dos cantos do sofá da sala. Aplaquei sua fome com leite quente. Acabou bebendo mesmo contrariado para não me fazer desfeita e caiu no sono. Dormiu o dia todo e durante toda a noite. Eu é que não consegui dormir direito pensando o que faria com ele no dia seguinte. O correto seria levá-lo ao veterinário, eu sei, mas antes, eu teria que enfrentar meus pais. Eles jamais aceitaram bem a estadia de Mico lá na baía, depois de tudo que vinha aprontando. Decidi não contar nada sobre o ocorrido. Levantei durante a noite por três vezes pra ver o Mico, ele estava lá, quietinho como deixei, firme e fraco. Deveria estar devorado pelo sono, afinal, três noites na boemia, sem dormir e fazendo fuzarca, não é brincadeira não! Tão logo amanheceu, fui ver o Mico novamente e levei um susto. Chamei ele umas três vezes, mexi em seu corpo, passei a mão em sua cabeça, mas ele não respondia de jeito nenhum. Estava durinho, mortinho da silva. Admito que fiquei arrasado. Doeu fundo em mim, cortou meu coração. Segurei o Miquinho em meu colo, trouxe ele junto ao meu peito, passei a mão por todo seu corpinho magro e o chamei pelo nome mais uma vez. Não conseguia acreditar que ele fechou os olhos para sempre. Engoli seco e chorei em silêncio. Dói muito ver um bichinho de estimação sem vida. Percebi tamanho amor que eu sentia pelo Mico. Minha vida era feliz com ele, apesar das travessuras, teimosias e algazarras que fazia nas madrugadas. Sabia que ia sentir muita saudade do Mico, mas precisava enfrentar aquela dura realidade. Em suma, dizem que gato tem sete vidas. Ora, se for assim, quem sabe o Mico teria perdido seis delas antes de vir pra casa? Na noite derradeira, teria então completado seu ciclo. Será que foi 19


por essa razão que o Mico voltou pra casa? Bem, quanto a isso ninguém pode saber ao certo, o que posso dizer é que o Mico, apesar de sua existência curta, viveu intensamente e gozou a vida ao máximo. Mas depois de tudo que aconteceu, me interrogo: Será que não teria sido melhor então, que o Mico tivesse perdido as bolas do que a vida? **

Macheza constrangida Sensibilidade e delicadeza até hoje me perturbam. Nos anos 70, eu era ainda uma criança mirradinha, quando cometi um deslize que enfureceu papai. Carrancudo, explodiu: “tu és um frouxo moleque! Quando vai ser um homem de verdade?”. Essa cena ficou cravada na minha memória. Papai era taludo, eu miúdo. Ele era aguerrido e implacável, eu manso e sensível. “Candinho”, meu nome, me reduzia ainda mais. Tinha desejo de crescer logo para ser que nem ele: forte, seguro de si, aguerrido. Queria ser militar destemido e caçador de javali, igualzinho meu pai. Caçar todas sextas-feiras com os amigos era vício dele. Nossa família, aos domingos, seguidamente se deliciava comendo churrasco da carne desse porco selvagem. Papai era coronel do exército, nas caçadas usava roupa camuflada, chapéu de caçador e tinha coleção de armas de caça. Tudo aquilo me encantava. Num domingo pela manhã, até que enfim, eu e dois amiguinhos fomos autorizados e, pela primeira vez, saímos para caçar. Os estilingues foram feitos por papai. Ele, caçoando, nos motivava: “vou esperar a caça para o almoço gurizada, não me venham de mãos abanando!”. Parecia mentira, mas eu estava indo para minha primeira caçada. Seguia eu todo faceiro, esboçando largo sorriso de realização; na mão, levava o bodoque e a tiracolo, uma mini bolsa feita de Jeans, cheia de munição: bolinha de gude. Ao avistar uma pitangueira há uns cinco metros a minha frente, percebi que ela estava repleta de passarinhos barulhentos: “psiü! esperem aqui”, cochichei com meus amiguinhos. Com o máximo de silêncio, pé por pé, fui me aproximando da árvore, até que consegui ficar em baixo de sua copa. “Vai ser fichinha”, pensei. Encontrei a melhor posição. A experiência estava sendo extraordinária, nunca antes tinha estado tão próximo de um bando de passarinhos. “É hoje!” Na posição adequada, levantei devagar o bodoque em direção ao bando, a fim de não espantá-los, estiquei vagarosamente as borrachas o mais que pude, ao lado do rosto, fiz mira e arremessei com todas as minhas forças a munição. Não deu outra, o bando voou na hora, mas um deles foi atingindo e caiu: “olha só, acertei um! Acertei um! Venham ver!”. Ao pegar o passarinho do chão, percebi que tinha acertado na cabeça. Ele sangrava. Um olho aberto, o outro vazado, porém, o bichinho ainda respirava, ofegante, abria e fechava o biquinho. Ele perdia as forças..., eu também. Naquele instante, eu que fui atingido, de súbito, um intenso sentimento de angústia, remorso e pesar, me abateu. Era eu quem morria. Meus amiguinhos pegaram o passarinho da minha mão, agora já não respirava mais: “deixa eu ver”! deixa eu ver!”. Foi dose: eles curiosos e felizes, eu triste e abatido. Aquilo foi humilhante, cheguei em casa chorando, literalmente arrasado. Me senti um carrasco, um assassino frio, cruel e asqueroso. Foi um dos dias mais 20


sombrios de minha infância, de todo modo, camuflei a dor da culpa, mesclada com uma espécie de vergonha, que me tomou conta por muito tempo. Dissimulei o que pude minha sensibilidade e comiseração, tudo isso para manter a macheza e não zombarem de mim. Afinal, meu maior desejo era ser que nem papai: forte, possante, corajoso, não um frouxo. **

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Denise Veras Em tenra idade apaixonou-se pelas letras, chegando a escrever um livro infantil quando contava apenas 7 anos. De lá para cá não parou mais de escrever. Escreveu poemas, contos, crônicas, aforismos… Em 2008 deu início a um blog intitulado Tertulia Piauhy, seguido de um fanzine com o mesmo nome. Com uma ou outra publicação em sites e jornais, além de uma enorme teimosia, ela continua andando e escrevendo. **

História de minhas lembranças “Meu anjo, meu tudo, minha alma gêmea... por mais que você me ame eu te amo ainda mais, minha amada imortal”. Assim começa a história de minhas lembranças. Também as tenho, assim como você. Foi à noite. Estava sem sono e preferi levantar e procurar algo que pudesse me distrair até conseguir adormecer. Talvez seja interessante ressaltar que a frase acima está entre aspas porque, obviamente, trata-se de uma citação. É o trecho de uma das muitas cartas de amor escritas por um dos gênios da música clássica, Ludwig Van Beethoven, à mulher que foi seu grande amor, Johanna Beethoven, esposa de seu irmão e mãe de seu único filho. É possível sentir que nossas memórias estão entrelaçadas a casos passados de pessoas alheias à nossa própria existência? Sim. Naquela madrugada descobri isso. Levantei sem sono e fui à cozinha. Enquanto bebia água observava os móveis, a disposição das cadeiras, a bagunça nas estantes empoeiradas e quebradas. Nossa, como eu era capaz de gastar tanto dinheiro em livros e não comprar uma estante nova? Aquela ainda serviria para sustentar minha compulsão descontrolada de comprar livros usados. Sim, manuseados. Livros novos não tem amor, eles vêm lacrados da loja ou livraria, chegam às nossas mãos sem paixão. Ninguém nunca os folheou antes, ninguém nunca sofreu ou amou abrindo suas páginas. Absolutamente nada nas folhas brancas, intactas, ompletamente limpas, tão higiênicas que não há sequer possibilidade de acreditar que, um dia, alguém poderá adoecer ao folhear páginas gastas e emboloradas. Livros novos não têm dor ou sorrisos, queixas ou lágrimas, nem bons momentos a ser compartilhados. Por isso só comprava livros usados, desde a escola. Eu dizia: Pai, compra meus livros no sebo! Ah, como era bom estudar ciências imaginando que alguém aprendera da mesma forma que eu! Ali estava eu, de camisola preta, cabelos desgrenhados, copo de água ainda pela metade e olhar perdido naquela estante velha repleta de novos livros velhos. Adorava olhar para eles e sentir o pulsar dos momentos de suas aquisições. Lembro de cada um deles, um por um. O Rubem Fonseca que comprei pelo título, título esse que sempre achei belíssimo: “Vastas emoções, pensamentos imperfeitos”. Só não é mais belo que os “Cem anos de solidão” que comprei novo porque, infelizmente nunca consegui encontrá-lo usado. Permaneci ali minutos a fio, olhando e lembrando, lembrando e pensando, pensando e sonhando. Sempre amei aquela estante e um dos meus sonhos juvenis era vê-la repleta de todos os livros que já li, cada um deles, até mesmo os que não lembro mais. 22


A água finalmente acabou. No último gole apaguei a luz e volvi à sala. Liguei a TV. Os jornais da meia noite já haviam terminado, a bela Ana Paula Padrão não me informava as notícias do dia, já tinha ido embora. No lugar dela o que invadia a tela era uma sinistra marcha fúnebre, com uma voz ao fundo recitando My immortal belloved. Era esse o título do filme. Aquilo me prendeu, capturou minha atenção como os olhos de uma criança hipnotizada pelo brinquedo na vitrina. Uma marcha fúnebre do século XIX quase sem choro, acompanhada pelo recital de uma triste carta de amor, um amor mal resolvido, mal-entendido, que existiu sem existir. Daqueles que amarguram depois do fim. De mel à fel. Tive vontade de amar assim desde aquela noite. Então comecei a imaginar como seria estar apaixonada, verdadeiramente apaixonada, escrevendo cartas de amor e fazendo promessas que eu saberia não poder cumprir. Cinicamente apaixonada. Contava 16 anos na noite em que começaram minhas lembranças. Antes disso apenas lapsos de coisas passadas. Minha infância fica em outra parte da memória, uma parte que prefiro explorar depois. As emotivas começaram nessa noite. For Elise embala-me o desvario dramático dos acontecimentos de Beethoven e os não acontecimentos não vividos por mim. Ouvir essa sinfonia me faz lembrar de coisas que nunca aconteceram, mas que para mim são tão nítidas que chegam a ser reais. **

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Arlindo Kamimura Nasceu em Promissão, SP, em 1947. Formou-se em Física (USP) com mestrado em Física Teórica (USP) e doutorado em Planejamento (Unicamp). Foi Professor Assistente na USP de 1970 a 1979 e Especialista na CESP de 1978 a 2000, quando se aposentou. De 2000 até o momento é consultor no Instituto de Energia da USP. Tem 02 contos selecionados no Concurso Literário da CESP (1995) e 1997) e um conto publicado na Folha de São Paulo (2021). **

Pai, afasta de mim esse cálice Este relato não é uma ficção. Sou nissei - descendente em primeira geração no Brasil de imigrantes japoneses. Meus pais chegaram ao Brasil no navio Santos Maru, que atracou no porto de Santos em dezembro de 1934. Meu pai trouxe em sua bagagem, além de muita esperança e de todos os seus pertences pessoais, um consultório dentário completo para a época, com o qual pretendia ganhar o sustento da família. Após sua chegada dirigiu-se a um aglomerado de famílias japonesas situado no bairro denominado Gonzaga, no município de Promissão, Estado de São Paulo, a convite de um amigo, grande produtor agrícola - o senhor Watanabe, que lhe facilitou sua acomodação e a instalação do gabinete dentário. Ao contrário da intenção dominante entre a maioria dos imigrantes japoneses, que era a de retornar ao Japão após acumular um determinado patrimônio, meu pai (nascido em 1900), que no ano da chegada contava 34 anos, jamais pensou em retornar ao seu país de origem, fato que me intrigava sobremaneira. Um indício disso foi a escolha de nomes ocidentais para todos os cinco filhos, nascidos a partir do ano seguinte em que chegou ao Brasil e quando eu e meus irmãos oferecemos em 1974 uma viagem ao Japão para ele e minha mãe, ele discretamente declinou a oferta, recusando-se a citar o motivo. Apesar de sua formação budista/xintoísta seu hobby preferido era travar longas discussões filosóficas e religiosas com o padre Agostinho, um sacerdote jesuíta de origem alemã fluente em japonês. Convivi no seio familiar até completar o segundo grau em Promissão e aos dezessete anos vim para a cidade de São Paulo cursar o ensino superior. Tenho ternas e saudosas lembranças das conversas com ele mantidas sempre enfatizado pelo aspecto estóico de sua personalidade e sua predileção por temas regidos pela Natureza. Lembro-me perfeitamente da primeira vez que ouvi falar na teoria da deriva continental de Alfred Wegener em um entardecer banhado de lusco-fusco ao som de ruidosos grilos. Foi também numa dessas tardes, quando eu tinha dez anos, que ele me explicou o que era uma cadeia alimentar e como a natureza funcionava através das interações entre sistemas vivos e inanimados. Possuía um senso artístico apurado, principalmente no tocante às formas e elementos naturais. A casa vivia abarrotada de troncos e fragmentos de árvores, recolhidos por motivos estéticos, muito antes de Frans Krajcberg começar a utilizar essa matéria prima em suas obras em 1972. Outro tema recorrente era sua inabalável determinação em pregar a via pacífica para resolução de conflitos e condenar incessantemente as guerras e suas nefastas consequências. Dada essas características de sua personalidade era constantemente chamado para aconselhar e resolver pendências e desavenças na colônia japonesa, bem como para desempenhar o ritual casamenteiro 24


do miai. Entretanto, sua vida particular no Japão permanecia um mistério para nós, seus filhos. Por mais que tentasse perguntar sobre fatos pessoais, pouco ou nada conseguia descobrir o enredo de sua história no Japão, a não ser fatos que servissem para reforçar alguma tese em que estivesse querendo demonstrar ou enfatizar. Dessa forma, por exemplo, contou-me que ao completar 18 anos foi servir, como recruta durante 2 anos, em Vladivostok, na Sibéria, quando o Japão apoiou a Tríplice Entente (aliança entre Reino Unido, França e Rússia Imperial), enviando tropas em apoio às forças russas do Exército branco contra o Exército vermelho. Eu me lembro, quando criança, dele contando o quanto sofreu e que fazia tanto frio no inverno siberiano, que qualquer metal em contato com a pele provocava sérias queimaduras. Talvez seja dessa época, o início e a explicação da origem do seu forte viés pacifista e anti-militarista. Para se ter uma ideia do zelo com que protegia e guardava sua vida pessoal passada no Japão, somente em 1980 descobri que eu possuía um irmão, fruto do primeiro casamento desfeito poucos anos após seu retorno da Sibéria. Acredito que antes de 1934, percebendo a crescente política expansionista do Japão e com seu treinamento militar na Sibéria teria pouquíssima chance de se esquivar de uma incursão militar aos países vizinhos. Assim, aproveitando a oportunidade de emigrar, decidiu vir para o Brasil. Meu pai morreu em 1990, aos 90 anos. Ao final da vida, acometido pelo Alzheimer, sua recorrente sandice era uma insistente teimosia em “retornar à sua casa”, justificativa que ele usava ao ser encontrado perdido pelas ruas, após fugir inúmeras vezes. Em um desses episódios ele foi atropelado sem ser socorrido e acabou falecendo por complicações devido ao acidente. Estive em Tóquio financiado pela FAPESP, para apresentar um trabalho no Econophysics Colloquium 2006, realizado no Christian University. Como qualquer pessoa que vive no ocidente fiquei impressionado com o comportamento discreto, educado e muito civilizado da população. Entretanto no Japão, nem tudo são flores, o machismo é uma característica reinante na maioria das pessoas, por exemplo, quando minha esposa se dirigia a alguém para perguntar algo, a resposta era dirigida a mim, ignorando a autora da pergunta, como se ela fosse invisível. Outro costume observado foi que as pessoas procuram evitar o contato visual, quando cruzam com alguém na rua. Esse hábito, foi-me explicado depois, como sendo um recurso de preservação da individualidade uma vez que após feito o contato começa a existir uma relação de compromisso e responsabilidade entre os indivíduos. Somente em caso de necessidade esse contato é efetivado, o que aconteceu, por exemplo, quando perguntei a um policial, onde se localizava a estação do trem bala para embarcar para Itoshiro, cidade natal de meu pai. Ele não apenas me explicou o local, como fez questão de me levar, por aproximadamente duzentos metros, ao guichê da companhia e completar o pedido ao bilheteiro. Após a apresentação do trabalho aproveitei, então, para visitar parentes do meu pai na citada Itoshiro, situada a 300 km de Tóquio, local onde ainda vivem meus primos e tentar descobrir a narrativa que esclarecesse e minimizasse a natural curiosidade que me martirizava desde a infância e explicasse um pouco aquela névoa de mistério que envolvia a vida dele no Japão. Essa aldeia fica ao sopé de uma montanha considerada sagrada no Japão e é local de peregrinação por seguidores do xintoísmo. A comunicação com meus primos foi feita basicamente em inglês (péssimo, por parte deles) e japonês (péssimo pelo meu lado), apesar disso consegui algumas informações sobre meu pai, que para dizer o mínimo, me deixaram perplexo. A origem da família é muito antiga, pertencendo ao clã Tachibana, datando os primeiros registros do ano de 700 AD, cujo emblema (flôr de laranjeira selvagem) eu fotografei no mausoléu da família. O consultório dentário dele em Tóquio, se chamava Flor de Laranjeira (possuo ainda o 25


cartão de visitas). Meu avô, pai do meu pai, era uma pessoa muito rígida, conservadora e extremamente zelosa de suas origens e não se conformava com a ideia de seu filho de “fugir” do Japão no momento em que, segundo acreditava, sua pátria mais dele iria necessitar. Como não conseguiu convencer meu pai com argumentos, que para ele eram a razão de sua existência, impôs a ele uma condição: a de renunciar ao seu ancestral nome UEMURA e de nunca mais retornar ao Japão. Foi então que o meu pai mudou o seu sobrenome para KAMIMURA. Nesse momento, veio-me à lembrança a letra da música do Chico Buarque, que achei pertinente nomear este relato e que remete à universalidade dos sentimentos humanos, não importando a cultura, o espaço e o tempo. Posso imaginar o dilema e a dúvida que o obrigaria a uma decisão que afetaria seu futuro pelo resto de sua vida e a de seus filhos se porventura os tivesse. Sua aparente e suposta “deslealdade” com o Japão resultou em 41 descendentes, dentre os quais felizmente me incluo: 5 filhos, 21 netos e 15 bisnetos, todos com o sobrenome, KAMIMURA. **

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Júlia Mascaro Alvim Foi aluna da Escola de Aplicação da F.E.U.S.P., onde adquiriu gosto por literatura e ingressou no teatro. Atuou profissionalmente como atriz e cantora na cidade e também se desenvolveu em música. O contato com a música a fez ingressar em sua criação literária através das composições criadas. Lançou seu primeiro livro de poesias, “A Voz do pensamento”, e logo começou a escrever contos e romances. Publicou o romance “Vento das Pedras”, a história “Cecília Que Sabia Voar”, a comédia “As Dramas” e novelas contidas em “Quase num Domingo”. Já publicou em várias revistas digitais, blogs literários, antologias e já ganhou prêmio literário de poesia. **

Dulce, aquela… Vivo enrolada num cesto a sondar Aspergindo veneno enquanto mordo Sou uma serpente sem complementos Igual à vegetação. A vida barroca é minha indumentária Sibilo e danço o deserto sonoro Visito duas aranhas vermelhas Há uma rama folhagem vermelha Medo? De viagem... Azul... É a escrita... Faço um balaio de penas Quero ouvir o som da trompa... Da tuba... Rastejando alcanço seus olhos a lhe dizer... Já deixei a pele de serpente... A transformação exige algo a mais de mim... Vivo em flashbacks... Igual à memória de uma vida inconsciente... Devaneio em bistrôs, e boates A esfarelar o tempo... A aura repete as palavras reconhecendo revelações... Apaixono-me perdidamente... Não existe refúgio... Leio amores incestuosos Liquefeita, maldita Salvarei vidas... Não abandonarei a paz... Páginas arrancadas não impedem meu sucesso... A ação persiste, há cortes pertinentes A fotografia emoldura a dimensão... 27


Organizamos uma festa... Vocês são os convidados Arrastamos um tesouro até o palco Espalhamos pedras preciosas pelo ambiente... Discorremos desejando vocês... Abro o vidro de perfume cigano para batizá-los Boa festa Desfrutem a alegria Podem entrar... **

Desenhos animados Piuí, piuá, piuí, piuá, Juvenal Violino viajando vai cantar a intenção de reatar, rever sua musa do mar. Trem, ação, aviação, carango, maria-fumaça. A trança, trança jovial, Anita seu amor carnal. Todo o ardor a atormentar a propriedade de lembrar, apropriando a tela salva ao estilo de lamentar. A alma calma timbrando o instrumento que ele próprio faz. Assim tira a ilustre capa estribilhando o violão. Anita bonita, recalcada, põe justa combinação. Bota um salto e seu casaco, entra no carro e vai pra lá. Ele vem se aproximando para ela encontrar. Não em vão estão recitando a pura sorte de chegar à já marcada referência, corte planejada a arejar. Anita musa, linda em cena, arrumada e atemporal num movimento afinado já chegado a ser quadrado, esfera do ato de esperar o seu homem literato. Exigido em legítima clave a tocar. Seu penteado esculturado, gargalhado a despentear... Ela sim já sabe o fato, não tem medo de enfrentar. Arrumando seu cabelo, esperado, serpenteado. Seu homem lobisomem encarnado a lhe olhar... E Anita vai perseguida por seu homem Juvenal. Violino arrependido, lobisomem sensual... Parado num, por favor, de ser homem lobisomem transformado em ideal. De Anita presa tátil, encantada no quintal. Quer agir como arapuca do Juvenal, bom, terno e tal. Relacionados mais que adultos ambos estão feitos sal. Eróticos jogos a brincar em uma banheira. Heroicos num balde a sonhar... Debalde a casa velha assombrada ao luar, uivo dado à revelia, brinde mais particular. Reencenado num segredo, fato ambíguo de amar. Que não contam nem ao padre das suas vidas incomuns. Excomungados sociáveis. Consequência virtual. Piá bela, batizada, sem o susto, pois sua reza é clerical. Sabe de fato o labirinto, e segue a estrada armorial. Cruza o arco da distância, igreja cruz da dimensão. Tudo estranho e desviado, oratório de irmãos. Ladeando pieguices de um santo Juvenal. E Anita o sim dessa palavra, já tocada a se livrar do enraivecer, porque é mulher bem sabida e sabe rir em suas falas… Árduos belos que passeiam nesse parque diversão. Aceso em néons. Gritos. Montanhas de sustos, peroladas de brincar. Cuidando dos russos gritos, que fugidios seres dão ao ar. Assustando em esconderijos dessa arca de Noé. Fantasmas afogados no mar de outra maré. Ai meu deus que susto grande, certo dia de luar. Que medo de meu deus, meu deus... Ainda giram no chapéu “mexicanoir”. 28


Evaporando em brinquedos, cavalgados carrosséis. Personagens cavaleiros, que cavalgam, e cavalgam à terra da fumaça. Lugar ermo da enigmática flor. Flor de cinco vis cabeças brilha fogo, espelho e sangue. Transe, estrela cadente, escorre fé num tobogã de explicações. São desenhos animados, sonhos maldeitados, sonos, sanguessugas, vampiros da imagem. Anã, íris, virada e curta. Cine-sangue repartido, emocionado pesadelo maldito parido feito leite. Uivo no ocaso crepuscular… Transformação irreal formada pelo medo. Sangue doce dessa crença, imagem sensacional. Real sangue do fato, olfato fátuo da descrença, parapsicológica ao formato da imensidão do ar. Luar de Anita no momento em que cala em seu suplício. Ele, assim, está sorrindo. Só chegará se educado, pois é doce o tormento. Informado, está tudo quebrado. Nada ficou além do rádio, e a imagem da estrada da praia. Horizonte escravo vai e vem no carrinho do parque a ter e voltar… E tece a escuridão, encanto do que houve. O susto dum vampiro. Boneco feito néctar. Figura. Assassinato no parque. Os alhos das ideias. Cores de viver, a estória exata pra contar. Desfazendo pegadas, porque diz, sou feliz. Amo Juvenal, e sou Anita, grávida no mar. Ouça, ainda vai dizer, pois se finge de coitada, sorrindo por fugir do lobisomem sensual. Sou como um caranguejo na praia, prata daqui. Bala pronta, prata agulha, nunca mais eu vou fugir. Dormindo, sou igreja crescida. Também cabelo e mulher. E roupa bem passada. Janta ecortada. Também já sou cansada. Ele é gravata, terno e também o mar. Ele é o meu mal necessário, que come o jantar... O mal é necessário, e deito a corar. Eu o coro de vermelho, no espelho desse lar... Então estou aqui, a titubear… **

A boneca e o jornaleiro Silêncio... “no ar”! Um ser, que suspeita. A despeito do sangue. Guardado, o enredo. Súbito, subterrâneo. Pedras emparedadas, galerias descidas; em sua lembrança de dar gravidade aos recônditos pontos de vista. Sufrágios cardeais. Atracado a sua vítima, em vestes sangradas, mais roto vestido, arrastado, estratificado... Temida atitude, coral de fiéis que corre e decorre o submundo metrô. Monumento passageiro. E vai distante o passante, rebolando e assistido num andar bem passeado com seu par de tênis que acende e apaga. O metrô desconcertante. Praia humana de refluxos dos tênis que acendem, apagam… Suas antenas que conversam. Escuro túnel, travesti. “Por que suas mãos são sanguíneas?” É gentil, de fé no entanto dos entãos que convidam ao olhar. Mãos felinas e assistidas convidadas a jantar. Subindo uma escada estacada e muito estreita amoldando à espreita rela as linhas da linda mão. Nesse encontro cogitado, vigoroso, lambuzado junto ao gozo. Pista feita de beldade, destinada e trilhada. Riso escrito na passagem, caverna antenada. Os embaixos dos despachos já cruzados e juntados. Todas as linhas acendidas e apagadas. O túnel fruto dessa trama, a transa imã desse fluxo. Numa nave de dormir, sua banca de jornadas. Revistada em toda a parte, conectada a seu chip de gravar. A crônica do sonho recortado que o suspeito namorado, atracado com a boneca em seu ato, fica escrito no diacho por namorar o suspeitoso. 29


O recanto de dormir, sua banca decorada. Seresta na noitada, ponte-pênsil de amar. Armada bem em cima de uma vala, ponteada em seu lugar. Uma escada subterrânea. Rumo pardo e suspeito no olhar. Ser um ser subjugado pelo falso sangue de amar. A boneca, vida rubra, relembrada, mais cheia do acariciar. Bel velocidade, vitimada em justo véu, vermelho e tal. Vestido de ouro e rosa, interpretando uma lânguida voz espacial. Vassoura pendurada, dum jornaleiro aliançado. Gira a saia a bruxa louca, daqueles passos despachos; acendidos, apagados. Amanheceu folheando entregas, pura sorte como age, preconcebendo os azares corrompidos do metal. Nos jornais, folhetins do dia, sanguinários fatos qual o verbo “jorrar”. Dança de humanizar o daqui a pouco a corte a entregar. Política do caso, amor mais cinematográfico espreitado num encontro entre a boneca e o seu lindo jornaleiro… **

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Luísa Lima Luísa Lima tem 67 anos e vive atualmente em Santa Maria da Feira, Portugal. Sendo aposentada, iniciou a sua carreira de professora em 1975. A partir de 2017, participou em várias antologias de poesia e prosa no Brasil e em Portugal, publicou em edição de autor, em 2019, um livro de memórias, intitulado “ Tantos Anos Professora…” e, esporadicamente, escreve crónicas ou artigos de opinião num jornal local. **

Aos amigos distantes Quantas vezes me revi no orvalho dos teus olhos e quanta alegria vivemos naqueles instantes só nossos salpicados por gargalhadas. Era um bem querer na nossa fúria de viver. Nesse tempo sonhávamos com a lua e soltávamos pétalas de amor no regaço. Tenho saudades do teu abraço. **

Antiga primavera Na antiga Primavera em que os lírios do campo beijavam a brisa do vento suspiravam nenúfares nos regatos ouvindo palavras de amor. Na antiga Primavera em que as pétalas da flor de lis gotejavam perfumes nos riachos o mundo dormia numa doce melancolia e as flores libidinosas fecundavam ao entardecer sob o cântico dos pássaros. 31


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A primeira bebeira No dia em que cheguei a Caracas, conheci o meu pai e, nesse mesmo dia, no fim da tarde, apanhei uma valente bebedeira. Nada extraordinário, se eu não fosse uma criança com três anos de idade. Vamos ao início para entenderem como é que algo tão fora do comum pode acontecer. Estávamos nos anos cinquenta. Quando o navio Santa Maria se aproximou do cais em Caracas, os passageiros amontoaram-se no convés. O cais branquejava sob a iluminação pálida dos postes, emitindo sombras na enseada. Ao longe, quase na linha do horizonte, um morro colossal revestia-se de cascatas de bairros de lata que se foram colorindo, à medida que o sol estendia lentamente os seus braços quentes e preguiçosos. A minha mãe, a minha irmã e eu, ficámos deslumbradas com tanta gente no cais e, simultaneamente desconcertadas com aquele aglomerado longínquo de tendas cobertas por zinco, tão insólitas aos nossos olhos. Abro parêntesis para esclarecer que a minha irmã é mais velha do que eu, e o meu pai, quando decidiu emigrar para nos poder proporcionar melhores condições de vida, deixou-me na placenta da minha mãe, numa vilazita pacata do nosso cinzento Portugal. Mas como ia contando, a dada altura a minha irmã pulou de alegria e exclamou: - Já vi o pai! Está acolá, encostado àquele poste! Eu também reparei no dito poste. Na minha santa inocência, se a minha irmã estava a ver o nosso pai, eu também queria ser capaz de o reconhecer, por isso, respondi confusa e excitada: - Também estou a ver! É aquele senhor! - e apontei para um senhor alto e de ombros largos, do lado direito do poste. A minha mãe pôs as mãos na testa em forma de pala para não se deixar encadear pelo sol e eu pressenti-lhe um leve tremor na voz. - Sim, é o vosso pai. Alguns minutos depois, já no cais, ouvi a minha mãe dizer a um senhor baixote, muito magrinho: - Esta é a tua filha mais nova. Lamentavelmente, a minha irmã não se lembrou que um poste tem dois lados: o esquerdo e o direito. E não é que o meu pai estava do lado esquerdo e eu tinha olhado para o lado direito? Além disso, ao longe, quem se vê primeiro? O alto ou o baixinho? Deve ter sido o meu primeiro engano visual, mas não pretendo tecer considerações sobre o que um engano desta natureza pode vir a provocar na vida de uma criança, mesmo correndo o risco de pensarem que me embebedei com o desgosto de o meu pai não corresponder às expetativas do meu imaginário – um homem alto e espadaúdo com ar protetor. 32


Após a breve apresentação do meu pai (devo ter recebido um beijo, sem retribuir), entrámos num carro que andava aos solavancos. Desta longa viagem, ficaram-me na lembrança as pombas bravas que piavam melancolicamente por entre as palmeiras, que ora se erguiam imponentemente em direção ao céu muito azul ora se reclinavam ressequidas, bafejadas pela poeira da berma da estrada. Fiquei estupefacta, pois nunca tinha visto uma palmeira! Ao fim de muitas horas e de muitas curvas e contracurvas, Maracaibo emergiu lá muito ao fundo de uma baía prateada, tão larga e tão circular, que se assemelhava a um mar imenso, sem ondas, a repousar sob majestosas palmeiras que coroavam os declives das margens. Pensei que estava a ver o mar, mas o senhor magrinho que era meu pai explicou que se tratava de um lago tão extenso que não se vislumbravam as margens do outro lado. A nossa residência situava-se num lugar jamais imaginado – um morro adornado de palmeiras que abrigavam meia dúzia de habitações. Escondida por detrás de um muro muito alto, surgiu a nossa casa nova, caiada de branco. Quando o meu pai abriu o portão do jardim, nós mal conseguíamos acreditar no que víamos. Para quem vivera numa minúscula casita, fria e escura, em Portugal, aquela moradia enorme e pintada de fresco era um palácio! Porém, a surpresa verdadeiramente insólita aconteceu imediatamente a seguir. Mal transpusemos a porta da entrada, ouvimos uma aclamação de aplausos e risos de homens. Lá dentro, na sala, a circundar uma mesa muito comprida, aguardavam-nos uma trupe de amigos do meu pai, preparados para festejar o regresso da sua dama e das suas donzelas. Minha mãe quis sorrir ou dizer alguma coisa, mas a voz emudeceu-lhe na garganta. Apertou a mão de cada um dos convidados com ar respeitoso. Eram catorze homens. Findo o cumprimento do décimo catorze, ouvi a voz do senhor muito magrinho que era meu pai: - Vai ao frigorífico buscar cervejas para os meus amigos. Hoje é dia de festa! Minha mãe obedeceu e dirigiu-se à cozinha, apoiada na bengala. Volto a abrir parêntesis para explicar que a minha mãe havia feito uma cirurgia a uma perna, uns meses antes, e ainda tinha dificuldades de mobilidade. O calor sufocava e eu, habituada ao frio de Portugal, não aguentava a secura na garganta. Os ânimos dos convivas subiam de tom, a minha irmã escapulira-se para inspecionar o jardim, o senhor muito magrinho que era meu pai estava demasiado entusiasmado com os gracejos dos amigos, e a minha mãe andava num corrupio coxeante da sala para a cozinha e da cozinha para a sala. Não tive outra alternativa senão pedir ajuda. Dei a volta à mesa, puxando, à socapa, as pernas das calças daqueles senhores, alegres, simpáticos e bem dispostos. - Tenho sede – dizia eu muito baixinho. - Toma lá, minha linda menina, mas só um golinho! E foi assim que eu apaguei a sede com catorze golinhos de cerveja, bem fresquinha. Não tenho dúvidas de que a minha estreia na Venezuela foi pouco auspiciosa para o reencontro dos meus pais.

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Nessa noite, as segundas núpcias de minha mãe transformaram-se na preocupação com a minha súbita indisposição e a constatação de que o marido, entretido com as graçolas dos amigalhaços, não soubera vigiar a filha tão pequenina, acabada de conhecer, enquanto ela se afainava numa cozinha cujos cantos ainda não conhecia. As segundas núpcias do senhor muito magrinho que era meu pai foram boicotadas pela minha crise de vómitos, vendo-se obrigado a transportar-me ao colo numa correria doida para a casa de banho, ao longo da madrugada. Sorte a dele, que o meu estado de embriaguez me impediu de recusar o colo de um desconhecido. Nessa noite, só minha irmã se refastelou a estrear uma rede bamboleante onde dormiu o soninho dos anjos. **

Ratos e ladrões Foram muitas as residências onde vivi, durante o longo período de emigração dos meus pais na Venezuela. Porém, a casita velha, situada num subúrbio de Maracaibo, deixou-me marcas indeléveis na memória. Decorridas as primeiras noites naquela mísera habitação, deparámo-nos com algo impossível de solucionar: o restolhar dos ratos nas frestas do telhado. Mal ouvia o bulício dos ratos, eu agarrava-me à minha irmã para tentar adormecer, mas o pavor daqueles bichinhos horrendos só me permitia cair em sono profundo a altas horas da madrugada e, de manhã, para minha grande frustração, acordava com os lençóis molhados. Algum tempo depois, aquele barulho satânico abrandou com doses de veneno espalhadas em tudo quanto era canto, e eu passei a acordar em lençóis secos. Todos respirámos de alívio, até ao dia em que descobrimos que aqueles animaizinhos renasciam no interior de uma trave de madeira, escalavrada pelo tempo. As minhas noites tornaram-se de novo um suplício. Durante o dia, eu descontraía, dando asas à imaginação nas minhas brincadeiras solitárias ou tagarelava com a minha mãe. A tragédia da minha existência surgia no silêncio da noite. A minha irmã, que já frequentava o colégio, levantava-se muito cedo e fechava o reposteiro dos seus lindos olhos, em dois em dois ou três minutos A mim, o sono abandonava-me logo que perscrutava a chiadeira dos ratitos bebés a subirem e a descerem a trave de madeira, bem perto da minha cama. Para desespero da minha mãe, que conseguira exterminar as ratazanas mães, mas não os seus filhotes, os meus lençóis voltaram a aparecer molhados, e eu encolhia-me num canto a choramingar, logo que me levantava. A ansiedade recrudescia noite após noite, espiando o meu sono. Eu não sabia se devia esforçar-me por adormecer, tapando os ouvidos de forma a não ouvir a chiadeira dos ratitos, ou se devia manter-me acordada para atender as necessidades da bexiga. Acabava por adormecer só com o avançar da madrugada.

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Entretanto, os ralhetes da minha mãe transformaram-se em ira que descambava em chineladas no meu rabo. Felizmente logo a seguir às chineladas, ela mostrava arrependimento: “Ritinha, anda cá…Ritinha dá-me um beijinho”, e eu dava. Às sextas feiras, por volta das seis da tarde, ouvia-se um click no portão. - O pai chegou! – gritava a minha irmã a correr para a porta da entrada. - Olá, “donas Xicas”! Era assim que o meu pai nos chamava. - Boa tarde dona “Xiquita”! - dizia o meu pai para me cumprimentar - Ajudaste muito a tua mãe? - Era bom, era! Se ao menos lavasse os lençóis! – respondia a minha mãe. Eu pousava os olhos no chão. A lembrança dos lençóis molhados, na presença do meu pai, tornava-se ainda mais tenebrosa no meu coração. Aos domingos de manhã, a minha mãe levava-nos à missa. Não queria que crescêssemos ímpias como o meu pai. Quando regressávamos, o meu pai fazia-nos sempre a mesma pergunta: - Então,“ donas Xicas”, de que cor era o cu do padre? Eu lembrava-me da opa azul ou roxa, no momento em que o padre se tinha virado de costas para nós no altar, mas não respondia. Ficava desconcertada. A minha irmã sorria com uma certa malícia e desviava os olhos da minha mãe. - És um herege! - ralhava a minha mãe - Deus ainda te há de castigar! Aos domingos à tarde, andava-se em bicos de pés dentro de casa para que o meu pai pudesse ouvir o relato do Benfica sem interferências. Não podia perder nenhum golo do Eusébio. Por vezes, ouvia-se na rádio “zummmm” Era uma motorizada que, ao passar na estrada, interferia na transmissão. - Fôda-se, caralho! - berrava o meu pai, dando murros no rádio para calar aquele maldito zumbido. A minha mãe levantava os olhos dos tachos e comentava: - Em Portugal não eras asneirento! Nessas noites, se o Benfica ganhava, o meu pai brindava as suas “donas Xicas” com uma ida ao cinema. Víamos sempre um filme do Joselito, da Marisol ou de cowboys. De regresso a casa, o meu pai comprava-nos arepas quentes, e eu, de mão dada com a minha mãe, deixava-me embalar pelas vozes de Joselito ou de Marisol que ainda me soavam nos ouvidos. Esquecia os ratos e os lençóis molhados, porque as estrelas do céu tinham colunas de som a entoar canções: “Ai gorioncilho! Pajarilho, pecho amarilho!” E pedaços de letras das canções iam-me ficando para sempre na memória. 35


Certa tarde, estava um calor abrasador dentro de casa. A minha mãe passava a ferro, e o vento que girava em torno da ventoinha pendurada no teto, não era suficiente para refrescar o ar irrespirável. Eu sentei-me no lugar habitual - a soleira da porta. Era o meu lugar predileto. Dali via as flores do pequeno jardim defronte da nossa casita velha, o vai vem dos peões que circulavam no passeio e, sobretudo, estava longe dos ratos. Nem sequer os ouvia com o barulho dos carros que circulavam na estrada. Então, comecei a contar um, a um, os transeuntes que caminhavam apressadamente no passeio. Contei até dez. Depois contei os carros que passavam. Contei até vinte. Depois voltei-me para as flores e parei no trinta. Fiz uma pequena pausa e aventurei-me a continuar com as pedrinhas: trinta e um, trinta e dois, trinta e três…quarenta. Ultrapassei os quarenta e continuei a contar mentalmente, em abstrato. Tudo fazia sentido na minha mente. O entusiasmo da descoberta daquela cantilena numerária foi tão grande que só parei no número cem. Corri para a minha mãe louca de contentamento. - Mãe, mãe, aprendi a contar até cem, sozinha! Já descobri como é! A minha mãe não respondeu. Os braços moviam-se maquinalmente ao longo da tábua de passar a ferro, e a roupa fumegava luzidia. - Mãe, mãe!!!! Não ouviu? - e puxei-lhe a saia. - Sim ouvi - respondeu a minha mãe num tom ausente. Fiquei desapontada, sem saber como reagir. A minha mãe era a minha estrela protetora e era com ela que queria partilhar a minha primeira grande descoberta. Voltei a sentar-me na soleira da porta como se me tivessem apunhalado o peito. Depois ergui os olhos para a imensidão do céu e senti-me abandonada. Se tivesse asas, tinha levantado voo para correr atrás dos passarinhos que esvoaçavam por cima dos beirais, mas como não tinha, aproximei-me muito de mansinho de duas borboletas penduradas nas rosas do jardim e, em silêncio, contei-lhes a minha aventura numérica. A minha irmã se tinha desencantamentos no coração, não o demonstrava. Adorava o colégio e andava obcecada pelo conhecimento transmitido através dos livros. O único medo real, que atraiçoava a sua determinação, era provocado pelos ladrões que, a dada altura, começaram a calcorrear as nossas telhas para assaltar a padaria que ficava nas traseiras da nossa cozinha. Nessas noites, ela era a última a acordar, mas eu, atenta aos ratos e à bexiga, era a primeira a correr para a cama da nossa mãe. Abanava-lhe os ombros e dizia baixinho: - Mãe, mãe, andam ladrões no telhado. A minha mãe erguia-se de supetão, agarrava um ferro escondido debaixo da cama e fazia: - Xiu! Ambas sustínhamos a respiração com o coração aos saltos, à espera daquele som caraterístico que anunciava o salto para o muro da padaria. - Pronto, já foram, - dizia a minha mãe, aliviada - vai-te deitar, Ritinha. 36


De vez em quando, a demora dos ladrões no telhado e o estrondo de uma ou outra telha, a estatelar-se no chão da nossa cozinha, criava o pânico. - Ó, vizinha, há ladrões no telhado! Aqui há ladrões! Acudam! - gritava a minha mãe a plenos pulmões. - Socorro!!!- gritava eu, agarrada à minha mãe. A minha irmã acordava sobressaltada e sentava-se de rompante na cama. O seu cérebro que andava a mil quando acordado, demorava algum tempo a processar os sonhos noturnos misturados com os nossos gritos, o ferro na mão da nossa mãe, os meus tremores e os rumores que se começavam a ouvir na vizinhança. Uma ou outra noite, ouviam-se tiros. Então, eu acordava a minha irmã aos berros e encafuávamo-nos as três debaixo da cama até a nossa mãe dizer: - Foram para o ar. Nos dias que se seguiam a estas noites de terror, as histórias de ladrões eram a temática das conversas da minha mãe com as vizinhas. Nos anos cinquenta, não havia preocupações de natureza psicológica para amenizar possíveis traumas de infância, razão pela qual, fixei para sempre um relato insólito, contado por uma vizinha colombiana. Uma vez, em pleno dia, estava uma senhora a cozinhar, quando sentiu um toque ao de leve no ombro. Ela virou-se, apanhada de surpresa, pois era suposto estar sozinha em casa. Ao deparar-se com um jovem despido, todo besuntado em óleo ou azeite, desmaiou de susto, tal foi a aparição que lhe pareceu do outro mundo. O dito jovem, que era deste mundo, aproveitou para roubar tudo quanto quis. Minutos depois, ouviram-se gritos: - Está um homem todo nu em cima do telhado! E o homem, nu e oleado, fugiu. Dizem que ninguém o conseguiu agarrar, porque as mãos dos perseguidores deslizavam no seu corpo viscoso. Entretanto, na nossa casita velha, os episódios de assaltos viraram rotina, sempre na esperança de que nenhum ladrão caísse na cozinha ao saltar do telhado para o muro da padaria. Ao fim de semana, quando o meu pai ouvia as queixas da minha mãe sobre os assaltos à padaria, comentava num tom sarcástico que lhe foi acentuando o caráter: - Já que acreditas em Deus e na Nossa Senhora, agradece-lhes viveres nesta casa. É tão velha que não atrai os ladrões. Só serve de trampolim para a padaria. A minha mãe desesperava à espera que o meu pai se decidisse a mudar de casa, mas as semanas foram-se alongando em meses com o portão da entrada trancado com aloquete. Os únicos que entravam e saíam livremente pelas janelas, eram os gatos das redondezas – sempre bem vindos para o extermínio dos ratos. Certo dia, um cheiro nauseabundo começou a infestar o jardim, depois a sala, em seguida o quarto, até que chegou à cozinha. O que é ou que será, procura que procura, foram dar com um bichano, já em putrefação, no beco contíguo à casa da vizinha. 37


Só eu cabia na entrada apertada do beco, por isso fui a eleita para retirar dali o defunto apodrecido. Colocaram-me uma molhada de jornais nas mãos, e eu, esgueirando-me entre os dois muros, consegui erguer o bicho pestilento para a minha mãe fazer de coveira. No dia seguinte, acordei com o sol quente a bater-me no rosto, mas as pestanas não abriam. Estavam coladas com tanta remela, que nem a água morna as conseguiu despegar. Levaram-me ao médico, o que não impediu que tivesse passado oito dias sem abrir os olhos. A partir deste episódio, passei por períodos de cegueira que surgiam quando havia muito vento. Contrariamente ao que se possa imaginar, o facto de não ver, não me causava medo. Sentia-me mais protegida pela minha mãe, que se redobrava em afagos, ternuras e cuidados. Enfiada na cama dela, eu não a via, mas sabia que ela me escutava e olhava para mim, enquanto eu lhe contava histórias da minha fantasia. Curiosamente, também deixei de sofrer de enurese. Os meus períodos intermitentes de cegueira só findaram, segundo a minha mãe, não com as idas ao oftalmologista, mas com as preces a Santa Luzia, cuja imagem ela colocou junto da minha cama e me acompanhou em todos os quartos onde dormi, até me tornar uma jovem independente. E, como há males que vêm por bem, esta doença, que surgiu em consequência do gato que apodreceu numa ratoeira colocada pela vizinha no beco, valeu-nos (às donas Xicas”), a libertação quer dos ratos horrendos quer dos ladrões em cima do telhado, já que serviu de pretexto para a minha mãe convencer o meu pai a mudar de casa. **

Trovoadas tropicais A época das trovoadas e das chuvas torrenciais tornava as noites aterrorizadoras. A casita de tábuas habitada pela portuguesa e por Isabelita, a sua filha ainda pequena, iluminava-se com flashes de luzes intermitentes que entravam pelas frestas das tábuas. O zumbido ensurdecedor das bátegas dos aguaceiros em cima do telhado lembravam estilhaços de vidro a cair do céu, e o estrondo dos trovões era tão forte que, mesmo tapando os ouvidos, se sentia uma explosão no coração. As paredes da casa estremeciam como se as tábuas se fossem desmoronar. O marido da portuguesa estava ausente a trabalhar em Cabimas, uma cidade do estado Zulia na Venezuela. À sexta feira, mal ele rodava a chave da porta da entrada, a miúda caminhava no assoalhado com pezinhos de lã, como se receasse que os próprios passos atiçassem o azedume do pai. A mãe colocava um avental a ocultar o decote do vestido fresco e vaporoso, mas escassos minutos depois, por motivos que a criança não entendia, o pai abria violentamente o toucador e, exasperado, despejava tudo no chão. A seguir, calcava o batom e o pó de arroz até se desfazerem em migalhas debaixo dos pés. Mas, como vos contava, nas noites horripilantes em que todos os deuses vociferavam no céu, a portuguesa e a sua menina, embrulhavam-se em cobertores e atravessavam a correr o dilúvio em direção à casa da dona Nilda, uma venezuelana, amiga íntima da portuguesa. Ninguém conseguia dormir com o ribombar dos trovões e a dona Nilda, um pouco assustada, abria-lhes a porta da cozinha, num ato de comiseração. Elas encafuavam-se lá dentro a tremer de medo e a dona Nilda rezava com a portuguesa uma ladainha para afugentar a medonha tempestade que jorrava do céu. A miúda, com o coração em sobressalto, soletrava as terminações de cada frase da ladainha, porque ainda não tinha conseguido decorar a oração, enquanto o senhor Rodrigues, o marido de dona Nilda, pouco dado a crenças religiosas, ia fumar para a sala até a trovoada abrandar. 38


No dia a seguir à trovoada, os carros ficavam impedidos de circular naquela zona e formavam-se riachos e lagoas ao fundo da rua inclinada, por detrás da casita de tábuas da portuguesa. Isabelita corria para as traseiras e escondia-se atrás de dois algodoeiros a contemplar o espetáculo, através da vedação: os rapazes, em tronco nu, mexiam as pernas escanzeladas nas poças de água muito fundas, e as raparigas, com vestidos de tecido muito fino e quase transparente, lançavam-se à água, numa alegria contagiante. Quando se erguiam, ostentavam corpos bonitos, moldados pela água e sacudiam os cabelos num desalinho rebelde, salpicando os rapazes. Era nesses instantes que os mais crescidotes lhes apalpavam os seios de ameixas rijas, como se nesse gesto precipitado, pretendessem afastar a chuva dos olhos. Também era na rua das traseiras da habitação de Isabelita, que mulheres com rosto cor da terra e braços flácidos como borracha, mas sem nódoas negras, passavam as tardes, sentadas debaixo de um toldo, a fumar, a beber cerveja e a jogar às cartas. Não admirava que, para elas, as mulheres portuguesas fossem “mosquitas muertas” (mosquitas mortas), já que estas tinham tudo a brilhar portas adentro, ainda que fosse num barracão de madeira, mas não sabiam usufruir dos prazeres da vida. Era nesse esconderijo, resguardada pelos algodoeiros, que Isabelita também se dava conta da forma como os homens, à exceção do pai e do senhor Rodrigues, tratavam as mulheres. Os homens, que se pavoneavam na rua, não ralhavam, não empurravam, nem batiam. Assobiavam, davam estalidos com a língua como se estivessem a rebentar bolas de chiclete e mandavam piropos, sempre que observavam decotes generosos ou ancas voluptuosas. Com alguma frequência, Isabelita apanhava alguns a acariciarem as jovens mais torneadas que mostravam as costas até à cintura por causa do calor. Às vezes, elas pareciam deliciadas, outras vezes debatiam-se com repulsa. Isabelita gostaria de perceber o porquê de tanto mistério no comportamento dos crescidos, mas todos agiam como se ela não existisse ou fosse apenas uma sombra no meio dos algodoeiros. **

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Ana Oliveria Ana Oliveira, Bacharel em Arquivologia pela Uni-Rio, Aprendiz de História: licenciatura incompleta, cursos livres “História do Porto” e “Portugal & Geopolítica”. Realizei todos os meus sonhos, mas também sou simples, o pouco me basta. Construo rede de amigos, às vezes, finjo que não vejo os preconceitos: gênero, racial, religioso e xenofóbico. O cargo melhor, um carro melhor (quem é o meu marido?) e sem maiores detalhes, só informo, não sou casada. Tenho tanto para contar. E contei, nos meus livros. Caminhei escalando barreiras, com uma política de ficar bem com todo mundo, mas quando o preconceito chegou ao meu filho, tudo mudou, não sabia o que fazer. Agora sei, pesquiso, escrevo e divulgo.

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Memórias de infância A casa da avó paterna em Oswaldo Cruz, subúrbio do Rio de Janeiro, um quintal grande, com árvores de mangueiras e bananeiras, e na frente um pequeno jardim. Uma casa de três quartos e sala de jantar. No meio do quintal o terreiro de umbanda - salão e espaço para os espectadores com banco de madeira pintado de azul. E nos fundos uma pequena casinha (meia água) onde tia Clarinha morou no início do casamento. A construção do banheiro de dentro da casa, e do quarto da frente, da minha avó ainda tenho uma vaga lembrança. A rua com esgoto aberto, muitas das vezes ao tentar pular a valeta, caía dentro. Depois, a ladeira foi calçada com paralelepípedos, os meus joelhos sempre ralados em tropeçar naquelas pedras ásperas. Quando chegou o asfalto de pinche, a brincadeira diária era “amarelhinha” (pulando entre os quadrados numerados até o céu), marcados com casca de banana ou chinelo havaiana. No banheiro de madeira, fora da casa, os banhos eram de balde ou borracha, não havia chuveiro. E para limpar o cú (estou em Portugal, aqui não é palavrão) não era com papel higiênico. Talvez, o preço não era acessível e também eram tantos cús. Usávamos folha de papel de pão, cortada em quadrado; depois jornal, no mesmo estilo, colocados no prego na parede ao lado do vaso sanitário. Não consigo lembrar da eficácia da limpeza. Com o tempo, surgiu o rolo de papel higiênico acinzentado – sem picote, as folhas bem fininhas, então o dedo ajudava na limpeza. Acredito que devido as reclamações, surge o rosado com as folhas mais grossa e ásperas, todos vendidos em unidade. Nos dias de gira (danças em louvor aos orixás) o chão do terreiro era coberto de folhas de mangueira. E nos dias de consultas (jogo de búzios ou falar com o caboclo), indicava para alguns clientes, o banho de abô – ervas para limpeza espiritual. Era só pegar o caldo pronto, com um cheiro forte e desagradável, no banheiro ao lado terreiro. A comida saborosa faz parte das boas lembranças. Humm! macarronada acompanhado com galinha frita crocante. A grande mesa com bancos e cadeiras, na hora do almoço sempre composta 40


com os parentes, os amigos e os vizinhos e quem mais chegasse. No domingo quando tinha muitas pessoas para almoçar, a mesa era posta dentro do terreiro. Eu sentada no chão vermelho na cozinha, devia ter uns 05 anos, comendo pão com leite condensado, e ela no fogão fazendo comida. Sou gordinha por causa dela. Teve um dia, que estava na cozinha e meu pai chegou e os dois trocaram palavras, de repente, o pano de prato, que só vivia em seu ombro, saltou para o rosto dele, com palavras bem altiva. Acho que foi algo como, “não tem idade, nunca vai falar mais alto do que eu”. Todas as amigas da minha mãe frequentavam a casa da Damascena, se sentiam da família, e algumas deixavam os filhos lá, para trabalharem ou saírem. Na hora de dormir, quando tinham muitas crianças, todos se esticavam no chão da sala, às vezes, os miúdos da vizinhança brincavam e pediam para pousar. Em 1973, CETEL - Companhia de Telefones do Rio de Janeiro, instalou nossas linhas telefônicas, o número da minha avó foi decorado rápido, 3593737. E nas noites escuras…“vó acho que tem gente no quintal, tô com medo”. Minha mãe estudava à noite, e meu pai de plantão, eu e minha irmã ficávamos sozinhas em casa, com diversas guloseimas e um pote grande de sorvete napolitano da Kibom, eu só comia a parte de morango. A recomendação era para ficarmos quietinhas e não abrir a porta para ninguém. Damascena sai de Osvaldo Cruz a pé até Marechal – três quilômetros. Quando minha mãe chegava do curso, o diálogo das duas: - Damascena, o que você está fazendo aqui? - Não gosto que deixem as minhas netas sozinhas. - Elas estão de graça, deixei tudo aí para elas ficarem quietas por umas horinhas. - Ah! Vou dormir aqui hoje. As vezes voltava para casa.

O BAIRRO OSWALDO CRUZ Oswaldo Gonçalves Cruz (1872-1917) foi um médico, bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro. Pioneiro no estudo das moléstias tropicais e da medicina experimental no Brasil, fundou em 1900 o Instituto Butantã. Já a história do bairro se confunde com a da estação ferroviária instalada por volta de 1949, mas o local pertencia a Freguesia de Irajá, já denominado de Oswaldo Cruz, tradicional terra do samba. Caminho mentalmente pelo bairro, com um sorriso pelas minhas memórias felizes, os pezinhos pequenos, entre 06 e 08 anos de idade, chego na quadra coberta com paraqueda do Bloco Carnavalesco Rosa de Ouro, fundado em 1970. As rodas de samba com presença do Candeia 1 em sua cadeira de roda, em casa tinha um disco de vinil com o homem da quadra na capa. Nos finais de semana, a noite o espaço era cedido para o baile soul, as primas mais velhas frequentavam. No carnaval de 1972, o protesto dos rapazes deu em prisão, por serem considerados subversivos. 41


Nos fundos da quadra era o terreiro da Lígia, irmã da Dindinha, madrinha de consagração da Claudelucia. No mês de outubro, festa do dia das crianças no quintal da Tia Lígia, teve um ano que ganhei boneca Moura, grande de plástico quase do meu tamanho, os brinquedos distribuídos lá eram sempre bons. Pagamento dos servidores públicos era o dia da fila, no mínimo 03 horas, no BANERJ, agência do Mercadão de Madureira. Na loja próxima tinha a boneca gigante, as filhas do Capitão Souza tinham, e eu também queria. “Filha, essa boneca custa quase o meu salário”, foi a resposta do meu pai, para o meu pedido. Mesmo sendo bem diferente da qual eu desejava, fiquei muito feliz com aquela que não era articulada e sem cabelo. Na minha época não tinha essas bonecas negras glamorosas. Continuo a caminhar na minha memória em direção contrária à estação ferroviária, duas ruas depois da quadra chego no início da rua Abaçaí, logo na esquina do lado direito era a casa da Tia Nair, mãe do Pedrinho e Tião, provavelmente mais uma família de alma. O primo do meu pai sempre presente, Pedrinho. Ele chegava em casa com aquele barrigão, calça branca com vinco e sapato envernizado, e me chamava, “vem neguinha, falar com o primo”. Desço mais um pouquinho do lado esquerdo era a casa da família da Néia, Sidnéia, criada por minha avó, mesmo com seus parentes morando a 20 metros. Eu brincava sempre no quintal com os seus sobrinhos, filho do seu irmão Sidney casado com a Cristina. E não entendia porque a Néia não morava lá. Descendo mais um pouco, tinha a casa da Ivone e sua filha Tânia, afilhada de meus pais, no seu casamento meu pai a conduziu até o altar. Por ele sempre ter carro novo estilo sedan, na época não era esse nome, carro grande, era rotineiro prestar serviço de motorista das noivas com seu automóvel nos translados ao cerimonial, não sei se era cortesia-presente para os conhecidos e/ou trabalho free-lance. Ao lado era a casa Dona Sirlei, mãe da Rose, Leila e Evandro. Eu e Cristiane brincávamos o dia todo de boneca nas casas das vizinhas que tinham meninas da nossa idade, amizades que perduram até os dias de hoje. Só entravámos em casa na hora do almoço, ou para pegar moedas, para comprar doces no armazém do português com o baleiro de vidro que rodopiava. Continuando a próxima casa era do Marcelo e seus irmãos, brincávamos de queimado à noite na rua. Após a casa da minha avó, tinha uma avenida com quatro casa, a da frente morava seu Alcides acho que nessa foto com Claudelucia eu não era nascida, mas também tinha a casa do Fernando, pai do Luizinho e Paulinho. E quando seu Alcides mudou, chegou a Fatinha e sua família, que virou comadre da Cristiane, seu primeiro filho Gabriel deu para ela batizar. Naquela quadra viram familiares. A magia era na casa 457. Quantos entravam ali para levar suas refeições para casa, receber um acalento, acolhimento religioso ou não. Acho que é por isso que gosto da casa cheia, até em Portugal, o apartamento é movimentado, mas com hospedes pagantes, com idiomas diferentes e culturas, mas esse movimento é prazeroso, faz parte da minha essência.

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Mayara Lopes Mayara Lopes da Costa é uma artista, escritora e graduada em Direito pela Universidade Católica de Santos. Representou a universidade em eventos científicos internacionais. Ganhou menção honrosa pela crônica “O Lado Poético da Vida” no 5º Concurso Literário Abrace um Autor, em 2021. Atualmente é estudante de Roteiro Audiovisual pela escola Roteiraria. **

Pela lei natural dos encontros Nunca entendi uma vida efêmera, que oras está, oras não, um dia é, e no outro já não é mais. Aqui, onde palavras e lembranças se perdem entre o tempo e o espaço. Onde ainda temos de acompanhar e enfrentar esse emaranhado de idas e vindas, porque tudo é passageiro. Ouso dizer que a minha memória não é assim tão frágil, e que o meu coração talvez se pareça com uma criança, o que justificaria a dificuldade em desapegar das coisas. Nunca entendi por que existem as despedidas e os finais, os quais demoro a digerir e mal consigo suportar. Se eu pudesse apenas compreender, acho que já seria meio caminho andado. Mas, nunca compreendi como são feitas as contas dos ganhos e das perdas, nem como é cronometrado o relógio dos encontros fracassados e dos acasos. Quando alguém fosse embora, deveríamos ter a opção salvadora de apertar um botão que fizesse com que nos esquecêssemos da dureza de sua partida. Que nos esquecêssemos como nos sentimos quando nos deixou. Que nos esquecêssemos da ansiedade pela sua demora. E da angústia do brotar da dúvida que corroeria as almas aturdidas que foram abandonadas, eis que ainda indagaríamos se algum dia esse alguém chegaria novamente às nossas vidas. Que nos esquecêssemos da razão pela qual tanto gostaríamos que jamais escolhesse partir. A não ser que, de repente, já exista esse botão. Talvez algumas pessoas já o conheçam, inclusive, e por essa razão pareça tão fácil partir sem olhar para trás ou não reviver as doces memórias. Eu queria ter acesso ao botão. Mas, também é bem provável que não tivesse coragem de apertar, porque talvez seja por esse exato sentimento que valha a pena estar viva. Isso porque, quando sinto essa vulnerabilidade, é quando me sinto humana. Não sei quais são as leis que regem tudo isso. Mas se eu conhecesse quem comanda todas essas coisas, eu indagaria por que razão ninguém jamais determinou que as relações fossem eternas, nem por que jamais privou qualquer ser humano de estar suscetível aos terríveis erros e enganos que os conduzem aos seus abismos. Perguntaria se ainda que pela lei natural dos encontros, aquela em que ninguém nunca pensou e que eu gostaria de criar, por qual razão, com base em qual penosa crença, não poderia ser possível priorizar a eternidade dos olhares que se perderam e dos encontros que se iniciaram com data de validade, nem a sensação dos abraços de nunca mais ou das recompensas que sucedem as tragédias, que sempre se tornam meros fragmentos desconexos. Por que razão, por que, por que e por que, nem pela lei natural dos encontros, nem para teste ou pregação de peça, nem por tédio, nem sem querer, nem assim essas pessoas poderiam ser obrigadas a ficar. ** 43


Patricia de Campos Occhiucci Professora, poeta, escritora e psicóloga, natural de Santo André, reside no interior de São Paulo, na cidade de Mogi Guaçu. Participou de algumas publicações da Psiu Editora, editora Ases da Literatura de Portugal, Editorial Eco Literário, Elemental Editoração e Artner. **

Saudade doída Saudade, talvez, seja a opção Mais tola do coração sofrido Por uma escolha voluntária Ou pelo acaso do destino Pensar no que teria sido. Sua ausência dói à toa Nosso amor eu peço Como coisa boa Assim seria e é Na história que crio. Sentindo na pele o arrepio Fracasso, esforço vão De apagar das areias Da lembrança praieira Que te leva pelo mar... Só quero saber de estar Em sua frente, mirando Sem os olhos marejar Enquanto persiste morando Na cabeça, sem descansar. Saudade é travesseiro. Lança-me ao labirinto Onde o encontro é impedido Aperto, mau conselheiro Faz do homem redimido Na mente, o bagageiro De tudo o que foi vivido. **

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Elaene Suzete Autodidata (1º completo), pesquisou e conta suas próprias histórias. Possui um blog de poesias e contos. Escrevo para não falar sozinha. Afirma que A literatura é a casa que habito. 2021- Concurso Editora InVerso de Contos e Crônicas Mais Vozes ; 2021- Coletânea Preconceito - Julgamentos e Generalizações ; 2021- Revista literária Ecos da Palavra ; 2021Lendas Urbanas ; 2021- Educação no Brasil ; 2021- Lendas Africanas ; 2021- Poetas do Brasil - Rodrigues de Abreu ; 2021- Coletânea A Vida é muito curta para... PerSe Editora **

O circo Morava em um retiro no interior de Minas Gerais, uma casa simples no campo cercada de plantações. Uma vez ao ano íamos até o lugarejo mais perto para a festa da Santa Padroeira, cinco dias de festas entre batizados, casamentos, missas intermináveis. O que eu mais gostava era o circo que a tarde tinha a competição dos peões e a noite o espetáculo com palhaços, e dramaturgia. Meu irmão mais velho sempre competia, às vezes dava sorte em pegar um boi menos bravo, assim ganhava os aplausos e uma medalha. Ficava radiante com meu irmão que sempre me mimava muito, dava-me algodão-doce, picolé escondido de mamãe. Para ir ao espetáculo teria que dormir ao menos um pouquinho para não ficar pirracenta. Era tão diferente sob as lonas me esquecia que já era noite, os palhaços espirravam e saía uma água como xixi fosse, ríamos demais mesmo que dissessem que não era urina. O grande espetáculo dramatizava amor não correspondido. Era assim um teatro circense, vínhamos de longe entristecer com a jovem desiludida. Arrastava-se pela serragem em prantos, esse ato final mortificava-me. A ponto de fechar os olhos imaginando-me a mal-amada. Tinha cinco anos quando provei a crueldade do amor; 45


Assim o circo ia embora e; eu o odiava por isso. **

Éramos Dançávamos passos de ventos Corríamos e pulávamos nuvens de algodão. Assim éramos crianças Éramos terra e grama Verde e água Sol e chuva Éramos luas cheias Minguantes e passageiras Retratávamo-nos ao qualquer descuido. Pedíamos bênção aos mais velhos. Éramos abençoados ao amanhecer e no anoitecer. Jogávamos bola de gude azuis, verdes-águas. Nadávamos no rio com sombras de mangueiras; Aterradores eram os pecados na quaresma. Que corria de boca em boca! Se perdia no confessionário do padre. Do monsenhor apenas a procissão longa e chata Que com o pálio andava lentamente! Pelas ruas e becos com igrejas de um só santo. Éramos tão leves e pecadores. Éramos anjos de asas marcadas pelo instinto de sobreviventes de costumes, Oliveiras na manhã de domingo Passagem de cristo, descalço, no caminho da escola. Das janelas com seus panos bordados e imaculadamente brancos. Ruas coloridas de serragens úmidas pela garoa da noite. Éramos a fé do pai e da mãe. Filhos da mesma crença Éramos filhos de Deus, mas Sobretudo leves crianças. Éramos flores-de-abril: tão pequenas, recheadas de sementes. Que o vento espalha por toda a estrada!

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Quem ela visita? Percebo que a morte ronda. Todos estamos à mercê 46


Idosos vulneráveis. Somos órfãos De carinhos de atenção Somos a história recontada Crianças repreendidas Carentes de aprender Ágeis foram os passos Oratória flamejante Sexo à revelia Risos, nudez Saudades, tristezas! Pedras, rios, montanhas. Por onde andei Aonde irei? No velório? Serei velada? Que caminho seguirei? Qual a fé que encerra? Uma vida desgarrada? A árvore que plantei vingou. Os achados de meu pai perdidos. Na lembrança? Tempo que era criança Calção curto, cabeça ao vento. Minha mãe presente Memorias infindas Rosto, voz, contentamento. Na madeira que fui nó. Trancei os troncos que gerei. Fortes e, de lei! **

Tempo para lembrar Lá estavam caprichosamente penduradas no varal Camisas de papai que viajam longe Mesmo lavada inda tem seu cheiro Vestidos de mamãe com manchas de gordura Sepultadas no tecido colorido de rosas Short de meu irmão lembra-me a surra que levamos Minha camisa da escola se escondendo na última fila Lá estavam caprichosamente enfeitando o quintal Lençóis alvejados tremulando ao vento O sol brincando de esconde-esconde nas nuvens 47


Espessos são os pesadelos confusos dos homens Colidindo com afazeres domésticos cantarolados Pijamas no aconchego do boa noite Jaqueta jeans do primeiro beijo Ápice terreno da utopia hippie. Na virtude de ver a beleza. Lá estavam caprichosamente Caprichosamente me fazendo lembrar... **

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May Poetisa May Poetisa é o pseudônimo de Mayara Oliveira, nascida em Guarulhos/SP, formada em comunicação social. Em 2015, iniciou suas publicações no Lettera. Em 2017, lançou a obra “Do barro à essência”, sobre a religiosidade afro-brasileira. No mesmo ano participou de um concurso e escreveu um dos contos da antologia “Isso também é preconceito”. Em 2022, integra as coletâneas “Futurismos” e “Eu escritor”. **

Memórias da minha avó Eu amo as belas memórias que tenho da minha Avó Foram tantos momentos lindos e repletos de afeto Ela foi meu maior exemplo de fé me bendizia com tanto carinho Agradeço por ela ter me ensinado orações que me auxiliam nas horas mais difíceis Quando a saudade aperta procuro acalanto na poesia/reza Sinto falta do teu cheiro doce, da tua voz forte e do teu abraço ninho. Casa e colo de vó são os melhores lugares do mundo. A gente vivia grudada ela me chamava de companheirinha Lembro dela em tudo vejo traços dela no meu pai, nas lágrimas do meu tio e quando me olho no espelho Tenho nostalgia do que vivemos foram muitos passeios juntas, perdi as contas de quantas vezes ouvi as suas histórias de vida

Até tento um disfarce para dor mas, é impossível! Na sua partida, sinto que parti também 49


só que aos pedaços. Ao relembrar minha infância não sinto sua falta em nenhum instante Sempre presente, deve ser por isso que a tua ausência dói tanto. Hoje, tenho violetas suas flores preferidas e para todo o sempre carregarei comigo todo seu amorzinho. **

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Isabella Costa Sou escritora independente, com uma coletânea, "Bilheteria", publicada na Amazon; e um romance em processo de revisão e reescrita. A primeira versão está disponível no Wattpad. Sou formada em Letras (Português/Italiano) pela Universidade de São Paulo e hoje atuo como professora de redação para o Ensino Fundamental 2. Sou apaixonada pela escrita desde pequena e tento transmitir essa paixão tanto na sala de aula quanto nos meus textos. **

O amor que nunca tive Era um domingo de manhã quando achei o livro. Seria impossível não achar no caos de papéis e roupas que inundava meu quarto, os fragmentos da minha vida implorando para serem limpos e organizados nas prateleiras azuis recém colocadas e no velho armário de madeira que teimava em não morrer. A capa estava rasgada e já mostrava, sem cerimônia, a dedicatória que só podia ser dela. “Vai te fazer bem e vai te fazer mal. Que nem tudo na vida. Leia com carinho, como você faz tudo na vida.” Sua presença já não era parte da casa por mais de dois anos agora, mas Madalena tinha ressuscitado nessa semana feito as flores no meu parapeito com a chegada de outubro. Tinha aparecido nos cabelos de uma moça no metrô na terça-feira. Moça essa que eu persegui por 4 estações até perceber que não era ela. Tinha aparecido na nova temporada da série que assistíamos no meu sofá, entre poucas camadas de roupa e muitas garrafas de vinho. Agora, tinha aparecido no livro que ela me deixou. Quando a conheci, Madalena era uma confusão de panos em roupas muito largas e livros pendurados em 3 bolsas. Era um cheiro de fumo de palha misturado à terra e calçava botas dignas de um Indiana Jones. “Uma aparição”, como eu descrevi a um amigo e, meses depois, a ela. Apareceu perdida nos corredores do museu e apertava os olhos contra as placas, tentando descobrir onde estava a exposição certa. Eu a ajudei e ela não saiu mais da minha cabeça. Enquanto trabalhava, orientando os outros visitantes por esse ou outro caminho, tentava achá-la entre as câmeras e celulares. Trocamos olhares uma, duas, três vezes até ela sorrir para mim, os dentes exibidos e a língua entre eles, como criança que faz bagunça. Eu não aguentei e saí de onde estava, no meio de uma explicação para um senhorzinho despreocupado, e fui pedir seu número. E um café, depois do meu expediente. “Que tal uma cerveja? Melhor, né?”, e sorriu de novo. Eu não sabia dizer não àquele sorriso. Quando Madalena sorria, eu seguia, sem nem questionar o caminho que ela tinha escolhido. Foi assim que ela acabou me carregando para infinitas aventuras que eu, um rato de museu, jamais pensaria em fazer. Ela escalava muito bem e volta e meia me colocava na mochila pra descobrir outro pico inesquecível do qual veríamos uma vista arrebatadora. E do qual eu me cansaria alguns minutos, repensando por que eu tinha gastado tanta energia apenas para descer de novo. Na época eu achava que isso era amor. Acompanhar ela, para mim, era amor. Mas ela sabia, sempre soube que não era. Nas tardes que perdíamos em casa e nas noites que perdíamos nas ruas, ela sabia que era fascínio e que o fascínio não pode nunca se tornar mais do que isso. Talvez por saber tão bem que ela conseguiu ir embora sem cerimônia, enquanto eu fazia planos de viajar o mundo juntos. 51


Eu aprendi muito sobre geografia enquanto estava com ela e ainda tem alguns mapas aqui perdidos que têm a sua letra rabiscada em anotações. Aprendi também sobre política e fui na minha primeira manifestação, e na segunda e na terceira. Existem partes de mim tão construídas por Madalena que hoje nem me lembram mais ela, é como se tivéssemos nos fundido durante minhas muitas metamorfoses. Eu já morava aqui quando Madalena entrou na minha vida e pouco a pouco foi tomando cada espaço de mim. O criado mudo, a prateleira da geladeira, o sofá, o lado direito do guarda roupa e o lado esquerdo da cama. O chinelo dela ficava no pé da cama, em cima do tapete. Foram dois anos de pedacinhos tomando a minha casa e o meu corpo, um efeito narcótico longo e persistente. De manhã ela lia o jornal e eu, poesia. Ela tomava café e eu, chá. Ela odiava meus bolos, mas eu odiava o seu arroz. Então eu fazia o almoço e ela ficava a cargo dos doces de fim de semana. E eu também achava que isso era amor: os opostos, a conciliação, a rotina boa e simples e confortável. Mas Madalena não gostava do todo dia. Madalena era escalar montanhas e discutir política aos berros na mesa do bar. Era viagem sem destino e caronas com desconhecidos. Era esse espírito livre de que falam os livros e eu não era, nem entendia como era ser. Eu era chá de fim de tarde e silêncio. Madalena era grande demais pra caber no meu apartamento. Era uma quinta-feira de noite quando eu cheguei e o chinelo dela não estava do lado esquerdo ao pé da cama. O lado direito do guarda roupa estava vazio e o seu creme de cabelo não estava no armário debaixo da pia. Na mesa tinha esse livro, de que ela me falou tantas vezes, novinho e com dedicatória. Em cima tinha um bilhete. “Obrigada pela nossa história”, ele dizia. Típico. Como uma personagem de filme que tem cabelo colorido e escuta The Smiths, ela vai embora. Aparece, sacode minha vida por todo o lado, me cria esse monstro dentro do peito e o quê? Vai embora. Tive raiva. Joguei o livro na parede e a odiei por sair da minha vida de um jeito tão dramático. E clichê, ainda por cima, como se ela não conseguisse perceber que era um estereótipo. Tive ainda mais raiva quando percebi que ela tinha levado a camiseta do The Smiths! Chegava a ser patético. Só consegui pegar o livro pra ler três meses depois, e chorei como nunca tinha chorado. O caminho que eu e Madalena percorremos ainda me assusta e ainda tem suas veredas desconhecidas, encobertas pelo mato rebelde. Ela morria de vontade de prateleiras de frente à cama, mas odiava azul. Não importa mais. Porque hoje o que resta de Madalena já é tão meu que deixou de ser ela. Hoje Madalena é um livro esgarçado numa nova prateleira azul, ao som da banda que eu não tenho mais a camiseta. A moça que eu persegui no metrô não era ela, mas se fosse também não seria. Madalena está por aí, em alguma montanha com as botas do Indiana Jones no meio da sua própria travessia. E ela é grande demais para esse pequeno mundo.

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Silvana Helena Liz Nascida em Santa Catarina. Atualmente discente de Letras Espanhol na UFSC. Viveu em Curitiba e estudou na UFPR. Durante um preríodo foi professora do Estado do Pr. e Florianópolis. Sempre se dedicou ao vício de escrever. Tem Espanha no coração. Foi premiada em alguns concursos de poesia e publicada pela Secretaria de Cultura do Pr. em 2009. Selecionada no I Prêmio de contos Franklin Cascaes 2021 com temática sobre a pandemia, promovido pela Editora UFSC. **

Esperando-te a catedral dizia vem vem a ave quero quero as flores enrugadas, caindo amarelas cubrindo meu gesto pensador o carro não tinha som de motor ouvia Bang-bang My Baby Shot Me Down... Amor, você me trocaria por qualquer disco de jazz quem passava me olhava falavam qualquer coisa acho que me enxergavam pela metade … e eu te esperando como se fosse Godot tudo o que via na cidade escutava e sentia quando tinha aquela idade podia não ser teatro mas era absurdo às vezes sussuro 53


em teu ouvido foram Dias Felizes. **

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Guiga Soares Carioca, filha de um brasileiro e de uma dominicana, jornalista, 66 anos, sou graduada em Comunicação Social com pós-graduação em MKT e em Sociologia Política e Cultura todos pela PUC-Rio. Tenho Formação Executiva em MKT Digital pela FGV- Rio. Na TV Globo, de 1999 a 2004, fui coordenadora de RP e Eventos. Participei do ciclo olímpico do Rio: dos Jogos Panamericanos passando pela Copa do Mundo 2014 até os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016. **

A medalha Um dia, o pai levantou muito antes do galo cantar. A menina sabia que ele acordava cedo para trabalhar. Mas, naquele dia ele saiu da cama ainda no escuro. Vestiu uma camisa branca de mangas compridas, calça preta, sapatos e meias idem. Barba feita, cabelo com brilhantina penteado para trás. O relógio em ouro havia sido dado pelo pai. Não saía de casa sem ele. Em silêncio, a mãe preparou a refeição: pão francês, manteiga, café puro. Ele saiu muito rápido para não perder o primeiro ônibus. Morava longe, no subúrbio. Tinha que chegar bem cedo ao centro do Rio de Janeiro. Escondida, a menina queria saber o motivo desse movimento ainda de noite. Voltou para debaixo da sua colcha. Não era hora de levantar. Ao longe, ouviu o portão da casa ser fechado. Algum tempo depois, comeu mingau de aveia polvilhado com canela em pó e tomou o rumo da escola. Palavras novas, colegas, levaram sua cabeça para longe. O episódio da madrugada sumiu dos seus pensamentos. Durante a tarde, depois do retorno do pai, viu uma fita vermelha de gorgurão no alto da estante. Ficou na ponta dos pés, se espichou bastante. A fita veio junto com uma medalha dourada que brilhava nas suas mãos. Era a figura de um homem montado em um cavalo. Foi atrás da mãe na cozinha. - Isso não é brinquedo de criança, menina. Coloca de volta aonde você achou! Ficou chateada. Sabia que os objetos do pai eram guardados sob um cuidado respeitoso. Era proibido mexer neles. Não entendia o porquê de tanta preocupação com caixas, envelopes, pastas que ele guardava. Mas, obedeceu. No fim do dia, resolveu matar a curiosidade. Perguntou ao pai sobre a tal medalha. - Ah, minha filha, é São Jorge. Me protege desde a Segunda Guerra. O padre benzeu pra mim hoje pela manhã. Meu santo de devoção. Tenho muito que agradecer a ele. Me defendeu muito. O pai cumpriu com esse ritual todo dia 23 de abril até a sua morte. Participava da alvorada e da missa do santo até mesmo quando já precisava de ajuda para ir à igreja de São Jorge na região 55


central da cidade. Nos últimos anos de vida, não deu mais para acompanhar as celebrações longe de casa. Morreu aos 93 anos de idade com a crença na proteção do santo. A medalha está com a menina. **

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Marcelino Rodrigues Cutrim Netto Marcelino Rodrigues Cutrim Netto, natural de São Luís do Maranhão, professor de Língua Portuguesa da rede pública estadual, publicou textos nas antologias Minuto de tudo e Esboços da alma (Editora Scortecci), Nas entrelinhas do amor e Taverna Poética (Editora Versejar), Aterrorizante (Travassos Editora), Parem as máquinas (Selo Off Flip). **

Quatro bateadas na lâmina d’água Quatro bateadas na lâmina d’água no lago de água verde cinza Splosh, Tumb, Tchibum qualquer coisa assim se fazia ouvir naquela extensão fantástica do lago de Viana e meu avô ia pela proa – se é possível dizê-lo – de sua carcomida canoa de sua forte e pétrea canoa Onde fora encomendar a canoa? quem lhe batera os pregos? quem lhe encurvara a madeira? Esses oficiais, conhecidos ou amigos, perderam-se no tempo e nas curvas das reentrâncias cerebrais de meu avô e de minha avó agora jazidos Esses oficiais, se trazem os ossos envoltos em músculos agora murchos músculos ou se os trazem diluídos em poeira mortal não saberemos mais eu, meus filhos, e os filhos de meus filhos não conheceremos os nomes pelos quais se anunciavam esses homens cortadores de madeira, trinchadores de paus plainadores de pedaços d’árvores encurvadores de memórias de árvores também jazidas no chão dos campos de Viana Esses operários, assim como milhares de outros operários professores, estivadores, motoristas e outros mais 57


fazem seu pouquinho de mal – que cortar uma árvore ou deixar reprovado um menino é mal de um mesmo sal – e se metem na espiral do esquecimento para de geração a geração desaparecerem de nós Mas a lembrança de suas canoas ou de suas manobras ou de suas aulas durarão ainda um tempo nas águas, nas estradas e nas almas **

No deslizar da embarcação No deslizar da embarcação no batear do remo tchibum schaaaá tchibum schaaaá o velho me contava histórias de visagens assombrações que habitavam os campos e as esquinas daquela cidade do Maranhão À noite – era certo – eu iria me desesperar enrolado na rede perto da porta de mensaba que assim se chamava aquele trançado de palha que o vento passar deixava e também a claridade para dentro da casa vai que deixasse um olho me espiar? esse olho de alguma assombração... Escutamos de longe um fiiiiiiiiu era o fite meu avô se benzeu eu o segui aquele fite, se assoviava perto estava longe se assoviava longe estava perto eu tremi que o moleque estaria perto de mim de que cor seriam seus olhos? teriam faíscas de fogo? seriam vermelhos seus olhos? Pensei ter visto, ontem à noite, um olho de fogo me olhando por trás da palha da protetora mensaba 58


que assim se chamava a porta da casa dos meus avós (pelo menos nisso as mulheres ganham dos homens em nossa língua portuguesa avós para o homem e a mulher avós...) Meu avô empurrou a vara a canoa se distanciou tomara que o fite tenha caído n'água escutei um barulhinho splash! Não quereria ficar neste lago à noite Inácio disse que viu a coracanga bola de fogo passeando no campo ao longe a sétima filha de um casal... senti um arrepio era visagem ou era o frio do amanhecer no lago de Viana? Vovô ‘cê já viu a manguda? Hum-hum Ela é pequena e vai crescendo, crescendo, né? Hem-hem O velho queria era pescar mandubé, carrau, pescada, mandi e eu imaginando a iara vindo na tarrafa com calambanges, tubajaras, violas, bois-acaris Bastião pegara uma carreira do couro um pedaço de couro de boi que corria atrás das pessoas Doninha fora ao poço meio-dia o curupira a encantou ela se jogou dentro dum tucunzeiro só a madrinha a salvou ainda bem que tenho a minha... A avó contava também essas histórias enquanto cortava os peixes suas vísceras não tinham visagens suas ovas iriam pra o meu prato. **

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Ivy Gobeti Profissional do universo das Letras. Tradutora, revisora, copidesque e poeta. **

Não mais espero em noites Dos dias em que sonhava Não sinto falta alguma, Dos dias em que sonhava, Eu, logo eu, a sonhadora De nome e sobrenome, Não me afeta sequer mera saudade, Não me expressa sequer pouco traço, Dos meus sonhos presos já não Me constituo, já nem os prego A mim nos meus sonos ou despertares. Já não anuncio o dia em horas de esperar, Já não espero as noites em horas de iludir. Dos sonhos fica só a alma de sonhar, Do longe se traz presente aos dias de realizar. Dos sonhos já não conheço as promessas, Que das pernas agora é só o prosseguir. Nasce dos olhos só o olhar, Nasce das mãos só o tocar. Dos dias de sonhar não se faz nenhuma saudade, Que de tudo que sempre amei sonhar, E de tudo que sempre me quis em cantar, Prefiro de nós não mais o querer, Mas o fazer infinito que vem da chance de nossa idade. **

Pintura de família, em Perspectiva Eles não cresceram e se esconderam entre cercas de si, acerca dum sonho que não sonharam, em formas de não completude. E pelas casas que um dia minhas foram eu os vi, não havia mais as casas nossas, e nem vinha a mim as coisas que nos eram partilhadas, partidos são agora, sãos em seus chãos, salvos de suas enchentes, recorrentes de suas paredes, correndo não mais além de para longe de rirem-se, rindo-me do meu tornar-me criança de amar a vida e rir-me deles. Eles não cresceram e eu fiquei jovem, e eu não os conheço senão do que passado nos foi, os anos e lições passaram-se e eles passaram a guiar com mãos de ferro seus destinos em dias de 60


gravatas e tanto outros nós, casaram-se com dias que nunca conheci nas minhas demasiado frouxas mãos que não seguram o concreto. De casa em casa as noites suas são obrigações que peso em não carregar, cargas distantes de energia que antes compartilhamos, acarretam a si dos seus brilhos o oscilar, preservam sua constantes de salas daqui e dacolá. Eles não cresceram e são quadros, e eu não configuro mais deles, reuni-me em sala de celebração alguma, longe de seus portões e entradas, fecharam-se os nossos acessos, e eles caminham bem-sucedidos, e eu sucedo a eles nas coisas todas que eles não continuaram. Eu tenho assombro e êxtase, sem amor não amo, e minha mão não consigo mais fazer a eles chegar, nem por culpa ou apreço, falta-me a vontade de lhes ser, os acompanhar, falta-me elos que ultrapassem o das nossas veias. Eles não cresceram e se esqueceram de si, lembram-se de mim como quem se esqueceu deles, verdade eu quis que fôssemos, mas borrou-se a maquiagem, não sonharam comigo o que sonhei que não houvesse a nos faltar. Eles caem tão certo ao chão, e não sangram senão em silêncio, nem confundem suas tão estabelecidas sílabas, eu grito de tudo o que me chega, e tudo me arrebata, e eles estão depositados em todos os seus bancos, os de render e os de adorar, com igual cegueira, pregando dum e doutro o mesmo teor. Eles não cresceram, e fiquei livre do nosso acordo, todos dormem e eu acordo comigo em meus próprios termos, sem laços de obrigação, em seus casulos eles se privam de me amar, privo-me eu de afeição na amplidão do meu céu escancarado, eles diminuem em seus não-espaços e congelam-se em seus não-calores, eu me estico em minhas aberturas e me deles distingo na intensidade de meus fulgores.

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Rogério Rodrigues Rogério Rodrigues da Silva, tendo o pseudônimo de Rogério Rodrigues, é contista, cronista, novelista, poeta, dramaturgo, compositor, professor, resenhista, colunista e ativista cultural. Nasceu justamente em 25/07, dia do escritor. Aos 25 anos tirou do papel suas histórias literárias. Menina dos seus olhos, a primogênita, não foi publicada, devido às dificuldades enfrentadas. Ao longo dos quase dezenove anos aos livros, escreve atualmente o vigésimo primeiro livro: “Quem é que manda no coração”. Desses, três já publicados. O primeiro, uma antologia, Contos e Descrenças, 2010, São José dos Campos, algo que rendeu o Diploma do Reconhecimento Público pela Câmara Municipal de onde reside. Algumas de suas obras são encontradas e por diversos gêneros literários pelo link: https://recantodasletras.com.br/autores/rogeriorodrigues2020 **

Paulo no seu tempo de glória Lembro como se fosse ontem. Nem deu tempo de se despedir. Aproveitávamos tanto o momento, pois nem demos conta de que seria nosso último encontro. Ah, se soubéssemos! Apesar de eu não gostar muito de despedida, daria cara a tapa de que aquele dia, tudo seria diferente. Everton foi mais hilário! Entupiu de tanto comer goiabas. Lucas quase desaprendeu a andar de tanto passar o dia inteiro na lagoa. Gabriel foi o mais esperto, até pescou! Trago na minha memória as repetitivas falas do meu saudoso vizinho, Senhor Lilas, pai de Gabriel: — Deixem os meninos brincarem! A infância é uma só… Ah, levei tão a sério suas palavras! Jogamos bola, nadamos à vontade, subimos em todos os pés de frutas da saudosa chácara. Que almoço gostoso! Até hoje sinto aquela gustação no meu paladar. Enfim, o dia acabou. Dentro de um mês, Senhor Lilas, partiu deste mundo. Sem chão, sua família teve que desfazer da chácara e de mala e cuia, partindo para o Nordeste. Em pouco mais de um ano, meus pais se separaram. Papai foi para Bertioga. Mamãe, eu e meus irmãos fomos para Santa Catarina. Dona Mara e seu filho João foram os únicos a continuarem em São José dos Campos. 62


Às vezes me flagro nas redes sociais a fim de reencontrar a galera da chácara! Que nada! Nem vestígio eu encontro. Só restando saudade, saudade e saudade…

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Fabio Lindbergh Fabio José Silva Rodolpho, pseudônimo Fabio Lindbergh, é professor, tradutor e revisor de textos. Gosta de teatro, cinema e literatura e nas horas vagas brinca de escritor. **

Dores e recordações Saudades de quando a vida era só Utopia Havia esperança, ideal, algo em que acreditar, motivo pra lutar, amar e continuar Sonhos nos movia mesmo em meio ás adversidades Lutávamos contra tudo e contra todos sem medo, sem pensar nas consequências Foco, Coragem, Fé fazia parte da nossa identidade além disso Éramos muito unidos O tempo passou e não sei o que aconteceu Só sei que tudo aquilo se perdeu E hoje não resta nada mais além de mim, fora as ruínas daquele tempo Lembranças nessas horas são inúteis, além de atrapalhar Em vez de ajudarem, só trazem amargura e um louco desejo de voltar atrás em um tempo que não dá mais pra retornar Você não sabe o quanto é difícil se lembrar de rostos que nunca mais voltará a ver Passou, já foi, eh, eu sei, to ligado Mas nessas horas gostaria de matar minhas lembranças, libertar-me dessas correntes, sentir o gosto da liberdade e recomeçar a vida outra vez Das duas uma Ou a memória morre Ou o poeta morre, porque com os dois convivendo debaixo do mesmo teto, é impossível viver. **

De volta para o passado Uns querem uma máquina do tempo e viajar para o futuro querendo descobrir o que acontece por lá, mas eu não Quero é voltar para o passado igual o Michael J. Fox só que no sentido inverso Voltar para meus tempos de criança quando em mim sobrava esperança e não havia preocupação, exceto rodar pião, jogar amarelinha, bolinha de gude, futebol e videogame além das saudosas lan houses 64


Pega- pega , esconde-esconde, ajuda-ajuda, brincar de carrinho bater figurinha, fazer guerrinha de mamona e de bexiga com água no calor eram minha maior alegria e não precisava usar nada para poder dar risada Desprovido de maldade e ambição, nem pensava em ter inimigos só queria fazer amigos e ah como eu era inocente! Acreditava em super-herói, coelhinho da páscoa, papai noel não podia imaginar como o mundo é cruel e que no jogo da vida é sobreviver ou morrer Dinheiro, mulheres e fama nem passavam perto da minha cabeça A guerra fria existia, mas não pegava em mim Esperança gerava sonhos e todo sonho naquela época era possível Imaginação era fértil e eu podia viajar para qualquer lugar mesmo muitas vezes sem poder sair do lugar Sonhos, alegria, esperança é o combustível de toda criança que mantém sua vida Sem lamentações, agora só restam boas recordações, mas que saudades dos meus tempos de criança! **

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Naiara Mariano Saqueto [Aeris] É do interior de São Paulo. Está cursando Letras-Inglês pela Universidade de Santa Catarina (UFSC). Ela ama ficar com a sua família e brincar com suas duas cachorras. Seus passatempos favoritos são: ler, escrever, desenhar, jogar videogame e fazer atividades físicas. É vidrada em um chá da tarde acompanhado de uma boa música eletrônica. **

Humanidade em Tessitura Do passado emanam melosas lembranças de uma fama, que a Fortuna em sua teia trama, enodou os triunfos vacilantes de uma vitoriosa chama. Na alma há uma larga história deste passado, que não é fábula, impressa se faz em ilustre memória; a viva luz que o arco do tempo emula as linhas com vitoriosa trajetória. Em sacrifícios devotos aos humildes cuidados do Amor em sangue de mágoa, medo, miséria, angústia, desterro e dor O juízo isento da Morte, os montes fardos dos destinos, em sepultura lacrou e com os olhos em branda dedicatória a Esperança selou. Dos antigos ninhos de nomes, que a glória ninguém lhes tome, o seu templo de estátuas com notórios renomes em sono do eterno repouso dormem, nas antigas e vividas páginas em memórias da graça de vários homens. **

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Reinaldo Fernandes Reinaldo Fernandes, nascido em 24/7/63, formado em Letras, é professor, editor do Jornal de fato, autor de “Trilhas”, “Sob Suspeita” e “Minha Vida é Reticências”. Venceu vários concursos nacionais de literatura e tem inúmeras publicações em revistas literárias nacionais e várias antologias. Acredita nas pessoas, nas montanhas, no mar e em lua cheia. Gosta de ler, fotografar, bater papo, colher verduras em seu quintal. Já plantou uma árvore. **

2020: O ano que não foi Preparou-se para ir à Escola. Pela última vez. Ia levar seu caderno (aliás, muito bonito e caprichado) e pegar a Declaração de Transferência. Ia também para chorar e sentir saudades. Resolveu chamar um colega para acompanhá-la. E lá se foram os dois, pelas ruas do bairro, atravessaram o corguinho, passaram pelos bairros vizinhos. Chegaram. Cumprimentam o Rogério e se lembram das tantas vezes que ficaram ali, conversando, demorando para irem para a sala de aula. Às vezes, com o porteiro. Às vezes, com o “guardinha”. Antes de irem à Secretaria, decidem passar pela Sala Ecológica, sala ao ar livre, debaixo das mangueiras. “Qual escola de Belo Horizonte tem uma sala ecológica tão legal como esta?”, pergunta ao colega. “Nenhuma! Nenhuma! Em lugar nenhum do mundo!”, é a resposta dele, com uma lágrima nos olhos. Sentam-se nas mesinhas, fecham os olhos. Sentem-se voltando no tempo, segundo ano, sétimo, oitavo, novo… Vendo por ali seu Rony, seu João, trabalhadores da escola cuidando do jardim. E eles no centro da sala ecológica, jogando corta três, acertando a bola uns nos outros, naquela disputinha em que só sobrava uma pessoa, a vencedora, enquanto todas as outras sobravam! Ali também mataram muitas aulas! Levantam-se para irem até a quadra. Veem o professor Walber, xingando: “Ô, bagaça! Ajuda aqui, fica deste lado”, todo empolgado com as danças da festa junina. A professora Mariana, fazendo a chamada, sumida no meio daqueles meninos gigantes! A Professora Paula colocando enfeites. Ao lado, a Biblioteca, onde aprenderam tantas estórias e histórias. Tantas conversas com as “meninas” da biblioteca, Sônia, Isabel, Celeste e Alessandra. Tanto romance! Descem pelo bloco de cima. Passando em frente à sala 24, param. Olham para a sala, que, ao invés de vazia, lhes aparece cheia de gente, a falação sem parar, o professor Wisley pedindo silêncio para explicar a equação de segundo grau, um colega fazendo piadinhas, a outra segurando a mão do namorado, uma terceira dormindo ao fundo, um pedindo para ir ao banheiro (o que, todos sabemos, era só uma mentira para dar um passeio pelo nossa bela escola, passar em frente à sala do Professor Jamil, brincar com um colega no pátio, apenas molhar a boca no bebedouro perto da sala da Coordenação da Escola Integrada e voltar, desfilando a alegria de ser pertencer à EMASB – Escola Municipal Antônio Salles Barbosa).

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Sorriem. Abandonam a sala 24 e seguem para descer as escadas, em frente aos banheiros. Vão em silêncio, o coração apertado. Uma vontade de chorar. Ali se lembram do Saint Patrick Day, Halloween e a Professora Rudnéia quase aos gritos na gincana: “Vai! Vai! Vai!” e do Valentine’s Day, dia de se declarar anonimamente para aquele gatinho do outro nono ano. Na cantina lembram-se do Coordenador de Turno Gustavo, a fila, as cantineiras e suas guloseimas. Param na entrada da sala dos professores. Olham um para a outra, numa comunicação sem palavras. Entram na sala onde veem Nilza, Clarissa, Nathássia com seu turbante e Tide com um livro na mão e um coração cheio de ternura. Correm os olhos pelos armários das professoras: Vanessa, Vera, Carla, Ana Eliza, Tânia, Antônio Cláudio, Roberto, Mercês, Gérson, Herlon, Eurando, Bruno, Fernando, Luiza, Patrícia Magalhães, Alessandro, Flávio. Percebem que cada armário guarda mais do que livros, canetas e papéis: guarda carinho pelos estudantes, guarda cobrança, guarda preocupação com o seu futuro, guarda alegria, diálogos, broncas, “para-casa”, projetos. Guarda aquele vontade louca de ver todos os estudantes aprendendo, dando shows, se saindo bem. Também guarda provas, sim! Mas provas de amor! Saem dali como que enebriados de tanta saudade! Olhos marejados. Coração disparado, batendo feito bateria de escola de samba, feito carnaval da EMASB a cada ano, o Carlos da Integrada no microfone, anunciando os blocos: Bebê até morrer, Bloco do Paizão, As Góticas, Liga da Folia… Andam lado a lado no pátio. O pátio de tantos abraços, tantos beijos, tantos sorrisos, tantas brincadeiras e corre-corres. De repente ele se desvia para um lado. Para não trombar numa estudante cadeirante que vai conduzida pela acompanhante Iara. Passam pela sala do G. A. – Programa Geração Ativa. Os estudantes sentados em círculo, debatendo, numa alegria de causar inveja ao estudante mais risadinha do 9º A. Passam pela Coordenação Pedagógica e se lembram de Bia e sua brabeza. Das aulas de ciências, das DST’s, do corpo humano, dos hormônios, dos gametas... do laboratório. Ao lado está o xérox. Mas cópia, mesmo, a Lucinha diz que só com assinatura da professora. Porém tem uniforme pra emprestar! E, se você perdeu alguma pasta, caderno, lápis, trabalho, caneta, pincel, correntinha, se perdeu batom, relógio, pulseira, boné, sombrinha, blusa, pacote de bolacha, amigas, verdinho, colega que morreu ou foi morto no tráfico, nota na segunda etapa. Está tudo ali, pode pegar com Lucinha! Atravessam o pátio e se sentam num dos bancos, ao lado da sala 19. Veem os colegas, sem uniforme, coloridos, mochilas às costas, shorts e biquinis, preparando-se para a excursão “no clube”. Hoje o dia é de festa! Muita piscina! Almoço do bom, com muita carne! Os ônibus, cinco deles, já estão lá fora, esperando pela bagunça! É aula ao ar livre, com futebol, vôlei e muuuuuuuuuuuuuuitas fotos. Da porta da Secretaria, a vice-diretora Sandra os chama. Lá estão Andréia, Marcos, Ana Célia, envolvidos em mil papéis, telefonemas para as famílias, diários, atendimento aos pais que chegam o tempo todo. Passam pela Direção, onde a diretora Giovana lhes sorri. Ela entrega o caderno, pega a Declaração de Transferência. Neste momento, se esquecem completamente da COVID-19, das regras de distanciamento, e abraçam, juntos, a vice-diretora Sandra. Até Sandra se esquece, beija-os, quase aos prantos, acarinha-lhes o rosto, agradece o 68


tempo deles na escola, sua alegria, suas loucuras, a participação nas atividades, sua juventude a nos rejuvenescer a todos. Na portaria os dois param. Olham, mais uma vez, para o pátio da EMASB. Se abraçam. E ficam ali, num abraço eterno, a Declaração, as blusas, as calças, os tênis, tudo encharcado. De lágrimas.

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Edih Longo É Linguista e Prof. de Português, formada pela USP. Tem também formação teatral e faz parte do Grupo “Arte in Cena” de um Clube Paulistano. É poeta, contista, cronista, romancista e dramaturga. Já ganhou alguns prêmios nas modalidades. Dedica-se ao voluntariado de adolescentes carentes ministrando-lhes aulas de Teatro. **

Alucinação Está com fome? [Mate um homem e come.] Parece que foi ontem minhas lágrimas que me contem achava tudo uma hecatombe tudo trágico e disforme até descobrir que o que se esconde por trás da alucinação de se ser homem, é que uma coisa pequena fica enorme! Deixamos em nossos pisos, passos indecisos, passamos em nossas alamedas feito cometas perdemos minutos, segundos e horas que nunca vão voltar, foram-se embora agora só nos restam as lembranças de algumas passagens com relutâncias perdemos gestos que não demos noutros e não recebemos doutros. E agora? Que se adianta chorar se nada que foi vai voltar? Apenas registros em fotografias imagens paradas, expressões vazias por que não dei aquele beijo que eu quis um dia? E vamos sacolejando em nossa nostalgia. Está com fome? [Mate um homem e come.]

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Ah, que bons tempos que ainda se comia incertezas, doces correrias mas, Inês já é morta agora não importa essas dúvidas ficaram depois de nossas portas que fechamos ávidos por novidades alucinamos tanto, fingindo verdades que nossa realidade ficou na saudade se ontem não amamos nossa realidade nosso real de hoje é outro lobisomem perdemos no caminho nossa pedra-pome não limpamos nossas crostas e nos tornamos infames. Não trocamos abraços, ao dizermos tchau sem quaisquer embaraços apenas um olhar formal. Que falta agora isso nos faz! Mas, sempre existe um mas... Não se perca em lembranças O tempo não voltará para você ser criança. Continua com fome? [Ora, não reclame!] Um dia talvez... Quem sabe? Com serenidade, sem vexame o homem seja apenas homem e apenas ame! Mesmo que morra de fome. **

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France Gripp Poeta, ficcionista, escreve para adultos e crianças. Mestre em Estudos Literários (UFMG), professora de língua portuguesa (PUC Minas), mora em Belo Horizonte. Publicações: Eu que me destilo (1994); Vinte Lições (Dimensão,1998); Trililili Paralelá (Ed. aut./LMIC BH/MG, 2011), Coração Incendiário (Pragmatha, 2014), As aventuras de Bera Titan (Outubro Edições, 2020) e O rei dos imóveis (Caravana, 2021). **

New York, New York - como se sonhava Os ventos arranhavam naquele mês de dezembro. Às três da tarde, o dia tinha luz fria de mármore, pondo realce a qualquer cor da paisagem. Paisagem de estranho agreste, em que as árvores se destacavam, sem folhas, escurecidas e ressecadas pela ação do inverno. Eram todas seres solitários, enfileiradas na Palisade Avenue, então um caminho branquíssimo de neve. Pelas manhãs, os caminhões de limpeza faziam o trabalho de desobstrução, revelando a fita azul escura do asfalto da rua. Nas calçadas, caminhava-se sobre o tapete de gelo. Pessoas limpavam com pás a entrada das casas, enquanto à volta lindos montes de neve se formavam, perfeitos para que as crianças encapuzadas brincassem contentes, em paz com o frio. Cachecóis, boinas, luvas, botas e pesados casacos de lã. Enfeites natalinos nas lapelas. Lojas com sininhos tocando porta de entrada. E o som encantador daquela linguagem curiosa. Assim são as primeiras impressões sobre Union City, a primeira junto ao Lincoln Tunnel, no estado de New Jersey. Uma cidade plana, com um traçado de ruas entrecortadas em paralelas, pacata e estrategicamente situada, para os brasileiros moradores da região. O rio Hudson, impávido, mediava essa cidade satélite e a grande estrela que do outro lado resplandecia. New York – densa, bela, concreta e irrecusável – refletia nas suas águas o Empire State Building e o World Trade Center, de onde se despontavam as torres gêmeas, os Twins, uma delas ainda em construção, e seus séquitos, emergentes como uma ânsia coletiva. Eis o dia determinante da chegada. Imagens faiscando na memória. Impossíveis de serem detidas. Inapagáveis da emoção. O tamanho e a suntuosidade do Aeroporto Kennedy. A esmagadora sensação de surpresa com a tecnologia, a aparência das pessoas, a eficiência dos serviços. Estávamos em 1969. Brasileiros chegantes aos Estados Unidos da América. Expressamente oriundos de Minas Gerais, e que não estavam destinados ao turismo. Minhas lembranças vão e vêm neste ano de 2022. Tento resgatar o que foi vivido naquela época e, ainda, o que foi lembrado disso em 1994, ano em que primeiro recolhi anotações esparsas em cadernos, registros feitos em diferentes tempos. São recortes de uma história que, à medida em que se recompõe na escrita, a leio como falseada, uma vez que a voz que soava antes, não é mais a mesma. Parecem diferentes as vozes que ouço ecoar no rastro das memórias. Sei que sou eu, mas pareço outra, outras. No quero 72


desmanchar, porém, a juventude dessas antigas anotações; apenas trançar o ontem e o hoje, brevemente. Seria preciso revisitar as décadas de 60 e 70, para se compreender algo das grandes transformações. Então, a tecnologia impulsionava um novo modo de abertura dos olhos do mundo; intensificavam-se as trocas de mercado, e acelerava-se o trânsito de pessoas e culturas entre os países. A vida social, familiar e de relações de trabalho, se transformava no ocidente, pela força reivindicatórias das minorias, e segundo a emergência pujante das mulheres. A pílula anticoncepcional foi um marco divisor para todo o sempre. No Brasil, a ditadura impactava de muitas maneiras, os segmentos da população. Um fluxo migratório passou a ocorrer – que cresceria e persistiria nas décadas seguintes - e uma cidade mineira, Governador Valadares, sem projetos de desenvolvimento para sustentação econômica, tornou-se a base da diáspora de milhares de brasileiros para os Estados Unidos. Brasil: Ame-o ou deixe-o – esse era o bordão do governo militar da época. Então, mesmo amando, muitos partiram em busca de vida melhor. Para a garota de dezesseis anos, deslumbrada com os novos experimentos de vida, a palavra América pronunciava-se com a doçura do açúcar e a alegria de um sonho bom. Os aviões zunem como as espaçonaves imaginadas. Nas máquinas pode-se tirar fotografias instantâneas, e compra-se Coca-Cola, que já cai dentro de copinhos. Homens e mulheres bem-vestidos conversam num ritmo de inglês impossível. Parecia o cinema. Tudo é maravilha. Tudo é brilho e rapidez. Em New York, a população trepidava suas diferenças pelas ruas E tinha hippies! Originais, ao vivo! Destacavam-se os americanos brancos, enfastiados com a vida média. Cheios de Peace and Love, fumando maconha, enrolados em colares e cabeleiras longas, amontoados à direita e esquerda, pedindo que lhes comprassem passagens na rodoviária, contestando o establishment; eram uma inspiração nova. Muitos grupos de americanos negros exibiam plenitude, vestimentas e linguagem próprias. Abundavam os judeus ortodoxos, de todos os lugares; os Hare Krishna, os budistas, os indianos barbudos, os africanos do sul; e então cubanos, porto-riquenhos, mexicanos e demais hispanos ali invisíveis, como nós, os brasileiros. O mundo estava a um milhão por hora e eu nem suspeitava. Pouco sabia sobre o Vietnam. Nem o que era guerra fria. Nem de metrô com mais de cem anos. Nem de comida congelada e nem de urbanidade. Nem de pessoas que brigam pelo que pensam. Moças do interior do Brasil costumavam ser alienadas, mais ainda se criadas com sapatos de cristal. Eu não sabia que eram gigantescas, as disparidades entre os dois países. Durante as dez horas de voo partindo do Rio de Janeiro, com escala em Miami, tentei não me pensar no encontro com o serviço de imigração, às portas da alfândega norte-americana. Nos relatos, os agentes de governo eram vilões, e os que aportavam, suas vítimas, principalmente se vinham do leste mineiro, sem lenço nem documentos. Mas, na época, o fluxo imigratório ainda não era intenso. Assim, com passaporte de turista, um visto para seis meses de estadia – autênticos – e poucos dólares no bolso, entrava-se nos Estados Unidos. Chegados ao aeroporto, o táxi do português nos esperava. Tratado desde o Brasil para nos aguardar no Kennedy e nos levar, a preços módicos, através do bairro Queens a Manhattan, e daí a 73


Union City, ele carregava aquela espécie de patrícios, diariamente. O atendimento era particularizado. Dava recados, sabia parentescos. Notícias frescas, verídicas ou não, atravessavam o Atlântico, e muitas passavam por seu carro. Ainda vejo as primeiras cenas de New York: grandes quadrados cinzentos de concreto, paredes vermelhas cor de tijolos. A profusão de coisas, a multidão difusa, as estéticas. Excitantes mistérios, nada de perigos, pois eu não os via. Abrira-se o mágico portão imperial americano, para uma convivência de dois anos. O chão estava nas nuvens quando pisei “lá”. Secretamente, eu pensava em Tony Curtis, Kirk Douglas, Elizabeth Taylor, John Wayne, Burt Lancaster, Audrey Hepburn... Incontáveis estrelas, antigos encantamentos. Me vejo criança brincando depois de assistir aos filmes da matinê das dez. Éramos “mocinha e mocinho”, “índio e artista”, reis e gladiadores romanos que falavam inglês, moravam em Hollywood e em nossa imaginação. Encenávamos os personagens favoritos com longos vestidos e qualquer coisa capturada nos armários de casa, que pudesse virar espada, escudo, capa, cocar, tiara, flecha, talismã. Para as crenças infantis, tudo se resumia em ser “do bem”, ou do “mal”. E, afinal, em 1969 tinha a música de Elvis Presley, Bob Dilan, Ray Charles, Frank Sinatra, Aretha Franklin, Janis Joplin... Os Estados Unidos eram mesmo, demais. O lugar com o qual sonhávamos de olhos abertos. (Me contaram que lá, as portas se abriam sozinhas, e os namorados dormiam juntos!). Tempos adolescentes, assim verdes e esvoaçantes; quando o Brasil ainda pouco se reconhecia dentro do Brasil, e não projetava com os jovens, o próprio futuro. Acordar do sonho, é que foi triste.

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Dandara Arouche [Dantesca] Grotesca, tremenda e estupidamente estupenda, eu sou Dantesca. Não escrevo para me descrever, mas me descrevo em cada verso que escrevo, que todo aquele que me conheça não acesse meus desejos de escória, meu palato sujo e minha perversão sem antes provar o doce das minhas palavras, o gosto do meu afeto e as delícias das minhas carícias.

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Soneto do esquecimento Quando o tempo clamar seu nome Do alto de um sofrido abismo A resposta que ecoa some Na memória, cerne do masoquismo. Ao passo que rutila o querer da reminiscência Trôpega, falha, fina, algoz do prazer, iminência O beijo da lembrança perfura o sofrer pretérito Lampejando um deleite que se esvai como mérito. O relógio é feroz ceifador de elaborações Dos deslembrados, o apreço Confunde aqueles que buscam reivindicações. Dos deslumbrados, fiel endereço Retorno que se mostra sem saudações Antes que eu lembre, esqueço. **

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Willy Bortolini Tem 37 anos e é natural de Palmas, PR. Lançou recentemente o livro de fantasia "Relatos de um Náufrago" (2020) e traduziu dois livros de poesia do Italiano para o português, sendo eles "Harmattan, Parole Fuoricampo" de Antonella Corna e "Cuore con Voce" de Marla Dallagnese - todos pela editora Artelogy de Portugal. Formado em Educação Física, sempre gostou de arte, literatura e línguas. Aprendeu inglês e espanhol quando adolescente e em 2007 morou na Itália, onde aprendeu a língua italiana; trabalhou durante vários anos como coordenador de recreação e lazer em navios de cruzeiro, consolidando assim o aprendizado e a paixão pelas línguas. Hoje escreve, traduz e mora em Campo Largo PR. **

Éramos nós (Antonella Corta, tradução) Éramos nós a morte feliz dos anos, os dias sangrentos esperados, as arruinadas carícias que não existiram. O oceano tinha que vir e os detritos rasparem as brumas, soltarem as amarras, cortarem as ondas, as mãos. Olha estão arruinadas até as estrelas neste céu afunilado que engole teu grito e de poeira é o vau entre as pedras e a lua de sonhos e avalanches é a curva das costas. ~~ ~~

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Eravamo Noi (Antolla Corta, original) Eravamo noi la morte felice degli anni, i giorni sanguinanti attese, le diroccate carezze non date. L’oceano doveva arrivare e i detriti raschiare le nebbie, mollare gli ormeggi, tagliare le onde, le mani. Guarda sono corrotte anche le stelle in questo cielo ad imbuto che ingoia il tuo grido e di polvere è il guado tra le pietre e la luna di sogni e valanghe è la curva della schiena. **

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Nathália Rodrigues [Artista com TH] Brasiliense, tenho 19 anos e desde pequena gosto muito de escrever mas não acreditava que minhas redações eram tão boas quanto diziam, com o passar do tempo surgiram alguns versos a partir de músicas e trechos de filmes e enfim eu reconheci que poderia juntar tudo e fazer uma poesia própria, e foi assim que eu ganhei inspiração pra iniciar um novo Hobbie que pode vir a ser uma bela profissão no futuro. **

Abril Sinto saudade Da tua voz Do teu perfume Do teu sorriso Do teu abraço Do teu olhar Mas acima de tudo, sinto saudade de não sentir saudade Saudade de não saber teu nome, ou teu telefone Saudade de quando você não me via, nem me conhecia Saudade de quando eu não tinha sentimentos por você. Talvez se o mês de Abril não existisse eu conseguiria te esquecer **

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Kéren-Hapuque Graduada e especialista em Direito. Natural de Goiânia-GO. Escrever é o exercício de olhar dentro de si e ver a alma transbordar. **

Presa de lembranças (in memoriam de Mirtes, avó querida) Nada tão solitário como recordar Aquele momento (só)mente seu Sem poder o tempo voltar Ao que há muito já se perdeu. Reviver o passado é trazer o caloroso Derretimento de emoções e ausências O presente, ameno, faz-se de presenças Enquanto o futuro, frio, conserva transparências. Memórias vividamente minhas Aos olhos alheios apagam-se Revivem quando a boca descortina Narrativas quase esquecidas. Compartilho histórias, Para não ser presa de memórias, Transportando meu passado em seu futuro, Compartilharei o presente e não estarei tão só. **

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Alexandra Lopes da Cunha É autora de Amor e outros desastres (2013), finalista do Prêmio AGES na categoria narrativa curta em 2014, Vermelho-Goiaba (2014), Prêmio IEL 60 anos na categoria narrativa curta - autor estreante, Bífida e outros poemas (2016), Demorei a gostar da Elis (2017), finalista do Prêmio SESC em 2016 e do Prêmio Açorianos em 2017 na categoria narrativa longa e El Alacrán (2018). É doutora em Letras – Escrita Criativa (PUC-RS). **

Para as crianças O ventre, o ônfalo, o centro do corpo, o ponto do umbigo de todo o mamífero, o coto, ferida cicatrizada, marca inequívoca do início da vida nascida no útero, o berço, a casa, o ninho, no centro do corpo de uma mulher. Uma mulher grávida, o ventre abaulado, jovem, prenhe de vida, redonda e pesada a sua barriga aos nove meses de gestação. Uma mulher grávida em trabalho de parto. O parto é trabalho, é labor, é sina: rasga a mulher ao meio; ela grita, sofre, vaticina a chegada iminente do filho, cuja cabeça já coroa e ela, rasgada ao meio, faz então a última força. Mas forças maiores, muito mais potentes, rasgam-na para além do labor do parto: destroçam as suas carnes, rompem vasos e tecidos - seus e do filho não nascido. Uma mulher grávida, levava no ventre o corpo do seu filho. Uma mulher grávida nutria no centro do seu corpo outra vida. Uma mulher grávida foi morta por projéteis em uma maternidade. Uma mulher grávida nunca chegou a ser mãe. O nascituro passou a natimorto. A maternidade tornou-se necrotério. O ônfalo do mundo não é um ventre grávido, mas um fálico míssil onde estava escrito: para as crianças. **

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Bucha, Mariopol, Irpin Desde que meu marido voltou não consigo dormir. Na verdade, não durmo há tanto tempo que não sei, não tenho lembrança da última noite tranquila que tivemos. Há muito tempo não temos paz e só de pensar nisso, só de usar a palavra, arrependo-me, penso que não deveria nunca mais proferi-la porque a paz como eu a conhecia, um transcorrer de dias cujas rotinas me aborreciam vez que outra, aquele existir despreocupado, revelou-se impossível. O medo tornou-se um membro da família: senta-se conosco à mesa, dividimos com ele o sofá, a cama. Eu olho por cima do ombro, ou pelo retrovisor do carro, e vejo-o, sinto-o como sinto minha perna, meu braço. De fato, sinto-o como um outro eu; Um aterrorizado, brutalizado eu. A guerra, a angústia da guerra começou antes, bem antes dos choques; foi o carteiro que a trouxe. Depois do aviso de recrutamento, os preparativos mergulharam-nos num torpor, numa espécie de febre que apenas cedeu no momento da sua partida; ele estava lá, mochila às costas, uniforme militar e as botas, lembro-me particularmente delas. Foram os pés calçados a última porção dele que vi partir e a primeira que vi retornar. Quando se foi, levava-as novas, engraxadas. Ao voltar, tinha-as imundas, desfeitas, um espelho do seu estado, da sua desintegração. Cheguei a ficar feliz com a sua volta. Afinal, outros tantos retornaram dentro de caixões lacrados e outros nem mesmo assim, mas não percebi, talvez por ter me fixado na condição das botas, o seu estado de espírito. Também é possível que eu tenha me apercebido que se encontrava eviscerado, emocionalmente morto e, por isso, concentrei-me no estado das botas para escapar do desconforto, do medo que irrompeu em mim quando o tornei a ver. Eu não vivi a guerra, não tive a cidade destruída, a minha casa incendiada, os meus filhos mortos, mas não posso dizer que não a vi. As imagens da guerra chegavam-nos durante os noticiários enquanto comíamos – sim, tínhamos comida: o pão, os ovos, o leite e a manteiga. Assistíamos as notícias e continuávamos a comer, talvez até com maior empenho, usando bem os dentes, enfiando grandes porções à boca, deixando que a gema vermelho-alaranjada escorresse pelos nossos lábios e queixo, esquecendo para sempre os bons modos como se fôssemos bichos famintos, como se comêssemos preparando-nos para uma longa hibernação que aconteceu, de fato, com a sua volta. Conviver tornou-se um fardo. Vivemos ressentidos, ressabiados; eu, meus filhos e ele próprio deixamos de compreender como se vive, como é possível sobreviver a uma guerra. Passo a maior parte do tempo fora de casa, afasto dali os meus filhos porque temo por eles e por mim. Este homem que foi meu marido, este homem com quem tive filhos, quem é, afinal? Do que foi capaz? Do que ainda é capaz? Ele nada disse, nada contou, calou-se e solidificou, tornou-se um menir, uma figura megalítica cravada no centro da nossa casa, no seio da nossa família. Continuo a respeitá-lo, mas por motivos distintos; nutro por ele um medo respeitoso e me calo, fujo, pois temo o dia em que acordará do seu sono catatônico a rugir, a bater no peito e a arreganhar os dentes, a me exigir o sacrifício da nossa prole seguido do meu. Temo que deseje extinguir-nos como contribuiu para a extinção de famílias semelhantes à nossa, mas cuja guerra e o azar colococaram no seu caminho. Ele nada diz enquanto tem os olhos abertos, uns olhos vazios, vítreos, mas grita barbaridades quando fecha as pápebras e dorme. Os seus gritos ecoam por toda a casa, pelo bairro, e contam-nos dos combates, das mortes de camaradas cujas cabeças foram destroçadas ou os membros arrancados por explosões, que morreram queimados e urrar como bichos dentro dos 81


tanques, das tantas manobras militares de que participou: recuos, avanços, vitórias e fracassos. Essas revelações são terríveis, mas aceitáveis, de alguma forma. Afinal, o matar e o morrer fazem parte da vida do soldado. Compreende-se, ainda que horrorize pessoas como você, que se orgulham de nunca terem agredido alguém, não é assim? Eu também não, pensava nunca ter feito mal a um semelhante, ou achava que não até escutar o que escutei, até saber o que os exércitos fazem por dias e noites em nosso nome, em nome das nossas pátrias, a que torturas submetem famílias como a minha e a sua. Hoje sei: fui também agressora. Eu me calei. Eu vi partir o meu marido e devia saber, tinha obrigação de saber, que partia para destruir, para matar. Eu vi as imagens, assim como você as viu: as cidades reduzidas a escombros, sem hospitais, sem escolas, sem teatros, as cidades destituídas de prédios residenciais ou de casas de subúrbio, simples, feias e sem luxos. Casas como a minha e talvez a sua. E, no pátio dessas casas, que poucas semanas antes podiam abrigar um cão ou uma casa de bonecas, onde no verão anterior aconteceram reuniões familiares barulhentas ao redor de uma fogueira ou de assado, ou ainda de uma piscina de plástico providenciada às pressas para fazer a alegria das crianças acaloradas e ruidosas como as minhas (e talvez as suas), agora jazem corpos de homens, mulheres e até de crianças cujos dedos foram quebrados, cujos membros foram decepados para depois, talvez por alguma réstia de estranha piedade, receberem uma bala na têmpora ou na parte posterior da cabeça. Esses corpos jazem insepultos nas imagens. Esses corpos jazem insepultos nas lembranças deste homem que grita todas as noites desde que voltou. Esses corpos jazem insepultos para mim, como se jazessem aqui no meu jardim. Percebe agora porque nunca haverá paz? Os cadáveres desaparecem com os anos, decompôem-se, mas as lembranças deles, as imagens deles não desaparecerão jamais da minha memória. Muito menos da dele. **

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Alex Rosa Nasceu na cidade de Jundiaí-SP. Estudou em escola Pública. Premiado em mais de 70 concursos literários, nacionais e internacionais. Publicado em Antologias e Revistas literárias com textos em prosa e poesia. **

Os pingos de chuva que antecedem a tempestade Quando pequena, Lola tinha pavor de trovões. O medo continuou por toda sua vida, mas somente agora ela compreende que o medo maior não era do trovão em si, era não ter ninguém por perto quando eles começassem. O tempo está nebuloso hoje. Lola está velha, descartável. A idade é apenas um número. Uma insignificância na linha do tempo, tanto quanto, inerente à existência de cada um, de quem a carrega. Se ainda na juventude ela soa leve, pesa quando somos idosos. As cobranças das estações são implacáveis. Quando chega o momento em que o corpo já não obedece ao cérebro, a utilidade se perde e, com ela, toda uma vida de entrega. Tudo o que era “para sempre” se torna passado. As promessas são esquecidas. Com isso, os mais jovens se esquecem de que, embora a submissão de quem sustenta a carga dos anos nas costas seja maior, o sentimento é o mesmo; esquecem-se de que o brilho nos olhos – por debaixo de toda opacidade aparente – continua aceso e que a dor é ainda maior quando dependemos de cuidados, de carinho. A morte não vem por diagnósticos físicos; a falta de esperança é que manuseia a foice. Não há dúvidas de que a solidão preconiza os pelos brancos. A velhice é ingrata. Quando velhos, somos iguais a uma blusa em uma manhã quente de inverno, que, após aquecer por toda a noite fria, incomoda. Nem sempre fora assim, nem sempre foi abandono. Lola viveu uma vida plena, intensa e, paradoxalmente, calma. Como um sono leve desdenhando de sonhos agitados. Ela era a alegria de Ricardo, era seu sorriso. Sabia que tudo tem um fim, mas não imaginava, nem em seus medos mais audíveis, que seria desse jeito. Por anos, sofria a cada despedida, era feliz em cada reencontro. Esperava, por horas e horas, o momento em que Ricardo abriria a porta. Na época em que reconhecia em suas mãos apenas o carinho. Buscava sua alegria. Dar um motivo a mais pelo qual a amasse. Algumas vezes, extrapolava, admitia. Mas não é a expressão máxima do amor, extrapolar? Como se não fosse o suficiente ser apenas apreço. Queria mais do que colo, queria ser pacto. Lealdade. Queria todos os momentos. Lola costumava ser incansável. A felicidade de Ricardo a sustentava. Era o bastante. Ela o idolatrava. Seus gritos; sempre perdoou. Faz parte de seu instinto não guardar ressentimentos. No entanto, não sabia que a reciprocidade poderia depender de coisas finitas. A juventude do espírito e os sorrisos são eternos, mas o físico, esse tem data de validade. O tempo não ignora. O amor de Lola é o mesmo, seus passos que estão cansados, abandonaram-na. Contudo, nenhuma dor é maior que o descaso. Assim sentia a cada silêncio; a cada mão repousada sobre o novo; sobre a indiferença; a cada brincadeira ignorada longe de qualquer demonstração de afeto e de saudade. Ricardo buscava novas aspirações. Passava o dia em frente ao computador. Assim, longe das lembranças felizes, há tempos se despediram. Cresceram juntos, mas quando se mudaram para o deslumbramento da cidade grande; quando as coisas na vida de 83


Ricardo “deram certo”, ele perdeu algo dentro de si. Lola ainda esperava que ele encontrasse novamente – ainda espera –, nem que seja na juventude de outro ser, distante de seu ciúme irracional. Ricardo haveria de entendê-la, quando o peso dos anos também o descobrisse. Ela só queria continuar sendo a sua companheira. Ele não entendia em seu egoísmo que, enquanto ele desfrutava de outras relações, ela só precisava de sua companhia. Lola conhecia a dor da perda, talvez não disponha da vã inteligência de Ricardo e nem mais de energia, mas pertence a uma sensibilidade sem fronteiras. Aos poucos, ela percebia as trocas que eram feitas, a essência a se perder lentamente, dando espaço às coisas tecnológicas, das quais, sinceramente, ela não entendia o valor. Talvez, se fosse igual a Ricardo, faria o mesmo. Porém, sendo o que é, comportava-se diferente. Hoje, quando Ricardo a chamou para passear, ascendeu em si uma alegria sem precedentes, há muito esquecida. Estagnada pelo tempo de ausência – ainda que estivesse presente – e afeto inatingível, que em outros tempos fora excesso, Lola explodiu em jovialidade. No fundo, ela guardava esperanças de que Ricardo ainda fosse o mesmo de outrora, já tinha aceitado sua condição, mas renasceu a chama em seu coração. Não cabia em si tamanha felicidade. Ela estranhou o caminho, mas nada a abalava. Talvez uma surpresa? Um fim de semana longe do barulho dos carros. Talvez no lugar em que passaram os melhores anos desuas vidas. Foi lá que Ricardo aprendeu a admirar o céu noturno. Quando os dois eram mais que horas… quando eram momentos. A seriedade no olhar de Ricardo começava a assustar Lola, dava indícios de outro desfecho. Acreditou ter visto uma lágrima na face de seu afeto. Não importava. Qualquer preocupação era abandonada pelo júbilo do convite, eles estavam juntos novamente. Isso sim, era o que valia a pena em um mundo passageiro. O carro parou, Lola desceu. Estava eufórica. Ricardo tirou a coleira de seu pescoço. Como nos velhos tempos, fez um carinho triste em sua cabeça e jogou a bolinha para que ela fosse buscar. Lola correu, correu como nunca havia corrido – entre as árvores de um lugar remoto e desconhecido. Sua alegria era muito maior do que seus pulmões cansados. Sua felicidade era seu combustível. Tudo isso era representado no frenético balançar de rabo. Lola pegou a bolinha como quem pega o maior prêmio, a amizade. A cumplicidade é a maior virtude de um cão e seu amigo. Ela foi feliz novamente…nem que tenha sido pela última vez. Lola ouviu o barulho do motor do carro, um ronco inconfundível, que, por muitas vezes, ressoou alegria. Olhou para trás, desesperada. Desiludida. O automóvel se foi, sem receios. Levando consigo toda confiança e deixando uma dor irreparável na alma. De Ricardo, nem sequer um olhar de despedida pelo retrovisor. Um latido, sem objetivo e triste, ecoa pelas árvores. O tempo está nublado. Nos olhos, as primeiras gotas de chuva caem sobre a pista deserta. O rabo se embrenha entre as pernas. Ricardo ignora os trovões a caminho da casa vazia. **

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André Tourinho Nascido em Salvador, André Tourinho, possui poemas publicados pela PUC-SP, Católica do Salvador (UCSAL), e, mais recentemente, integrou também em prosa a coletânea internacional da Rede Sem Fronteiras, além de participar do CLIPE, curso formacional de escritores da Casa das Rosas. Atualmente graduando em Comunicação Social na UFRJ, lançou em dezembro o livro poético “Doce Caos”. **

A sina de uma flor Não! Por qual razão? De fato ser responsável por aquilo Que por desatino qualquer cativo Esboce o planetário pesar Que uma pobre flor na praça Haveria de ali carregar Por cada passante assediada Em plena luz do dia Em pleno Sol do meio-dia Talvez por essas leve sou Se a mim tudo fascina Já esfacela murcha a flor Vítima de sua beleza nociva Cessa sem dono ou nome Na terra da qual brotou, some Da luz que viu, pura cobiça Se menos majestosa fosse Perdida entre rosas e Adônis Estaria viva, mas quem a lembraria Em versos de aroma eterno? Breve mártir de memorável sina. **

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A céu concreto Nunca!... Tive o intento de te machucar Cruéis mãos que capazes São de cometer atrocidades Num piscar desatento Sem nem perceber ao luar Com sílabas, que sangrento Aquele momento, aquela cena Impossível de não se lembrar Hoje, perdeu-se o trato Até com os amados Num mundo cor-de-derrota Há quem minta e negue a si Pois os reconforta a inverdade Que, inevitável, desaba noutrora Com o caos, a virulência Cada vez mais banais Degrada a humana essência Para, em sua deixa, Sucederem ogros de terno Civilização primata Que de avançada vejo nada Quem dera termos Regredido séculos Apenas se insiste a reprise Das já velhas décadas O passado recente Decreta a sentença Do vivente presente Digníssimo de pena Grosserias tornam-se linguagem Bocas agora latem Gentileza soa como lenda Nunca tanto se teve Em meio, uma crise humanitária Converte o homem em animália Tão fácil é sobreviver, e Tão mais difícil de viver-se Reconhecer-se Na ambiência que aos poucos deturpa 86


O reflexo do ego, uma imagem turva Presa dum habitat, imposta dita dura. **

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David Ehrlich É natural da Alemanha, onde passou os primeiros dois anos de vida. Suas experiências mais importantes, porém, foram colhidas em Curitiba, onde mora. É formado em Jornalismo e especializado em Narrativas Visuais. Atualmente atua como assistente de redação. Desde bem pequeno ganhou enorme paixão pela leitura e pelo cinema, e é fascinado pelo fantástico mundo das artes, em especial a literatura, em que sente maior liberdade. **

Culpa trancada - Está na hora dos seus remédios... - Eu não preciso de remédios, srta. Comingore. Traga-me os roteiros de hoje. Suspirou. - Eu não sou sua secretária, pai. Sou Olívia, sua filha, lembra de mim? Seu pai fitou-a nos olhos, e piscou. - Sim, claro, Olívia. Um pai sempre é capaz de reconhecer a própria filha. – E continuou folheando uma pilha de papeis velhos, ignorando completamente as pílulas que a filha segurava na mão e tossindo até perder o fôlego. Olívia queria gritar. Sentia dentro de si uma explosão se formando, que sob circunstâncias normais a faria gritar, chorar e jogar no chão qualquer coisa que tivesse à mão. Porém não conseguia fazer nada disso. A explosão estava contida dentro de um grosso cofre imaginário, e tudo que Olívia sentia dela era um estampido abafado. Desde quando era criança, sempre vira seu pai como uma espécie de deus. Inicialmente dono de uma pequena produtora audiovisual, rapidamente enriqueceu produzindo filmes-propaganda durante a guerra, e quando sua filha nasceu ele já era um dos maiores magnatas do cinema nacional. Olívia raramente o via, e quando isso acontecia ele estava sempre ocupado com telefonemas, aprovação de roteiros e jantares com diretores, durante os quais sempre deixava clara sua posição de superioridade. Então veio a demência precoce. Aos 60 anos ele já estava completamente incapacitado de prosseguir com suas atividades como produtor. Olívia até queria na época cuidar dele, porém teve que relutantemente deixa-lo em um lar de idosos: entre sua carreira como repórter e os cuidados com o filho pequeno, muitas vezes mal tinha tempo para dormir, e também não tinha muito como contar com a ajuda de seu marido, que por ser policial passava dias inteiros fora de casa. E então, literalmente do dia para a noite, tudo acabou. Sua vida acabou. Em uma noite na qual tanto ela quanto o marido estavam de folga, enquanto jantavam com o filho, a porta da casa foi arrombada, e um bandido entrou de arma na mão. Seu marido até tentou reagir, mas foi baleado junto com a criança, e morreram na hora. Olívia não foi morta, mas ao invés disso foi 88


amarrada e estuprada, deixada então sozinha com os cadáveres da família após o bandido ir embora com tudo que tinha conseguido roubar. O homem, através de evidências, foi rapidamente encontrado e preso, porém mesmo assim Olívia não conseguia encontrar uma maneira de voltar a viver sua vida. Então soube que seu pai estava moribundo, e tomou a decisão de tirá-lo do lar de idosos: enquanto pudesse, queria ao menos cuidar do único membro ainda vivo de sua família. O deus com o qual crescera, porém, já não existia mais, e tudo que restava dele era um ídolo oco, que qual um tambor mal feito tocava sempre as mesmas notas. Às vezes chegava a fazer esforço, porém ao final era incapaz de entender as circunstâncias em que se encontrava, e não aceitava que havia envelhecido ou que precisava de assistência. E isso não deixava apenas Olívia triste, mas também ele próprio: sempre que tinha um vislumbre de consciência, ficava triste com como tudo mudara para pior, e voltava a se refugiar em suas memórias, tanto reais quanto fantasiadas. - Mãe, quando é que papai vai voltar da floresta? – Era algo que perguntava a Olívia quando ela o colocava para dormir. Ela sabia que a infância que ele descrevia nesses momentos não era real: o pai dele era dono de uma papelaria, mas em suas fantasias o homem o confundia com o personagem de um filme-propaganda que produziu, um lenhador que, trabalhando na floresta, é capturado por soldados inimigos, e luta para voltar para casa. “Quando é que papai vai voltar da floresta?” é o lamento repetido por seus filhos ao longo de todo o filme, que na cena final se torna um coro de centenas de crianças cujos pais lhes foram arrancados pelo insensível inimigo durante a guerra. A guerra, a guerra! Quantas vezes o pai de Olívia ainda achava estar naquela época! Olívia era então nova demais para ter quaisquer memórias, mas em compensação o velho homem tinha até demais, e elas constantemente embaralhavam-se umas com as outras. Lembrava-se do treinamento de rifle que tivera na reserva e de seu severo instrutor – com o qual inclusive confundia Olívia quando ela era muito insistente –, porém em sua mente tudo isso tinha acontecido quando era adolescente, e às vezes até comentava que sua mãe ia assisti-lo – quando na verdade ela ia assistir seus treinamentos de atletismo. A mãe dele era outra figura misteriosa. Olívia nunca a conhecera, seu pai tendo ficado órfão quando jovem, porém em suas crises ele se lembrava dela das formas mais díspares: carinhosa, rígida, controladora, negligente, uma mulher apagada que vivia discretamente, ou então uma figura exuberante e maior que a vida. A filha nunca sabia quando ele falava da mãe e quando falava de alguma personagem de seus filmes, e aparentemente ela jamais saberia como sua avó foi de verdade. Olívia decidira cuidar do pai para se conectar com a única pessoa que lhe restava no mundo, porém quanto mais convivia com ele, mais percebia que não o conhecia: ele foi, afinal, uma figura pública, e mesmo os momentos mais pessoais dos quais se lembrava contavam mais sobre a história recente de toda a nação do que sobre ele próprio. Conforme a morte se aproximava, a mente de seu pai tornava-se cada vez mais confusa e desconexa da realidade. O mais duro não era nem ele confundi-la com qualquer outra pessoa com o qual conviveu; era ele, mesmo nos momentos cada vez mais raros em que a reconhecia, duvidar dela, seja de suas capacidades ou intenções. 89


- O que está fazendo aqui no meu quarto? Filhos não devem entrar no quarto dos pais! – Ele muitas vezes ralhava quando ela cuidava dele na cama, tratando-a como se ainda fosse criança. Este, porém, era o comentário que menos doía. - Eu sei por que você está cuidando tanto assim de mim: só quer garantir que a herança vá toda para você, né? Mas saiba que eu não sou de deixar me bajular: seus outros irmãos também receberão a parte deles. – Era outra coisa que ele frequentemente dizia, citando os filhos das outras três esposas que ele teve além da mãe de Olívia, e que nunca vieram visita-lo nem no lar de idosos e nem agora em sua casa. O pior de todos os comentários, porém, fez um filete de fumaça fétida da explosão dentro de Olívia escapar para fora de seu cofre imaginário: - Por que você está cuidando de mim e não do seu filho? Francamente, que filha que criei: abre as pernas pro primeiro homem que apareceu, e daí deixa a criança aos cuidados de qualquer pessoa. Parece até uma mulher da vida! Olívia, que lhe dava o almoço naquele momento, imediatamente largou o prato. - Pai, - Ela disse, em voz quase calma – eu sei que daqui a cinco minutos você não se lembrará mais de nada do que eu te disser, mas peço que nunca mais abra a boca para falar do meu filho. Sabe por que não estou cuidando dele? Porque ele foi morto, junto com meu marido, que não era um “primeiro homem que apareceu”! E nunca mais me chame de “mulher da vida”. Quem me chamou assim da última vez foi o mesmo homem que me estuprou logo após dar um tiro no meu menino! Eu estou cuidando de você porque você é tudo que tenho, e tudo que recebo é xingamento e reclamação! E eu digo para mim mesma que está tudo bem, porque você é um velho demente que não sabe o que fala. Mas se for para falar do meu filho ou do meu marido, eu espero que você morra logo! Seu pai calou-se, porém não foi por apenas cinco minutos: pelos três dias seguintes, conforme a morte se aproximava, ele não falou mais absolutamente nada. Olívia duvidava muito que ele se lembrasse do que ela disse, mas certamente a impressão causada foi tanta que ele não ousou mais abrir a boca. No terceiro dia, com o pai ainda mudo, estava claro que aquelas seriam suas últimas horas: toda vez que ele fechava os olhos, parecia que seria a última vez. “Deus, não faça ele morrer comigo sentindo culpa pelo que disse!”, pensava Olívia. Queria pedir desculpas, mas de que adiantaria se ele não se lembrava do porquê? - Harris... – Seu pai de repente murmurou, e ainda repetiu – Harris... E então não houve mais nada. Expirou, e nunca mais inspirou. Passaram-se vários dias. O pai foi devidamente enterrado, porém Olívia ainda estava inquieta. Não conhecia nenhum Harris. Não soava como o nome de ninguém que se lembrava da produtora de seu pai, e em nenhum momento antes de sua demência ele o havia citado. E ainda assim, aquela foi sua última palavra antes de morrer, após três dias de total silêncio. Olívia tentava convencer-se de que estava apenas sendo sentimental, porém há algo poderoso nas últimas palavras de uma pessoa, especialmente com demência. Dizem que na hora da morte muitas vezes ela solta aquilo que estava mais reprimido nela, cuidadosamente trancado em seu próprio cofre imaginário. 90


Pesquisou por qualquer Harris que tivesse conexão com seu pai, determinada a descobrir o significado daquela última palavra. Sendo seu pai um magnata do cinema, havia centenas de resultados na internet para investigar, porém encontrou um que lhe chamou a atenção: uma nota em uma coluna de fofocas, citando um homem chamado Harris que, supostamente sob efeito de drogas ou sofrendo de problemas psiquiátricos, mostrou a genitália ao famoso produtor durante uma coletiva de imprensa. Desagradável, sim, porém nada tão grave que merecesse uma manchete, e o homem foi prontamente retirado do local, nunca mais tendo qualquer envolvimento com o pai de Olivia. A mulher estava certa de que esse era o homem que procurava. Mas por que seu pai teria se impressionado tanto com um maluco que abaixou as calças na sua frente? Pesquisou apenas a respeito desse tal de Harris, sem envolver o pai, e descobriu que aquele homem algum tempo depois foi condenado por assassinar a própria esposa. A mesma notícia mostrava uma foto dela, uma mulher bastante bonita. Porém Olívia lembrava-se de tê-la visto em algum lugar. Onde poderia ser...? Então lembrou-se do dia em que, ainda criança, teve curiosidade em entrar no quarto do pai. Foi a primeira vez que ele brigou com ela por fazer isso, porém enquanto vasculhava tudo encontrou uma caixinha... E uma foto daquela mulher estava lá. Ainda não vendera o apartamento de seu pai, como pretendia fazer. Correu até lá, e vasculhou o quarto em busca da velha caixinha. Encontrou-a e, em meio a diversas outras fotos e bilhetes que em algum momento o homem achou importante guardar, estava a foto daquela mulher. Quando criança, impressionou-se apenas com a beleza dela. Desta vez, porém, notou que a mulher não olhava para a câmera. E que, apesar de o zoom deixar difícil identificar o local onde a foto foi tirada, a mulher estava com os ombros desnudos em frente a uma parede de azulejos. Olívia logo entendeu o contexto da foto: seu pai tirou-a escondido quando a mulher estava prestes a entrar no banho. Um contexto terrível demais começava a se formar na cabeça de Olívia. Não podia ser verdade. Qualquer psicanalista avaliaria que ela procurava motivo para odiar seu pai por ter morrido, e nisso projetava sua própria tragédia pessoal nele. Porém a mulher era uma repórter. Mesmo abandonando a profissão temporariamente para cuidar do pai, continuava tendo seu espírito. E ela queria investigar mais a fundo aquela história. Devido à sua experiência como repórter, sabia o quão corrupto o sistema de justiça podia ser, e que seu pai, rico como era, conseguiria facilmente comprar sua inocência, não importa o que fizesse. Entrou em contato com os antigos colegas de seu marido na polícia, e através deles confirmou sua suspeita: apenas um dia antes daquela coletiva de imprensa, Harris chegou a ir à delegacia para denunciar o que disse ter sido o estupro de sua esposa, porém esta logo em seguida negou tudo, e o caso foi arquivado. Se seu pai tivesse feito aquilo, não seria surpresa Harris querer no dia seguinte fazer o que fez. Mas por que a esposa negou o estupro? E por que Harris a teria matado? Sabendo como seu pai gostava de se sentir superior aos outros, Olívia tremia ao pensar que para ele não bastaria apenas estuprar aquela mulher: ele poderia muito bem também a ameaçar, dizer que conseguiria convencer a justiça de que foi tudo consensual... Se ela o quê? Se ela não falasse nada? Mas para o marido ela falou... Se ela não aceitasse ser amante dele. Isso sim, era mais a cara de seu pai. E por que ela foi assassinada? Algo que resultasse em uma prova 91


incontestável de seu crime... Uma gravidez. Entrou novamente em contato com os policiais, e confirmou: a mulher foi assassinada com um tiro de rifle... A mesma arma que seu pai treinara para atirar na guerra. O julgamento do marido foi mais rápido que o normal, e ele suicidou-se um dia após ser preso. Olívia não tinha provas, exceto a foto. Porém seu cofre imaginário fora aberto, e a explosão que continha tomava conta dela. Em seu computador, preparava uma reportagem sobre o pai. Mesmo que não conquistasse nada uma vez que o pobre Harris estava morto, estava decidida a argumentar que o homem foi condenado injustamente. - Pai, - Ela dizia em voz alta – Se você está me ouvindo, saiba que enfim não sinto culpa pelo que te disse. Ou, pelo menos, sinto bem menos culpa do que você claramente sentiu ao morrer. E não tenho pena nenhuma por isso.

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Deborah Oliveira de Fusco Nasceu em 1985 na cidade de São Paulo. Farmacêutica, doutora em Alimentos e Nutrição, atua paralelamente como voluntária em causas relacionadas à educação. Também escreve contos infantis e poesias contemporâneas de diversos temas. Dentre eles, os que incentivam uma vida mais sustentável, as ciências e a imaginação. **

No verão passado As marés às vezes perto, às vezes longe, jamais mudaram. Foi na sombra de uma árvore em um dia ensolarado, que uma ideia surgiu. Inspiração que chegou do aroma de café com bolo de chocolate. Pincel que tocou a tela em branco sentimento de liberdade. Trabalho elaborado com lembranças do passado. Na galeria, olhares atentos, aplausos e reconhecimento conquistado. **

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Diogo Libana Paranaense, morando atualmente em Sorocaba / SP, pós-graduado em Gestão da Inovação, Tecnologia e Empreendedorismo (2021). Sempre me motivou o propósito de entender a mente e a máquina, a ciência e a religião, a lógica e a magia em tudo que nos cerca. Essa dualidade me permitiu trabalhar como agente cultural, administrar espaços culturais, ser ator amador, poeta, organizador de eventos e, ao mesmo tempo, formar-me em Análise e Desenvolvimento de Sistemas. Atuei também como Conselheiro de Cultura Municipal (Francisco Morato / SP) representando o segmento de literatura. **

O momento e a memória Diz-se que apenas uma vez se bebe, se come e se ouve cada som. Segue a vida, sendo intensa, em cada primeiro sabor, cada novo acorde ou cor, não apenas enquanto se é criança. Diz-se que todo som, nos soa bom ou ruim, dependendo da lembrança. E todo estímulo, segue assim, de chorar ao primeiro túmulo, ou inalar a primeira florada de um jasmim. Saborear a vida, diz-se, é revisitar os registros dos mais marcantes momentos. Se tudo só acontece uma vez e depois... Torna-se um truque de nossa mente… É preciso seguir ampliando o repertório de experiências no momento presente. ** 94


Fernando Martins Almeida Caiçara do frio e ufólogo não praticante. **

Guerra civil Dentro de mim existe um semáforo ele trabalha de madrugada Trocando cores para ninguém Depois de andar em círculos pela via dolorosa Você encontrará minha pineal na sopa sobre a mesa Engano acreditar que há tempo para tudo debaixo do Céu Nasci pra ser uma lembrança Tanta dor e poder Cansado de me sentir nublado Tentei de muitas maneiras Recordar o que vim fazer aqui Quando morrer vou ignorar a luz no fim do túnel e esperar o riso da foda dos meus ancestrais ecoa luxúria, tirania Em meu esperma encerra-se a árvore fanática religiosa da família Não vou passar genes de ovelha para frente De Shambala até Aruanda Todos os paraísos pós-vida Além das projeções, segundo cada fé Ainda encontrarei a verdadeira e última realidade **

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Luciano Lanzillotti Nasceu no Rio de Janeiro em 1975. Licenciado em Letras (UNISUAM), Mestre e Doutor em Literatura Brasileira pela UFRJ, com pesquisas orientadas por Eucanaã Ferraz e Dau Bastos sobre as poéticas de Manuel Bandeira e Ruy Espinheira Filho. Lançou o livro Geometria do Acaso, pela Editora Dialética, em 2021 e edita o blog Orelhadepapel. **

Rua A rua da minha infância vai desaparecendo com o fim dos moradores. Meu nome também vai com cada um deles: primeiros passos, aniversários e amanheceres. São tantos os que se foram antes do tempo, porque o tempo nunca estará certo em nenhuma partida. Brinco com aquele menino morto pela meningite. Ouço os mais antigos, felizes ao me verem chegar da escola ou sorrindo por ter trilhado caminho correto em meio à tão raras escolhas. Cada um resiste em mim a ir embora e resisto a me ir de todos vocês. **

Tempo-circunferência Não foi apenas a rua, também a casa da infância foi se esmaecendo. Muitos cresceram, outros partiram: paredes, pisos, azulejos ainda permanecem desbotados. Tantos sonhos e gritos deixados, sequer sei o que veio e o que ficou. 96


Revivo pessoas, momentos e encontro a mim nesse tempo-circunferência: quem era aquele menino que sofria tanto? **

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Maria de Fátima de Barros Neves Pernambucana, Maria de Fátima nasceu em 1960, em Olinda, onde viveu a infância e a adolescência. Professora aposentada do Colégio de Aplicação da UFPE, escreve desde a juventude, mas só recentemente pôde dedicar mais tempo à poesia. Publicou os livros de poemas Discurso das Águas (2006); Cores do Outono (2012), Certa Poesia (2013), O Pássaro das Manhãs (2014), Tempo de Estio (2016), Ponto de Fuga (2019), Marca d’Água (2020) e Retrato em Giz (2021). **

As cores da infância Pequena, eu procurava as cores. Naquela época, porém, era mais fácil encontrá-las nos arredores da casa, pois mesmo a televisão era em preto e branco. Então uma das minhas maiores distrações era observar, através do basculante da sala, os animais na campina bem verdinha. Não faltavam bois, cavalos, burros, patos, porcos, galinhas a perambular de um lado para o outro, pois morávamos entre duas vacarias: a do Seu Vavá e a de Seu Salate. Eu passava horas a fio a acompanhar e escutar os animais. O boi muge, o cavalo relincha, a galinha cacareja. – mamãe me ensinava enquanto furtivamente os espiávamos. E o pato? E o burro? – eu indagava curiosa. No inverno, me intrigavam os animais encharcados, aparentemente sem frio, calmamente resignados sob a chuva, enquanto nós a evitávamos a todo custo, com nossas sombrinhas, capas, galochas. Depois dos últimos chuviscos, se viam aqui e ali imensas poças de água bem limpinha, onde nadavam os patos, enquanto um burrinho ou cavalo matava a sede. Também me surpreendia o fato de que os animais faziam suas necessidades a céu aberto, sem qualquer cerimônia ou pudor, enquanto em casa éramos todos tão reservados. Igualmente me interpelava ver uma vaca ou égua com um ventre enorme. Por certo, comeu muito. – eu pensava. E mesmo que algum tempo depois aparecesse um bezerro ou um cavalinho, na minha perfeita inocência, eu não ligava um fato ao outro. Naquela época, não se falava de acasalamento com as crianças; os animaizinhos simplesmente surgiam, e os adultos não nos davam uma explicação plausível: É papai do céu quem faz os animais. – diziam mamãe ou minha tia caso eu as indagasse. De certa forma, o mundo real lembrava o universo mágico dos contos de fada, e não lhe faltavam as cores. Era o azul no céu, por vezes, manchado de branco ou subitamente pincelado de cinza; era o verde na campina, esmarrido pelo sol ou lustrado pela chuva; era o rosa-claro nas orelhas dos porcos marrons; eram os gansos ora brancos e limpinhos, ora cinza e enlameados. Faltavam cores, contudo, nos livros e cadernos escolares. Nos anos iniciais do curso primário, os livros traziam apenas algumas ilustrações ou fotografias em tons de preto, branco e cinza. Depois surgiram livros de leitura com desenhos em uma única cor. Eram páginas inteiras de longos textos, acompanhados por pequenas figuras em azul, em verde, em laranja, em marrom... Assim, uma viagem de navio seria ilustrada em azul-marinho; um poema sobre o campo traria ilustrações em verde-garrafa; um texto sobre as abelhas viria acompanhado de um desenho amarelo-ouro. Enfim, a vida representada guardava certa incongruência e alguma melancolia. Eram igualmente austeros, nos moldes da ditadura militar, os cadernos escolares. Traziam, na capa, em primeiro plano, um professor a lecionar, um aluno na sala de aula, soldados armados ou algum personagem histórico, enquanto ao fundo tremulava estática a bandeira do Brasil. Na 98


contracapa, via de regra, lia-se o hino nacional, o hino à bandeira, o hino da independência ou algum outro que, como os demais, eu não conseguia compreender. Talvez porque eu estudasse em uma escola católica, nunca me fora explicado o significado de versos como “Nosso augusto estandarte que puro, / brilha, ovante, da Pátria no altar!”, que eu cantava de cor nas comemorações escolares. É verdade que na biblioteca da escola pública em que mamãe lecionava havia grandes livros coloridos, com páginas reluzentes, onde viviam príncipes, mendigos, rainhas, plebeus, princesas e serviçais. Sempre que mamãe me levava para o trabalho, enquanto ela dava aula, eu lia histórias encantadas, povoadas de duendes travessos, fadas bondosas, cavalos alados e florestas misteriosas. Já na biblioteca de minha escola, que ficava no topo de uma escadaria suntuosa, havia poucos livros coloridos, e eles eram pequenos, e suas ilustrações pouco graciosas. De qualquer sorte, eu passava o recreio a ler e reler aqueles livros, a percorrer as mesmas páginas, experimentando o doce prazer de antever ora o enredo ora as palavras. Em casa, por sua vez, não havia livros de histórias, mas revistas de moda. Mamãe comprava sempre Burda, um figurino em cujas páginas iniciais se viam mulheres magras, altas, com saias justas, sapatos de salto fino e penteados impecáveis. Lá pelo final da revista, havia fotografias de bolos, tortas, doces, sorvetes. Eram coloridas essas publicações e eu as adorava folhear, embora suas palavras fossem extensas, enigmáticas e repletas de consoantes. Minha tia, um dia me explicou que tais revistas eram escritas em alemão. E como ninguém em casa pudesse me dizer o significado daqueles textos incompreensíveis em torno das fotografias, eu imaginava descrições, narrativas e até receitas mirabolantes. Sentada no sofá, com um figurino no colo, eu lia para tia Bebé textos imaginários em voz alta. Ela me escutava atentamente e tão bem fingia acreditar nas minhas traduções que até as comentava: Sim, mas e o chapéu? Não o descrevem? – argumentava. E eu prosseguia: Ah, aqui está. É cinza, com um belo laço de fita. E ela balançava a cabeça e sorria com tanto orgulho e admiração que eu própria acreditava no que supostamente lia. Minha tia Isabel tinha longos cabelos ondulados, pretos, com mechas grisalhas, que lhe rendiam um discreto coque ou duas idênticas tranças. Magrinha, usava um único modelo de saia e casaco, que sua costureira, à custa de muita insistência, conseguia ligeiramente modificar: bolsos com ou seu abas, botões maiores ou menores, tecidos lisos ou estampados, mangas curtas ou longas. Eu a achava tão bonita com um conjunto cor de goiaba e um colar de pérolas creme que realçava sua pele castanho-clara e seus olhos verde-mar. Tia Bebé, com seu largo sorriso e sua infinita bondade, foi a mais bela cor da minha infância. **

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Vendas e marcearias Nos anos 60 em Olinda, não havia supermercados. No Bairro Novo, no final da rua onde morávamos, uma feira enorme ocorria aos domingos. Íamos eu e minha mãe comprar frutas e verduras para a semana. O curioso é que não levávamos nem sacolas nem sequer um carrinho de compras. A princípio, escolhíamos coentro, alface, couve, cebolinho, pimentão, enfim tudo que não pesasse tanto, até que, pouco a pouco, os sacos plásticos se acumulavam em nossas mãos. Nesse momento, algum garoto sempre se aproximava para oferecer seus serviços: – Balaio, madame? – Pra levar ali, no começo da rua, quanto é? – indagava mamãe, apontando em direção à nossa casa. – Eu faço por 10. – Semana passada, paguei 5. – argumentava mamãe. O carregador, por vezes, se mostrava irredutível e a negociata prosseguia. Fechado o negócio, era a vez de compramos bananas, laranjas, abacaxis, jacas, inhames, batatas… Os feirantes já nos conheciam: Freguesa, olhe, sapotis e carambolas, venha provar! Outro mais adiante gritava: Feijão verde bem novinho só tem aqui! E enquanto caminhávamos de uma barraquinha a outra, o garoto nos acompanhava resignado, com a imensa cesta na cabeça sobre a rodilha. A princípio, ele apenas se inclinava para que mamãe pudesse alcançar o balaio em que se acumulavam frutas, verduras e cores: o verde dos limões e quiabos, o amarelo dos cajus e maracujás, o roxo das beterrabas e beringelas… Mas após algum tempo, o garoto já mal suportava o peso, então, cada vez que parávamos diante de um tabuleiro, ele punha o balaio no chão, e silenciosamente suplicava com o olhar: Madame, tenha pena de mim! Mas mamãe, preocupada em bargantear e fazer boas compras, nem se dava conta do pobre do menino, e tampouco eu ousava interceder a seu favor. Só quando o dinheiro estava prestes a acabar, mamãe decidia voltar para casa: Até pra semana, freguês! – dizia ela satisfeita. Saíamos do pátio da feira enquanto o carregador nos seguia a passos lentos, pois o balaio já quase transbordava. Essa feira-livre ocupava um imenso lote baldio, de terra batida, onde os rapazes da vizinhança jogavam futebol durante a semana, no final da tarde. Na esquina desse mesmo terreno, havia uma enorme barraca: era a venda de Seu Joca. Lá tinha arroz, feijão, açúcar, farinha, sal, óleo, bolachas, biscoitos, broa, enfim tudo que pudesse faltar em casa no dia a dia. Essa venda era também um ponto de encontro onde os jogadores, após a partida de futebol, e os feirantes, no fim da feira, tomavam uma cerveja ou uma lapada de aguardente com caldinho de feijão. Eu bem que gostava de vê-los de longe, sempre alegres, a conversar e dar risadas. Mas minha tia não queria que eu fosse lá; segundo ela, não era um ambiente familiar. Mesmo assim, vez por outra, eu a desobedecia, porque Seu Joca vendia dudus e picolés, e eu adorava os de morango. Nos Bultrins, ficava a venda de Seu Manebaca aonde eu ia sempre, a mando de minha tia, comprar charque ou bacalhau quando a carne acabava. Como na época isso era comida de pobre, para evitar os olhares indiscretos dos vizinhos, tia Bebé me dava uma sacola opaca, de palha entrançada e uma toalha de prato com a qual eu deveria cobrir a charque ou o bacalhau para que o cheiro não nos traísse. Todos esses cuidados me rendiam alguns alfenins que, por vezes, eram consumidos no caminho de volta. E os alfenins? Não havia ou já os comeste? – indagava minha tia, embora bem suspeitasse da resposta. Seu Manebaca era um homem bonito, muito amável, de barba espessa, pele bronzeada e olhos negros. Sua esposa Dona Olindina, que parecia um tanto mais velha que ele, tinha a pele bem branquinha, longos cabelos castanhos e ondulados e um sorriso espontâneo e delicado. Vez por outra, ela me dava bombons de mel de abelha ou pastilhas de anis. Na Praça Dr. Vitoriano Regueira, um pouco mais distante de casa, havia a mercearia do Mouco. Ao contrário das barracas de madeira de Seu Joca e de Seu Manebaca, em que as compras 100


eram feitas através de uma grande janela aberta sobre um peitoril, essa mercearia era bastante espaçosa. Instalada na garagem da casa, um balcão de madeira separava os clientes das mercadorias expostas em largas prateleiras que iam quase até o teto. Havia enlatados, enchidos, fiambre e queijos, produtos que não encontrávamos em outras vendas menores. Mas eu não gostava de ir lá: o balcão era muito alto e eu precisava gritar para me fazer ouvir, pois naturalmente o dono fazia jus à alcunha. Dada minha timidez, não me agradava ser obrigada a levantar a voz em meio aos outros clientes. Uma latinha de manteiga e um quilo de queijo coalho! – eu bradava com um esforço quase sobre-humano. Tão envergonhada ficava que resistia à tentação das grandes bombonieres repletas de balas sobre o balcão. Além disso, antes de me passar as compras, o Mouco tinha o mau hábito de dar umas pancadinhas com a palma da mão na minha cabeça: Pronto, tome lá. Encabulada, eu saía às pressas. Mas apesar da dificuldade dos clientes em se fazerem compreender, tão popular era essa mercearia no Bairro Novo que o tal logradouro passou a ser conhecido como a Praça do Mouco. No Varadouro ficava uma enorme mercearia aonde íamos, de Kombi, fazer as compras do mês com papai. Era um barracão de alvenaria, que cheirava a umidade, grãos e a carne de sol, às margens do rio Beberibe. Tranças de alho e cebolas, rolos de fumo e linguiças defumadas pendiam do teto sobre fardos de charque e de carne de sol, amontoados em engradados. Prateleiras cobertas de latas, garrafas, potes de vidro e pacotes ladeavam grandes sacas de feijão, arroz, farinha e açúcar, alinhadas no chão da mercearia. Empregados com um uniforme azul circulavam apressados de um lado para outro a despachar os pedidos, enquanto o dono da mercearia, com um lápis que sacava da orelha, fazia as contas dos clientes em folhas de papel de embrulho sobre o balcão. Como papai se ocupasse de nossa lista de compras, mamãe e eu atravessávamos a rua para ver um leão estampado no azulejo do muro de uma antiga fábrica de doces. Mais que um hábito, era um ritual que se repetia, pois, criança, ela própria ia com minha avó ver essa mesma estampa numa época em que a fábrica ainda atiçava o paladar dos que passavam. Dessas lembranças da minha infância, restam apenas, lá no Varadouro, um leão desbotado e o cheiro úmido da maré. O tempo, que então comera os doces e a fábrica, comeu depois as cores do leão e o prédio da mercearia.

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Mario Miranda Mario Miranda Antonio Junior é pai da Clarisse, paulistano, sociólogo, mestre em Serviço Social e Políticas Sociais. Têm 46 anos e foi dependente químico por 15. Possui experiências na educação – rede pública, Sistema S, ensino superior e prisões - e movimentos populares – mobilização e organização comunitária -, pesquisa acadêmica e social, atuando em São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Bahia. Hoje busca ampliar os estudos sobre o autoritarismo brasileiro no doutorado e sobreviver a pandemia e ao pandemônio. **

Impressões do tráfico Em novembro de 2018 foi a última vez que estive em uma boca de fumo. Passei cerca de duas horas por lá, em um morro da cidade de Santos (SP), controlado pela facção criminosa que manda no país1. Fui acompanhando um “amigo” para pagar uma dívida sua do dia anterior. Havia sete indivíduos na “loja”2 - dois vendedores, dois seguranças, o patrão e mais dois olheiros. Tinha mais dois sujeitos conversando com o patrão, talvez, seus sócios ou pessoas próximas. Chegamos, explicamos a situação e ficamos esperando o vendedor do dia anterior. O patrão chamou o cara no whatsapp e explicou que ele estava desligado, talvez demorasse, se quiséssemos esperar que esperássemos. Esperamos. Nessas situações, paira sempre uma tensão no ar - medo, ansiedade, espanto, frustração. Não sei se porque já vivi muito, não fico, assim, nem uma coisa, nem outra, me concentro mais nos meus sentidos e consigo perceber quase tudo à minha volta – sons, cheiros, movimentos, ruídos, olhares, gestos e às vezes, até situações singelas ou inusitadas. A “loja” fica em uma espécie de laje, que na verdade é uma ruela alta que contorna por cima a associação de moradores local. É como se fosse uma sobreloja da associação de moradores. De lá se avista a entrada do morro e a rua principal, além das escadarias que dão acesso as partes baixas do morro e as cracolândias locais. Ao lado da associação de moradores, sentado em frente a uma casa simples, um jovem sem camisa com um prato, uma faca e um radinho ao lado, cortava pedaços de crack, pedrinhas de todos os tamanhos como se fosse doce de leite3. Na casa ao lado, duas meninas com menos de dez anos brincavam de casinha na calçada. As contradições estão incorporadas à paisagem, como em um caleidoscópio em que as distintas imagens se misturam e causam espécie de torpor ou vertigem. O patrão é um sujeito que sobrevive lá há quase de dez anos - lembro dele da primeira vez que lá estive, nos idos de 2010. Ele também me reconhece, mas, eu não desperto interesse algum da sua parte. Já me acostumei com a combinação de deslumbramento e arrogância – do lado dos novatos -; e a altivez mesclada com desprezo ou indiferença dos veteranos e patrões. Interessante é como nessas situações, evitar o contato visual é regra - uma das principais de sobrevivência. Ninguém se encara ou olha nos olhos - só espreita ou passa o olho muito discretamente. Apesar disso, a autoafirmação entre todos também é regra, expressa em provocações, brincadeiras 1

Segundo estudos e informações recentes, a facção criminosa de São Paulo, Primeiro Comando da Capital, atua em todo o país, possuindo tentáculos, inclusive, em países vizinhos como Bolívia, Paraguai, Venezuela, Colômbia, Suriname, Peru. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51699219 2 “Loja” ou “biqueira” é a forma como os envolvidos denominam o ponto de venda de drogas. 3 Lá tem pedras de 5, 10, 20 e 50 reais.

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agressivas, piadas ofensivas, etc. Os donos do pedaço, senhores da vida e da morte na comunidade, parecem os meninos da 8ª série - imaturos, cheios de testosterona, ignorantes, desafiadores, porém, nada inofensivos. Não vi arma alguma, contudo todos sabem que elas estão ali ao alcance da mão. Havia um sujeito mais velho, mais ou menos da minha idade - o patrão é um pouco mais jovem e todos os outros não ultrapassam os 25 anos. Percebi na hora que esse mais velho era o mais sóbrio, maduro, desconfiado, sinistro. Olhei para ele assim que cheguei e acenei com a cabeça, ele retribuiu só com os olhos. Depois, evitava cruzar o olhar com ele e percebi que ele me observava de soslaio, entre curioso e desconfiado. Quase não falava, e quando o fazia era para reclamar e/ou esculachar alguém. Era evidente que o cara que já estava nessa vida há um bom tempo, e parecia já farto dessa merda de vida. Estava na cara, portanto, que para todos os efeitos, era o mais perigoso de todos, disposto e capaz de tudo. O patrão parecia entediado, tentava se distrair com o celular, com os outros, jogando conversa fora, falando ou fazendo piadas sem muito sentido, mas, que todos riam. Às vezes me olhava, mas, eu sou do tipo que só o dinheiro interessa. Um outro rapaz que “servia” – atendia aos usuários -, cerca de 20 anos ou menos, só fumava maconha, ria e cantava uns funks horrorosos. Naquelas poucas horas ouvi um que mandava a “novinha” “sentar na Glock”, “no 38”, “na 12”, etc. Na boa, o fetiche pelo estupro e a pedofilia só não é maior que pelas armas. Há uma cultura machista arraigada na sociedade brasileira, que sustenta e justifica atitudes que depreciam a mulher, sobretudo, adolescentes e jovens, afirmando um certo deslumbramento ou sedução pelo crime e o tráfico. Assim, prevalece um certo consenso que culpabiliza a mulher por situações de violência em que ela é a vítima, conforme se justifique o crime cometido pelo seu suposto envolvimento com a bandidagem. Via de regra, qualquer demonstração de simpatia ou cortesia, já é entendida como uma permissão para a licenciosidade e o assédio sexual. Mentalidade pervertida antiga, versão recauchutada da velha sentença popular que sustenta que “mulher de malandro gosta de apanhar”. Os demais eram quase todas pessoas em situação de rua, como 90% ou mais da clientela. Abaixo da boca, em determinados pontos de mata, existem algumas cracolândias permanentes e improvisadas com barracas de plástico, lona, papelão, mocós afastados para o consumo de crack. Nota-se que alguns dependentes químicos habitam no local, misturados ao lixo, insetos, ratos, baratas, dejetos, morcegos, etc. A biqueira “ocupa”, por assim dizer, alguns deles em situação de rua. Sobretudo, os que sobrevivem nas três ou quatro cracolândias que orbitam em torno dessa biqueira e mais outras duas ali perto. Na comunidade, o tráfico integra as pessoas ao mesmo tempo que as distingue - todos são moradores, mas, nem todos são do tráfico. O tráfico confere status, poder, temor. Para uns, os caras são como celebridades da comunidade, para outros, os administradores, juízes de paz, mediadores de conflitos, seguranças, etc. Todos se conhecem e se respeitam ou toleram – mais ou menos igual aquele cão de rua que todos "cuidam" e desprezam. Até as pessoas em situação de rua são incorporadas - os que são “funcionários” do tráfico mais que os reles dependentes, que servem apenas para realizar as tarefas mais degradantes que nenhum morador-trabalhador aceitaria. É notável também, como a “cordialidade” – relações pessoais ou vínculos de lealdade, confiança, afeto - atravessa a lógica “corporativa” do tráfico. Entre os “funcionários”, muitas nuances distinguem aqueles da comunidade dos indivíduos em situação de rua - dependentes químicos. Por exemplo: os jovens da comunidade são vendedores (servem os usuários) e seguranças, enquanto que os da rua são sempre “aviões4” ou no máximo olheiros. Os rapazes da 4

Transportam pequenas quantidades de drogas e outras mercadorias.

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comunidade, estão sempre mais ou menos apresentáveis, isto é, bem vestidos, porque são conhecidos e/ou parentes de moradores. Os da rua estão sempre descalços, sujos, descabelados, maltrapilhos, idênticos aos demais sujeitos de rua, dependentes químicos que sustentam o tráfico 24 horas por dia, 7 dias por semana, todos os dias do ano. Sim, os escravos do vício e do tráfico são também quase todos negros, andando quase sempre descalços como os seus antepassados. O assédio dos patrões e superiores na hierarquia, é idêntico ao que se constata em qualquer empresa - o Tráfico S.A. em tudo reproduz a cordialidade brasileira, a hierarquia e a burocracia personalizadas do lado de lá. Uma moradora passou e cumprimentou o patrão, perguntou se ele iria na festa na casa dela à noite. Ele disse que sim, ela desafiou devolvendo um "quero ver". Ele agradeceu e assegurou que iria. Um sujeito em situação de rua trouxe um pacote de um quilo de café - o jovem traficante perguntou se ele conseguiria fraldas (disse até a marca e o tamanho). Outro trouxe um celular, outro aparelhos de barbear caros. Uma jovem famélica suportou insultos e humilhações por causa de um real que faltava para levar uma pedra de 5 reais. A senhora do café, da associação de moradores ao lado, passou, cumprimentou, parou e pegou uma quantia de dinheiro - minutos antes fez cara de desgosto quando eu pedi para beber água no bebedouro da entidade. Deu para notar que por me ver na biqueira, me julgou um cão vadio indigno da empatia daquela “gente que faz” pela comunidade. Um fracassado que envergonha a espécie humana. A boca revela as pessoas, o pior delas - a perversidade, a hipocrisia, a indiferença, o cinismo. A boca é desumana - as relações são desumanas. É fácil desumanizar-se em um lugar em que a medida das pessoas é a sua utilidade, subserviência, conformismo, mediocridade, indiferença, enfim, desumanidade qualquer semelhança com diversas outras corporações não é mera coincidência, não é nada pessoal, tudo são apenas negócios e lucro. **

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Mauricio Carraro Nasceu no ano de 2002, na cidade de Campo Mourão do estado do Paraná. Desde sua infância era aficionado por literatura fantástica e mangás japoneses, escreve por hobby enquanto faz um curso de psicologia. **

Memórias refletidas em uma poça Era uma noite escura, a chuva caia em uma torrente violenta, as ruas de pedra cinza eram encharcadas e passavam a refletir a luz dos postes bioluminescentes, carroças passavam apressadas, homens em seus trajes sociais corriam de cobertura em cobertura, todos apressados, apenas um única mulher andava calmamente, seus longos cabelos negros e lisos já grudados em seu vestido amarrotado, uma franja ondulada grudada em seu pálido rosto marcado por vastas olheiras que se assentavam abaixo de seus olhos castanhos, um rosto jovem de pele lisa, mas cujas mãos possuiam mais calos do que muitos lenhadores e o corpo mais se cicatrizes do que a maioria dos guardas. Ela andava calmamente, cantarolando uma cantiga infantil: “Oh pequena raposa, raposinha, mesmo tão frágil, peluda e fofinha, como carrega tantos sacos de farinha? “ Sua voz ecoava pela chuva e chamava levemente atenção de algumas pessoas, que estranhavam o comportamento da garota e desviavam o olhar, em meio a todos aqueles homens, um se aproximou da garota, mas esse não usava trajes sociais, usava trapos sujos e rasgados e uma barba desarrumada, ele tinha vindo pedir por dinheiro para ajudar sua filha doente, mas a garota já conhecia esse tipo de gente, a filha era sua boca, a doença era a seca e a cura era cerveja, a garota apenas ignorou o homem e acelerou os passos, logo deixando-o para trás, apenas ouvindo sua voz abafada na chuva. A garota começava acelerar os passos, mais cantigas saiam de sua boca, mas não em um tom feliz e alegre, ela cantava com sua voz oscilante, segurava soluços, como se as cantigas fossem a única coisa que a impedia de chorar. Ela andou por becos, como se não se importasse com a própria vida, sentindo cada gota de chuva, ouvindo cada vez menos barulho, adentrando cada vez mais em um solidão úmida e escura. Até que algo lhe chamou a atenção, uma luz apareceu em seu caminho, em meio a tamanha escuridão, ela parecia tão forte que a garota chegou a tapar os olhos, entre os dedos pode ver, um grande olho, como a lua iluminando um céu nublado, estava um grande e redondo olho amarelo, sua pupila parecia pertencer a um felino, portando esse olho, estava um corpo, cinzento e magro, parecia apenas um esqueleto, mas a pele era áspera, sua postura era curvada, sentava sobre seus calcanhares, seus braços eram grandes demais, suas pernas pareciam pequenas, encarava a garota, uma enorme poça de água os separava. Diante tal visão, a garota deveria se apavorar e sair correndo, mas, ela não estava com medo, afinal, era uma figura familiar. — Você… — Ela disse com sua voz baixa, olhando para a figura, como se tentasse lembrar de algo. — Já faz alguns anos — A criatura falou, sua voz soava como mil sussurros, não parecia sair de sua boca com dentes finos e pontudos, parecia ser projetada dentro da cabeça da garota. — Eu lembro, eu encontrei você quando era criança, você é… 105


— Zoiudo — Disse o demônio, tal nome em sua voz pareceu ficar ainda mais ridículo do que já era. — Você ainda mantém esse nome? — Perguntou a garota em uma leve risada. — É o primeiro nome pelo qual alguém me chamou, logo é o meu, não é essa a regra dos humanos? — Zoiudo perguntou, seu rosto era indecifrável pelos padrões humanos. — Bem… Imagino que sim — A garota dizia enquanto dava um leve sorriso — O que faz aqui? Já passaram muitos anos desde a última vez que te vi. — Olivia, quando você era pequena, eu disse que um dia retornaria para ver que tipo de adulta tinha virado. — Ah… — Olivia dava mais algumas risadas enquanto olhava para o próprio vestido encharcado e amassado, ironicamente, seu sorriso torto era o que expressava sua tristeza — E o que acha? Me tornei o que esperava? — Precisamos conversar — O demônio disse, seu olho não fechava em instante algum — Minha visão te acompanhava, mesmo que não estivesse, eu posso ver suas memórias, eu vi sua história, eu quero te mostrar também. — Bem… Eu meio que não tenho muito o que fazer agora mesmo — Olivia dava algumas risadas que mais pareciam soluços enquanto falava, como se constantemente debochasse de si mesma. O demônio passou seus dedos magros pela poça de água, as pequenas ondulações geradas por seus movimentos traziam consigo imagens, a água refletia um fragmento de memória, uma garotinha de cabelos negros chegava em sua casa, acenava para sua mãe que costurava um cobertor, abraçava seu pai contava sua moedas, uma imagem colorida, acolhedora, cheia de sorrisos, o som da chuva caindo de repente começava a se unificar, as várias gotas pareciam formar uma única voz, a voz de uma criança inocente. — Sempre que chego em casa, mamãe está costurando cobertores pro inverno, papai conta o dinheiro para comprar nosso almoço e meus presentes, logo nós nos reunimos na mesa e tomamos um café, a mamãe faz um bolo muito bom, ela diz que eu sempre tenho que lembrar de me sentar e tomar um café, mesmo se eu for tão ocupada quanto papai… — Você se lembra desses momentos? — O demônio perguntou. — Sim… Como lembro, era época que minha maior preocupação era se o Ezequiel iria trazer ou não a bola para brincar… — Você gostava de jogar bola? — Sim, era meu hobbie favorito — Por que parou? — Não traz dinheiro pra casa — A garota respondeu desviando o olhar. O demônio passou novamente seus dedos magros na poça, as ondulações formavam novas imagens, o pai, mais velho, sentado em uma cadeira virada para ruas, embriagado com várias garrafas de cerveja vazias ao seu lado, outra parte da poça refletia outra imagem, a mãe, mais 106


velha, trocando seus últimos centavos por uma sacola de pano, com uma quantidade mínima de pó branco dentro, imagens tão sem cor, cinzas, desprovidas de qualquer nostalgia. A chuva novamente formava uma voz em uníssono, porém dessa vez era uma voz mais grossa. — Eu não aguento mais, o falido do meu pai vive pegando as minhas despesas que escondo no meu quarto e gastando em bebidas, minha mãe… Eu suspeito que ela esteja gastando o dinheiro dos remédios em drogas, ela está cada vez mais magra e doente, mesmo separados, eles são igualmente problemáticos. — Desde o início, seu pai e sua mãe tinham problemas, desde antes de você nascer, eles tinham seus vícios, mas escondiam de você, não conseguiram fazer isso por muito tempo — O demônio disse. — Não manche a memória anterior comparando-a com essa, por favor — A garota disse com pesar nos olhos. — Desculpe. O que aconteceu com seus pais? — Minha mãe morreu por conta da doença, já meu pai, eu emprestei dinheiro para ele, achando que ele iria voltar a comprar produtos para restaurar seu comércio, mas ele foi em uma taverna, apostou tudo que tinha, perdeu, se envolveu em uma briga e foi espancado até a morte. — Quanto ao seu trabalho, conseguiu o seu trabalho dos sonhos? — Ha, ser dançarina de bordel nunca foi o meu trabalho dos sonhos — A garota respondeu rindo, como se contasse uma piada mórbida. — Por que não tenta mudar? — Eu morreria de fome. — Prefere viver infeliz para sempre, ou arriscar a felicidade? A garota não respondeu, o demônio passou o dedo pela poça novamente, as ondulações formaram imagens coloridas e alegres, porém essas, mesmo sendo memórias felizes, davam apenas incômodo para Olivia, era ela, quando criança, brincando com seu amigo de infância, jogando bola, apostando corrida, eles se divertiam na rua juntos. — Se lembra do seu amigo Lucius? — O demônio perguntou — Vocês costumavam ser inseparáveis quando crianças. — Sim… Mas quando fizemos dez anos, nos afastamos — A garota disse coçando sua perna. — Sim… Mas se reencontraram um dia — O demônio disse e depois novamente passou seu dedo magro na água, porém, dessa vez a garota o interrompeu. — Por favor! Essa memória não! — Olivia disse enquanto envolvia os braços em seus seios, escondendo-os enquanto sua feição demonstrava o puro terror. — Entendo, me desculpe — O demônio tirou o dedo da água e nada foi refletido — Esse foi o principal episódio, onde você teve sua confiança roubada, roubaram seu sorriso. — Eu… Por que… Por que você tá me mostrando isso? 107


— A próxima vai te explicar. Mais uma vez, o demônio passava o dedo magro na poça, as ondulações formavam a imagem colorida de uma garotinha dando um cantil de água para um demônio cinza. — Foi o dia que nos conhecemos, você viu um demônio, um ser assustador e perigoso, mas que sentia sede, sede extrema, mesmo com todos os perigos e preconceitos, você se aproximou e ofereceu água, quando perguntei o porquê, você disse “Prefiro morrer do que ver alguém passando necessidade e não ajudar”. — Eu era uma criança, não sabia como o mundo funcionava — A garota respondeu em tom amargo. — Era exatamente por isso que você conseguia ser melhor que o mundo, superá-lo, preferindo arriscar sua vida a aceitar quebrar seus ideais. A última memória que eu queria lhe mostrar aconteceu há alguns instantes atrás, eu não preciso refleti-la. Você negou ajuda para um homem, sendo que te custaria pouquíssimo ajudá-lo. — Ele podia estar mentindo! — A garota quase gritou — A chance de ser uma mentira era alta. — O que é pior? Ser enganada e perder um pouco de dinheiro, ou deixar alguém passando necessidade? — Você…É por isso que você voltou? Para me condenar? Julgar? Me repreender pelos meus atos? — Não, Oliva — Zoiudo disse — Não é minha intenção, eu sei o que passou, sei que teve sua confiança quebrada, várias e várias vezes, sei que não tem coragem, pois é o medo que a mantém viva em um mundo tão hostil, o que eu vim te mostrar, é que o mundo sempre foi assim… — Mas eu não podia ver, era uma criança, por isso suportava, mas agora… Eu vejo tudo… — Era justamente por não ver que você era diferente, era uma Olivia pura, que não conhecia o mundo, que só aceitaria ser ela mesma e mais ninguém, a Olívia que eu vejo na minha frente não é a mesma, é a união da Olivia com o mundo. — Você quer que eu volte a ser aquela Olivia? — Não — Zoiudo respondeu — Você é essa Olivia agora, isso não deve mudar, aquela Olivia se foi, mas ela deixou lições importantes para mim, o que quero, é que aprenda com ela também, pois é por justamente não conhecer as verdades do mundo, que ela conhecia as verdades sobre si mesma mais do que ninguém. A chuva novamente se unificava em uma voz infantil. — Eu nunca vou deixar de ter esse momento, mamãe, eu sempre vou parar para tomar um café e me lembrar de vocês. — Não se preocupe papai, eu nunca vou aceitar trabalhar com algo que não gosto, pois eu sou uma menininha teimosa! — Mesmo que eu seja pequena e fraca, eu vou ser como a raposinha, forte o bastante para carregar muitos sacos de farinha! 108


— Mesmo que eu cresça muito, eu nunca vou esquecer vocês, papai e mamãe, não precisam se preocupar, ninguém nunca vai roubar o meu sorriso, eu vou ser para sempre, a Olivia mais sorridente. A garota ouvia todas as suas próprias frases, pareciam tão distantes, ela se sentia envergonhada, suas lágrimas se misturavam com a chuva. — Não sinta culpa — Zoiudo de repente falou — Isso acontece com muita gente, a Olivia de antes não te culparia, ela era gentil e queria acolher os feridos, mas era inocente, podia acabar machucando os outros sem querer, podia se machucar sem perceber, não planejava suas metas, ela não era a Olivia ideal, mas era inspiradora. — Olivia ideal? É o que você deseja que eu me torne? — Ninguém consegue virar a versão ideal de si mesmo, mas é bom que tente, sempre tente. — Mesmo sendo impossível? — Teimosia é a palavra — Zoiudo pela primeira vez parecia dar um sorriso — A Olivia do passado sabia o que queria e não aceitaria menos do que isso, mas ela podia acabar machucando pessoas com sua vontade, a Olivia em minha frente conheceu o mundo e aprendeu a interagir com ele, sem deixar que sua vontade machucasse outros, mas ela se esqueceu de sua vontade, machucou a si mesma, por medo do mundo, as duas tem seus defeitos e acertos, mas algo pode ser feito. — Eu preciso aprender comigo mesma — Olivia dizia enquanto limpava suas lágrimas — Mas sem deixar de ser eu, eu de presente, aprender a conciliar minhas vontades com as do mundo, algo que nem a Olivia do passado e nem a do presente sabem, mas que juntas, podem um dia descobrir. — Os humanos tendem a desprezar suas versões do passado — Zoiudo dizia — Achando que estão melhores a cada dia, mas a verdade é que eles estão diferentes a cada dia, essa diferença não quer dizer superioridade, afinal, quando se ganha conhecimento, se perde inocência, se perdendo também assim, parte da essência. Mas não é questão de não mudar ou temer a mudança, é que questão de se lembrar do passado, do seu eu diferente e aprender com ele. Olivia, o que a Olivia do passado te ensinou? — Muitas coisas… — A garota disse com um leve sorriso no rosto — Mesmo que o mundo pareça escuro e sufocante, é você que escolhe como vai viver nele, às vezes, arriscar tudo é melhor do que se contentar com nada, ela tem razão, eu sou uma garota teimosa, eu prefiro fracassar e passar fome do que viver uma vida que não vale a pena!

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Tomaz Fantin Tem 36 anos e nasceu em Vacaria, na Serra Gaúcha, é professor de engenharia mecânica no Instituto Federal Sul-rio-grandense. Em 2020, publicou o livro de crônicas “Uma Passagem para Bratislava” e em 2012 foi um dos selecionados no Prêmio de Criação Literária da Fundação Biblioteca Nacional/Funarte. **

Moral de calcinha Manhã cinza molhada Acordaste ao meio-dia O café que eu fazia Tinha gemada no pão Escorada na sacada Me falava em poesia De História e Geografia Discursando indignada Só usando lingerie Era sério, mas eu ri. **

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Viviane Cabrera Autora do livro reportagem ‘Flores do Asfalto’ (Ed. Futurama, 2013) e de ‘Memoriamístico’ (Ed. Voz de Mulher, 2021). Participou de cinco antologias do projeto TOMA Aí UM POEMA e de ‘Pela Janela do Quarto: Visões da Quarentena’, da Editora Voz de Mulher. Em 2022 participará das antologias ‘Cartas Para o Futuro’, do Selo Off Flip, e ‘1001 Poetas Brasileiros’, da Casa Brasileira de Livros - ambas previstas para o segundo semestre. **

Memoriamístico (publicação original: Livro Memoriamístico, Editora Voz de Mulher) Das memórias que me cercam Um quê de místico se manifesta E me infesta De sentimentos que acalentam. Basta um cheiro, um rosto, E a cena passada remonta a minha frente Enchendo o vazio de gente Que já não me dá mais gosto. Então viajo no tempo e espaço Volto a admirar coisas que perdi, Relembro tudo que esqueci. Revivo até o erro crasso. Fecho os olhos num instante Para sentir de novo o abraço da avó E não mais me sentir só Com esta nostalgia pulsante. O sentido das lembranças Consiste no mistério sobrenatural De estar mais perto do beiral De um castelo futuro cheio de esperanças. Cada lembrança é poção mágica Que dá vida ao que perde voz, Que sustenta o lúdico em nós, Que desfaz a aura trágica. Confundem-se futuro, presente e passado 111


Numa teia malfeita de pensamentos Onde se tecem retalhos de momentos Para compor uma colcha daquilo que a mente tem empossado. Mas é no coração que reside Toda mística de uma memória Por sua força e glória Que na trajetória de cada um incide. Não se nega O poder místico de uma lembrança, Pois nela está latente toda a andança Que o tempo agrega. **

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Roberta D’Angelo Mellis Formada em Comunicação Social, em 2010 abandonou a carreira para acompanhar o marido na vida de expatriados pelo mundo. Desde então morou na Itália, na África do Sul e na Cidade do Mexico, onde se graduou em Criação Literária. Atualmente mora na Holanda, onde retomou sua carreira em marketing. É colunista e revisora da plataforma Brasileiras pelo Mundo, vencedora de vários concursos literários e tem vários contos publicados além do livro Lar Mundo Afora, um guia para quem planeja mudar de país. **

A descoberta Não quero olhar-me no espelho e descobrir a diferença entre o que sinto e o que pareço, o que penso ser e o que vejo. Não quero me transformar no que fui e ser apenas o reflexo feio de um passado belo. Descobrir-me velha seria aceitar a vitória do tempo. A cada suspiro o tempo me vence. Ao inalar não ganho nada e cada exalar carrega consigo um pouco do que me resta. A cada dia sou mais pele e menos músculo, mais alma e menos carne, mais idade e menos vida. E, a cada segundo, a cada mirada, cada vez menos eu vejo em mim. Não deixarei que o tempo me leve. Não vou esperar o dia em que suas mãos não adormeçam em meus seios e as minhas não se percam em seus cabelos. Não vou aceitar dormir sem te amar, sem te sentir dentro de mim, sem saber se te verei ao amanhecer. Não vou aceitar o medo de que me vejas nua e não me olhes, ou me olhes e não me reconheças. Não quero discutir traições inevitáveis. Não quero constatar que meu corpo já não te desperta, nossas chuvas já não semeiam, nossa terra já não floresce. Não quero descobrir novos sons em nossa casa. O som vazio da casa cheia, só de lembranças. O som dolorido dos filhos idos, do cachorro morto, de árvores sem folhas, chuvas sem flores, verões sem bicicletas, dias festivos sem festas. Prefiro ser o sorriso iluminado no porta-retratos, a protagonista fascinante das histórias da família. Prefiro ser apenas uma saudade suave, lembrança delicada, dor benigna. Não posso cometer a injustiça perversa de esquecer o rosto dos nossos filhos, o nome dos nossos netos. Não posso parar o tempo. Mas se fechar os olhos agora, posso parar minha história. Posso fixar meu percurso e minha essência e concluir minhas memórias na estação mais ensolarada. Fecho meus olhos para manter minha imagem e meu amor vivos dentro dos seus. Fecho meus olhos e te encerro neles. Te prendo aos meus sonhos, te mantenho desperto na minha eternidade. 113


Morro, para manter nossa vida viva. Morro para que nosso amor jamais morra. Morro para que sejamos sempre o que amamos de cada um de nós. Morro por que te amo e amo o que tu amas em mim e se viva já não posso sê-lo, ao morrer continuarei sendo. Sempre e para sempre. Morro por que não suporto descobrir que estou morrendo.

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Bianca Carvalho dos Santos 24 anos, carioca, estudante de química que adora poesias. **

Os bons e velhos tempos Estes são os bons e velhos tempos? Eu preciso saber agora! O tempo passa tão depressa Logo tenho de ir embora Estes são os bons e velhos tempos? Como eu amo essas risadas! Por favor, conte-nos outra vez Nunca me canso dessas piadas Estes são os bons e velhos tempos? Nós pulamos na piscina! Eu não sabia nadar E você estava cheia de purpurina Estes são os bons e velhos tempos? Vamos começar a jogar! As regras são todas inventadas Não importa quem ganhar Estes são os bons e velhos tempos? Eu preciso registrar! Vamos tirar mais uma foto Todos juntos neste lugar Aqueles eram os bons e velhos e tempos Tão distantes e inocentes Desejo saúde a minha memória Para recordá-los sempre Eu gostaria de ter sabido que aqueles eram os bons e velhos tempos Antes de realmente ter que deixá-los Eu viveria aqueles momentos consciente De que para sempre eu iria guardá-los **

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PUFFF! Eu estive aqui Caminhei por essas ruas, corri por essas esquinas Eu me sentei neste banco, eu morava bem ali em cima Esperei por este trem, eu me atrasava para o jantar Eu vi esta árvore crescer, eu via o bloco passar Eu olhava para este céu, eu sentia este vento Molhei os pés nesta poça, eu sentia algo aqui dentro Não sei se foi o tempo que passou por mim Sem pedir licença Ou Se meus dias chegaram ao fim Porque meu corpo sucumbiu à doença E o que vai ficando para trás Agora não mais me importa Do que adianta todas essas lembranças Agora que já estou morta? No final, não há moral da história Não há lição a ser aprendida Só há um reflexo infeliz De uma alma arrependida Você vai correndo e correndo e correndo À toa Não chega a nenhum lugar Você vai vivendo e vivendo e vivendo Perdoa Mas Francis não está mais lá. **

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Neila Reis Enfermeira , Fisioterapeuta Docente de Graduação e Pós Graduação Especialista em Saúde Pública com ênfase em PSF Especialista em Ginecologia, Obstetrícia e Neonatologia, MBa em Saúde do Trabalhador,Mestre em Gerontologia, Doutora Honoris Causas em Literatura pela FEBACLA e Comenda Maria Quitéria pela Federação Brasileira dos Acadêmicos das Ciências, Letras e Artes Consultora de organizações em Saúde. http://enfermeiraneila.blogspot.com **

A casa da vó Volto no tempo e viro criança, As galinhas correndo pelo terreiro, Me levando para rezar no cruzeiro. Olhos vívidos de alegria e esperança. Cheiro de bolo e doce no fogão de lenha, O latido sofrido da cadela sempre prenha. Lembro dela alegre na cozinha, Sinto o cheiro da moqueca de maturi, E suas histórias dos antigos para dormir, A casa cheia de bocas,nunca estava sozinha. Histórias repletas de lendas e assombrações, Meu nome sempre protegido por suas orações. Avós deveriam ter a eternidade, Pois sua falta é um buraco fundo, E causa a tristeza maior do mundo E não tem nada que mate essa saudade. Queria aquele tempo de volta e congelado, E poder ficar no infinito sempre ao seu lado. **

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Fabio Minervini Desde cedo Fabio tenta captar lampejos de significado nas pequenas coisas do cotidiano e nas grandiosas expressões do amor com uma prosa poética, musical e envolvente. Mestre em História e comunicador social de formação, o autor segue ainda inédito. **

Tentativas Eu que já tentei de tudo Fiquei cego, surdo e mudo E de nada adiantou Me atirei em outros braços Tirei mil novos retratos O seu nunca desbotou Já joguei as roupas fora E a lembrança ainda aflora Um broto de erva daninha Eu renovo o meu canteiro Me ocupo o dia inteiro Debruçado à escrivaninha Inventando tantos jeitos De lembrar só teus defeitos Que esqueci de decorar Lembro a cor da sua unha E as loucuras que propunha Só para a gente se encontrar E quanto mais esforço eu faço Para sair desse embaraço Mais me enrolo no novelo Até a Buda eu hoje clamo Para me esquecer de que te amo, teus carinhos, teu desvelo Mas não há santo que dê conta Desse amor que ainda desponta E me tira deste mundo E eu sufoco, escondo e mato Mas ele, como um desacato Vai e volta mais profundo Se escondendo nessas poucas Irreconhecíveis bocas A que me levam tua ausência E eu tentando não lembrar Não faço mais que recordar 118


E ao calar, peço clemência Por favor, me deixa em paz Tenha dó desse rapaz Ó sentimento dolorido Que não morre ou se desfaz E que também não volta atrás A reviver o colorido Fica nesse lusco-fusco A se arrastar como um molusco Ruminando idas e vindas Queria só por um momento Um bem breve esquecimento Que assoprasse essa ferida Já seria um bom alento Contra esse grão tormento: Que é lembrar por toda a vida **

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Evandro Valentim de Melo Evandro Valentim de Melo é escritor brasiliense. Fã de concursos literários, participa sempre. Organiza, ele próprio, o Concurso Literário Beleza e Simplicidade em Contos e Crônicas que, em 2022, chegou à 4ª edição consecutiva. Está em várias antologias. Tem 9 livros publicados. Caapuã (Telucazu, 2021) é o mais recente. Outros virão. **

As janelas do 206 Talvez aconteça com todos ao se chegar a certa faixa etária, não sei ao certo. Comigo, depois dos cinquenta, lembrar-me de meu saudoso e velho pai, tornou-se uma constante, bem mais de que em outras fases da vida. Refiro-me a ele como velho pai, pois, quando nasci, já contava quarenta e oito primaveras e desde que me entendo por gente, seus cabelos já pareciam algodão. Eram muitos os fios brancos no cocuruto desde os dezoito, contou-nos. Foram preciosos anos tendo aquela figura de personalidade marcante como Norte, testemunhando seus esforços em busca de proporcionar à grande prole educação rigorosa e exemplos. Almejava que nos tornássemos pessoas de bem. Repetia sempre: “pai e mãe devem orientar; se os filhos vão ou não dar ouvidos, é com cada um”. O câncer que mais acomete homens tirou-o de nós. Período de sofrimento e dor intensos; eu acabara de completar trinta e quatro anos e chorei tal qual bebê faminto. Lacuna jamais preenchida. Dia desses, muito tempo depois dessa perda tão significativa, deu-me vontade de visitar o local em que morávamos, onde fui concebido e vivi por vinte e pouco anos, até sair em busca de trilhar meu próprio caminho. Estacionei meu carro no mesmo local asfaltado em que jogávamos futebol. Éramos obrigados a parar sempre que um carro trafegava por lá. Coleciono cicatrizes nos joelhos pelos tombos que os deixavam em carne viva. Olhei ao redor. Tudo diferente. Como é distinta a noção de espaço para crianças e adultos! A imensidão do mundo de meus verdes anos passou a ser pouco maior do que um quintal aos olhos sem magia do eu adulto. Árvores que se transformavam em castelos, esconderijos, naves espaciais, nada mais eram do que pequenas árvores. De frente para mim, a fachada principal do prédio de apartamentos; três andares, com capacidade de abrigar até trinta famílias. À época, todas eram numerosas. A minha foi a terceira a chegar. Enquanto Maria José Dupré escreveu “Éramos seis”, em minha família, éramos quinze. Meus olhos e as janelas do apartamento 206, no segundo andar, se encontraram. Quanta coisa eu assisti de lá. Desde nuvens a se movimentar no céu, até veículos a trafegar nas avenidas. Tudo era brincadeira. 120


Em especial, uma lembrança se esgueirou pelo emaranhado de minhas recordações e se apresentou, clara e límpida. Ela bem retrata como meu velho e saudoso pai era rigoroso. Era época de safra de mangas, quando essas frutas eram colhidas aos montes ou compradas a preços módicos. Meu pai havia ido à feira e trouxera consigo uma sacola cheia. Não qualquer manga, mas manga espada, normalmente suculenta, doce e saborosa. Minha grande família almoçou. Em seguida, cada um e cada uma pegou para si uma manga. Batíamos ela na parede para amolecer a polpa, que se transformava em suco. Fazíamos um pequeno furo na parte mais afilada do fruto e chupávamos aquele caldo maravilhoso. Depois, com os dentes, tirávamos a casca e deixávamos o caroço do fruto carequinha. Como era bom! Uma de minhas irmãs, depois desse ritual, atirou o caroço da manga pela janela da sala. Jogou-a o mais longe que sua força conseguiu. Para azar dela, nosso pai, que já havia se recolhido para a soneca depois do almoço, estava na janela do quarto. Ao ver o caroço voador, retornou à sala bufando de raiva. Perguntou quem havia jogado o caroço de manga pela janela. Silêncio ensurdecedor. A “meliante”, ela própria, se encolheu, acusando-se sem dizer uma palavra sequer. Em voz que ilustrava quão irritado ele estava, nosso velho e saudoso pai determinou que ela fosse buscar o caroço da manga, para colocá-lo na lixeira da cozinha, lugar correto de o descartar. O adulto cinquentão nem sabe dizer quanto tempo ficou paralisado a olhar para as janelas do 206 a reviver tantas emoções, ao ponto de seus olhos lacrimejarem. A vibração do celular o trouxe ao presente. Era sua vez de ser pai; ir à feira e comprar frutas para sua prole. Bem menor que aquela de onde viera. Pena não ser época de manga... **

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Maria Eunice Silva de Lacerda [Melissa] Maria Eunice Silva de Lacerda (1956), nasceu em Brejo Santo - CE. Casada com Maurício Lacerda. Chegou a Toledo em 1980, onde atuou no Magistério por 25 anos. Aposentada pela Secretaria Municipal da Educação. Escritora multipremiada em concursos literários; tem participação em diversas Antologias Literárias. Escreve poemas, contos e pensamentos. Fundadora da cadeira 34 da Academia de Letras de Toledo e Membro do Clube da Poesia de Toledo. Seu lema: Participar é preciso. Vencer, se possível! **

Saudades de mim Meus pés tão pequenos de passos miúdos, calçando o chão do seco sertão. Só vivi essa vida, pra mim, melhor vida. Não conheci riqueza, nem sei de pobreza. Brinquei no meu mundo, tão lindo, tão mágico. Vestida de sol, a cada arrebol. Dormindo de rede e bebendo a sede. Não conheci riqueza, nem sei de pobreza. Acordei com o galo pois o sol raiou. Cuscuz com café, quem é que não quer? Beiju de mandioca, também tapioca... Não conheci riqueza, nem sei de pobreza. Corri com o vento, a cavalo de pau. Fui mãe de bonecas, brinquei de petecas... Pus pipas no céu, 122


sem rumo, ao léu. Não conheci riqueza, nem sei de pobreza. Castelo de taipa, meu cais, meu abrigo. Parede de santos, benditos e cantos... A terra tem fome, meu peito carcome. Não conheci riqueza, nem sei de pobreza. À noite o luar me cobre de prata. A coruja canta e me desencanta. Um colo, um abraço... e eu, me desfaço. Não conheci riqueza, nem sei de pobreza. Só sei da saudade, saudades de mim. **

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Valéria Pisauro Natural de Campinas-SP, exerce intensa atividade cultural na literatura e na música, como professora, pesquisadora, poeta, roteirista e letrista musical. Graduada em LETRAS pela UNICAMP e em HISTÓRIA DA ARTE pelo MAM-SP. Participa de certames culturais, de idôneas antologias poéticas e de reconhecidos festivais de música, tendo a felicidade de ter sido premiada em muitos deles. **

Cinzas apagadas O retrato na parede denuncia Ronda esquecida de época antiga, Do pacato rancho, da família reunida, Em que a felicidade consistia, Em abraçar a todos, emanar guarida, Tanta riqueza naquela simplicidade, Belas lembranças guardadas, Harmonia entre terra, vida e cantoria. O sol na serra despertava cedo, Rédeas soltas, sem medo de clarear De encanto iluminava o verde E sonhos arados para semear. No canto da mesa a moringa, Café torrado, manteiga e pão, Compota de doce, toalha de renda E a lenha a queimar no fogão. Agora, a saudade rememora urgente, Sem beira nem eira que aquece, Daquela que bate na porta da frente E que a alma da gente não se esquece. Dos cordéis, dos cantadores de feira, Do reisado, das mulheres benzedeiras, Do Divino, do rosário rezado, do congado E das modas de viola ao redor da fogueira. O progresso, por querer, fez estrada, Do tímido povoado nasceu cidade, Das carroças restaram as rodas, Que enfeitam o jardim em alguma mansão. Nos museus, os arreios pendurados, Das lenhas somente cinzas apagadas E o silêncio vazio que se sente, 124


Que soa nos arpejos de um triste violão. **

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Renato Massari Tem 63 anos, é Dr. em Educação e prof. aposentado (UFRJ). Em 2020 seu romance “Barca das Lembranças” obteve o 1º. lugar no concurso da editora Planeta Azul (RJ). Em 2021 participou da seleção “Da Terra à Lua 1”(WE - Coletivo Editorial) e foi selecionado com o miniconto “A Última”. Foi selecionado para o número 6 da Revista Fluxos com o conto “Tio Creso” e para a Antologia Contos Literários organizada pela webTV com o conto “Quando a Lua Cair”. **

O olhar de Marcela O cão a puxava. Sem comandar as pernas, Marcela se deixava levar para onde ele a levasse. Isso era muito comum em seu dia a dia. O cão subitamente parou junto a um poste. Enquanto ele urinava, Marcela sentiu jorrar na memória o jato quente e amarelado de antigas lembranças. A manhã vinha chegando devagar e, como um diamante, a Estrela Dalva enfeitava o rosto arroxeado do céu. Não conseguia mais dormir, mas não abria os olhos para que o pai não a mandasse pegar no sono. Se ele a visse acordada em hora imprópria, deixaria de assobiar suas cantigas e faria cara feia. Uma vez desperta, o grande espelho da casa não lhe saía da cabeça. Quando se olhava nele, não se via. Ou melhor, aquela que via diante de si era outra, não ela. Se sorrisse, a outra prontamente caía em lágrimas; se piscasse, olhos bem abertos a vigiavam. Se gritasse, lábios cerrados calavam sua voz. Tinha muito medo de que essa outra saísse do espelho e tomasse seu lugar. Assim ficava até o sol devorar os restos da noite, quando então tia Dulce, que não era sua tia de sangue, a levava para a barraca onde fritava e vendia peixes. Desde que se entendeu por gente, soube que o pai e o barco eram uma coisa só. No barco, o pai tinha o amigo com quem vivia a maior parte das suas histórias; no pai, o barco encontrava o capitão que o fazia navegar até o horizonte sem fim. Aos dois se juntavam algumas tarrafas, que quando lançadas ao mar brilhavam como se fossem de prata. Soltando as amarras do barco, o pai assobiava para ninar as ondas. Todos os dias ele e o amigo abraçavam a solidão que os abraçava com sua doce monotonia. Quando voltavam, o céu já estava coalhado de estrelas. Tudo se passava assim, mas num certo final de tarde as coisas foram diferentes. Sem dizer por que, o mar sereno achou por bem se revoltar. Talvez não fosse mais criança e tivesse enjoado de ouvir as cantigas do pai. Aos onze anos, deu outra explicação: apaixonado pela tempestade, o mar só ouvia o que a amada o mandava fazer. Por isso se revoltou contra o pai e o barco. Os dois resistiram até o limite do possível, que para o pai chegou tão logo o mar o engoliu, cuspindo-o horas mais tarde na praia deserta. Seus olhos grandes, sem o mínimo brilho, não puderam ver o luto das mulheres da aldeia. Nos dias seguintes à morte do pai, ouviu coisas que pouco entendeu. Contaram-lhe que ele subira ao céu e lá se tornara uma estrela tão linda quanto a Dalva. “Vida de estrela é boa?”, 126


perguntou com voz miúda, o olhar sempre caído. A resposta nem tia Dulce pôde lhe dar. Balançando a cabeça, ela apenas disse: “a menina Marcela agora vai me chamar de mãe Dulce”. E lhe enfiou nas mãos um pequeno espelho de maquiagem para que se distraísse. Ao mirar-se, viu que a outra também se escondia ali. Não sentiu, porém, tanto medo assim de que ela tomasse seu lugar no mundo. Passou então a viver na casa nova, bem parecida com a sua, mas um pouco maior. Lá moravam Dulce, o marido dela, e os filhos, três garotos de idades diferentes que passou a chamar de irmãos. O menor ainda chupava chupeta, o mais velho já tinha jeito de homenzinho e o do meio, com quem regulava em idade, não gostou de ver a família aumentar. E, não gostando, nada fez para terem boa convivência. Certa vez, numa noite cortada por raios e trovões, colocou um siri em seu rosto durante o sono, provocando-lhe um doloroso corte no nariz. Em outro dia, bem no finzinho da tarde, aproveitando que os pais tinham saído para levar o irmão caçula ao posto médico, derramou óleo de fritura na esteira em que cochilava e ateou fogo em seguida. Não fosse a pronta intervenção de um amigo da família que passava de bugre pelo local, teria sido torrada viva. Seis meses depois, esse irmão do meio se engasgou e morreu com uma espinha de peixe entalada na garganta. Mãe Dulce não a pôs na escola, que ficava a 10 km da aldeia. Tratou apenas de lhe ensinar a escrever o próprio nome. Logo lhe deu afazeres domésticos e muito trabalho na barraca de peixe frito. Com a morte do irmão que a detestava, suas tarefas aumentaram ainda mais. E assim correram mais cinco anos. O cão a puxou de novo. Para onde, não sabia. Isso tinha importância? Curioso, resolveu fuçar o lixo esparramado na esquina por uma caçamba que alguém virou. Deveria impedi-lo? Por certo, mas, além das pernas, não podia comandar as próprias lembranças. Dos rejeitos remexidos pelo cão, subiram de pronto os cheiros de Pedro. Na noite do seu aniversário de treze anos, mãe Dulce fez um bolo de chocolate com cobertura de geleia, que todos comeram até se fartar, menos Pedro. Ele, outro dia um homenzinho, tinha músculos de aço nos braços tatuados com dragões e barba mal feita no rosto bonito. Não gostava de doces. Para celebrar, resolveu fazê-la mulher. Tudo aconteceu no meio da madrugada, quando a lua cheia derramava uma luz leitosa sobre as peles dos dois. Revirando os olhos castanhos amendoados, enlaçava com vontade a cintura que se rendia às suas pernas roliças como um sentenciado se rende à prisão. E murmurava coisas ininteligíveis quando a língua do prisioneiro lhe invadia os ouvidos ou deslizava freneticamente pelos seus mamilos salientes e intumescidos. Como certas novidades não costumam vir sozinhas, algumas semanas depois daquela madrugada era possível notar a presença de um pequeno volume na sua barriga. O homem que nunca chegara a chamar de pai disse então que se preparasse para casar, mas aqueles não eram os planos de Pedro. Aos 20 anos, assim como não pretendia ser pescador, o que já havia deixado bem claro, Pedro também não queria se tornar chefe de família ainda tão jovem. Fazia móveis de madeira para vender, mas sabia que sua habilidade com o material ia muito além daquilo. Gostava de esculpir corpos humanos, pequenos animais e rostos de santos. Sua vontade era sair da aldeia para ser um artista conhecido no país e, quem sabe, no mundo. Se ficasse ali, não teria como descumprir a ordem paterna. Para fazê-lo, precisava sumir sem deixar rastros. E sumiu, numa noite de tempestade. Na tentativa de saber para onde ele fora, mãe Dulce perguntou a quem podia perguntar, mas seus esforços foram vãos. 127


Logo depois de a neta nascer, ela e o marido se mostraram irredutíveis: a menina Marcela tinha que sair dali e ganhar o próprio sustento. Se quisesse, podia não levar o bebê. Não quis. Com uma trouxa de roupas nas costas e a filha nos braços, deixou a casa em que passara a viver desde os sete anos. Antes, pegou o espelho de maquiagem que um dia ganhara e se mirou longamente. Como de costume viu a outra, mas já não tinha medo algum das suas caras estranhas nem tampouco de que ela lhe tomasse o lugar. Em Abricó dos Anjos, onde poderia ter estudado, havia dois bordéis para trocar o corpo por teto e comida. A dona de um deles detestava crianças. A do outro, pelo contrário, as adorava. Foi para este, então. Lá chegando, jurou que não deixaria a filha ter o mesmo destino da pequena que viu quando entrou na cidade. Inerte, com a face envolta pela dança interminável das moscas varejeiras e o corpinho entregue à palidez do abandono, a menina parda já não escutava o repórter da TV nem as explicações do chefe da polícia, que nada explicavam. Viveu tempos difíceis, mas aprendeu a ler e a escrever e ainda pôs a filha na escola. Dera-lhe o nome de Helena, que achava bonito e podia lhe trazer uma sorte melhor que a sua. De fato, trouxe. Depois de tudo cheirar e de fazer suas necessidades, o cão a puxou até a casa antes que Roberval voltasse. Nem sentiu o tempo passar e, quando se deu conta, estava toda molhada. Em algum instante não percebido, a chuva forte começara a cair. Talvez tenha sido enquanto pensava em Helena, artista plástica muito reconhecida na Europa. Ou então quando lhe vieram à cabeça momentos do longo convívio com Roberval, por quem nunca morreu de amores. Era até um bom homem, desde que fosse obedecido. Dos seus cabelos cheios d’água, que há muito deixara de pintar, gotas pesadas escorriam e se quebravam no piso encerado. Com ar de lorde inglês, o cão a fitava em silêncio, como se lhe adivinhasse os pensamentos. Ignorou-o e foi se mirar no grande espelho ovalado do quarto de dormir. Viu diante de si uma face que se parecia mais com um pano amassado, cheio de marcas impossíveis de não se ver. Novamente a outra, a impostora que a vida inteira a assombrara, estava ali. Sem hesitar, passou-lhe a face com o ferro quente de um olhar penetrante, resoluto, único e disse com satisfação que o serviço ficara ótimo. Sentindo-se como nunca se sentira antes, viu a outra desparecer no fundo do espelho, abriu a porta da rua com entusiasmo e sumiu sem deixar rastros. Como Pedro.

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Fabio Lindbergh