Revista Devires

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cão e a gema do ovo, bêbados de animais degolados, ensopados de baba, contorcidos. Voltando depois à norma, devolvidos ao espaço social (não sagrado), até o próximo sacrifício. Essa primeira inversão, do cotidiano e do sacrifício, é escandida subitamente de imagens estranhamente verdes e vermelhas: uma cerimônia de troca dos horse guards, sob o fundo de um campo de cor berrante. Se a mensagem é clara, em sua retidão ingênua, que liga ao mesmo tronco barbárie e civilização supostas, se algo muito banal pode se ler nesse insert, não é menos verdade que uma grande surpresa advém então, menos ao nível do discurso (como tese ou esboço de tese) do que no do filme como ficção: desligamento metafórico, vindo de outro espaço-tempo (de outra ordem de relato, de cultura, indicativa do espaço da colonização), imprimindo um deslocamento segundo ao deslocamento já perturbador, que parecia o assunto do filme. Aqui, o sistema de leitura se multiplica. À descoberta do cinema como material original, rico de virtualidades outras que não as simplesmente transitivas (de um saber, de um espaço, de mentalidades) sucede ou se superpõe a descoberta do cinema como estrutura (narrativa, poética, plástica, crítica). Uma combinatória se esboça, os elementos de um dispositivo, entre os dados fundamentais de que o cinema se vale, ingenuamente ou não, desde as suas origens, em razão da natureza mesma de sua relação com o real: no âmbito do real, as matérias (corpos, objetos, luzes) e sua resistência específica a se deixarem inscrever num quadro, a se dobrarem a técnicas (imagem, som) muito coercitivas, ainda que simplificadas. No âmbito da manipulação, tudo o que a lógica de escolhas concretas engrena como possibilidades de articulações inéditas e, assim, de modificações da matéria-prima filmada (ainda que ela seja dada de antemão, já encenada, como no caso do rito, do cerimonial, do sacrifício). Dessa relação entre o dado e a manipulação Rouch vai pesquisar as virtualidades, enunciar os pontos de encontro até então inexplorados, pelo que sua influência sobre o cinema que então se faz ou se procura será mais determinante, provavelmente, que qualquer outra (sobre Godard, Rivette, e mesmo onde não a procurávamos à primeira vista – sobre Straub, por exemplo). Vemos como são levados em conta os qualificativos atribuídos aos antigos, Vertov, Flaherty. O que a prática do cinema etnográfico revelou em Rouch é um pouco, uma vez operadas todas as acomodações históricas,

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DERIVAS DA FICÇÃO: NOTAS SOBRE O CINEMA DE JEAN ROUCH / JEAN-ANDRÉ FIESCHI

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