Continente #029 - O enigma chinês

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28 CINEMA

espectador deseja ver nele. O artigo de Zizek, The Two Sides of Perversion (ou Os Dois Lados da Perversão), é a maior estrela do livro The Matrix and the Philosophy, organizado por William Irwin. O professor de Filosofia segue o raciocínio do esloveno para classificar Matrix como uma aplicação cinematográfica do teste de Rorschach (exercício aplicado por psicólogos, para projeção de personalidades). “No filme, pensadores podem detectar as idéias da escola que preferirem: existencialismo, marxismo, feminismo, budismo, niilismo, pós-modernismo e muito mais”, escreve ele. O falso livro de Neo não deixa dúvidas a respeito da fonte primária onde os Wachowski foram buscar as idéias do filme. Trata-se de uma cópia em inglês de Simulations and Simulacra, um dos livros mais famosos do filósofo pós-moderno Jean Baudrillard, polêmico crítico da cibercultura. O volume não está nas mãos do ator Keanu Reeves por acaso. Afinal, o pensador francês revitalizou, através de especulações filosóficas que misturam conceitos da física e da semiótica, a noção de simulacro, na qual se estrutura toda a trama elaborada pelos Wachowski. Antes que os irmãos sejam taxados de pós-modernos, contudo, é necessário definir com precisão o significado de simulacro, o que implica em rastrear a verdadeira origem desse conceito. De fato, Baudrillard não o criou, apenas o adaptou à era do digital. O conceito de simulacro — uma cópia perfeita de algo que não existe — remete à civilização grega. O simulacro é o elo perdido que liga realidade e ilusão — esse sim, o verdadeiro tema do filme. O próprio Slavoj Zizek reconhece esse fato, quando afirma que a trama de Matrix reelabora a famosa “alegoria da caverna”, que Platão descreveu no Livro VII da República. Na alegoria, Platão imagina um homem que passou toda a sua vida acorrentado dentro de uma caverna escura. Ele fita uma parede, onde vê as sombras de seres humanos se movendo. Para o prisioneiro, as sombras são seres reais. Quando consegue escaContinente maio 2003

O pensador francês Jean Baudrillard - por sinal, ferrenho e polêmico crítico da cibercultura - revitalizou, através de especulações filosóficas que misturam conceitos da física e da semiótica, a noção de simulacro, na qual se estrutura toda a trama elaborada pelos irmãos Wachowski, autores de Matrix

Matrix despertou o interesse de filósofos, viciados em videogame, teólogos, fãs de revistas em quadrinhos, antropólogos e clubbers, estudiosos de Inteligência Artificial e praticantes de tae kwon do

par, já adulto, sai da caverna e vê pela primeira vez o mundo real. Ele reluta em acreditar que as sombras não passavam de uma ilusão, de um simulacro, uma falsificação da realidade. Como se pode perceber, Neo segue o mesmo caminho do prisioneiro da caverna de Platão. A realidade que aprendeu a reconhecer como tal nunca passou de um simulacro, de um sofisticado programa de computador elaborado por supercomputadores para fazer com que os seres humanos, em estado de coma eterno e aprisionados em uma espécie de gigantesco viveiro cibernético, sonhem indefinidamente. O que percebemos como realidade, de fato, não passaria de um sonho. Nesse ponto, surgem não apenas ecos das teorias psicológicas de Carl Jung e Jacques Lacan, mas sobretudo o princípio da Primeira Meditação de René Descartes: o que percebemos como um mundo, pode não ser mais do que uma ilusão. Os sonhos constituem uma porção generosa do filme original. O programa de computador que dá título à obra, a Matrix, possui a capacidade de emular a realidade através dos sonhos dos humanos escravizados. De fato, a Matrix simula a vida social de todos os habitantes do planeta, como um jogo The Sims em três dimensões, onde as pessoas podem se materializar fisicamente. A idéia surge como uma representação cinematográfica da metáfora elaborada por Baudrillard para a sociedade pós-moderna: uma comunidade que vive anestesiada, num estado que não passa de ilusão criada pela tecnologia. A interferência nociva da tecnologia defendida por Baudrillard encontra eco nos escritos de outro filósofo contemporâneo: Paul Virilio. Arquiteto, Virilio ataca o digital com a mesma ferocidade de Baudrillard, mas elabora uma teoria, no livro O Espaço Crítico (Editora 34), cujo foco principal está na noção de “falso dia eletrônico”: a percepção de que, diante da crescente digitalização que cerca o ser humano, não existem


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