Continente #029 - O enigma chinês

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LITERATURA 63 » publicavam artigos na Folha do Povo. Para o jornal escreviam ainda Moacir Werneck de Castro, Brasil Gerson, Pedro Mota Lima, Di Cavalcanti e Sodré Viana. Uma das crônicas de Rubem comemorava a primeira aula dada pelo amigo Gilberto Freyre na Faculdade de Direito do Recife. Algumas vezes assistia a filmes no cinema e escrevia sobre eles de maneira genial. Outras vezes tratava do apartheid cultural entre pobres e ricos. Durante vários dias, Rubem dedicou espaços no jornal para discutir a apresentação de Bidu Saião no Teatro Santa Isabel, aberta apenas aos abastados. Populares, interessados, se aproximaram das janelas do teatro, que prontamente foram fechadas sob a desculpa de uma correnteza de ar. “Arte é, hoje, um odioso privilégio de classe. Ninguém pode dizer que não. Isso é odioso e triste e não dá prejuízo só à massa. Dá prejuízo igual à arte.” Antes de trabalhar para a Folha do Povo, Rubem Braga escreveu para o Diario de Pernambuco, uma publicação dos Diários Associados. Assim como as demais publicações de Assis Chateaubriand, o Diário era assumidamente getulista. Inexplicavelmente, o jovem escritor emplacava suas crônicas esquerdistas. Foi lá que ele publicou “O cidadão de Liffre”, uma bela crítica à forma “nojenta” de fazer política. Depois ele assumiu a chefia da página policial do Diário, de onde saiu para fundar a Folha. No contato pessoal, Rubem Braga era contido. Tanto que era apontado como chato pela maioria dos conhecidos. Desleixado nos trajes e despreocupado em ganhar dinheiro, era um homem de poucas palavras. “Pessoalmente era um chato, não conversava com ninguém. Eu tinha a impressão de que ele era um superdotado, que não via graça no que falavam os outros”, conta o jornalista Ronildo Maia Leite, que tomou algumas com o cronista. “Mas escrevendo era brilhante”, completa. O historiador e geógrafo Manoel Correia de Andrade, superintendente do Instituto de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, tem na lembrança os tempos em que conviveu com Rubem. “Era um comunista de carteirinha, costumava dizer que os bons ventos vinham do leste (onde estava a União Soviética)”, lembra. Rubem Braga passou no Recife cerca de seis meses. Levado pelos ventos da descoberta e da liberdade, deixou a cidade em setembro. Em 79, voltaria a publicar na capital pernambucana. Dessa vez o seu único livro de poesias, intitulado Livro de Versos. A publicação foi da Edições Pirata, uma editora independente que lançava novos escritores na praça. O cronista famoso achou interessante a proposta e ofereceu poesias suas como forma de apoiar a editora.

O ca ara ang guejo e o pobre (Crônica de Rubem Braga inédita em livro)

José Lins do Rego é agora o maior romancista brasileiro. Já estão vendendo o seu último romance, O moleque Ricardo. O livro conta histórias antigas de greves e brigas de operários e operárias no Recife, quando o sr. Joaquim Pimenta era homem de prestígio no meio do povo desorganizado. O preto Ricardo nasce em um engenho, trabalha de pãozeiro no Recife e depois da greve, no fim do romance, é mandado para Fernando de Noronha. Mas agora eu não vou fazer crítica ao livro. Quero só chamar a atenção para a parte do romance passada nos mocambos. Aquilo me faz lembrar o que um companheiro pernambucano me falava outro dia sobre o papel sociológico do caranguejo. O caranguejo, para grande parte da população dos mocambos, é uma garantia contra a morte. É a comida de quem não tem comida. O pobre se defende no caranguejo. O caranguejo é o patrício do pobre. A lama é a pátria do caranguejo, do pobre, do urubu e do porco... Os estudantes que estão aprendendo ecologia com o prof. Gilberto Freyre deviam estudar direito essas relações do caranguejo com os pobres do Recife. O salário miserável que o pobre do Recife recebe não dá para ele se alimentar e alimentar a família. Dá para ele comer alguma coisa que não alimenta quase nada. E o salário miserável nem sempre existe. O número de desempregados nos mocambos é cada dia maior. A miséria é cada vez mais negra para o povo dos mocambos. Eu não estou falando isso apoiado em estatísticas. O governo ainda não levantou estatísticas da miséria. Isso, para o governo, é um assunto feio, coisa que não vale a pena falar. Estou falando pelo o que ouço diariamente da gente dos mocambos que traz à Folha do Povo as suas queixas e as suas revoltas. É do testemunho desses homens sacrificados que me sirvo. As famílias sem pão vivem atrás dos caranguejos. Onde há muito caranguejo a fome é tapeada com certa facilidade. O caranguejo é amigo do pobre. Mas que espécie de amigo! Porque na verdade esse amigo do pobre é aliado do rico... Senhores, o povo da lama está cansado de caranguejo. Ele sabe que além do caranguejo existe vida. Ele não se contenta mais com o caranguejo. Ele quer também a vida. Nestas horas de opressão e miséria, o caranguejo é amigo do pobre. O pobre também é amigo do caranguejo. Ele deixará o caranguejo em paz, ele sairá da lama, pátria do caranguejo. E virá para a terra de onde foi expulso, para a terra que é sua. E os caranguejos viverão em paz em seus mangues fétidos... Folha do Povo, Recife 22/08/1935 Continente maio 2003


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