Continente #003 - Niemeyer

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Editorial Filosofia, política, arquitetura

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Especial Um gênio da Arquitetura Aos 93 anos Oscar Niemeyer revela-se um pessimista que acredita na utopia Brasil

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Capa: Desenho do Memorial JK, de Niemeyer, sobre foto de Bruno Veiga / TYBAFotos

Século 21

Literatura

Medidas de segurança

Entre a ética e a estética

O declínio das condições sociais tornam EUA e Inglaterra tão violentos quanto o Brasil

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Mário de Andrade debateu-se entre a necessidade de uma arte experimental e a de uma arte útil

História

Comunicação

Inimigos irmanados

A dança das palavras

A reconciliação de Camilo Cela e Juan Alacalde, 61 anos depois da Guerra Civil Espanhola

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A invasão da língua inglesa acaba produzindo monstruosidades lingüísticas

Filosofia

Crônica de uma cidade

A criação do mundo

Caruaru íntima

Ao completar 90 anos, o pernambucano Evaldo Coutinho é tema de filme e livro

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BRUNO VEIGA / TYBAFOTOS

www.continentemulticultural.com.br

A paisagem e os costumes, no interior, terminam por fazer parte da lembrança emocional

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Música Chico Science cristaliza-se como mito no imaginário do povo pernambucano página 48

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Política Contestação radical Eduardo Galeano gira sua metralhadora verbal contra a globalização

48 página 80

Sabores Pernambucanos

Mil palavras

Bem doce

Personagens mudas

Usado pelos índios já antes de 1500, o mel tem uma longa e doce história

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Testemunhas de pedra e metal observam (sem ser observadas) o cotidiano da cidade

Lição de Arte

Entremez

Delano

O falso novo

O pintor fala de sua arte indiferente à fama, irônica e avessa à intelectualização

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O teatro se nutre com mais vigor da tradição do que de experimentalismos inconseqüentes

Marco zero

Últimas palavras

Tudo menos poesia

Vivendo e aprendendo

Os poetas são obrigados a se desdobrar em atividades paralelas a fim de prover seu sustento

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De como um intelectual citadino tomou uma lição de português de um matuto

FRED JORDÃO / IMAGO

No auge

88 94 96

Con


Expediente Companhia Editora de Pernambuco – CEPE

Cartas

Presidente Marcelo Maciel Diretor Financeiro Altino Cadena Diretor Industrial Rui Loepert

Conselho Editorial Presidente: Marcelo Maciel Conselheiros: César Leal, Cícero Dias, Edson Nery da Fonseca, Francisco Bandeira de Mello, Francisco Brennand, Joaquim de Arruda Falcão, José Paulo Cavalcanti Filho, Leonardo Dantas Silva, Manuel Correia de Andrade, Marcus Accioly Diretor Geral Carlos Fernandes Editor Mário Hélio Editores Executivos Homero Fonseca, Marco Polo Assistente de Edição Alexandre Bandeira Arte Luiz Arrais Editoração Eletrônica André Fellows Ilustrador Lin Colaboradores desta edição: Afonso Oliveira, Alberto da Cunha Melo, Alexandre Costa, Arnaldo Carvalho (Ag. Lumiar), Caesar Malta Sobreira, Eduardo Queiroga (Ag. Lumiar), Flávio Lamenha, Fred Jordão (Ag. Imago), Geneton Moraes Neto, João Câmara, Marcos Aurélio Guedes de Oliveira, Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti, Mascaro, Moema Cruz, Mônica Vasconcelos, Nelson Saldanha, Paulo Cunha, René Cabrales, Rivaldo Paiva, Ronaldo Correia de Brito, Vandeck Santiago Gerente Gráfico Samuel Mudo Gerente Comercial Alexandre Monteiro Equipe de Produção Elizabete Correia, Emmanoel Larré, Geraldo Sant’Ana, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Lígia Régis, Mauro Lopes, Paulo Modesto,Rafael Rocha, Roberto Bandeira, Sílvio Mafra e Zenival

Continente Multicultural é uma publicação mensal da Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Redação, publicidade, administração e correspondência: Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE CEP 50100-140 Circulação e assinaturas Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro - Recife/PE - CEP 50100-140 de 2ª a 6ª das 08h:00 às 17h:30 pabx: (81) 3421.4233 ramal 151 fone/fax: (81) 3222.4130 e-mail: informacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: assinaturas@continentemulticultural.com.br e-mail: publicacoes@continentemulticultural.com.br e-mail: redacao@continentemulticultural.com.br Tiragem: 10.000 Impressão CEPE Todos os direitos reservados. Copyright © 2000 Companhia Editora de Pernambuco ISSN 1518-5095 Os textos assinados são de responsabilidade dos autores e não refletem, necessariamente, a opinião da revista

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Feito Estou aqui feliz com o feito extraordinário que é Continente. Digna, graficamente impecável, conteúdo nota 10. Vocês aí “deram um quinal", como dizia meu pai. Fora do eixo Rio-SP, fizeram algo lindo, necessário, maduro, internacional, reunindo a fina flor da pernambucanidade. Aliás, para fazer meu Barroco, do quadrado à elipse, redescobri muita coisa sobre PE. Inclusive o incrível frei Manuel Calado, de O Valeroso Lucideno, obra sensacional, sobre a qual silenciam todas as histórias literárias, exceção apenas do atento Wilson Martins. Parabéns à equipe. Affonso Romano de Sant’anna - Rio de Janeiro - RJ

Vida longa Afinal uma revista séria, bem feita, belíssima, pioneira em Pernambuco no seu ineditismo gráfico e cultural. Como pernambucano, orgulho-me de ter em mãos este primeiro número de Continente Multicultural, formulando a todos que a fazem os mais sinceros votos de admiração e respeito e que ela se alongue pelo tempo todo. Milton Campello de Barros Mello – Recife – PE

Novos pintores Eu fiquei maravilhado com os dois primeiros números da revista, em particular com a entrevista com Ferreira Gullar e as matérias sobre João Câmara e Gil Vicente. Gostaria de sugerir matérias sobre a nova “safra” de pintores pernambucanos (Dantas Suassuna, Romero de Andrade Lima, Joelson Gomes, Flávio Emanuel, Jeanine Toledo) e, ainda, Gilvan Samico, que é certamente um dos maiores gravadores do Brasil. Francisco Cribari-Neto – Recife – PE

Enigma Caetano Li avidamente os dois números da revista. Puro luxo. No nº 01, a entrevista do Geneton Moraes Neto é impecável, instigante, reveladora. Realmente é inexplicável que um cidadão talentoso, com uma obra vasta e aplaudida, grande compositor, extraordinário cantor, bem-sucedido financeiramente, seja tão cheio de mágoas e necessite tanto de rasgar seda para os poderosos. Talvez a chave para compreensão desse enigma tenha sido dada pelo próprio Geneton: parece-nos que tudo o que Caetano Veloso gostaria mesmo de ter sido era, sobretudo, o bisneto do saudoso sinhozinho de Massangana. Renato Feliciano Dias – Recife – PE

Apipucos A CEPE está de parabéns. Gostaria de solicitar que seja veiculada uma matéria sobre Apipucos. Como anda hoje, neste comecinho de século 21, o outrora tão cantado e decantado recanto do mestre Gilberto Freyre? Ainda há sobrados e quintais? E os vestígios do passado são visíveis? José Souza Melo – Maceió – AL


EDITORIAL

Filosofia, política,

arquitetura

N

o decorrer dos tempos os homens se acostumaram a eleger as maravilhas do que eles próprios com as suas hybris construíram. Já é um lugar-comum citar as pirâmides do Egito, os templos gregos antigos e a própria muralha da China entre os ápices da arquitetura. No entanto, a modernidade já superou em muito qualquer arrojo dos tempos remotos. Um exemplo largo disso é Brasília, cidade de todo artificial, como se fosse uma utopia (incluindo o seu sentido vão). Erguida no tempo em que o Brasil era citado aos quatro ventos secos como o país do futuro. Goste-se ou não da cidade, há um fato inegável e simples porque bem à vista: Brasília é um poema concreto. Tem a forma de um avião e nasceu da cabeça de um homem que tem pavor a viajar em avião. Esse novo Imhotep, o velho arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer (ateu, comunista e supersticioso) a definiu, junto com Lucio Costa. A cidade que era um sonho de pedra do presidente Juscelino Kubitscheck, se materializou nos cálculos de um engenheiro-poeta – Joaquim Cardozo – e no sanguesuor dos muitos operários.

Oscar Niemeyer é o principal personagem desta edição. Porém, na entrevista exclusiva, não aparece muito o arquiteto. Fala mais o homem simples, quase intimista, das coisas de todos os dias, e da sua obsessão: arquitetar a justiça social. Não é outra a obsessão (política) do escritor uruguaio Eduardo Galeano (que também escreveu sobre Brasília e Niemeyer). No mês passado, ele abriu as suas veias e verbos de fogo no fórum social mundial em Porto Alegre. Continente Multicultural esteve lá com dois repórteres e o resultado é um perfil da sua luta um tanto quixotesca contra a globalização. No outro extremo – no ponto contrário da arquitetura à la Niemeyer – mas igualmente obsessiva, a voz mansa, pausada, quase sumida, mas nítida, de um filósofo: Evaldo Coutinho. Ao completar 90 anos, faz-se tema de um filme que praticamente o lança para o grande público (embora não haja grande público nunca para a filosofia). Ele é uma das raras vozes – solipsistas, é claro – no grande deserto do pensamento filosófico num Brasil a que caberia a frase da mulher tropical ao seu amante: “Se me amas, não penses”.

Croquis de Niemeyer

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Nie

ESPECIAL


ALEX LARBAC / TYBAFOTOS

O jornal inglês Daily Telegraph concedeu ao o título de “visionário". Uma longa entrevista com nosso personagem um título pomposo, num artigo ele, no escritório em que trabalha até hoje, aos 93 publicado no ano passado: Oscar Niemeyer é o anos de idade, pode trazer surpresas. Comunista “último grande arquiteto modernista visionário". renitente, recusa-se a aceitar o fim inexorável da O Oscar Niemeyer que aparece nas enci- União Soviética. Corre o risco de segurar o bastão clopédias pode ser descrito como um gigante da ar- de último comunista incondicional do planeta. Gilquitetura mas, pessoalmente, exala uma certa fragi- berto Freyre disse uma vez que Niemeyer, arquiteto lidade. É baixo. Fala com voz contida. Declara-se genial, era um homem ignorante porque vivia olimpicamente desinteressado das glórias terrenas. repetindo palavras de ordem marxistas (Niemeyer É provável que a alegada modéstia esconda, na ver- dá, nesta entrevista, uma resposta mineira quando dade, uma ponta de justificada vaidade. Arquitetos confrontado com a crítica). A bem da verdade, desenham casas, prédios, praças. Niemeyer conce- diga-se que Niemeyer não é cem por cento prebeu uma cidade: visível em suas declarações de princípios. Exemplo: – Quando chego perto de Brasília, parece é um pessimista que, contraditoriamente, gosta de um milagre. Fico pensando que seria quase impos- falar em esperança. Um diálogo com ele pode ser sível Juscelino ter feito aquela obra toda em três rico e surpreendente. O ateu Niemeyer emocionaanos e meio. Hoje, para fazer uns dez edifícios, le- se ao descobrir, através de um amigo cientista, que vam-se três anos. Em Brasília, era preciso fazer tu- o Homem e as estrelas são feitos da mesma mado: uma cidade inteira. Aquilo foi uma cruzada que téria. Nem tudo é amargor na cartilha do mais cémostrou que nós, brasileiros, podemos fazer algu- lebre dos arquitetos brasileiros. Pelo contrário. Aos ma coisa. Brasília foi um momento importante para noventa e três anos, é um apóstolo devotado da o povo brasileiro. seita dos que nunca deixaram de acreditar nesta Quando recita sobre Brautopia de seis letras chamada sília, Niemeyer parece encarnar Geneton Moraes Neto Brasil.

meyer

Ateu, comunista, solidário, pessimista, genial, o mais famoso arquiteto brasileiro celebra uma utopia chamada Brasil

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“Influência de Le Corbusier foi apenas no conceito de arquitetura-invenção”

O senhor sempre disse que via o homem como um bicho “terreno, biológico, sem mistérios". Depois dos noventa anos de idade, esta visão de mundo mudou de alguma maneira ? A visão do mundo, não. O pessimismo é coisa antiga – antiquíssima – que, no entanto, não leva ao niilismo. Jean-Paul Sartre era pessimista: dizia que toda existência é um fracasso. Mas ele gostava da vida. Apoiou todos os movimentos populares e progressistas de libertação. Dizia aos amigos que gostava de ter dinheiro no bolso pra dar de esmola. Então, uma coisa – o pessimismo – não tem a ver com a outra – o niilismo. O que acho – 6 Continente Multicultural

AFP

O senhor transmite uma visão pessimista da vida – um certo enfado diante das coisas. Como é que se justifica tanto pessimismo num homem tão bem-ssucedido ? Sou pessimista diante da idéia de que o homem, quando nasce, já começa a morrer, como notou Jean-Paul Sartre. Mas, na vida, caminhamos rindo e chorando o tempo todo: é preciso, então, aproveitar o lado bom da vida, usufruir o melhor possível e aceitar os outros como eles são. Sempre digo: o importante é o homem sentir como é insignificante, é o homem olhar para o céu e ver como somos pequeninos. Ultimamente, no entanto, tenho me espantado como a inteligência do homem é fantástica! Tenho conversado sobre astronomia. Como é imprevisível o que ele pode criar! Numa dessas conversas que tenho tido com um amigo sobre o cosmos, ele me explicou que o homem é filho das estrelas. A matéria é a mesma! Então, é mais emocionante ser filho das estrelas do que ser filho da terra. Eu sempre dizia que a vida não teria sentido, o homem é filho da terra, como os outros bichos, os outros animais. Mas acho que o futuro será melhor. Os mais inteligentes se queixam do mundo. Acham que o mundo tem prazeres e alegrias, mas a razão de a gente estar aqui é precária. Em todo caso, ninguém quer abandonar o espetáculo. Entre os homens, a maioria é formada pelos que lutam, os que estão sofrendo, os que são humilhados. O drama do ser humano é ver o homem nascer e morrer. Ninguém quer nem pensar sobre este assunto. Os mais ricos estão se divertindo. Não querem pensar em nada: só querem usufruir as boas coisas da vida. Os outros nem têm nem tempo para conseguir viver um pouco.

sempre – é que o homem tem de viver dentro da verdade, saber que não é importante. A disseminação dessa crença levaria o homem a uma posição mais modesta. Porque o homem precisa saber que a vida é curta mesmo. Isso não quer dizer, no entanto, que a vida deva ser marcada pelo niilismo. Não! O homem continua a sonhar, a pensar nas coisas boas – de braços dados uns com os outros. Se o senhor fosse chamado a escrever sobre Oscar Niemeyer numa enciclopédia, qual seria o primeiro verbete? Eu diria que é um ser humano como outro qualquer – que nasceu, viveu e morreu. Sou um homem comum – que trabalhou como todos os outros. Passou a vida debruçado sobre uma prancheta. Interessou-se pelos mais pobres. Amou os amigos e a família. Nada de especial. Não tenho nada de extraordinário. Acho ridículo esse negócio de se dar importância. Eu consegui manter, a respeito dos homens, uma posição que me tranqüiliza muito: vejo os homens como uma casa, em que você pode consertar as janelas, acertar o aprumo das paredes, pintar. Mas, se o projeto inicial foi ruim, fica prejudicado. Aceito as pessoas como elas são. Todo mundo tem um lado bom e um lado ruim. O homem nasce numa loteria: é bom, é ruim, é inteligente ou não. Se a gente aceita este fato como uma condição inevitável, a gente tem de ser mais paciente com as pessoas, aceitá-las como elas são.


O senhor escreveu: “Sempre admiramos as pessoas que são o que nós gostaríamos de ser". Quem é que o senhor gostaria de ser hoje ? Não vou citar ninguém. Mas gostaria de ser um sujeito normal – que tem prazer de ser útil e ajudar os mais pobres. É o mais importante na vida. O seu medo de viajar de avião é famoso. A que grande encontro o senhor faltou por ter medo de viajar de avião ? Eu tinha combinado com Assis Chateaubriand de me encontrar com ele em Pernambuco . Ele foi na frente, eu iria depois. Mas ele foi – e eu não. Quando ele se encontrou comigo, dias depois, disse: “Você agiu como um verdadeiro comunista!". Mas ele gostava de mim; nos dávamos bem. O medo de viajar de avião me atrapalhou muito. Um dia, eu estava em Brasília, JK me telefonou para que eu viesse com ele de avião para o Rio de Janeiro. Não vim. Viajei de automóvel. Houve, então, um acidente com o carro em que eu viajava. Passei quinze dias no hospital. O medo de avião não vem de nenhum raciocínio . É coisa minha mesmo. Não viajo quando não quero. Mas muitas vezes invento essa historia de medo de avião, porque não quero viajar. O senhor disse que tinha uma certo “ sentimento de culpa” por ter tanto medo de avião. É verdade ? Mas eu não gosto desse negócio de altura! Tantas vezes voltei do caminho... Deixei de viajar. Uma vez, eu estava na Argélia. Quando chegou a hora do avião sair – eu já tinha posto aquele balinha na boca –, eu disse : “Não vou !". Peguei o meu colega e saí. Isso criou uma dificuldade, porque a mala já estava no avião. Mas viajei muito. Já embarquei três vezes num Concorde! É um sistema prático – que a gente tem de aceitar. O senhor se lembra quando foi a primeira vez em que Juscelino Kubitscheck falou ao senhor sobre o sonho de construir Brasília? Eu me dei com Juscelino desde o primeiro dia .O primeiro trabalho que fiz como arquiteto foi a Pampulha – a primeira obra que ele construiu. Pampulha, então, foi o início de Brasília: a mesma pressa, a mesma correria, os mesmos problemas

econômicos para fazer a obra. Quando veio a idéia de Brasília, JK foi à minha casa, nas Canoas, no Rio. Descemos junto para a cidade. Juscelino vinha dizendo: “Oscar, vou fazer Brasília! Vai ser a capital mais bonita do mundo!” O senhor tem alguma dúvida sobre as circunstâncias da morte de JK ? Não. Nenhuma. Acho que foi um acidente. Qual foi o último encontro entre os dois ? Quando Juscelino estava em Paris, estive com ele. Eu ia ao apartamento em que ele vivia. Juscelino foi uma pessoa muito importante para a vida brasileira. A construção de Brasília foi um momento de otimismo e de esperança. Brasília foi aquele luta: a terra vazia, tudo por começar, sem estrada, sem conforto. Mas havia entusiasmo. Havia pressão de Juscelino e de Israel Pinheiro. A meta era: terminar de qualquer maneira. O prazo foi cumprido. Brasília foi um momento estranho: vivíamos junto aos operários, freqüentávamos as mesmas coisas, as mesmas boates, com a mesma roupa. Aquilo dava uma idéia de que o mundo estava evoluindo, o tempo estava melhorando. Iria desaparecer aquele barreira de classes. Mas era um sonho. Depois, vieram os políticos, vieram os homens do dinheiro. Tudo recomeçou: essa injustiça imensa, tão difícil de reparar. O poeta Joaquim Cardoso vivia dizendo ao senhor que era importante visitar os observatórios para estudar o céu. É esse o motivo que o levou a se interessar por astronomia? Tenho conversado, no meu escritório, com um cientista que vem falar sobre o cosmos. É um assunto que interessa a gente – principalmente quando a conversa se encaminha para a esperança e a invenção. A gente vê como tudo é possível ! O homem, que parece insignificante, tão pequenino quando visto do céu, na verdade é o único elemento de inteligência no universo. Tudo é possível, então! A gente lembra de que há cinqüenta anos não existia televisão. Agora , a gente já admite a transposição da matéria ou que o homem possa viajar entre as estrelas. Pode até habitar outros planetas. Um mundo novo vem surgindo. E é fantástico.

Croquis de Niemeyer

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REPRODUÇÃO

Esboço do Museu de Arte Moderna de Niterói

O senhor, que é um homem sem crença religiosa, em algum momento teve a tentação de acreditar em Deus? Venho de uma família católica – que veio de Maricá, eram fazendeiros. O meu avô foi do Supremo Tribunal. Tínhamos missa em casa, com a presença de vizinhos. Mas, quando saí para a vida, superei tudo isso. Vi que o mundo era injusto. Não acredito em nada. Acredito na natureza: tudo começou não se sabe quando nem como. Eu bem que gostaria de acreditar em Deus. Mas não. Sou pessimista diante da vida e do homem. O que o levou a não acreditar em Deus foi essa constatação de que o mundo era injusto ? O mundo é injusto, sem perspectiva. A indagação que a gente faz os pintores antigos já escreviam nos quadros: “De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?" Quando eu era pequeno – tinha uns quatorze anos – já pensava na morte. Ficava meio desesperado quando pensava que o sujeito vai desaparecer, não vai pensar mais nada. Mas a vida é assim: o que a gente deve é procurar ser útil e dar as mãos.

vão usufruir nada desse edifício, mas sei que, se o edifício for bonito, os pobres vão parar e ter um momento de espanto e alegria ao ver uma coisa diferente. O senhor não vive na casa que o senhor projetou. Por que é que o homem Oscar Niemeyer não vive na casa que o arquiteto Oscar Niemeyer criou? Eu gostaria. Vivi lá dez anos. Lá, JK foi me procurar. Mas é longe, num lugar um pouco deserto. Nesse clima em que vivemos – com assaltos e insegurança – o pessoal prefere ficar mais no centro. A casa ficou vazia. Quase todo dia vem visitante para vê-la. Eu mantenho a casa porque é um bom exemplo de arquitetura, o lugar é bonito. O senhor – que gosta de futebol – participou do concurso para escolha do projeto para a construção do estádio do Maracanã. Como seria o Maracanã de Oscar Niemeyer? O meu estádio seria pior. Naquele tempo, a idéia que tínhamos de arquitetura em relação a estádio de futebol era fazer uma única arquibancada do lado em que o sol não batesse na cara do espectador. Depois, ao começar a freqüentar estádios, vi como era importante existir arquibancada também do outro lado. O sujeito vê o campo, vê o jogo, mas precisa ver também a alegria do estádio! Então, um estádio circular, como o Maracanã, é a solução melhor. Passaram-se alguns anos, eu estava na casa de Maria Martins, em Petrópolis, quando chegou Getúlio Vargas, a quem eu nunca tinha encontrado. Getúlio olhou para mim e disse: “Se eu tivesse ficado no governo, teria feito o seu estádio". Tive vontade de dizer: “Era ruim. O outro projeto era melhor” .

O senhor uma vez escreveu “minha posição diante do mundo é de invariável revolta". Onde é O senhor, como noventa e nove por cento que nasceu esse sentimento ? Veio da miséria que nos cerca. Ninguém dos brasileiros, pensou em ser jogador de futebol. resolve. É uma luta de milhares de anos: a gente vê O senhor tentou a sério? os mais ricos usufruindo tudo. Quando O meu Maracanã seria pior. A idéia que faço um projeto de um tínhamos em relação a estádio de futebol prédio público – por era fazer uma única arquibancada do exemplo – procuro fazer algo bonito. Primeiro, porlado em que o sol não batesse na que esse é o caminho da arquitecara do espectador tura. Eu sei que os mais pobres não 8 Continente Multicultural


ROGÉRIO REIS / TYBAFOTOS

Eu jogava bem no colégio. Eu me lembro de que um grande goleiro do Flamengo, o Amado, foi do meu tempo de colégio. Uma vez, ele veio me procurar para treinar no Flamengo. Joguei numa preliminar Flamengo e Fluminense. Fiquei espantado com o estádio cheio de gente – por causa do jogo seguinte. Eu só pensava em futebol no meu tempo de colégio. Joguei pelo Fluminense – como atacante. Gostava de driblar.

Diz a lenda que o senhor já teve nas mãos um pedaço da lua, trazido por um astronauta americano. É verdade? Quando eu estava em Paris, andava sempre com um grupo do qual fazia parte Ubirajara Brito, um cientista, um físico muito inteligente que tinha sido incumbido de estudar a Lua, no laboratório em que trabalhava. Ubirajara Brito nos mostrou pedrinhas brancas da lua. O engraçado é que era uma pedrinha como outra qualquer. Tive vontade de ficar com uma daquelas pedrinhas... É verdade que o senhor projetou uma casa para o seu motorista numa favela no Rio ? O meu motorista mora na favela da Rocinha, em São Conrado. É um amigo: trabalha comigo há quarenta anos. Fiz uma casa para ele lá, porque me dá prazer ser útil. A gente se sente mais tranqüilo quando colabora. O fato de comprar um apartamento para Luís Carlos Prestes também me agradou (N: Niemeyer deu de presente um apartamento ao líder comunista, na rua das Acácias, na Gávea, zona sul do Rio). É como encontrar com uma pessoa na rua e dar dinheiro. De vez em quando, um colega me diz : “É besteira, não adianta nada". Ora, eu sei que não adianta, mas estou dando um momento de alegria para a pessoa. Não importa que ela vá usar o dinheiro para beber.

Em termos arquitetônicos, qual foi a preocupação que o senhor teve ao desenhar a casa para o motorista, na favela? Ser útil! Saber que ele agora tem um teto. O problema brasileiro é esse. O movimento que nos entusiasma hoje no Brasil é a luta pela reforma agrária. O mais importante no momento é o movimento dos sem-terra. Quando o movimento começou, fiz uma espécie de estandarte para eles. Mas, já na primeira briga, o estandarte foi estraçalhado. Os integrantes do movimento vieram ao meu escritório, fizeram um pequeno comício. Isso entusiasma a gente: mexer no mundo, mudar um pouco, acabar com essa miséria.

Niemeyer no escritório com foto antiga de Prestes ao fundo

Uma década depois da queda do Muro de Berlim, o senhor continua comunista. Mas o chamado “socialismo real", feito à base de partido único e economia centralizada, ruiu. O senhor não teme ser considerado um dinossauro ? Não. Nunca passou por minha cabeça a idéia de que o que houve na União Soviética tenha sido uma coisa definitiva. Aquilo foi um acidente de percurso muito natural. Foram setenta anos de luta e glória. Os soviéticos viajaram para o espaço. Marx inventou uma história fantástica, criou uma esperança nos homens. Por que pensar que tudo acabou? Quem leu os clássicos soviéticos sabe que eles são patriotas demais para aceitar essa humilhação. Quando deixou o Brasil durante um pe-

A ríodo do regime militar, o senhor disse: “Resolvi viajar para o Exterior com arquitetura não é o mais as minhas mágoas e a minha arimportante para mim, é a vida, quitetura". A arquitetura de são os amigos. A grande obra é aquela Oscar Niemeyer todo mundo conhece. Quais em que a gente sente um momento de eram as mágoas ? esperança, como aconteceu em Brasília. Continente Multicultural 9


“Quando a arquitetura é bem feita, é fácil de compreender”

O senhor uma vez chorou ao ouvir uma música de Ataulfo Alves. A música faz o senhor chorar ainda hoje? A música me trazia lembranças de casa, lembranças de amigos. Além de tudo, é bom chorar: às vezes, é preciso. hoje?

O que é, então, que faz o senhor chorar

Qualquer sentimento de pesar ou de saudade; um amigo que desaparece. Uma vez, eu estava subindo para o escritório quando um garoto, pobrezinho, veio vender uns biscoitos. Dei um dinheiro para ele. Peguei o elevador. Quando cheguei aqui em cima , a miséria daquele garoto parecia que era a miséria do mundo. Fiquei tão perturbado que mandei chamar o garoto. Aqui combinamos que ele sairia da rua para estudar. A cozinheira logo achou que ele poderia ficar na casa dela por uns dias. O menino ficou uma semana, mas, depois, fugiu outra vez. Coisas assim é que deveriam incomodar todo mundo. Sempre digo: o sujeito para ser feliz tem de ter saúde e dinheiro, mas tem de ser burríssimo, porque pode viver como um bi10 Continente Multicultural

DIDA SAMPAIO / AE

O clima no tempo do governo Médici ficou ruim. Tive de ir para fora. Os que queriam me paralisar me deram a oportunidade de mostrar no Exterior a minha arquitetura. Era o que eu precisava. Mas o exílio – até quando é voluntário – é muito duro. Você tem de aproveitar os momentos de calma para se divertir; a vida exige. Mas há momentos de pessimismo e de saudade. Você fica comovido com uma palavra, uma coisa qualquer que lembrasse o Brasil, lembrasse a família, lembrasse o que estava acontecendo aqui: aquela miséria imensa, aquela perseguição. A gente se sentia infeliz, queria voltar. Mas a vida é assim. Quando cheguei ao Brasil, fui direto ao quartel. Perguntaram numa sala fechada: “Doutor Niemeyer, o que é que vocês querem?" Eu disse: “Queremos mudar a sociedade". O policial que me perguntava disse ao crioulinho que batia à máquina: “Escreve aí: “Mudar a sociedade!" Ele, então, olhou para trás e disse: “Vai ser difícil..." Eu até achei graça. O que a gente queria era mudar a profissão daquele homem – por exemplo – para que ele tivesse um ofício melhor. A ignorância é que contribui para a manutenção do clima de injustiça – que não se modifica.

cho. Mas, desde que olhe em volta e veja que existe tanta gente sofrendo, a vida fica mais amarga. O senhor sempre combateu os conservadores. Qual foi o brasileiro mais reacionário que o senhor já conheceu ? São tantos... Mas nunca me indispus por questões de divergência política. Tive amigos integralistas. Achava que eles estavam equivocados. Com certeza, eles pensavam a mesma coisa de mim. Mas podíamos conviver perfeitamente. O importante é que haja liberdade para que cada um pense o que quiser. A gente luta pelas coisas em que acredita. Mas o tempo muda as coisas. Eu nasci protestando; vou protestar a vida inteira. O sujeito vem, me pede um protesto, eu às vezes assino sem nem ler direito. Nunca esteve tão ruim, mas a gente precisa ter esperança. Podem ter vendido tudo, a violência pode ter assumido níveis nunca visto antes, mas tem de existir esperança. É preciso brigar, discutir, tomar posição de acordo com o que a situação exige: que todos fiquem contra. Todo mundo tem um museu imaginário na cabeça. Qual é a grande obra do museu imaginário de Oscar Niemeyer? Sempre digo que a arquitetura não é o mais importante para mim. O importante é a vida, os amigos. Mas a grande obra é aquela em que a gente sente um momento de esperança, como aconteceu em Brasília. A gente achava que o mundo iria


mudar; o preconceito de classe iria desaparecer. Momentos de esperança é que são importantes. Que comentário o então presidente Juscelino Kubitscheck fez ao senhor, ao ver Brasília tomando forma ? Uma noite, quando estava sozinho no Palácio, Juscelino me chamou para conversar. Ficava divagando sobre as metas que iria cumprir. Já eram duas horas da manhã quando saímos. Juscelino nos acompanhou até o lado de fora do Palácio da Alvorada. Como era noite, o Palácio, branco, se destacava na escuridão. Juscelino, então, me pegou pelo braço e me disse: “Que beleza!" O trabalho era duro, dia e noite, mas ele nos entusiasmava com a liberdade que nos dava para que fizéssemos o que bem entendíamos. Era um momento de otimismo. Um dia, ele me telefonou: “Você tem problema de dinheiro. Eu queria que você fizesse, pela tabela do Instituto de Arquitetos, os projetos do Banco do Brasil e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico". Eu disse: “Não faço; sou funcionário". Indiquei amigos que fizeram. Mas o convite de Juscelino mostra que ele se preocupava com a gente: estava querendo ser solidário. Tive a chance de lidar com pessoas que me compreendiam e me aceitavam. Agora, por exemplo, tenho o apoio do prefeito de Niterói – que fez um museu na cidade. Fará outras obras. Pediu-me para projetar um Centro de Convenções em Niterói – um prédio para três mil pessoas. A gente tem de trabalhar, a vida obriga. Além de tudo, o sujeito, na minha idade, não pode ficar parado: precisa ficar atento. Ou então finge que é moço, diz besteira, sacanagem..... Por que é que o senhor resolveu aprender a tocar cavaquinho? Eu freqüentava o Clube de Regatas Guanabara. Tinha amigos lá. Os nomes eram engraçados. “Gastão Vida de Cão” era um sujeito que apareceu no clube com um violão; não tinha trabalho, não tinha onde morar: ficou morando lá. Tinha o “Siri Buceta” (ri). A gente então ficava no Clube brincando e tocando violão . Saquarema era o roupeiro. Jacobina, campeão brasileiro de natação, era músico. Sempre gostei desse negócio de música. Em Brasília, tinha Lelé, Marçal. É um momento de descanso. Eu sabia tocar umas coisas de violão, mas já esqueci muito.

A Arquitetura tem de ser bonita. Se é mais justa, é ainda melhor. A arquitetura que faço é livre. Mas é É discriminatória. É verdade que existe uma fita em outro problema

que o senhor toca com Tom Jobim ? Uma vez, na brincadeira, gente viu se eu acompanhava Tom Jobim... Era fantástico, assim como Chico Buarque, Vinícius de Morais. Darcy Ribeiro era um companheiro bom: vivo, inteligente, seguro. Quando veio o golpe, ficou firme no Palácio, na tentativa de resistir. A vida às vezes faz a gente mais otimista quando gente boa se revela cheia de qualidades. Gilberto Freyre disse numa entrevista que o senhor era um arquiteto genial, mas era muito ignorante, porque passou a vida repetindo chavões marxistas. Críticos assim incomodam o senhor? Não. Eu li Casa Grande & Senzala e gostei. É um livro muito bem escrito. Gilberto Freyre era um grande escritor... cas?

Mas como é que o senhor recebia essas críti-

Cada um pensa o que quer. Nunca conversei com ele. Eu me lembro de ter me encontrado com ele uma vez – corrida – em Pernambuco. É verdade que houve uma festa com a participação do senhor, o compositor Ari Barroso, o pintor Di Cavalcanti, arquitetos estrangeiros que tinham vindo ver o projeto de Brasília e seis mulheres? Conversa assim não é para entrevista (irritado)... E essa sua pergunta me chateou.... (pausa) Uma vez, veio um sujeito aqui para fazer uma entrevista. Fez uma pergunta e eu disse: acabou a entrevista....(nova pausa). Vamos em frente... Quais serão os próximos projetos ? Fiz um projeto que me interessou para Londres: um hotel situado a cem metros de altura. Aqui no Brasil, tenho dois projetos que me ocupam Continente Multicultural 11


ANTÔNIO SCORZA / AFP

“A arquitetura que faço é livre, de acordo com o clima do país, um pouco ligada às velhas igrejas de Minas Gerais”

Croquis de Niemeyer

com todo interesse: o Centro Cultural de Brasília, que o governador Roriz pensa em realizar, para completar o eixo monumental. É importante para Brasília porque o cartão de visita da cidade é chegar e ver os palácios- o Eixo Monumental. O projeto para a Prefeitura de Niterói é ambicioso, com igreja, catedral, teatro. O terreno fica de frente para o mar: é bonito, um espetáculo de arquitetura. Os prédios vão ter uma unidade. Quando a arquitetura é bem feita, é fácil de compreender. A arquitetura é verdadeira quando é fácil. A minha arquitetura é assim: feita com a preocupação da beleza. Quer ser bonita, ser lógica e, principalmente, ser inventiva. Quem vai a Brasília pode gostar ou não do Palácio. Mas não pode dizer é que viu antes coisa parecida. Quem é que fez um Congresso com aquelas cúpulas? Quem é que fez as colunas do Palácio do Planalto? Aquilo é invenção, é arquitetura. O senhor nunca abriu mão do sentimento de beleza na arquitetura ? O caminho da arquitetura é esse: a arquitetura tem de ser bonita. Se é mais justa, é ainda melhor. A arquitetura que faço é livre – de acordo com o clima do país –,um pouco ligada às velhas igrejas de Minas Gerais, numa relação com o passado. Mas é discriminatória, o que é outro problema. Se a gente quiser fazer uma arquitetura que chegue ao povo, não é um problema de arquitetura: é um

problema de revolução. Porque a verdade é que só os ricos é que usufruem.

Em que momento da vida o senhor adquiriu a certeza de que a arquitetura precisa ser bonita – e não apenas funcional? Tive pouca influência de Corbusier. Mas fui influenciado por ele no dia em que ele me disse: arquitetura é invenção. Eu saí procurando esse caráter inventivo da arquitetura. Quando eu me lembro da Pampulha ou de Brasília, vejo que eu fazia as formas mais diferentes. Perguntaram a mim o que significava. Eu tinha de ficar dando explicações. É como digo: os mais pobres não usufruem. Mas, quando a arquitetura é bonita, os pobres podem parar e ter aquele momento de prazer ao ver algo diferente. O senhor hoje mudaria a concepção dos Palácios de Brasília? Não. Naquele momento foi o que me ocorreu: eu quis fazer uma arquitetura mais leve, os prédios como se estivessem apenas tocando o chão. Joaquim Cardozo entendia e se esmerava, para fazer o mais fino possível. Quando fui para a Europa, eu já estava preocupado com a engenharia do meu país, para mostrar que nós não somos bobos. A gente sabe das coisas. Diante de suas obras, Darcy Ribeiro disse que o senhor é o único brasileiro que será lembrado daqui a quinhentos anos. O senhor concorda ? Darcy Ribeiro era meu amigo. E os amigos dizem tudo". O senhor conseguiria definir o Brasil numa só palavra ? Esperança. É o que a gente tem de ter. Geneton Moraes Neto é jornalista e chefe de redação do programa Fantástico, da TV Globo


REPRODUÇÃO

Meu amigo Joaquim Cardozo Niemeyer lembra os últimos dias do poeta que calculava seus palácios

D

urante 30 anos o poeta pernambucano e também engenheiro Joaquim Cardozo foi o calculista de obras idealizadas por Oscar Niemeyer. Só em Brasília, o Palácio da Alvorada, a Catedral, o Palácio do Planalto, a Igreja N. S. de Fátima e o Congresso, entre outros, foram edificados com base nos cálculos estruturais de Cardozo. No dia 4 de fevereiro de 1971, entretanto, o Pavilhão de Exposições da Gameleira, em Belo Horizonte, desabou, matando 86 operários. Joaquim Cardozo foi acusado de ter errado nos cálculos, o que teria provocado a tragédia. Apesar de ser finalmente inocentado do suposto erro, o sensível poeta nunca mais seria o mesmo, passando por um processo de lento desmoronamento até a morte.

Sobre seus últimos dias, escreveu o amigo Oscar Niemeyer: “É velho retrato amarelado pelo tempo. Estamos sentados num banco do Jardim Público de Belo Horizonte e Cardozo olha a máquina com um ar distante e constrangido Está magro. Os ossos à flor da pele. Quantos anos andamos juntos neste velho planeta? Quantas viagens juntos fizemos pelo Brasil afora? Quantas coisas conversamos, quanta amargura levantamos diante deste mundo absurdo; às vezes do terraço do nosso escritório, Cardozo, olhando o céu (...) Há mais de um ano meu amigo se foi. Magoado com a vida e com os homens. Magro, quase de vidro. Lembro-me quando doente e ofendido, ele me telefonou do Recife: “Oscar, manda alguém me buscar!" Atendi-o hospedando-o no Hotel Miramar, perto do escritório, onde todas as manhãs o apanhava. E Cardozo passava o dia inteiro entre nós, com a memória mais fraca, mas ainda sorrindo, contando histórias do Recife, do Bar Gambrinos, do velho meretrício, onde gostava de passear, explicando: “Só para ver o colorido!..." À noite, eu o levava de volta e muitas vezes jantava com ele, no quarto do hotel, pesaroso de deixá-lo sozinho. Era um homem sensível e solitário que a mim se apegou como quem encontra e não quer perder o seu derradeiro amigo. (...) Mas a doença seguia seu curso inexorável e, como sua permanência no hotel se tornasse impossível, levei-o para a Casa de Saúde Eiras (...) A princípio, Cardozo parecia se adaptar naquele ambiente tranqüilo e confortante. (...) Mas as condições de saúde se agravavam, os doentes do quarto vizinho e até os que eventualmente o procuravam, começaram a irritá-lo. (...) Dois meses depois, a direção da Casa de Saúde, como ocorrera no Hotel Miramar, insistia que eu o internasse na seção de psiquiatria. Triste mundo... Onde estavam os amigos, devedores de tanto apoio e atenção? Junto dele, acompanhando-o nos seus desesperos, éramos cinco ou seis no máximo. Fretei um avião e Cardozo, acompanhado de seu médico, seguiu para o Recife. Onde, pouco depois, faleceu num hospital da cidade". Fonte: Joaquim Cardozo – Ensaio Biográfico, de Maria da Paz Ribeiro Dantas (Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1985, 83 páginas).

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Versos brasílicos de João Cabral Aqui, as horizontais descampinadas farão o que os alpendres sem ânsia, dissolvendo no homem o agarrotamento que trouxe consigo de cidade cãibra. Mas ela já veio com o lhano que virá ao homem daqui, hoje ainda crispado: em seu estar-se tão fluente, de Minas, onde os alpendres diluentes, de lago.

* No cimento de Brasília se resguardam maneiras de casa antiga de fazenda, de copiar, de casa-grande de engenho, enfim, das casaronas de alma fêmea. Com os palácios daqui (casas-grandes) por isso a presença dela assim combina: dela, que guarda no jeito o feminino e o envolvimento de alpendre de Minas.

Enquanto com Max Bense eu ia como que sua filosofia mineral, toda esquadrias do metal-luz dos meios-dias, arquitetura se fazia: mais um edifício sem entropia, literalmente, se construía: um edifício filosofia. Enquanto Max Bense a visita e a vai dizendo, Brasília, eu também de visita ia: ao edifício do que ele dizia: edifício que, todavia, de duas formas existia: na de edifício em que se habita e de edifício que nos habita.

Mesma mineira em Brasília

À Brasília de Oscar Niemeyer

No cimento duro, de aço e de cimento, Brasília enxertou-se, e guarda vivo, esse poroso quase carnal da alvenaria da casa de fazenda do Brasil antigo. Com os palácios daqui (casas-grandes) por isso a presença dela assim combina: dela, que guarda no corpo e receptivo e o absorvimento de alpendre de Minas.

Eis casas-grandes de engenho, horizontais, escancaradas, onde se existe em extensão e a alma todoaberta se espraia.

Aqui, as horizontais descampinadas farão o que os alpendres remansos, alargando espaçoso o tempo do homem de tempo atravancado e sem quandos. Mas ela já veio com a calma que virá ao homem daqui, hoje ainda apurado: em seu tempo amplo de tempo, de Minas, onde os alpendres espaçosos, de largo. Desenho de Niemeyer

Acompanhando Max Bense em sua visita a Brasília, 1961

(De A Educação Pela Pedra)

Não se sabe é se o arquiteto as quis símbolos ou ginástica: símbolos do que chamou Vinícius “imensos limites da pátria” ou ginástica, para ensinar quem for viver naquelas salas um deixar-se, um deixar viver de alma arejada, não fanática. (De Museu de Tudo) Todos os poemas integram o volume Obra Completa, João Cabral de Melo Neto, Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 1994

ANTONIO SCORZA / AFP

Uma mineira em Brasília


“É

o acuso! que hoje faço aos arquitetos responsáveis por uma Goiânia e principalmente por uma Brasília talvez já difíceis de ser retificadas em alguns dos seus erros de caráter ecológico ou de ordem sociológica. Faço-o como uma espécie de advogado do diabo que devesse opor a um abstracionismo criador de grandes belezas de tipo escultural em arquitetura – belezas, no caso de Brasília, das maiores e das mais puras que já se criaram em qualquer parte do mundo (...)". Este é um dos trechos mais veementes contido no livro Brasís Brasil Brasília, de Gilberto Freyre. Ele critica, como se vê, não a cidade enquanto monumento arquitetônico, mas sim por ter sido planejada sem a visão multidisciplinar que lhe era tão cara. Ou seja, em total descaso com os aspectos social, cultural e ecológico. Preocupa o antropólogo a própria falta de um passado, “um pouco desse passado útil, vivo,

Gilberto Freyre

brasileiro – passado não só erudito como folclórico – suscetível de projetar-se em futuro, abrasileirando-o, caracterizando-o, impedindo-o de ser indistintamente cosmopolita no pior sentido de cosmopolita, é preciso que se torne uma presença inconfundível tanto em Goiânia como em Brasília, para que nem Goiânia nem Brasília dêem ao brasileiro ou ao estrangeiro a impressão de cidades construídas no vácuo cultural dentro do próprio Brasil". Valendo-se do seu conceito de ambiente rurbano – ou seja, que mescla características rurais e urbanas – Gilberto reclama: “Não se compreende que, em cidades como Goiânia e como Brasília, urbanistas e arquitetos deixem de tirar todo o partido técnica e sociologicamente possível, de circunstância de espaço que favorecem, de modo especialíssimo, num Brasil ainda rústico na sua tropicalidade, o desenvolvimento dessas cidades novas, como cidades idealmente rurbanas – mesmo que isso importe em serviços públicos um pouco mais dispendiosos que os verticalmente urbanos".

Além da Arquitetura


16 Continente Multicultural

desenvolvessem uma sistemática de integração de novas cidades num espaço natural, social e cultural, caracteristicamente tropical, atendendo-se o mais possível ao futuro das cidades como cidades modernas no trópico e dentro de um país já com tradições válidas (...) Isto o que tenho procurado opor de concreto aos abstracionistas que, contrariando os próprios desígnios do ex-presidente Juscelino Kubitschek, julgam possível a um país pobre como é o Brasil, dar-se ao luxo de levantar uma cidade só de arquitetura escultural, com a sua edificação ordenada exclusivamente por arquitetos – aliás, ilustres – como por uma casta de sacerdotes sagrada, toda-poderosa e onisciente; e dentro de um plano apenas urbanístico que, exceção feitas das estradas Belém-Brasília e Belo Horizonte-Brasília e da comunicação aérea, não está integrando num sistema inter-regional de ecologia que desde já lhe assegure a posição de centro desse sistema. Um sistema em que os Brasis mais diversos se encontrariam, uns em Goiânia, todos em Brasília – a sua própria arquitetura, que talvez devesse ser, por isto mesmo, plural, como sugeriu o escritor francês André Malraux; e não dirigida conforme um esquema mais abstrato, no seu afã universalista, do que telúrico ou ecológico, na sua relação com a experiência mais profundamente brasileira do trópico. Um sistema que formasse a base, projetada sobre o futuro, de uma nova e mais dinâmica articulação de Brasís em Brasil, tendo por centro Brasília. A base de um Brasil mais que o de hoje uno ao mesmo tempo que plural na sua tropicalidade tanto quanto na sua modernidade". DIDA SAMPAIO= / AE

Prosseguindo, Freyre se sente “obrigado a estender o acuso! leal, embora desautorizado (...) ao próprio Juscelino Kubitschek , por não ter convocado, para auxiliá-lo no tremendo esforço de se construir, no interior do Brasil, a cidade-base de uma mais moderna civilização brasileira no trópico, ao lado de artistas, de estetas, de críticos de arte – de tendências, alguns deles, sectariamente abstracionistas ou modernistas ou esteticistas – e ao lado de engenheiros do saber e da visão de um Lucas Lopes e de um Regis Bittencourt, de físicos de renome mundial de um César Lattes, de sanitaristas do entusiasmo e da atividade de um Mário Pinotti, ecologistas e cientistas sociais que associassem aos arrojos desses artistas e desses técnicos outra espécie e saber ou outra espécie de conhecimento: o que, por um lado, orientasse e sistematizasse a integração desses arrojos na realidade brasileira e na ecologia tropical, da qual alguns estetas tendem a desgarrar-se por esteticismo puro; e, por outro lado, projetasse tais arrojos sobre o futuro social do Homem de um modo que lhes dê uma nova dimensão, da qual nem sempre artistas, técnicos, físicos, químicos, engenheiros, se antecipam aos cientistas e aos pensadores especificamente sociais, em se aperceber". Gilberto Freyre cita o Seminário Internacional sobre “criação de cidades novas", promovido pela Unesco, no Rio de Janeiro, em 1968, reafirmando o que ele próprio já vinha dizendo: “que como cidade nova, Brasília não é para ser considerada um puro problema de arquitetura ou, sequer, de urbanismo, mas de ecologia. De ecologia tropical em toda sua complexidade. Deveriam, por isso, estar-se levantando, não apenas como obras de arquitetos, mas de arquitetos ligados a ecologistas e a cientistas sociais que juntos

Fonte: Brasís Brasil Brasília, de Gilberto Freyre (Gráfica Record Editora, Rio de Janeiro, 1968, 271 páginas)


Depoimentos

ROGÉRIO REIS / TYBAFOTOS

O reconhecimento dos pares Marco Antonio Borsoi

A poesia da Arquitetura “Niemeyer é o expoente maior da Arquitetura brasileira. Hoje se analisa a obra dele por uma característica muito brasileira, que é a questão da criatividade. Ele consegue obter a grande síntese, usando condições tecnológicas limitadas para extrair o máximo do potencial que a Arquitetura pode dar como expressão artística. O concreto armado nas mãos dele vira uma coisa no limite da possibilidade da estática, de ficar em pé o edifício, sessões delgadas, balanços enormes, vãos grandes. A pedido sempre da poesia da Arquitetura, ele busca o impacto, a beleza do edifício, a inserção na cidade, a surpresa. O assombro, como muitos estrangeiros dizem. Esse é o maior legado dele. O reconhecimento de Niemeyer como um grande mestre da Arquitetura deste século que

passou vem da capacidade de transcender o excesso de racionalidade do Iluminismo. A Arquitetura moderna tinha, entre outras coisas, uma ideologia muito forte de que a forma deveria seguir a função. Era um modo de dizer que a estética não era a função principal. Niemeyer defendeu que a beleza inerente do objeto também é uma função da Arquitetura". Marco Antonio Borsoi é arquiteto e professor do Deptº de Arquitetura e Urbanismo da UFPE e presidente do IAB-PE

Geraldo Santana

A obra do Século 20 “A união de Oscar Niemeyer e Joaquim Cardozo resultou em momentos de rara felicidade para o Brasil, que teve a sorte de vê-los trabalhando juntos em Pampulha e em Brasília.

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“Ele consegue obter a grande síntese, usando condições tecnológicas limitadas para extrair o máximo do potencial que a Arquitetura pode dar como expressão artística”

Geraldo Santana é arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da UFPE Catedral de Brasília, com vitrais de Marianne Peretti: surpresa e assombro

Amélia Reynaldo

Reencontro em Barcelona “Niemeyer é uma grande contribuição que o Brasil deu ao mundo. Com relação à forma na Arquitetura – deixando de lado, por um momento, as suas convicções políticas – ele fez escola, uma geração inteira de arquitetos foi influenciada pelo que ele produziu. Agora, quanto às suas convicções políticas, Niemeyer foi muito questionado por suas obras monumentais, excepcionais, sem fazer, no entanto, Arquitetura de massa, que era o que se esperava de um eterno filiado ao Partido Comunista. Então a minha geração, na época da nossa formação profissional, virou as costas para Niemeyer – e eu me incluo nesse grupo. Só vim fazer as pazes com Oscar Niemeyer quando da minha tese de doutorado, em Barcelona, talvez por começar a enxergar a Arquitetura moderna de fora. Passei a perceber como a Arquitetura e o Urbanismo modernos influenciaram a concepção de cidades inteiras – Brasília sendo o modelo perfeito. Além do mais, a Arquitetura moderna e o racionalismo corbusierano já nasceram no Brasil com matizes brasileiros, com cores locais. Como Pampulha. Isso de certa forma resolveu os confliREPRODUÇÃO

O Conjunto da Pampulha representa um momento de grande importância na formação da Arquitetura moderna brasileira. Niemeyer soube explorar, com o seu talento, os princípios básicos do modernismo, interpretando-os e ajustando-os às condições ambientais e culturais brasileiras. A ele, Cardozo se integrou magistralmente, acompanhando-o à altura, no arrojo estrutural e refinamento formal, enriquecendo os riscos originais com detalhes construtivos indispensáveis para a nova Arquitetura que surgia: uma Arquitetura moldada em concreto, de formas ricas e livres, que rompiam com os dogmas do funcionalismo ortodoxo. Com Joaquim Cardozo, os estudos de viabilidade construtiva e macroconcepção estrutural, o refinamento formal, a definição geométrica e o dimensionamento de cada forma e de cada peça estavam exigindo investigação imediata e em certos casos antecipada. Os casos mais complexos de concepção estrutural foram a cúpula da Câmara do Palácio do Congresso, a Catedral de Brasília e o Palácio da Alvorada, que me toca mais profundamente.”.


tos que eu tinha com relação a Niemeyer, me fez olhar em retrospecto e perceber como as obras dele são geniais." Amélia Reynaldo é arquiteta, urbanista e projetou o Plano de Revitalização do Recife Antigo

Vital M. T. Pessoa de Melo

Um trabalho único “Eu acho que independente do trabalho em Arquitetura, Oscar Niemeyer merece o respeito como uma das maiores personalidades que esse país já teve. Afinal de contas são mais de 65 anos de dedicação intensa e permanente ao trabalho. Muito poucos conseguem essa marca, principalmente com a coerência que Oscar manteve por esse tempo todo. Ele é de uma coerência ideológica, de uma firmeza de pensamento, que o torna aquela pessoa absolutamente previsível. Ele nunca surpreendeu ninguém, nunca titubeou. Sempre foi fiel aos seus princípios. E também uma coerência dentro da Arquitetura, porque surgiu com uma Arquitetura já formulada. Também é admirável o seu lado humanista, sempre em defesa dos menos favorecidos, cujos problemas a Arquitetura não resolve. São problemas para outra esfera de preocupação. Esses pontos, a meu ver, já fazem dele, independente da sua produção em Arquitetura, merecedor do respeito de todos os brasileiros. Lucio Costa diz que o melhor resultado da vinda de Le Corbusier ao Brasil, em 1936, para traçar o risco original do edifício do Ministério da Educação e Saúde, foi ter permitido desabrochar a criatividade de Oscar Niemeyer. E, realmente, a gente vê que Niemeyer foi a principal mão daquele trabalho. E desabrochou explosivamente. Oscar

não tem trabalhos de iniciante. Seus primeiros trabalhos são de grande maturidade. Em 37 ele fez o edifício do Ministério, em 39, o pavilhão da Feira de Nova York, e logo depois Pampulha, em 42, 43. O crítico inglês Kenneth Frampton observou que aí ele atingira a maturidade, o seu apogeu profissional. A repercussão internacional de sua obra sempre foi grande. A execução do Ministério da Educação foi um fato importantíssimo em todo o mundo. Não sei de outro arquiteto com produção individual de tal extensão. Digo individual porque Arquitetura sempre é um trabalho de grupo. Não acho que Niemeyer deixou escola, porque, como diz um amigo meu, “o rastro dele é de fogo, quem for atrás se queima". Vital M. T. Pessoa de Melo é arquiteto

Eduardo Galeano

Capitalismo e ângulo reto Niemeyer: Odeia o ângulo reto e o capitalismo. Contra o capitalismo não é muito o que pode fazer; mas contra o ângulo reto, opressor do espaço, triunfa a sua Arquitetura livre e sensual e leve como as nuvens. Niemeyer concebe a morada humana em forma de corpo de mulher, costa sinuosa ou fruta do trópico. Também em forma de montanha, se a montanha se recorta em belas curvas contra o céu, como é o caso das montanhas do Rio de Janeiro, desenhadas por Deus naquele dia em que Deus se criou Niemeyer." (Do livro Memórias del fuego, III, El siglo del viento. Siglo veintiuno de España Editores, 15ª ed., Madri, 1998)

Croquis de Niemeyer

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A

o lado do trabalho como arquiteto, Oscar Niemeyer vem exercendo sua criatividade em esculturas monumentais. “Quando um arquiteto projeta um edifício e olha seus desenhos na prancheta, ele vê a planta projetada como obra já construída. Em transe, se o projeto o apaixona, ele nela penetra curioso, a examinar formas e espaços livres, a considerar os locais onde pensou um painel mural, uma escultura ou simplesmente um desenho em preto e branco", diz ele. E complementa: “É o ato da criação, a integração tão procurada das artes plásticas com a arquitetura". A primeira escultura criada por Niemeyer, em 1980, em Brasília, foi no monumento JK: o alto fuste terminado em curva, protegendo e realçando a figura do ex-presidente, esculpida por Honório Peçanha. “O protesto foi contrariar os que o desprezavam – a ditadura vigente –, obrigando-os a vê-los todos os dias, sorrindo vitorioso sobre a cidade que construiu e que eles desdenhavam". A segunda, criada em 86, no Rio de janeiro, foi também ligada a uma motivação de cunho político. Trata-se do monumento Tortura Nunca Mais. Segundo Niemeyer, ela “representa aquele longo e negro período de tortura que pesou durante 20 anos sobre nós. E a imaginei com a figura humana traspassada pelas forças do mal: uma lança com 25 metros de extensão". Mais uma vez a consciência sociopolítica norteou a elaboração de mais uma escultura-monumento: a Mão executada em 1988. Conta o arquiteto: “A terceira escultura foi a grande mão que desenhei, construída no Memorial da América Latina, em São Paulo, com o mapa do continente a escorrer sangue e esta frase elucidativa –'Suor, sangue e pobreza marcaram a

história dessa América Latina tão desarticulada e oprimida'. Agora urge reajustá-la uni-la, transformála num monobloco intocável, capaz de fazê-la independente e feliz". Três outros grandes trabalhos escultóricos, marcam a continuidade da preocupação das questões sociais e políticas na obra de Niemeyer. O monumento 9 de novembro, em memória dos três operários mortos na greve de novembro de 1988, em Volta Redonda. A obra era tão dramática e contestatória que “no dia seguinte à sua inauguração já estava no chão espatifado. Era a direita que surgia com suas bombas e seus desesperos", conta ele. Sua reação foi propor “que o pusessem de pé outra vez, com as fraturas à mostra e uma frase: ‘Nada, nem a bomba que destruiu este monumento, poderá deter os que lutam pela justiça e liberdade". Outro, é o memorial Gorée-Almadies, erguido em 1991, em Dakar, no Senegal. É uma figura de negro cortada numa placa com 80 metros de altura, lembrando os escravos. Segundo Niemeyer, “denuncia a deportação de milhares de escravos africanos para as Américas. Gosto muito dela como brasileiro, pois temos uma grande dívida de reconhecimento para com os negros". Finalmente, o monumento Eldorado Memória, projeto doado por Niemeyer em 1996, ao Movimento dos Sem Terra, em homenagem aos trabalhadores rurais mortos no conflito de terras em Eldorado dos Carajás, no Pará. São trabalhos veementes em sua denúncia contra a repressão à liberdade, fazendo contraponto a outra atividade de Niemeyer como artista plástico: a do lúdico desenhista de mulheres, em traços delicados e cores suaves. Exemplos da múltipla criatividade de um gênio exercendo-se em formas múltiplas.

No alto e ao lado, desenhos de Oscar Niemeyer

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ALEX LARBAC / TYBAFOTOS

A arquitetura moderna no Brasil

Especialista argentino considera o principal êxito da Arquitetura brasileira, especialmente a de Niemeyer, a superação dos limites do racionalismo modernista, incorporando um funcionalismo que une Arte e Natureza

S

em dúvida a Arquitetura brasilei- drigo Mello Franco de Andrade permitiu o cresra constituiu o principal aporte cimento do movimento moderno. americano ao movimento moderMas é certo que também o movimento esno durante o período 1940-1970 e tava amadurecendo, porque no mesmo ano de repercutiu internacionalmente. 1936 o concurso da Associação Brasileira de ImTodos concordam em afir- prensa (ABI) congregou uma série de projetos mar que a catalização de forças com estruturas independentes, plantas livres, facriadoras e as idéias centrais ao movimento foram chadas de fenestração corrida e o desenho triunajustadas por Le Corbusier em sua visita de 1936, fador de Marcelo e Milton Ribeiro eram considequando em pouco mais de uma semana de traba- rados uma inovação absoluta em seu volume sem lho intensivo, fez os esboços do Ministério da janelas aparentes. Educação e da Cidade Universitária. A obra do Ministério da Educação recorTodos estão de acordo em afirmar que a ria a soluções corbusierianas dos pilotis, os brisecatalização das forças criadoras e os ideais princi- soleil na fachada castigada pelo sol e a carpintaria pais do movimento foram ajustados por Le Cor- acristalada sobre a área de trabalho (que hoje está busier em sua visita de 1936. Em pouco mais de sendo renovada por sua acelerada destruição por uma semana de trabalho intenso realizou os esque- causa da salinidade do ar carioca). A integração mas para o Ministério da Educação e a Cidade das artes na Arquitetura contemporânea, uma das Universitária. premissas que os mexicanos já haviam empuA tarefa comum, junto a Le Corbusier de nhado, se verifica nas contribuições de Roberto Lucio Costa e Oscar Niemeyer, entre outros, ga- Burle Marx nos jardins e varandas, de Cândido rantiu que a semente frutificasse, não só na obra Portinari nos murais e azulejaria de antiga traindividual, mas também na prédica teórica. Os ar- dição lusitana, nas esculturas de Bruno Giorgi, tigos de Lucio Costa, entre eles Razões da Nova Celso Antonio e Lipchitz. A equipe de arquitetos Arquitetura, alcançaram ressonância e a liberdade se integrou com Costa, Niemeyer, Alfonso Edude ação política com que os brindaardo Reidy, Carlos Leão, Jorge vam o ministro Capanema e Ro- Ramón Gutiérrez Moreira e Ernani Vasconcelos. 22 Continente Multicultural


DIDA SAMPAIO / AE

O entusiasmo dos jovens arquitetos pela obra se deve não só à repercussão da mesma, mas à liberdade de que dispuseram para realizá-la. Lucio Costa escrevia que a sugestão de Le Corbusier para outra localização serviu de referência, mas que “tanto o projeto como a construção do atual edifício, desde o primeiro esboço até a conclusão definitiva, foram levados a cabo sem a mínima assistência do mestre e como espontânea Rino Levi (Instituto Sedes Sapiantiae, Oficinas contribuição nativa para a pública consagração dos Stig, Teatro de Cultura Artística e Banco Paulista, princípios pelos quais ele sempre lutou". todos em São Paulo) – assinala que a projeção da Afirmava Lucio Costa que “construído na Arquitetura brasileira estava implícita em sua mesma época, com os mesmos materiais e para um própria realidade e que os aportes externos de Le mesmo fim utilitário, o edifício do Ministério se Corbusier, Marcello Piacentini, Franco Albini e a destaca, não obstante, posterior permanência em meio à espessa vulde Giancarlo Palanti A Arquitetura brasileira garidade da edificação somente viriam consonasceu de sua própria circunvizinha, como allidá-la. go ali alojado severaTalvez o êxito realidade e as mente, só para o comocontribuições externas de Le da Arquitetura brasivido êxtase do tranleira consista em que Corbusier, Marcello seunte despreocupado seu período racionalisPiacentini, Franco Albini e a e, de vez em quando, ta foi breve, que dele se surpreendido, pela visdecantou um funcioposterior radicalização ta de tão sublimada nalismo que, elaborado de Giancarlo Palanti manifestação de purecom sensibilidade essomente vieram consolidá-la pacial, em uma conza, forma e domínio da razão sobre a inércia da tundente força expresmatéria". siva integrando artes e natureza, superou criativaCosta considera-o um edifício “formoso e mente as imagens estereotipadas do movimento simbólico", porque “sua construção foi possível moderno. na medida em que se atropelou tanto a legislação Se esta sensibilidade plástica, esta afeição pemunicipal vigente, como a ética profissional..." la curva e a natureza são herança de uma virtualiEnfim, lições de um duvidoso conteúdo que to- dade histórica barroca ou de um vanguardismo madas como exemplo podem contribuir para fo- formalista que caracteriza a arquitetura das décadas mentar a habitual forma de trabalho dos especu- 1950-70, está ainda por resolver-se, e é provável ladores imobiliários... que ambos componentes desempenhem um papel A configuração do trabalho de um grupo de relevante. arquitetos – que simultaneamente realizou obras Não cabe dúvida, em homens como Lucio de grande qualidade, como os irmãos Roberto Costa, da vigência da idéia e preocupação de ligar (aeroporto Santos Dumont, Liga contra a tubercu- o movimento moderno à própria história cultural. lose), Atílio Correia Lima e Renato Soeiro (Esta- Os “neocoloniais", como Mariano Filho, não enção de hidroaviões e Estação Marítima Rodrigues tenderam que a reivindicação do passado não se Alves), Henrique E. Mindlin (Hotel Copan), efetuava na cópia, mas na preservação do autênti-

Sensibilidade plástica é herança barroca ou vanguardismo formalista?

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CLAUS MEYER / TYBAFOTOS

Lucio Costa: arquitetura moderna deve preservar, mas não copiar

(1937) e continuando pelos conjuntos que lhe encomendara Kubitschek, à época prefeito de Belo Horizonte, para Pampulha. O cassino (atual Museu de Arte Moderna), o Iate Clube, o Pavilhão de Danças e a igreja de São Francisco de Assis foram realizados entre 1942 e 1943.

A projeção internacional do movimento se produziu com o Pavilhão Internacional da Feira de Nova York, desenhado por Lucio Costa e Niemeyer, num surpreendente traçado de liberdade formal co, como vinha fazendo excelentemente a Diretoria do Patrimônio Histórico Nacional desde os tempos de Rodrigo Mello Franco de Andrade, Edson Motta, Renato Soeiro, Augusto da Silva Telles, Aloisio Magalhães, Luis Saia, Mario Mendonça de Oliveira, e outros técnicos e especialistas. Cabe mencionar muito especialmente neste sentido a tarefa da Fundação do Pelourinho, na Bahia, e os trabalhos de inventário concretizados por Paulo de Azevedo. A projeção internacional do movimento se produziu na realidade com o Pavilhão Internacional da Feira de Nova York (1939), desenhado conjuntamente por Lucio Costa e Oscar Niemeyer em um surpreendente traçado de liberdade formal. A crise da Segunda Guerra Mundial, que devastou países e idéias, situava o Brasil e os Estados Unidos como novas plataformas do lançamento da arquitetura moderna. Isso explica as preocupações de suas propostas nos livros de Goodwin (1943), a exposição de Russel-Hitchock (1945) e os escritos de Bardi e Papadaki (sobre Niemeyer, 1950). A obra de Oscar Niemeyer constitui o eixo de referência central da arquitetura brasileira, começando com seu edifício da Obra do Berço

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Silva Teles destaca sua representatividade como expoente desse período em suas “curvas de traçado fluido e ritmos concêntricos, formas que interpretam definindo paredes externas e internas, além de rampas e escadas. Foram freqüentes também os revestimentos de azulejos, o jogo dos quebra-sóis em ritmos variados, que em alguns casos foram substituídos por elementos celulares de cimento e cerâmica". A identidade entre a proposta formal de Niemeyer na Casa de Baile (1942) e os desenhos de jardins de Burle Marx indicam a sensibilidade de integração cultural da natureza como tema e a total e desinibida liberdade do arquiteto para plasmar formas. A qualidade escultórica desta Arquitetura transcende o mero organograma funcionalista do racionalismo, introduzindo uma variável de riqueza expressiva que potencializa as qualidades conceituais da Arquitetura moderna sem entrar em contradição com ela. Ramon Gutierrez é catedrático de História da Arquitetura na Universidade Nacional do Nordeste, pesquisador do Conselho de Pesquisa Científicas da Argentina, e consultor da Unesco em questões de preservação arquitetônica e urbana. Este texto foi extraído do seu livro Arquitectura e Urbanismo em Iberoamerica. Manuale Arte Cátedra, 3a ed,. Madrid, 1997


Cronologia 15/12/1907 – Nascimento de Oscar Niemeyer Soares Filho no Rio de Janeiro. 1934 – Formatura em Engenharia e Arquitetura pela Escola Nacional de Belas Artes. 1936 – Projeto do Ministério da Educação, no Rio, cujo consultor é Le Corbusier. 1939 – Projeto do Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York. 1940 – Projeto do Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte. 1947 – Projeto da sede da ONU. 1952 – Projeto da casa na Estrada das Canoas, no Rio. 1954 – Programa de reconstrução de Berlim. 1955 – Fundação da revista Módulo. 1956 – Início dos projetos de Brasília. 1960 – Inauguração de Brasília. 1962 – Coordenador da Escola de Arquitetura da UnB. Projeto do Centro Esportivo e da Feira Internacional de Trípoli, Líbano. 1963 – Prêmio Lênin Internacional, na URSS. Membro honorário do Instituto Americano de Arquitetos. 1964 – Suspensão da revista Módulo pelo Governo Militar. 1965 – Afastamento da UnB, em protesto contra o regime militar. Exposição no Museu do Louvre, Paris. Projeto da sede do Partido Comunista Francês. 1967 – Exílio em Paris. 1968 – Projeto da sede da editora Mondadori, em Milão, Itália. 1969 – Projeto da Universidade da Argélia. 1978 – Fundação do Centro Brasil Democrático – Cebrade, do qual é eleito presidente. 1979 – Condecoração com a Legião da França. Exposição em Paris, Veneza e Florença.

1982 – Projeto do Sambódromo, no Rio. 1983 – Retrospectiva no Museu de Arte Moderna, no Rio. Mostra em Nova York. Criação, com Darcy Ribeiro, dos Cieps, no Rio. 1987 – Projeto do Memorial da América Latina, em São Paulo, e da sede do jornal L´Humanité, em Paris. Exposição em Turim, Bolonha e Pádua, na Itália. 1989 – Prêmio Príncipe de Astúrias, na Espanha. 1990 – Comendador da Ordem de São Gregório Magno, Vaticano. Exposição em Barcelona, Londres e Turim. 1991 – Projeto do Museu de Arte Contemporânea, em Niterói. 1992 – Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco. 1996 – Monumento Eldorado dos Carajás, doado ao Movimento dos Sem-Terra. Prêmio da Bienal de Veneza. 1997 – Projeto do Museu de Arte Moderna, de Brasília.

1998 – Medalha de ouro do Real Instituto dos Arquitetos britânicos. Livros: Niemeyer, Oscar. Minha arquitetura, Revan, Rio de Janeiro, 2000 Niemeyer, Oscar. Curves of Time, Phaidon Press, Incorporated, 2000 Costa, Lúcio. Com a palavra, Lucio Costa, editora Aeroplano, 2000 Niemeyer, Oscar. Meu sósia e eu, Revan, Rio de Janeiro.

Mindlin, Henrique. Arquitetura moderna no Brasil, editora Aeroplano, 1999 Niemeyer, Oscar. Diante do nada, Revan, Rio de Janeiro, 1999 Niemeyer, Oscar. As curvas do tempo – memórias, editora Revan, Rio de Janeiro, 1998 Niemeyer, Oscar. Diálogo pré-socrático, Instituto Lina Bo, São Paulo, 1998 Niemeyer, Oscar. Conversa de arquiteto, editora Revan, Rio de Janeiro, 1997 Costa, Lucio. Registro de uma vivência, São Paulo, Empresa das Artes, 1997. Sá Correa, Marcos. Oscar Niemeyer, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1996. Courcelles, Pierre. Oscar Niemeyer – déssin. Paris, Fondation Revolution, 1987. Puppi, Lionello: Guida a Niemeyer. Milão, Mondadori, 1987 Jait, Vladimir Lvovitch. Oskar Niemeyer. Moscou, Stroiizdat, 1986. Fils, Alexander. Oscar Niemeyer. Münster, Frölich und Kaufmann, 1982. Evenson,N. Two brasilians capitals. Achitecture and urbanism in Rio de Janeiro and Brasília. New Haven e Londres, Yale University, 1973 Niemeyer, Oscar. Quase memórias: Viagens, tempos de entusiasmo e revolta, 1961-66. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968. Yoshizaka, Takamasa. Oscar Niemeyer. Tóquio, Bijutsu-ShuppanSha, 1960. Papadaky, S. Oscar Niemeyer. Work in Progress, New York, Reinhold, 1956. Internet Fundação Oscar Niemeyer – www.niemeyer.org.br Fundação Memorial da América Latina – www.memorial.org.br Info Brasília – www.infobrasilia.com.br Continente Multicultural 25


SÉCULO 21

Como as condições sociais do Brasil, Inglaterra e EUA determinam o tipo de criminalidade e ação policial que predominam em cada um destes países

Q

ual o país onde metade das mulheres assassinadas são mortas por maridos ou ex-namorados? Qual o país onde negros são mortos nas delegacias de polícia e nenhum culpado é identificado? Brasil ou Inglaterra? Quem respondeu Brasil acertou. Mas quem respondeu Inglaterra acertou em cheio. O assassinato de uma jornalista da BBC com um tiro na cabeça em frente à sua casa no centro de Londres, as bombas colocadas por neonazistas nas regiões freqüentadas por minorias no Sul e centro de Londres e os crescentes números de agressões indicam que as mudanças no comportamento vão na direção do continuado aumento da violência.

Segurança e cultura Marcos Aurélio Guedes de Oliveira 26 Continente Multicultural


Os recentes acontecimentos nas escolas Uma das possíveis causas de deterioração dos EUA, onde crianças assassinaram seus colegas, está na questão social. Pela primeira vez, em décaforam vistos como uma aberração do liberalismo das, a diferença de salários entre mulheres e honorte-americano pela media inglesa. A argumen- mens aumentou. Os setores sindicalistas falam em tação de setores da National Riffle Association, sin- aumento das remunerações, mas considerável dicato dos fabricantes de armas dos EUA, de que parte do partido trabalhista, associada aos partidos a solução para a violência nas escolas seria armar conservador e liberal-democrata, se opõe. O núos professores e todos os alunos igualmente, nos mero de desempregados e subempregados cresapresenta a visão nua e crua da idéia de igualdade ce. A perspectiva corrente de que caso se perca o e cidadania acalentada por alguns dos setores mais emprego, muito dificilmente se encontrará outro poderosos dos Estados Unidos. Não consigo é, possivelmente, a maior fonte de combustível recordar de nenhuma declaração de um ditador para a nova onda racista, que se iniciou no contilatino-americano que seja equivalente. Embora, nente e agora se espalha pela Inglaterra. certamente, exista. A Scotland Yard divulgou no ano passado A Inglaterra é ainda um país onde a maioria um estudo sobre racismo e suas conclusões são dos crimes são cometidos com armas brancas. preocupantes. Está se formando na Inglaterra uma Mas o gradual abandono nova geração de racistas da tradicional polícia do ativos, estimulados e treibairro e a adoção de um nados pelos próprios pais modelo próximo do norpara aterrorizar negros e te-americano de policiaasiáticos. Sim, de acordo mento está a acelerar a com o relatório, crianças sua americanização. O de menos de 16 anos são número de crimes usanresponsáveis por mais da do armas sofisticadas, cometade dos ataques racismo a Mac 10, capaz de O argumento tas em Londres. atirar 1.250 balas por miNo início são atade que a solução para a nuto, cresce assustadoraques de pouca importância: mente para os padrões violência seria armar a picham a parede ou urinam ingleses, enquanto que a todos igualmente apresenta nas residências das vítimas. média de crimes em Lon- uma visão nua e crua da Quando surge uma reação, dres aproxima-se do insuaparece um pai ou parente portável índice de um cri- idéia de cidadania dos EUA para dar apoio total às crime a cada dois dias. anças. A partir de então, os A transformação da polícia inglesa em uma ataques se tornam mais sérios. A maioria dos casos estrutura burocrática e sem ligações diretas com as envolvendo ataques físicos e verbais são feitos por comunidades produziu uma apatia e descrédito de crianças com menos de 15 anos. considerável parte da população frente a esta instiA polícia contra-ataca com novos mecanistuição e é uma das causas dos índices crescentes de mos legais. Agora, os pais de crianças envolvidas crimes, particularmente de pequenos roubos e em atos racistas poderão ser obrigados a freqüengolpes aplicados por todos os tipos contra qualquer tar cursos sobre cidadania por até três meses. Em um que possa ser considerado possível vítima. certos bairros as crianças podem ser submetidas a Estupros em ônibus, assaltos à mão arma- toque de recolher, estando proibidas de sair de cada, hediondos crimes diariamente estampados sa após 9 horas da noite. nas manchetes dos jornais, seqüestro com posteSerá que isto basta? Pelo menos a sociedade rior morte das vítimas. Isto é ainda pouco comum inglesa não procura esconder o racismo atrás de na Inglaterra. Eles ainda não atingiram o grau de absurdos argumentos, como o da miscigenação, evolução ao qual nós, brasileiros, estamos fami- usado e abusado pelos brasileiros. liarizados. Não obstante, as transformações são Marcos Guedes é ensaísta e professor da Universidade Federal de Pernambuco evidentes. Continente Multicultural 27


as minhas constantes viagens a Madri, tenho o prazer e a honra de ser hóspede do pintor Rafael Romero Ruiz, que durante os anos 50 e 60 integrou o grupo de artistas espanhóis radicados em Paris, “que foram de certa forma acolhidos por Picasso, Bataille, Aragon, Malraux”, como afirmou o artista em entrevista publicada no JC Cultural (06/09/1999). Através de Rafael Ruiz tive o privilégio de freqüentar o mundo artístico de Madri e conhecer importantes escritores, músicos, poetas e pintores espanhóis. Dentre eles, destaca-se Juan Alcalde, considerado um dos melhores pintores contemporâneos da Espanha. Em recente viagem ao país de Cervantes, para a apresentação da dissertação de mestrado do conselheiro Roldão Joaquim, do Tribunal de Con-

adeus às ar REPRODUÇÃO

HIST[ÓRIA París, de Juan Alcalde

N

Juan Alcalde, pintor refugiado, e Camilo José Cela, Nobel de Literatura, que lutaram em trincheiras opostas na Guerra Civil Espanhola, fazem as pazes 61 anos depois

tas de Pernambuco, na Universidade Pontifícia de Salamanca, visitei o ateliê de Juan Alcalde, em companhia de Rafael Ruiz. O ateliê de Juan Alcalde está situado no centro de Madri, próximo à Embaixada brasileira. É um local aprazível, amplo, repleto de obras suas e dos seus amigos. Pontifica no meio da sala um confessionário antigo, relíquia de alguma igreja

Caesar Malta Sobreira


dentre aquelas destruídas durante a Guerra Civil Espanhola, da qual Juan Alcalde foi protagonista do início ao fim. Na manhã de sábado, 2 de dezembro de 2000, tive a sorte de reencontrar Juan Alcalde de excelente humor e com muita disposição para rememorar as suas aventuras, do alto dos seus 88 anos de vida. A conversa foi longa e agradável, regada a excelente vinho de La Rioja. Entre as revelações mais interessantes, sobrelevou-se o fato de que, após 61 anos do fim da Guerra Civil Espanhola, dois combatentes enfim fizeram as pazes: em artigo publicado no jornal ABC, o escritor Camilo José Cela (que participou da guerra ao lado dos franquistas) elogiou a grandeza da alma e da arte daquele a quem qualificou de “o profeta, o mártir, o aventureiro Juan Alcalde” que lutou durante todos os três anos da guerra (1936-1939), combatendo o bom combate ao lado dos republicanos. Juan Alcalde narrou as peripécias da guerra. Ele lutou do início ao fim contra os fascistas comandados por Francisco Franco e participou dos encarniçados combates durante o cerco de Madri. Com a queda da capital, terminou a guerra com a derrota da República. Então começou a fuga desesperada através da Espanha, para ultrapassar os Pirineus e chegar à França, onde foram acolhidos como heróis derrotados. No exílio, Juan Alcalde teve ainda uma importante missão a cumprir quando da morte de

mas

Manuel Azaña, presidente da República Espanhola. Juan Alcalde fora convocado pelo general Saravia, comandante do exército republicano, para pintar o retrato – o último retrato – de Azaña, que expirou em Montauban. A narrativa é comovedora: enquanto o corpo descansava, a viúva soluçava e os íntimos do presidente o velavam, o jovem Juan Alcalde realizava seu labor ao mesmo tempo artístico, histórico e patriótico.

O fato é de importância psicológica intensa porque é de se supor que em algum combate José Cela e Juan Alcalde encontraram-se em lados opostos no front, apontando talvez os seus fuzis um contra o outro O corpo de Azaña estava coberto pela bandeira do México, porque a bandeira da Espanha Republicana era proibida na França, então sob ocupação alemã. Quando terminou o retrato de Manuel Azaña, Juan Alcalde o presenteou ao embaixador do México na França, em Vichy. Essas informações, necessariamente breves, são imprescindíveis para compreender o texto de José Cela, que traduzimos a pedido de Juan Alcalde. Isso porque, ao propor-lhe uma entrevista, o pintor sugeriu que, para o público brasileiro, o artigo de Cela estava perfeito. Considerando que o artigo fora publicado em 15 de outubro de 2000, trata-se de uma matéria recente. E de importância psicológica intensa porque é de se supor que, em algum combate, José Cela e Juan Alcalde encontraram-se em lados opostos no front, apontando talvez os seus fuzis um contra o outro, sem saber que as curvas elípticas da história e da vida os colocariam, na velhice, do mesmo lado da barca. A metáfora produzida pelo encontro de antigos inimigos, que lutaram na mais fratricida das guerras, haverá de servir de exemplo para muitos que, feridos em suas pequenas vaidades por minúsculas rusgas do cotidiano, satanizam seus desafetos sem saber que o mundo dá muitas e surpreendentes voltas. É sobre tais voltas e reviravoltas (ou, como diria Copérnico, revoluções) do mundo e da vida, que nos fala Camilo José Cela em seu elogio ao pintor Juan Alcalde, realçando a sábia translucidez octogenária desses dois grandes artistas espanhóis. Caesar Malta Sobreira é doutor em Filosofia e Ciências da Educação

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o transluzir da alma

LUIZ ARRAIS

Camilo Cela: escritor fez um gesto de grandeza

A

silhueta da alma do pintor Juan Alcalde, meu companheiro de aventuras e nutritivas e gloriosas misérias, visto na translucidez, digo, no esboço do espírito imortal e não no croqui das brigas do corpo moribundo, do corpo que começa a morrer enquanto nasce, semeia uma equilibrada e tênue flor de nenúfar com sua heróica geometria, sua cor adivinhada e seu gesto dulcíssimo e poeticamente estupefato. A mim custou muito trabalho, e também muito tempo, ver as diáfanas e saltitantes sombras chinesas que fazia a silhueta da alma do pintor Juan Alcalde sobre a tela de fundo da vida própria e alheia, da vida compartida como um regalo dos simplíssimos deuses. Na velhice se vê o tempo passado, o tempo que se deixou às costas, de forma nítida, e recordamos que a poesia se adivinha, porém não se aprende. Quando não se é capaz de se pôr na pele do outro, do próximo que não atraiçoa, porém tampouco nos tiraria do poço, põe-se a predicar-lhe moderação e a explicar-lhe que o dinheiro corrompe e que os mortos ficam sem memória e sem vontade, mas não sem entendimento; recorda-se que o verbo é anterior ao gene e que este não é senão a conseqüência de inúmeras mutações. O céu protege inclusive aos que não sabem o valor e a densidade da oração; existem anjos que conhecem a rara lei que proclama que não se reza com a palavra nem mesmo com o pensamento, mas tão somente com o sentimento. Há um quarto de século apareceu pintado em uma parede londrina onde se lia: “Deus não está morto; está vivo e são e agora trabalha em um

Num jornal madrileno, o Prêmio Nobel de Literatura abraça publicamente “meu irmão de brigas e reconfortáveis deslealdades e terníssimos e confusos elogios”. Texto inédito em português.

Camilo José Cela 30 Continente Multicultural


Tradução de artigo publicado no jornal ABC, Madri, 15 de outubro de 2000, por Caesar Malta Sobreira

Um nobre rebelde REPRODUÇÃO

projeto mais humilde”. É exatamente isso o que queríamos dizer com nossas caligrafias, o pintor Juan Alcalde e eu, alcançados já a tormentosa barreira dos oitenta anos de guerra e paz em frágeis botes salva-vidas. Todos temos sido gênios até que perdemos a inocência: isso se diz faz já muito tempo, porém o gênio ignora que o é até que um confidente lhe sopra ao ouvido, já no limbo dos justos, que teve a sorte de nascer e de morrer no momento oportuno, nem antes nem depois. Nem os profetas, nem os mártires, nem os aventureiros sabem que, por razão de princípio, a ignorância não pode superar jamais o conhecimento. E isto se diz porque o profeta, o mártir, o aventureiro Juan Alcalde, retratando ao carvão o cadáver de Azaña, em Montauban, não sabia de todo que a história se escreve à contrapartida da história ainda que, sim, intuía que uma catedral não se constrói com ouro, mas sim, com fé. Na translucidez da alma do pintor Juan Alcalde, se aprende que o mundo, isso que se fez com o tempo, não antes nem depois, no dizer de Santo Agostinho, é o tic-tac da vida, a pulsação do mundo que começou a pulsar, repito, com o tempo; o choro da morte da mulher de Azaña que se ouvia através da cortina, segue ressoando em algum remoto confim. “– Você é capaz de assumir os pecados do mundo, isolando-se a meditar em um solene confessionário de madeiras nobres?”, perguntei ao pintor e ele respondeu: “– Sim. E com quantos mais pecados carregue, melhor. Esse confessionário, já o disse há algum tempo, serve para recolher-me em mim mesmo e pensar no mundo, sonhar, ouvir o silêncio e acariciar os minutos, as horas e os dias que jamais detêm seu caminhar. Se o homem não acerta ao explicar a vida, deve pelo menos tentar com boa vontade. Eu não quero nada, ou melhor, eu só quero pintar, que é o que faço.” Na translucidez da alma do pintor Juan Alcalde, meu irmão de brigas e reconfortáveis deslealdades e terníssimos e confusos elogios, se vê a arte protegendo o homem, limpando o homem, iluminando o homem, desnudando o homem.

Considerado um dos grandes escritores contemporâneos de língua espanhola, Camilo José Manuel Juan Ramón Francisco de Jerónimo Cela, marquês de Iria Flavia, nasceu em 1916, em La Coruña, Galícia. Autor de dezenas de romances, poesias, novelas, contos, romances de cordel e peças teatrais, arrebatou o Prêmio Nobel de Literatura, em 1989, e o Prêmio Cervantes – o maior galardão das letras em língua hispânica – em 1995. Também escreveu roteiros de cinema, baseados em sua obra, e atuou como ator em dois filmes. Faixa preta de judô, durante a Guerra Civil Espanhola lutou ao lado das tropas do generalíssimo Franco. A independência de seu trabalho literário, entretanto, provocou freqüente tensão com o regime franquista, que proibiu a publicação de várias de suas obras, entre as quais dois de seus mais importantes romances – A Família de Pascual Duarte e A Colméia. Em 1977, por indicação do rei Juan Carlos, foi designado senador à Constituinte para a transição democrática. Camilo Cela tem colecionados 25 títulos de Doutor Honoris Causa por diversas universidades de todo o mundo e de Cidadão Honorário em inúmeras cidades. Entre suas principais obras, estão Pisando la Dudosa Luz del Día (poesia, 1936), La Familia de Pascual Duarte (romance, 1942), La Colmena (romance, 1951), Mazurca para Dos Muertos (romance, 1983), La Cruz de San Andrés (romance,1994), El Asesinato del Perdedor (romance, 1994) e Memorias, entendimientos y voluntades (1993). No Brasil, existem traduções dos romances citados (Editora Bertrand Brasil) e do livro de contos Saracoteios, Tateios e Outros Meneios. Em 1991, criou a Fundação Camilo José Cela, voltada à difusão de sua vida e sua obra. Endereço na Internet: www.celafund.es


Ao lado, Juan Alcalde, viajante universal

O

pintor Juan Alcalde é mais conhecido fora do que dentro da Espanha, por ter vivido boa parte da vida exilado em Paris e Caracas, depois da Guerra Civil Espanhola. É definido pela historiadora María Guzmán, da Universidade de Granada, como um viajante com dimensão universal. Ela o considera um “paisagista urbano, tão peculiar quanto original, um grande pintor urbanista”. A última exposição internacional de Alcalde foi em 1996, no Palacio de la Madraza, em Granada. Nascido em Madri, em 1918, teve sua formação inicial na Escola de Arte e Ofícios. No Círculo de Belas Artes tomou aulas de desenho, pintura e nus. Por fim, estudou na Real Academia de San Fernando, obtendo o prêmio Molina Higueras, para estudantes. Em 1933, a Guerra Civil Espanhola interrompeu a carreira do pintor e fez brotar a do revolucionário. Depois de lutar pela República, refugiou-se na França após a vitória de Franco. Interpretando a obra do compatriota, María Guzmán assinala: “Podemos entender a estética paisagística que temos frente a nós, transmudando a realidade de origem pela metamorfose vivencial (interior) do próprio autor. Seus urbanismos são

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LUIZ ARRAIS

um paisagista urbano

REPRODUÇÃO

Cascorro, de Juan Alcalde

sempre referenciais, porém, além disso, são simbólicos, têm um caráter peculiar e emblemático do lugar que representam e ao qual nos evocam. (...) “São cidades inundadas por uma luz convencional, de infinitos azuis, que nos remetem a um universo de sonhos ou de fábulas. “Em uma leitura aparente, são umas ambientações inanimadas, porém, por onde sabemos transita a vida. Suas casas, ruas ou praças aparecem vazias, mas não há desolação, apenas quietude e silêncio. Sua irrealidade nos enlaça com um mundo mágico, de sonhos. Não em vão diz o pintor que cada quadro é uma espécie de crônica vivida ou sonhada”. Principais exposições 1940 – Sala Aragó, Perpignan 1948 – Centro Mercantil, Zaragoza 1953 – Museo de Bellas Artes, Caracas 1965 – Galeria Du Daumier , Paris 1967 – Galeria Bürdeke, Zurique 1969 – Convidado ao Salon Comparaison, Paris 1975 – Cité Internationale des Arts, Paris 1979 – Sala Navarro, Barcelona 1987 – Feira Internacional de Arte, Galería Biosca, Madri 1996 – Palacio de la Madraza, Granada Obras em museus e instituições Musée des Arts, Paris Musée Saint Ouen, França Museo de Arte Contemporáneo, Madri Universidade de Porto Rico Palácio da Justiça, Bilbao


FLÁVIO LAMENHA

Num edifício pequeno à beira da praia de Boa Viagem, no Recife, descansa um homem que tem a idade do universo. Tudo o que existe – todas as pessoas, todas as idéias, Deus – nasceram com ele e vão morrer com ele, mas pouca gente o conhece. Até agora.

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FILOSOFIA

O ano

O filósofo pernambucano Evaldo Coutinho, cuja vida e obra são o tema do filme A Composição do Vazio

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da criação Alexandre Bandeira


Para quem fala o filósofo? Eu falo para outros filósofos, que tenham uma noção do que seja o pensamento especulativo, a ontologia, e isso é muito raro entre leitores. O leitor quer o livro como objeto de distração, de divertimento, e por aí qualifica os autores. Aquele que mais diverte é o grande escritor. E o filósofo está longe disso. De onde veio A Ordem Fisionômica? Em 1934, eu terminava o doutorado de Direito, e tive uma intuição da relação entre a minha presença, a minha pessoa, e o universo. Cheguei à conclusão de que havia uma dependência deste universo em relação a mim, partindo do princípio de que a morte, quando me levasse, levaria comigo o universo todo. Assim o eu passaria a ter um caráter de absoluto. O absoluto estaria no eu de cada um. Então eu cheguei a uma imagem que me agrada, eu confesso: a cintilação cósmica. O Ser, o universo, não é algo fixado, permanente, eterno; o Ser é qualquer coisa que ora nasce, ora morre. Cada pessoa que nasce, cada consciência humana que surge, o universo nasce também; cada pessoa que morre, o universo morre com ela. Assim se dá uma cintilação do Ser, que ora se acende, ora se apaga. Eu fiquei com essa intuição. Comecei a meditar, a tomar notas, sem sair da coerência. Das notas aos livros...? Eu vim a escrever em definitivo a minha obra de 1946 a 1950. A rigor, foi em 50, porque o que eu escrevi antes, pensando então que era definitivo – era o início do volume A Visão Existenciadora – depois, relendo, desfiz tudo. O que havia de errado? Nada havia, propriamente, de errado. Havia uma desconexão, não me agradava o ritmo. A coisa não me convinha. Não era o que eu almejava. Então eu refiz tudo. Bom, então a partir de 50, toda a noite, às sete e meia, depois da ceia, eu escrevia. Em 59, 60, passei a escrever menos, porque eu estava como diretor da Faculdade de Arquitetura e não tinha mais tempo para escrever, preocupado, a responsabilidade muito grande... AFONSO OLIVEIRA

FLÁVIO LAMENHA

O filósofo pernambucano Evaldo Coutinho esperou 90 anos para receber o devido reconhecimento pelo que escreveu. Autor de nove livros sobre Filosofia, Cinema, Arquitetura e Estética da Arte, ele terá a sua obra discutida nacionalmente pela primeira vez, a partir do lançamento do projeto Evaldo 90 Anos, em março. O projeto consiste numa série de atividades para tornar conhecido o pensamento do filósofo, entre elas um site, um fórum de debates e um livro de críticas à obra. Tudo desencadeado pela estréia do documentário A Composição do Vazio, do cineasta Marcos Enrique Lopes, idealizador do projeto. Não é uma obra fácil, a de Evaldo Coutinho. Dono de um sistema filosófico que chamou de A Ordem Fisionômica, ele condiciona todo o universo à consciência humana, de forma que um homem ao nascer cria o absoluto, e ao morrer o destrói. O conhecimento – em especial o adquirido pela visão – assume importância fundamental nesta concepção, para a qual o testemunho e a criação são sinônimos. Além da aridez do tema, o estilo característico com que Evaldo expõe a sua filosofia, tomando emprestado o vocabulário artístico (pois artístico é o ser), não se presta a uma leitura rápida. Em cada longa frase, em cada conjunção, há a preocupação de Evaldo em conciliar o pensador e o prosador. A arte também está presente nos seus dois primeiros livros publicados, O Espaço da Arquitetura e A Imagem Autônoma; este último um livro sobre Cinema escrito quando poucos filmes havia, no Recife, para se avaliar. O que fez Evaldo? Transcendeu a análise do cinema da época para dar-lhe a atemporal nobreza filosófica, identificando a sua matéria específica: a imagem em preto e branco, e muda. Essa obra polêmica e respeitada virá ao grande público em 2001. Começando com o filme A Composição do Vazio e culminando com o lançamento de um livro com ensaios de Marilena Chaui, Benedito Nunes, Ismail Xavier e outros intelectuais sobre as idéias de Evaldo, em julho, quando faz 90 anos. Antecipando as comemorações do ano Evaldo, Continente Multicultural traz longa conversa com o filósofo, em que ele fala sobre seu sistema, morte, timidez, estilo e arte. Além da entrevista, depoimentos de Benedito Nunes, Nelson Saldanha, e artigo de Paulo Cunha.

O cinegrafista Dante Peló e o diretor Marcos Enrique Lopes filmando em frente à Academia Pernambucana de Letras

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“O universo todo está a depender de mim, uma pessoa frágil, que vai morrer... O Ser está com 89 anos. Muito velho, não tem do que se queixar” Por volta de 63, eu já havia terminado o que eu intitulei de A Ordem Fisionômica, que se compõe de cinco volumes, com títulos diferentes, e cada volume pode ser lido independentemente do outro. E guardei. Guardou? Foi. Primeiro, eu não disse a ninguém que estava escrevendo. Só quem sabia era a minha mulher, Giselda, que passou à máquina os três volumes; uma moça que trabalhava na Faculdade de Arquitetura também passou à máquina; minhas irmãs e meus irmãos, alguns amigos. Mas nunca dei publicidade a meu trabalho. Por quê? Porque a obra não estava terminada, não estava publicada e nada. Pareceria uma leviandade, uma vontade de aparecer, mostrando antecipadamente algo que ainda ia haver. Uma obra só existe depois de publicada. E quando começou a publicar a sua obra? A Ordem Fisionômica não teve publicação fácil, inicialmente. Depois de terminada, escrevi O Espaço da Arquitetura – que é um livro ao qual quero muito bem – e A Imagem Autônoma, e ambos foram publicados pela Universitária. Mas a mesma editora não quis publicar A Visão Existenciadora, que é o primeiro volume de A Ordem Fisionômica; apesar do parecer favorável de Nelson Saldanha. Além disso, a Universitária não tinha uma boa distribuição de livros, era um problema sério. Era como se a pessoa continuasse inédita. Então um dia, almoçando com o Paulo Emílio Sales Gomes, já falecido – o Paulo Emílio tinha feito um curso de Cinematografia em Paris, tinha criado a Cinemateca Brasileira, lá em São Paulo, e era professor de Cinematografia na USP, meu amigo – eu disse que tinha um trabalho inédito, perguntei se ele me arranjava um editor lá no Sul. E arranjou a Perspectiva. Assim, comecei a publicar em São Paulo a minha obra. Toda ela hoje é pela Perspectiva. 36 Continente Multicultural

Em São Paulo, o primeiro que publiquei foi O Lugar de Todos os Lugares. É um livro que explica A Ordem Fisionômica. Depois publiquei A Visão Existenciadora, trazendo uma palavra nova: existenciar. Quando eu conheço uma coisa, eu existencio essa coisa, porque trago essa coisa para o meu repertório. Uma pessoa inteligente, mais conhecedora, existencia melhor o mundo do que uma pessoa que é analfabeta? Não, a frase é: ela tem um repertório mais extenso do que outro. A pessoa que é muito viajada, que percorre o mundo todo, tem um repertório superior, de coisas que ela existenciou, do que um humilde, um pobre que não sai de casa. Mas acontece que esse pobre, tudo está nele, inclusive os países que o outro visitou, em grau de possibilidade. A sua concepção beira o paradoxo. Como é que um fato que levou à sua existência, como, por exemplo, o seu nascimento, pode depender da sua existência? Aparentemente há um paradoxo. Mas não cancela em absoluto a minha ideação de que o absoluto está em mim. Toda a história universal antes de mim, tudo – eu sei que existiu a Idade Média, a Grécia Antiga – tudo isso existiu fora de mim, mas está dentro de mim agora. Por incrível que pareça. Esse fora de mim está a depender de minha existência. Eu sou o detentor do mundo. O universo todo está a depender de mim, uma pessoa tão frágil, que vai morrer... No meu último livro, A Artisticidade do Ser, eu começo dizendo que o Ser tem a minha idade. O Ser está com 89 anos (risos). Muito velho, não tem do que se queixar... Não seria mais correto dizer que o senhor se apossou de todo o universo, em vez de tê-llo criado? Eu tenho como sinônimos a criação e o testemunho.


A realidade objetivada a rigor não existe. Não há em mim a existência objetivada. Há a existência que abrange a tudo, em forma de conhecimento, quer real ou quer possível. Qual é a importância da morte na sua obra? A morte é o personagem principal. Porque é justamente o fato da morte que estabelece a circunstância metafísica de o Ser estar a depender de cada um. Daí que a minha obra é muito melancólica. A coisa maior do mundo seria a pessoa se eternizar. Mas, o fim? Eu acho um panorama tristíssimo. A religião salva isso porque admite a sobrevivência da alma. Mas eu considero a sobrevivência da alma como uma ideação imaginativa minha que vai morrer comigo, eu morro com as idéias que circulam no mundo. É uma tristeza isso. Eu admito que a pessoa deva ter uma religião e, se tiver, a conserve, porque senão vai se perder no meu repertório. Tudo muito triste. O senhor tem angústia em relação à morte? Tenho. Há espaço para Deus na ordem fisionômica? Na minha concepção, Deus é uma entidade, uma idéia como as demais. Como vocês, como tudo mais está a depender, como existência, da minha existência. Todas as religiões são criações minhas. Estão em mim e vão morrer comigo. Eu morrendo, levo comigo inclusive Deus. E como aliviar a melancolia? Pela resignação. Você tem que se resignar, não adianta suplicar. É um sistema de resignação pessoal. Ele inclui as alegrias pequenas... Gozar a saúde; ver as pessoas que eu aprecio – eu sou muito emotivo – indo bem, todas elas; um fato bonito, que me alegre; um filme de Chaplin; ler um romance bom; ter uma conversa agradável. Ou então, eu vou à rua, apressado, não tem táxi. Lá vem um ônibus. Pára, e tem lugar. Ah... Essas são as pequenas alegrias. São as melhores. As grandes alegrias às vezes trazem uma excitação demasiada (risos), a pessoa adoece de tanta felicidade.

Com relação ao meu sistema, eu parto do seguinte princípio: a Filosofia não existe para alegrar nem salvar ninguém. A Filosofia é uma especulação sobre o Ser na sua finitude ante cada pessoa. Com a religião, a pessoa assimila, aprende, pratica, para se salvar, e acha que está a salvo quem aceitou a religião. O sistema filosófico, não só o meu como qualquer outro, não é feito para isso. Qual é a utilidade de A Ordem Fisionômica? Não tem. Por isso, porque o sistema filosófico, na minha opinião, não é elaborado para melhorar ninguém. O sistema filosófico é uma interpretação do universo, geralmente à base de intuições. Eu senti uma intuição quando era rapaz, desenvolvi e criei um sistema. Houve algum momento de lampejo, alguma circunstância que o fez intuir a ordem fisionômica? Eu me lembro perfeitamente do local e do momento em que tive a intuição de que o universo morre na morte de cada pessoa e nasce no nascimento de cada pessoa. Uma casa que já foi demolida – olhe como é simbólica a vida – na rua Amaro Bezerra, 385. Hoje existe lá um edifício feio chamado Senhor de Engenho. É na Capunga, entre os Quatro Cantos e o Derby. Foi de manhã. A nossa casa tinha um sótão em toda a extensão, era praticamente um primeiro andar. E tinha duas janelas grandes e mais dois óculos. Um desses óculos ficava bem perto do meu quarto. Eu estava desperto, isso já devia ser umas oito horas da manhã, FLÁVIO LAMENHA

vada?

O senhor não admite uma realidade objeti-

“Minha obra é muito melancólica. A maior coisa do mundo é se eternizar. Mas, o fim?”


REPRODUÇÃO

Um Mar de Degraus, do fotógrafo inglês Frederick H. Evans (1853-1943). Evans destacava os elementos arquitetônicos que sugerissem passagem, ascensão e transformação. Evaldo destaca o espaço vazio, onde o tempo se repete

e olhando para fora, pelo óculo aberto, me veio, então, a intuição. Não vejo relação nenhuma entre a minha intuição e o fato do óculo da casa. Parece-me um fenômeno sem causa. Uma idéia que aparece na mente da gente. Na intuição que tive, senti grandeza. Por isso, gravei a circunstância ambiental. Por que a sua obra é até hoje desconhecida do grande público? Em parte a culpa é minha. Sou muito tímido, nunca pedi a ninguém que escrevesse sobre a minha obra, escreveram espontaneamente. Sou tímido para chegar a um comentarista de jornal ou de revista e dizer para escrever um artigo sobre mim. Isso, eu não faço. As pessoas às vezes não têm apetite para escrever, não vou agora forçá-las a isso. Acha que o projeto Evaldo 90 Anos vai mudar esse quadro? Não tenho muitas esperanças. Considerado o Brasil, onde se lê muito pouco, e sobre Filosofia quase nada, ou nada mesmo – basta dizer que só houve até hoje um filósofo no Brasil que realmente construiu um sistema, não foi um comentador de Filosofia (e convém distingui-los): Farias de Brito, cearense de fins do século retrasado e começo do passado. Basta dizer, um nome só durante tantos anos de aplicação cultural no Brasil, escolas superiores, e tudo isso. Eu vejo o futuro de minha obra dentro desta linha. Alguns dirão, “É um filósofo”; a maioria,

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“Mas quem? Quem é fulano?”. A situação atual há de permanecer por muito tempo, eu presumo. Ao menos que haja um milagre de algum tradutor levar ao estrangeiro a minha obra, mas de minha parte não há uma iniciativa. Eu não sei administrar o futuro de minha obra. Dei o nome de idealidade a todas as ideações alusivas ao futuro. Sou muito tímido, não gosto de incomodar ninguém. Mas fico comovido, sensibilizado, quando leio uma referência a meu respeito, uma palestra, ou mesmo uma conversa. Como você, aqui comigo, para mim é uma grande coisa. Ganho o dia. Para mim é um grande prêmio. Dediquei a minha vida a essa obra. Se a sua obra tivesse êxito nacional, seria uma vantagem para o país? Para o país seria interessante, eu não posso negar isso. Contar com a existência de um filósofo. O ideal seria mais de um, como na Alemanha. O êxito honesto, correto, estimula a pessoa. Escrevi a obra sem nenhum estímulo desse tipo. Depois de publicada A Ordem Fisionômica, inclusive, eu tive algumas decepções. Pessoas que eu esperasse que fossem entender, assimilar, não o fizeram. Outras, não. Devo muito a Daniel Lima e a Nelson Saldanha. O discurso de Nelson Saldanha me recebendo na Academia Pernambucana de Letras é uma das melhores coisas escritas sobre a minha obra. Sinto que muitos assimilaram, mas não escrevem sobre a obra. Eu respeito. Não têm apetência para tanto. Basta dizer que meu livro sobre Arquitetura, que expõe uma teoria nova – transferindo o interesse da parte concreta para o vazio – um ou outro arquiteto, conversando comigo, mostrou assimilar. O senhor poderia comentar essa sua concepção da Arquitetura? Ela surgiu ao longo da elaboração de A Ordem Fisionômica. Gosto muito de minha concepção. Dou nobreza filosófica à Arquitetura. Sempre se viu a Arquitetura como um volume, composto de paredes e teto. Se você pegar um livro de História da Arquitetura, você vê logo fotografias das coisas mais bonitas, mais conceituadas, de volume. Esse conceito de volume, eu considero próprio da Escultura. Uma escultura pode ser isso


AFONSO OLIVEIRA

Benedito Nunes e Evaldo Coutinho ouvem recomendações do documentarista Marcos Henrique Lopes

aqui (apanha um cinzeiro na mesa), algo pequeno, mas pode ser também um edifício de dez andares. É volume. Pertence à outra arte, que é a Escultura. Como a Arquitetura, então, teria o título de arte pura, de arte maior, como a Pintura, a Música, a Literatura? O que faz a autenticidade da Arquitetura é o vazio interno, o espaço, que passa a ter uma importância autônoma. Ele contém as pessoas que ali estacionam ou circulam. Enquanto preservado o edifício, por esse espaço transitam gerações de pessoas. O edifício tem trezentos anos, quantas pessoas nesses trezentos anos não entraram ali, olharam pela mesma janela, abriram a mesma porta? Há uma repetição do tempo, e isso estabelece também uma unidade do Ser dentro dessa construção. Eu, quando entro no edifício, sou o indivíduo que há trezentos anos entrou e o que entrou na véspera. Repito o comportamento físico de entrar. A Filosofia da Arquitetura consiste nisso; não na parte construtiva, das paredes, mas no vão, disposto à repetição humana. Como você vê a atuação dos arquitetos? Há algum que utiliza o seu pensamento no trabalho? Eu tive muita tristeza. Fui professor de Teoria e Filosofia da Arquitetura, instruí muitos arquitetos, turmas e mais turmas. Mas nunca senti interesse maior no meu livro. Porque se sai um livro de um professor, a coisa primeira é que o convidem para que ele fale sobre o livro que acaba de publicar, sobre o assunto, na própria escola. Nunca se

deu isso. A recepção do meu livro é mais de pessoas de fora da Arquitetura, poetas, literatos. Alguns me querem muito bem, mas não puxam conversa sobre a minha obra. Isso me entristece. Mas acontece também de algumas pessoas – e aqui não me refiro aos arquitetos especificamente – encontrarem dificuldade na maneira que escrevo. Porque estão habituadas a escrever “Paulo tem uma bola. Ponto. A bola é azul. Ponto” (risos). Eu não podia escrever minha obra assim. É uma simplicidade elementar, primária, porque dizem que o que importa é entender. Mas isso anula inteiramente a tarefa do prosador, que possui o estilo pessoal, como o Pe. Antônio Vieira, o Eça de Queiroz, o Saramago. O Saramago é extraordinário prosador. Por isso, porque não escreve “Paulo tem uma bola”. Mas seu estilo é considerado um pouco hermético, de difícil leitura, mesmo por seus admiradores. O que o senhor acha disso? Não acho que seja hermético. Primeiro, eu evitei o vocabulário clássico da Filosofia tradicional, a gíria filosófica. Usei palavras simples. Eu não me lembro de nenhuma palavra difícil, uma ou outra que não é do conhecimento de todo o mundo. Mas, vão ao dicionário! Elogiam até o meu estilo. A frase é longa, eu uso as conjunções, que são as dobradiças da frase, que tornam o período longo, mas dão um ritmo Continente Multicultural 39


King Vidor, diretor americano de A Turba e O Grande Desfile, admirado por Evaldo Coutinho

O senhor não teme ser considerado um escritor de frases de efeito? Não. Nunca ouvi uma crítica assim. As críticas que ouço, pelo contrário, é que a frase se ajusta perfeitamente à idéia que exprime.

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que acompanha o pensamento. Eu não posso escrever as bases do meu sistema com a linguagem corriqueira de jornal, não posso. Não dá! Tem que haver uma linguagem especial para ele. Meu trabalho é, assim, duplo. Quanto à idéia básica e quanto à frase que vai externar essa idéia.

termo é filosófico quando ele tem aplicação universal. A minha ideação tem aplicação universal. A circunstância da morte absoluta, uma funeralidade total, é um princípio filosófico. E sendo arte o sistema filosófico, ele não deve ser cancelado, anulado, destruí-

“Acontece de encontrarem dificuldade na maneira que escrevo. Estão habituados a escrever ‘Paulo tem uma bola. Ponto. A bola é azul. Ponto.’ Eu não posso escrever assim. Não dá!” Quais foram as suas maiores influências para a construção de A Ordem Fisionômica? Um filósofo que eu apreciei muito, sobretudo a maneira dele escrever, foi Schopenhauer. Tem uma obra notável. Fala-se muito em Nietzsche, que foi aluno dele, mas Nietzsche, junto de Schopenhauer, é muito pouco. Mas a influência maior que há em mim é resultado de uma leitura que me levou a um conceito do que seja um sistema filosófico. Se eu não tivesse lido os filósofos, eu estaria completamente alheio, sem saber o que é Filosofia, ontologia. Mas depois que eu li alguns deles, a História da Filosofia, eu senti inclusive a artisticidade contida neles. A Ética de Spinoza é composta por dedução, teoremas, ele aplica o método geométrico. Isso afugenta muita gente. Mas é um processo artístico. Não se esqueça que meu último livro se chama A Artisticidade do Ser, em que eu emprego uma linguagem aplicada às artes, daí as expressões que eu uso: belvedere, miradouro, painel, retábulos. Eu tiro do vocabulário artístico para aplicar no Ser, que é artístico.

Como podem ser feitas críticas à Filosofia? Pode haver críticas no sentido de paralelos, comparações. O meu sistema com o de Heidegger, como fez o Benedito Nunes, mostrando o relacionamento daquele com o cerne do meu sistema. Mas, por exemplo, anular meu sistema, dizer que está errado ou certo, não pode. Outra coisa que não se admite na Filosofia é superioridade, de um em relação a outro. Se é uma obra de arte, não há superioridade. São sistemas fechados, pessoais, cada um tem seu campo.

Qual é a arte filosófica? É uma harmonia superior, uma ideação ubíqua, como eu chamo na obra. O princípio básico é que ela está presente em tudo. E um dos caracteres da Filosofia é a universalidade de aplicação. Um

O senhor há pouco disse que Schopenhauer era melhor do que Nietzsche. Não, não é isso. Posso dizer que um era filósofo, e o outro não (risos). Porque Nietzsche não chegou a construir um sistema.

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do. Não deve acontecer, porque é uma obra pessoal. Se você junta no seu sistema um elemento, pode alguém achar que esse elemento contradiz a obra ou está mal posto, mas isso não cabe. A questão é que o autor achou necessário introduzir aquele elemento. É como um artista. O pintor coloca o tom que lhe convém. Pode parecer errado a quem quer que seja, mas ele não admite isso, é dele aquilo. Deve ser respeitado, deve lhe ser aplicada uma atenção igual à que se aplica ao conjunto da obra.


MOEMA CRUZ

Mudando de assunto, como começou a sua relação com o cinema? Essa é mais antiga. O cinema mudo. Eu, quando fui ao cinema pela primeira vez, devia ter uns cinco anos. Eu não me lembro totalmente, mas lembro de cenas do filme que eu vi, menino, fiquei impressionado com aquilo. Gostava de cinema demais. Quando eu passava de bonde pela porta de um cinema, na rua Nova, eu ficava olhando os cartazes. Grandes, coloridos. Eu gostava de olhar. Via muita revista francesa e americana de cinema, que meu irmão Aluízio trazia do Rio, onde estudava Medicina. Cinema mudo. O cinema tomou parte da minha vida quando menino, rapaz. Fui até cronista de cinema aqui, em 1929, 1930. Nehemias Gueiros, jurista, filho do doutor Jerônimo Gueiros, fazia a página de cinema dos domingos do Jornal do Commercio, e fazia também crônicas sobre os filmes. Ele me perguntou se eu queria fazer crônica de cinema. Eu gostei do convite e fiz várias para o Jornal do Commercio. Usava as iniciais do meu nome, ou somente C., ou somente E. Quando houve a Revolução de 30, arrebentaram o Jornal do Commercio, quebraram tudo, incendiaram. Então eu interrompi esse trabalho. Mais ou menos em 33, por aí, Caio Pereira, que tinha sido secretário do Jornal do Commercio, passou a ser do A Província. E me chamou logo

para fazer crônicas de cinema. Eu fiz algumas para A Província. Esse foi meu contato com o cinema. Mas já nessa época apareceram os primeiros filmes coloridos e sonoros. Que o senhor já não considerava cinema. É. Isso, de acordo com a minha idéia do que seja a arte mesmo. Em A Imagem Autônoma eu dou dignidade filosófica ao cinema, partindo do princípio de que cada arte existe em virtude de sua matéria – a Música é a sonoridade, a Arquitetura é o interno, a Pintura é o colorido. O cinema era uma arte nova, que surgia no fim do século. E a matéria mesma do cinema, própria do cinema e de mais nenhuma outra arte, era a imagem em preto e branco, e muda. Nunca houve um filme perfeito em todos os sentidos, mas aproximações. Um filme, às vezes, trazia uma grande cena, pura, depois caía no medíocre. Quais foram os filmes que mais se aproximaram da perfeição? Eu divido o cinema em duas categorias. Há o cinema com origem, desenvolvimento, clímax e fim, quando morrem os personagens ou se casam... isso que é muito do romance realista, do século 19. Há esse cinema ainda hoje. E há outro cinema, que não adota esse sistema, que usa situações diversas que expressam a mesma coisa. Esse Evaldo Coutinho escreve o título do filme A Composição do Vazio

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cinema é o de Chaplin. Daí a minha admiração extrema por Chaplin. Porque Chaplin, a partir de 1923, quando fez o Pastor de Almas, Em Busca de Ouro, O Circo, Luzes da Cidade, fez filmes sem uma história como a do romance. São situações que ele agrega, uma à outra, que representam a mesma coisa. A situação de um vagabundo, maltrapilho, incapaz de uma atividade prática para viver, hostilizado, tratado com indiferença por todos. É o Carlitos, em cada uma dessas situações. É o cinema chapliniano. Nesse aspecto, diferente do cinema em geral. É mais inteligente. Agora, o melhor para mim, quanto ao outro cinema, o comum, foi o americano chamado King Vidor. King Vidor tem A Turba, e antes da Turba tem O Grande Desfile, sobre a Guerra de 14. Admirável! Ele era um assalariado da Metro. Não tinha condições, como Chaplin tinha, para produzir por conta própria o que quisesse. Tinha que atender às exigências da fábrica. Vez por outra, fazia coisas notáveis dentro de filmes comuns. Mas nesses dois, não sei se deram maior liberdade a ele, o fato é que ele produziu duas obras magníficas. Mas houve notáveis na Alemanha, na Rússia, a União Soviética teve grandes diretores. A França deu muito. Deu um dinamarquês (risos), chamado Carlos Dreyer, de A Paixão de Joana D’Arc. Hoje em dia, acontece eu acompanhar um filme ou outro, pela televisão. Até em novela há momentos de puro cinema. O som está ausente, o colorido perdoa-se (risos), e a cena é feita por imagem só. Por que o preto-ee-bbranco é a matéria específica do cinema? Porque o colorido já estava na Pintura. E, na imagem, vale só a forma. O detalhe do colorido é dispensável. Com o preto-e-branco você observa todas as emoções, as mais sutis, como se tivesse o normal da cor. Apenas para mostrar a autenticidade da arte, o cinema dispensa a cor, que já era da Pintura. Para finalizar, professor: depois de construído um mundo, uma ontologia, o que resta para o filósofo? Nada. Completou a obra dele, está satisfeito. Alexandre Bandeira é jornalista

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A inca

A

visão não tem sido apenas para os seres humanos um sentido específico, antes tem servido de ponto de referência para o próprio “estar vivo”. O olho fechado, como ocorreria segundo certos arqueólogos com alguns desenhos maias, simboliza freqüentemente a morte. A visão é um órganon do existir, e portanto da consciência de existir. Não a entendemos como simples faculdade fisiológica, mas como a capacidade que o espírito tem de compor uma imagem da circunstância: se temos uma circunstância, temo-la em princípio como um acervo de figuras. A consciência, por sua vez, é consciência do fato de que eu dependo das coisas; só que, em outro plano, ela me informa que elas dependem de mim para se configurarem inteligivelmente como coisas. A insistência de Evaldo Coutinho sobre a perecibilidade de um mundo que resulta da visão que o sujeito tem das coisas, e também sobre o poder, que tem essa visão, de criar a cada passo o mundo, desperta uma sensação quase desesperadora ante um cenário que é como uma incansável fênix, a morrer e renascer interminavelmente. E produz de logo a impressão de um subjetivismo irrecorrível. Entretanto, esse subjetivismo se reduz ao mecanismo de desvelamento e de conhecimento: não se nega, em A Ordem Fisionômica, nem o Ser como tal, nem a realidade objetiva, nem ainda o chamado “mundo exterior”. Apesar da subjetividade, no caso, ser intransferivelmente a do autor, posta como suporte existencial de tudo, ela se estende e se relaciona com a subjetividade dos outros, sendo entendida então como um fator de “contemporaneidade”. A preocupação de Evaldo Coutinho com o Ser é precisamente o complemento e contraponto

Nelson Saldanha


nsável fênix A morte é o personagem central na reflexão barroca de Evaldo Coutinho, que valoriza o Ser presente do mundo, ao torná-lo frágil penchant revela-se nas alusões à morte, tema já destacado em artigo por Leônidas Câmara. A morte, personagem central na reflexão de Evaldo Coutinho, funciona como um corte cênico que cancela com o próprio sujeito (do ver) o mundo (visto), e valoriza o Ser presente do mundo, ao torná-lo frágil. No mesmo plano em que ocorre a consciência da morte, ocorre a percepção da tenuidade do ver, e com ela o afanoso esforço de compreender as coisas. O próprio Ser se entende então como algo artístico, algo criado. (Trecho do discurso de saudação a Evaldo Coutinho quando da sua posse na Cadeira nº 23 da Academia Pernambucana de Letras, proferido por Nelson Saldanha) Nelson Saldanha é licenciado em Filosofia pela UNICAP, doutor em Direito pela UFPE e membro da Academia Pernambucana de Letras.

Cena do filme O Cão Andaluz (1928), de Luis Buñuel, em que uma mulher tem o olho cortado por uma navalha

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do enorme papel do conhecer em todos os seus textos. Em certa passagem de O Lugar de Todos os Lugares, está dito que é a própria perspectiva do desaparecimento de cada coisa, ao desaparecer “em mim” com “minha morte”, que inova o próprio ser da coisa: inova-o ao conferir-lhe um sentido de trágica e angustiante precariedade. Deste modo temse o Ser confirmado, mas passado por uma espécie de refração, e tem-se o próprio mundo afetado por uma espécie de reductio. Deste modo se retoma – parece-me – a idéia de ser o homem medida-detodas-as-coisas, idéia filosófica geral que se expressa na idéia literária alusiva ao homem Evaldo Coutinho, autor do texto e testemunha de suas próprias invenções. E por isso ele nos diz que a consciência de si mesmo é o absoluto ôntico: absoluto no sentido de irredutível e de incondicionado, entenda-se. Às vezes, entretanto, e que me seja perdoada esta dúvida, me ocorre em certos pontos uma pergunta sobre até que ponto o escritor, no caso, crê firmemente em tudo o que transmite ao leitor, e até que ponto “faz literatura”, comprazendo-se, não sem uma ponta de ironia, na elaboração de um desfile de sensações e figuras, e deixando ao intérprete de seus textos os questionamentos restantes. Seria o caso de relacionar o senso de jogo, que estaria neste aspecto de seu modo de escrever, com o seu reconhecido barroquismo, seu gosto pelo cênico e pelos amplos painéis móveis. O penchant barroco, corroborado aliás por sua admiração pelo Padre Vieira e que nos revela a imagem do mundo como teatro, própria dos espanhóis do século de ouro, aquele

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A medida do pensamento

Benedito Nunes e Evaldo Coutinho durante filmagens na antiga Escola de Belas Artes, atual DEC (julho de 2000)

Depoimento de Benedito Nunes para o filme A Composição do Vazio, a respeito da obra de Evaldo Coutinho.

O

Espaço da Arquitetura, A Imagem Autônoma, O Lugar de Todos os Lugares, como volume explicativo dos cinco tomos de A Ordem Fisionômica (A Visão Existenciadora, O Convívio Alegórico, Ser e Estar em Nós, A Subordinação ao Nosso Existir, A Testemunha Participante), concluída com A Artisticidade do Ser, eis a obra de Evaldo Coutinho, um professor que pensa. Se raro é hoje um professor pensante, mais raro ainda é o pensador escritor. Não quero dizer que esses livros sejam bem escritos, no sentido da correção da língua gramaticalmente considerada. Evaldo Coutinho escreve num estilo que lhe é próprio, porque traz a medida de seu pensamento. Desfez-se do vocabulário filosófico tradicional, inventando palavras para a Filosofia que são termos comuns de nossa linguagem cotidiana. 44 Continente Multicultural

Seria incorreto afirmar-se que esse pensamento inventivo seja só estético. É estético, mas também ontológico e mesmo metafísico. Sem alarde, ele nos deu um resultado esplêndido da leitura de O Sofista de Platão. O professor, que não utiliza uma terminologia ribombante, cita pouco ou quase nada, mas não pelo vezo muito nosso de ostentar auto-suficiência. Interessa-lhe armar uma visão do mundo e passá-la adiante. Mas para isso é preciso escrever e escrever-se: escrever ritmando o pensamento com a sua própria vida. Evaldo Coutinho alcançou um ritmo sintático, um fraseado aliciante que seduz o leitor pela sua clareza e pela sua riqueza vocabular, principalmente de cunho metafórico.

Benedito Nunes é professor do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Pará


AFONSO OLIVEIRA

A transgressão revelada A teoria do cinema de Evaldo Coutinho é, a um só tempo, desconhecida e original, menosprezada e pioneira

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conteceu há quase três décadas. Aos 61 anos, o filósofo e já então professor emérito da UFPE, Evaldo Bezerra Coutinho, publica, em 1972, pela Editora Universitária, A Imagem Autônoma – Ensaio de Teoria do Cinema. Duzentas e noventa e nove páginas de um texto denso, belo, sem concessão, deixando claro, logo nas primeiras linhas do prefácio, que falava de um cadáver: o cinema exibido a partir da segunda metade do século 20 era, na verdade, uma “transgressão à norma da autonomia do gênero artístico”. O que queria dizer isso? Que o cinema mudara, abandonando algo que lhe dava uma posição única entre as artes, sua “matéria específica”, formada pelo “descolorido de sua aparência” e pelo “movimento”. Era lançada desse modo, em forma de livro, a idéia de Evaldo Coutinho sobre a arte cinematográfica, condensando décadas de reflexões que ele publicara em páginas literárias de jornais brasileiros. A idéia básica era portanto polêmica: o cinema, como expressão artística Paulo

única, é imagem em preto-e-branco em movimento. Mas o que eram então os filmes que passavam nas telas das salas de exibição? Transgressões, pois a cor cabe à Pintura, o som, à Música. O que veio depois cabe à... Aos apressados de plantão, que identificam na posição fundamental de Evaldo Coutinho nada menos do que um arcaísmo reacionário, é necessário pedir prudência e dizer que, muitos anos depois dele, e afinal com menos competência do que ele, teóricos do cinema intuíram que, de fato, o cinema dera lugar a outra coisa, que ainda define-se atualmente como “cinema” apenas por falta de termo melhor. A escalada tecnológica do cinema e seus reflexos sobre a linguagem, especialmente a partir dos anos 1930, deram efetivamente uma nova “feição” à arte cinematográfica, que afinal não escapa aos olhos do espectador mais desatento de Matrix ou de Jurassic Park – até que ponto, de fato, são cinema? Especialistas em novas tecnologias, por exemplo, gostam do valor mercadológico do termo “cinema”. Fazem “pós-cinema” ou Cunha “cinema interativo” sabendo muito bem Continente Multicultural 45


que estão fazendo outra coisa. Evaldo Coutinho sabia antes deles. O trabalho de Evaldo Coutinho sobre o cinema contraria a simplificação jornalística que costuma pautar o debate e a crítica sobre a cultura a partir do final do século 19. E é verdadeiramente vanguardista e original, ao ponto de ser considerado pelos poucos teóricos estrangeiros que tiveram acesso ao texto como uma obra quase sem paralelo no mundo inteiro, a não ser, pelo rigor, quando comparada ao que escreveram sobre cinema pensadores do porte de Panofsky, Malraux ou Merleau-Ponty. Evaldo Coutinho é um homem franzino, um cidadão educado e muito discreto, que passaria desapercebido numa fila de banco. Depois de ter sido publicado pela Editora Universitária, no Recife, o seu A Imagem Autônoma está hoje disponível no catálogo da Perspectiva, de São Paulo. Mesmo assim, nunca provocou uma resenha importante nos jornais ou revistas do Brasil. Avesso a modis-

tiu (existirá, um dia?) uma cinemateca ou, de fato, uma filmoteca. Por isso Evaldo Coutinho começa seu trabalho sobre o cinema com uma longa reflexão sobre a memória. E ele rememora sem parar Murnau (principalmente Aurora), Griffith, Flaherty, Pudovkine, Dreyer, King Vidor, Chaplin (o que antecede a Luzes da Cidade), Lubitsch, Eisenstein... Uma lista irretocável de referências. Mas isso nunca importou. E não importa. Cinema é coisa mental e, revela Evaldo Coutinho, “ao estudioso de sua própria concepção não se mostrariam indispensáveis as obras que ele não viu ou não reviu”. Pensar sobre o cinema é fazer cinema também. Cinema transcendental. Quando o cinema era cinema, até a figura de um ator, “isenta de sua voz e de seus coloridos, no silêncio e no preto-e-branco das imagens do cinema”, era coisa mental: “não é bem uma alegoria do pensamento, mas sim, a encarnação de um papel no decorrer interior de um pensamento”... REPRODUÇÃO

Da série Animal Locomotion (1887), do fotógrafo Eadweard J. Muybridge: a imagem em preto e branco, em movimento e muda é para Evaldo Coutinho a matéria específica do cinema

mos acadêmicos (no entanto antecipando certos estruturalismos, desconstrutivismos e semiologias) e muitas vezes descartado como autor de pensamento isolado, que não fundou ou fez parte de escolas, o filósofo da arte Evaldo Coutinho aguarda, ainda hoje, no seu apartamento da praia de Boa Viagem, interlocutores que possam discutir com ele, e na dimensão dele, o cinema. Como foi possível a um pensador, morador de uma cidade pobre da América católica, produzir uma teoria do cinema vanguardista e original? Sem ter acesso constante aos filmes que, como ele dizia, “corroborassem com perfeição o princípio da autonomia do cinema”? Os poucos filmes que povoam a reflexão de Evaldo Coutinho foram exibidos fugazmente no Recife, onde nunca exis-

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Pioneiro, original, ninguém, antes de Evaldo Coutinho, apontou por exemplo para a fundamental questão da dupla temporalidade da expressão fílmica – o tempo diegético e o tempo do relato –, coisa que só foi discutida extensivamente por narratólogos europeus na década de 80. No vocabulário personalíssimo de Evaldo Coutinho, falase em “duas ordens”: “a que se restringe à linguagem em si mesma (...) e a que abrange o recheio que geralmente consiste na história narrada”. Revelações e antecipações dessa natureza fazem espelho a outras posições definidoras do pensamento de Evaldo Coutinho. Como, numa de suas mais belas passagens, de orientação quase psicanalítica, a respeito da posição da câmera na expressão cinematográfica: “A lente cinematográfica se confunde com os olhos do espectador, o cineas-


REPRODUÇÃO

O cinema de Charlie Chaplin é objeto de admiração extrema por Evaldo Coutinho

ta possui o arbítrio de encaminhar, aonde quer, o olhar dos assistentes, obrigando-o a penetrar recessos, a espreitar ângulos, a mover-se em paisagens, a deter-se em contemplação, enfim, o público já se encontra afeiçoadamente contido na câmera que assim discorre”. Evaldo Coutinho é contemporâneo, mas escapa, em teoria do cinema, tanto da tradição formalista (Munsterberg, Arnheim, Eisenstein, Balázs) quanto da tradição realista (Krakauer, Bazin). De certa maneira, seus textos estão mais soltos, mais livres da pressão do cinema real do que os dos teóricos europeus. O recifense Evaldo Coutinho parece pensar o cinema apesar do cinema, fazendo das imagens em movimento, em preto-e-branco, o anteparo de um pensamento que aponta para coisas maiores. Pois há coisas que desconhecemos porque estão perto demais. Evaldo Coutinho brilha por superar uma orientação primeira, que visa os objetos da percepção e do pensar, e atingir uma secunda intentio: observar a si próprio e a seus conteúdos. Assim: na verdade, a grandeza de A Imagem Autônoma está no fato de o livro ser a narração do que o pensamento pode atingir, a partir de uma coisa menor chamada cinema. O que, a rigor, é o maior elogio que se possa fazer dessa coisa que se chamou, um dia, cinema.

O filme A Composição do Vazio, sobre a vida e a obra de Evaldo Coutinho, tem recebido boa acolhida desde a sua concepção. Recebeu o prêmio Firmo Neto de melhor roteiro, em 1999; está classificado para o Festival de Cinema do Recife, na categoria documentário; e para a mostra competitiva do festival É Tudo Verdade, o mais importante concurso de documentários da América Latina. Não fosse o bastante, o filme tem chamado a atenção de nomes como José Saramago, Caetano Veloso, João Moreira Salles, Hermano Vianna e Cacá Diegues para a obra do filósofo pernambucano. Mérito do cineasta Marcos Enrique Lopes, que tem servido como principal divulgador da obra evaldiana e que já inclui em suas vitórias o livro que está organizando em parceria com Marilena Chaui, de ensaios sobre Evaldo. “O trabalho é árduo, cheio de percalços e convites de abandono a ele", confessa Marcos, “mas não vou desistir enquanto não ver os órgãos da imprensa nacional publicarem algo significativo sobre este pensamento pioneiro". E completa: “Tem muito barulho ainda a fazer". O projeto Evaldo 90 Anos tem o patrocínio do Hospital Santa Joana e o apoio da UFPE.

Programação do Ano Evaldo Coutinho Março – Lançamento do site www.acomposicaodovazio.com.br 26 de março – Estréia nacional do filme A Composição do Vazio, no Cineteatro do Apolo, com entrada franca, às 19h 29 de março a 8 de abril – A Composição do Vazio participa da mostra competitiva do festival É Tudo Verdade, com duas exibições em São Paulo (Museu da Imagem e Som) e duas no Rio de Janeiro (Centro Cultural Banco do Brasil). Em abril também é lançado o site www.evaldocoutinho.com.br 24 a 30 de abril – A Composição do Vazio participa do Festival de Cinema do Recife Maio – Primeiro fórum de debates sobre a obra evaldiana, na UFPE. O projeto Evaldo 90 Anos planeja realizar um fórum de debates em cada cidade em que o filme for exibido. Julho – Lançamento do livro de ensaios sobre o pensamento de Evaldo Coutinho, na semana do aniversário do filósofo (23 de julho)

A obra filosófica de Evaldo Coutinho Coletânea de textos – Discursos, Imprensa Universitária, 1963 Arquitetura – O Espaço da Arquitetura, Editora Universitária, 1970; Editora Perspectiva, 1977, 1999 Cinema – A Imagem Autônoma, Editora Universitária, 1972; Perspectiva, 1997 Interpretação à Ordem Fisionômica – O Lugar de Todos os Lugares, Perspectiva, 1976 A Ordem Fisionômica – A Visão Existenciadora, Perspectiva, 1978 O Convívio Alegórico, Perspectiva, 1979 – Ser e Estar em Nós, Perspectiva, 1980 – A Subordinação ao Nosso Existir, Perspectiva, 1981 – A Testemunha Participante, Perspectiva, 1983 Estética da Arte – A Artisticidade do Ser, Perspectiva, 1985

Paulo Cunha é professor de Comunicação Social da UFPE

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POLÍTICA

Eduardo O cavaleiro Galeano andante contra os moinhos da globalização

Trinta anos depois do lançamento de As Veias Abertas da América Latina, o escritor uruguaio permanece na mesma trincheira, combatendo o que batizou de “governo invisível mundial”

A

história é um profeta com olhar voltado para trás: pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será. Essa frase é do escritor uruguaio Eduardo Galeano e foi publicada na contracapa do livro Veias Abertas da América Latina, obra que está completando 30 anos. À época – 1971 – a maioria dos países latinoamericanos convivia com as mordaças das ditaduras militares. Galeano rompeu o silêncio e expôs suas denúncias contra os instrumentos de espoliação, as injustiças à som-

Alexandre Costa 48 Continente Multicultural


bra do poder e o saque ao continente. Fatos, como ele mesmo diz, que ainda hoje insistem em se apresentar como obra do destino e do acaso. O autor de Veias Abertas da América Latina disse certa vez que escrever um livro é como colocar uma mensagem dentro de uma garrafa e atirála ao mar. “A possibilidade de que alguém a recolha e leia é sempre remota.” A obra que retirou Galeano do anonimato e abalou o continente latinoamericano foi lançada em Montevidéu e logo aportou na Argentina. De lá, espalhou-se para a maioria dos países de fala espanhola e, em pouco tempo, atravessou o oceano e foi traduzida para mais de 20 línguas. Galeano assumia a condição de porta-voz dos excluídos e nela permanece, remando contra a maré da globalização, abertura econômica e uniformidade cultural. Aos 60 anos, tornado ícone da esquerda latino-americana, Galeano brilhou no Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, em fins de janeiro. Na abertura do evento, a atriz gaúcha Celina Alcântara subiu ao palco, de seios à mostra e, cercada por desempregados e sem-terras, recitou uma crônica escrita por Galeano em 1998. A interpretação do texto O Direito ao Delírio, que fala de um século 21 sem pobres, guerras e meninos de rua, emocionou profundamente a platéia engajada. A capacidade que Galeano tem de transmitir seus sonhos e a teimosia em querer transformar o mundo levaram mais de 700 pessoas a disputar um lugar no Teatro da PUC, durante a sua palestra no Fórum Social Mundial. Os militantes antiDavos aplaudiram entusiasticamente sua exortação à luta contra “o medo global”.

Mata-se muito à bala, vende-se cada vez mais armas. Mata-se também de fome e de doenças curáveis. E matam o ar, a água e a terra. E o mundo

Palavras Candentes Na edição nº 0 de Continente Multicultural, um ensaio do pesquisador Lawrence Harrison, da Universidade de Havard, defendeu a tese de que os problemas da América Latina são eminentemente culturais. E criticou a posição de escritores e pensadores latino-americanos de esquerda, especialmente os vinculados à chamada Teoria da Dependência. Entre esses, cita destacadamente Eduardo Galeano e o livro Veias Abertas da América Latina como representantes de uma corrente de pensamento ultrapassada pelas novas realidades políticas mundiais. Aproveitando a presença do escritor uruguaio no fórum de Porto Alegre, a revista recolheu opiniões de Galeano sobre temas atuais, nas quais ele reafirma enfaticamente sua visão de mundo.

Veias ainda mais abertas “A América Latina foi empobrecendo, perdendo sua soberania e diminuindo a sua autonomia ao mesmo tempo em que este sistema global ia se articulando e tornando-se unânime, alimentando-se das desigualdades que são cada vez maiores. Por isso, a América Latina tem um imenso desafio e vamos ver como reage frente a ele. Poderá ser uma cópia do mundo desenvolvido e dos países que nos governam ou poderá seContinente Multicultural 49


RENÉ CABRALES / ECRAN PHOTO STUDIO

guir o seu próprio caminho, o caminho das suas próprias esperanças. Esse é o desafio que está diante de nós. E eu acredito que o melhor que temos no mundo é a quantidade de mundos existentes, as diferentes culturas e as mais variadas formas destas coletividades se expressarem. Ou nos afirmamos com nossos próprios ideais ou vamos nos converter em uma sociedade que aceita a história oficial ao invés de transformá-la. Uma caricatura dos países ricos, que roubam nossa memória e as nossas riquezas. Posso dizer que a situação da América Latina hoje piorou em relação aos 30 anos que se passaram, desde a publicação de Veias Abertas da América Latina.”

O mundo mcdonaldizado pela globalização

O escritor uruguaio Eduardo Galeano vê nuvens negras no horizonte, prenunciando carnicerias ao sul do mundo

“O sistema de poder vende a si mesmo como eterno, o amanhã é outro nome de hoje, e nos convida à aceitação como modo de vida. Estamos paralisados por este sistema de poder. É assim porque assim será e nós estamos nos acostumando a esta eternidade e aceitamos tudo como se fosse inevitável. Estamos cada vez mais prisioneiros do dinheiro. A globalização, para além do comércio internacional, nos impõe uma cultura universal, que se apóia no medo. Este é um mundo paralisado pelo medo que impede de nos mover, até de tomar medidas que eventualmente não sejam aceitas pelo FMI. Nunca o mundo havia sido tão desigual nas oportunidades que oferece e tão igual nos costumes que impõe. E a igualdade se funda no respeito às diferenças. O símbolo perfeito é o McDonald’s, aconteceu a “mcdonaldização” do mundo. De certa forma, os pobres comem melhor que os ricos que aceitam essa comida de plástico.”

motivos para isso é que o movimento faz um enlace entre o passado e o presente. Marcos não é indígena e havia ido a Chiapas para ensinar – uma dessas contradições da esquerda, influenciadas talvez pela idéia da ilustração. Humilde, percebeu que ele é quem tinha muito a aprender com a cultura maia, bastante misteriosa para nós e segundo a qual fomos criados pelo tempo e somos filhos dos dias. E ele foi capaz de projetar a reivindicação de Chiapas numa linguagem clara. Acima de tudo, ele tem senso de amor e de humor, coisa que em geral falta à esquerda.”

Chiapas enlaça passado e presente

Cuba, o mercado e o Estado

“O movimento de Chiapas é muito importante, ele alcançou a justa repercussão internacional. Começou como uma sublevação local de camponeses que se cansaram dos abusos e rapidamente se espalhou pelo país. A história do México está dividida em antes e depois de Chiapas e um dos

“Cuba é um país com o qual eu tenho uma longa relação de amor. Cuba simboliza a dignidade. Mas isso não quer dizer que eu não tenha críticas e divergências ao sistema cubano. A minha relação com Cuba é muito verdadeira. E os amigos de verdade fazem críticas de frente. Eu penso que

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a onipotência do Estado não é a melhor resposta para a onipotência do mercado.”

Mundo criminalmente organizado “Os países que mais armas vendem ao mundo são os mesmos países que têm a seu cargo a paz mundial. Felizmente para eles, a ameaça da paz está se debilitando e se distanciam as nuvens negras e o mercado de guerra se recupera e oferece promissoras perspectivas de rendas e de carnicerias ao sul do mundo. Este é um mundo criminalmente organizado. Mata-se muito à bala, vendem-se cada vez mais armas. De acordo com números de organismos internacionais é possível afirmar que se o mundo dedicasse 12 dias, apenas 12 dias, do dinheiro que gasta em armamentos, para ajudar as crianças pobres do planeta, estas crianças pobres poderiam ter escola, assistência médica e comida. Portanto, não se mata apenas à bala. Mata-se também de fome e de doenças curáveis. E não se matam só os corpos, mas também a alma e há corpos a andar por aí sem vida. E matam o ar, a água e a terra. E matam o mundo.”

Narcotráfico é neoliberal “Na edição da revista Time de outubro de 1998, publicou-se matéria sobre a lavagem de 100 milhões de narcodólares de Raul Salinas, chamado senhor vinte por cento, porque é o que ele leva em cada operação do governo. Um relatório do Senado norte-americano mostrava que a operação havia sido feita pelo City Bank. A pergunta é: por acaso o City Bank foi preso? Quem vai preso são os negros e pobres, porque a luta contra as drogas é a máscara da guerra social. Trata-se de conter qualquer foco de rebelião e o grande exemplo é o Plano Colômbia. Os narcotraficantes são fiéis seguidores do neoliberalismo: onde há demanda, surge a oferta. E os grandes traficantes ou bancos que lavam dinheiro gozam da maior impunidade. Mas quem são os grandes traficantes dos Estados Unidos? Será que eles não existem? Só prendem grandes traficantes na Colômbia, na Bolívia, no México. E nos Estados Unidos, não existem grandes traficantes? Por isso, esta é uma guerra contra os pobres e somente contra os pobres.” Alexandre Costa é jornalista

Eduardo Hugbes Galeano nasceu no inverno de 1940, em Montevidéu, no Uruguai. Aos 14 anos já publicava desenhos que assinava como “Gius”, porque a pronúncia de seu nome em espanhol era difícil. Algum tempo depois começou a escrever artigos. Galeano já fez de tudo: foi mensageiro, desenhista, peão numa fábrica de inseticida, cobrador, taquígrafo, caixa de banco, diagramador, editor e peregrino pelos caminhos da América. Em Montevidéu dirigiu o semanário Marcha e o jornal Época. Preso pelo regime militar uruguaio, ficou exilado desde 1973, na Espanha e na Argentina, onde fundou e dirigiu a revista Crisis com Julio Cortazar. Em 1985, após 12 anos de exílio, Galeano retornou ao Uruguai. Seus livros foram traduzidos em mais de vinte línguas. Recebeu o prêmio Casa das Américas em 1975 e 1978 e o prêmio Aloa dos editores dinamarqueses em 1993. A trilogia Memória do Fogo foi premiada pelo Ministério da Cultura do Uruguai e recebeu o American Book Award (Washington University, USA) em 1989. Em abril de 1999, foi distinguido com o Prêmio à Liberdade da Cultura, outorgado, em sua edição inaugural, pela Fundação Lannan, dos Estados Unidos. Endereço na Internet: www.patriagrande.net/uruguay/eduardo.galeano Bibliografia * Guatemala, país ocupado (1967) * As veias abertas da América Latina (1971) – Editora Paz e Terra * Vagamundo e outros relatos – (contos) * A Canção de nossa gente (1976) – Romance, Editora Paz e Terra. 176 páginas. * Dias e noite de amor e de guerra (1978) – Editora Paz e Terra. 179 páginas. * Memória do fogo (I) – Os nascimentos – Editora L & PM * Memória do fogo (II) – As caras e as máscaras – Editora L & PM * Memória do fogo (III) – O ciclo do vento – Editora L & PM * O livro dos abraços (1989) – Editora L&PM * Nós dizemos não (1989) – Crônicas, Editora Revan * Ser como Eles (1993) – Crônicas, Editora Revan. * Palavras Andantes (1993) – Editora L&PM – Em parceria com o xilogravurista pernambucano J. Borges, de Bezerros. * Futebol ao Sol e à Sombra (1995) – Editora L&PM * Las aventuras de los jóvenes dioses (1998). * De Pernas Pro Ar – A escola do mundo ao avesso (1999) – Editora L&PM


SABORES PERNAMBUCANOS

Doce

mel

O que Zeus, múmias egípcias, D. João III e 60 mil abelhas-operárias têm em comum? Todos são provas da importância do mel na história Por isso mesmo, minha Maria, eu, como a abelha do aripuá para quem doçura é sempre pouca, só quero favo de tua boca...

O

Ascenso Ferreira (Martelo)

s índios brasileiros não conheciam açúcar. O doce, em sua cultura, era o mel de abelha. Usado puro, como gulodice; ou para fazer cauim, primeira bebida fermentada conhecida por estas terras. Os escravos africanos que vieram para Pernambuco, todos da região de Angola, também não; que, na África, só os do Norte já o haviam provado. Fiéis a suas origens continuaram, índios e africanos, durante todo

o início da colonização portuguesa, preferindo melde-pau ao açúcar – que chamavam mel-de-furo, porque escorria das fôrmas. A história do mel vem de longe. As abelhas habitaram a terra muitos séculos antes do homem. Mas a compreensão científica da transformação do néctar em mel só veio em 1922, com estudos que valeram um Nobel de Medicina ao austríaco Karl von Frisch (Vida e Costume das Abelhas). Cada colônia se estrutura a partir de um mesmo e imutável modelo – com 1 rainha e cerca de 2 mil zangões, apenas dedicados à reprodução. A rainha vive até cinco anos e produz, nos meses de postura, em média 20 mil ovos/dia. As operárias são aproximadamente 60 mil, vivendo no máximo 45 dias; a elas são destinadas todas as demais tarefas – transporte do néctar, produção do mel e sua maturação, quando passam até três dias batendo as asas para ventilar a colméia, mantendo-a na temperatura ideal.

Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti 52 Continente Multicultural


O mel sempre esteve ligado à história dos homens. Segundo a mitologia grega, Zeus foi deixado por sua mãe, Rea, na ilha de Creta, e se valeu dele para sobreviver; em agradecimento, concedeu-lhe propriedades especiais. De “abelhas” eram chamadas as sacerdotisas gregas, com seu nome significando “palavra” ou “verdade” – aquelas que, pela palavra, revelam a verdade. No Egito, era usado para embalsamar mortos ilustres. Canaã, a terra prometida, era chamada de “terra onde corre leite e mel”. Durante muito tempo foi também utilizado nos lábios das crianças que acabavam de nascer, para adoçar-lhes a vida que começava. A lua é de mel. Foram os árabes os grandes divulgadores do mel na Europa. Especialmente em Portugal. As colméias eram ali cultivadas perto das casas; havia os “meleiros” – que retiravam o favo das colméias – e os “apicultores” – que viviam de vender o mel. No reinado de D. João III era tão importante que até impostos podiam ser pagos com ele. Os mosteiros se tornaram, por essa época, grandes produtores de mel – usado no preparo de doces e bolos e para fabricação de velas. Havia, neles, fartura e abundância, por conta de heranças deixadas por famílias ricas e por interessados na redenção de seus pecados – conta-se que D. Isabel, filha de D. Pedro II, chegou a pagar a fortuna de 1.200.000 réis por 12 mil missas, a serem celebradas após a sua morte. Por essa opulência, ou pela origem nobre da maioria das freiras, todas educadas no rigor da corte, esses mosteiros se con-

verteram em verdadeiros laboratórios gastronômicos. Com o tempo, quase tudo que era feito com mel passou a ser feito também com açúcar. A Pernambuco chegaram alguns desses bolos e doces que, em Portugal, continuavam sendo feitos com mel. O bolo de mel. O bolo folhado com mel, que adaptamos e passamos a chamar de mil folhas. Além do alfenim, conhecido pelo povo como alfeninho – do árabe “al-fenie”, que significa “cor branca”. Diz-se também, em corruptela, de pessoa delicada e melindrosa. É massa seca e muito alva, feita com mel (ou açúcar), farinha e clara de ovo. Depois que chega no ponto é moldada em diferentes formatos – imitando flores, animais, figuras e santos. Em Portugal era servido em bandejas de prata, a nobres e pessoas importantes. Em Pernambuco, no entanto, sempre foi doce popular. Faltando só falar da alféloa (ou alfelô ou alféolo), do árabe “al-helua”, que chegou a Portugal com a invasão moura no séc. 8. É pasta de mel (ou açúcar) em ponto grosso, esfriada aos poucos, enquanto se puxa com as mãos, até embranquecer. D. Manuel, o Venturoso, por considerá-la privilégio de mulheres e crianças, proibiu que fosse vendida por homens, sob pena de prisão e açoite. Em Pernambuco, é feita com mel de engenho, sendo conhecida como puxa-puxa. Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é professora e-mail: jpaulo@truenet.com.br

BOLO DE MEL “Num tacho ponha água e ferva as cascas de quatro limões. Nessa água deite um quilo de farinha, um pau de canela e 100 gramas de manteiga de vaca. Amasse bem e estenda a massa fina. Corte com a carretilha dando-lhe uns golpes no meio. Frite em azeite bem quente. Leve 125 gramas de açúcar a ponto de pasta e deitelhe o sumo e as cascas de dois limões. Quando atingir o ponto retire do lume e passe os filhoses por esta calda.”

Ingredientes: 2 xícaras de chá de mel de abelha 2 xícaras de chá de azeite 12 gemas 12 claras 500 gr de farinha de trigo 500 gr de açúcar 2 colheres de chá de canela Raspas de um limão

Preparo: Bata, bem batido, o mel de abelha, o açúcar, as gemas e o azeite. Junte as raspas de limão e a canela. Acrescente as claras em neve e a farinha. Coloque em fôrma untada com manteiga e farinha. Leve ao forno até que espete um palito e saia limpo

Obs. Receita originária do Convento de São Bento da Ave Maria do Porto. Na receita original não se usava açúcar. Só mel. Depois foi introduzido o açúcar, deixando o bolo mais leve.

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LIÇÃO DE ARTE Delano à frente de painel sem título – óleo sobre tela, 1976 (2 x 2,80m)

DELA

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FLÁVIO LAMENHA

As cores

da ironia

NO

Ao longo de quatro décadas o pintor, desenhista e gravador Delano construiu uma carreira que o coloca entre os melhores de sua geração. Intuitivo, atento a tudo que acontece na sua província e no mundo, desenvolveu uma obra onde se sobressai o colorista ao lado do criador de uma galeria de tipos quase caricaturais, sua maneira irônica de comentar as máscaras e modos de quem convive em sociedade. Despreocupado com tendências e modismos, para ele moderno era Giotto que, antes de 1500, mudou o conceito de pintura. “Pinto o que vejo ao meu redor. Se morasse numa ilha de pedras, só pintaria pedras. Se vejo cenas de guerra na televisão, pinto isso. A selvageria também tem sua expressividade”, comenta ele, em sua casa, em Olinda, onde também está seu ateliê. Delano começou a desenhar ainda menino. Primeiro com a mão esquerda, depois com a direita. Ia a pé do Prado até o Sítio da Trindade para tomar aulas com Abelardo da Hora. Hoje, preguiçoso e indisciplinado assumido, diz que prefere ficar lendo na rede do que programar uma exposição ou batalhar por uma carreira internacional. “Eu gosto mesmo é de pintar”, resume. Marco Polo Continente Multicultural 55


Q

Você chegou a fazer algum curso? Aos 15 anos, no MCP (Movimento de Cultura Popular), através do meu irmão, que trabalhava com Arraes na prefeitura. Lá eu conheci Abelardo da Hora, Zé Cláudio, Wellington Virgolino e achei ótimo participar daquilo. Dinheiro era uma dificuldade. Então eu ia na livraria, comprava dez folhas de papel ofício, lápis, borracha. Não! Borracha não se usava, porque Abelardo dizia que não se devia usar borracha, consertasse o desenho no próprio traço. Eu saía do Prado, onde morava, até o Sítio da Trindade, onde acontecia o MCP, a pé, com uma pranchetinha emprestada, debaixo do braço. Não tinha dinheiro pra gastar com ônibus. Depois das aulas voltava e passava o resto do tempo desenhando, desenhando, o pessoal me chamando pra jogar pelada, mas eu preferia ficar rabiscando, rabiscando. Levei muito a sério isso.

FLÁVIO LAMENHA

O Autofotógrafo – óleo sobre tela, 1976 (1,60 x 1,10m)

uando foi que você começou a se interessar por arte? Eu tenho impressão de que nasci com isso, embora a frase pareça um chavão. Se você pega num lápis e em vez de garatujar você começa a procurar fazer uma forma, saber onde é que bota um braço numa figurinha, a proporção da cabeça, bem com uns cinco anos de idade eu já estava fazendo isso. Só que eu desenhava com a mão esquerda. Até que um dia, na escola, em Serinhaém, entrou uma professora e disse: “Que é isso menino? Você está com a mão errada! Mude de mão.” Aí eu passei o lápis pra outra mão e continuei a fazer a mesma coisa. Eu gostava muito do número quatro, porque quando eu virava ele de cabeça pra baixo achava parecido com uma cadeira. Eu não queria a forma matemática, buscava a forma plástica. Meus cadernos eram todos rabiscados de desenhos.

Você começou a se profissionalizar usando nanquim? O primeiro material nobre que eu conheci e usei foi o nanquim, ainda no tempo de Abelardo. Era uma peninha com a qual você tinha que ser muito cuidadoso senão ela escarrapachava logo. E comecei a fazer bico de pena. Passei um longo tempo nisso, o que é bom, porque é importante você tomar contato com o traço. Quando você quer logo pintar você se engana muito. Se deixa levar e perde muito o sentido de espaço e da forma, da consistência e peso da imagem. Acho primordial no trabalho do pintor ele tratar com o traço e daí desenvolver a pintura. Se você vai pintar uma nuvem, que numa linguagem mais acadêmica é uma coisa abstrata, se você não tiver o traço não vai pintar uma nuvem, vai fazer uma mancha sem significado nenhum. O desenho é fundamental. No início você desenvolveu uma linha surrealista. Como foi isso? Na juventude é normal a pessoa se envolver muito com tendências e na época o surrealismo era uma. Quando eu descobri Dali, o próprio Goya naquela fase que os falsos intelectuais chamavam frescamente de “Goyas goyescos”... Aliás, era uma coisa daquela época, daquele pessoal que fazia protesto. Eu me lembro de um deles chegando com um disco de Nara Leão, em que ela aparecia na capa, com a mão levantada como num comício, e o


Houve uma época em que você, Maria Carmem e José Cláudio eram conhecidos como desenhistas. De repente, os três pararam de desenhar e começaram a pintar. Por que? Foi por causa do mercado. Ninguém compra desenho! E você tem que viver, não é? Eu me lembro de que uma vez eu peguei todos os meus desenhos, botei debaixo do braço e fui lá em Ra-

dor, no sentido de fazer a arte pela arte. Eu era um “artista” e não um profissional da arte gráfica, como ilustrador, chargista. Achava que o meu desenho era o suficiente. E quebrei a cara. Mas foi bom porque eu comecei a prestar atenção e aprendi. Adquiri disciplina, cuidado no traço, na apresentação do trabalho, um certo requinte. Ali tinha profissionais geniais, principalmente o Rivaldo Amorim que me deu muita dica. Ele me indicou livros, me mostrou o trabalho de Steinberg, que era o gênio do desenho. Comecei a compará-lo com Picasso e não via diferença na questão da qualidade do desenho. Foi FLÁVIO LAMENHA

cara dizendo, todo afetado: “Agora sim, Nara está Nara!” (risos). Então tinha o Goia goiesco. É aquela fase final de Goia, terrível. Aquilo me impressionou muito.

Fim de Mandato – litografia, 1988 (50 x 35cm)

Não vou deixar de estar lendo na minha rede pra pintar por compromisso. Acho a minha falta de ambição e disciplina um defeito, mas não tenho computador nem celular. Não quero!

Em São Paulo você trabalhou como ilustrador no Jornal da Tarde. Como foi essa experiência? Quando eu me lembro do meu começo como ilustrador eu morro de vergonha (risos). Eu pensava que sabia tudo, mas não tinha nenhuma noção do profissionalismo. Era um artista ama-

bom, outra escola. Deixei de fazer apenas artes plásticas, mas também artes gráficas, o que me levou a juntar as duas coisas, ou seja, dar um cuidado gráfico a uma concepção artística. Inclusive me deu uma visão profissional e comercial da coisa. Embora até hoje eu me considere um pintor do tempo das cavernas. Pois embora tenha consciência da questão tenho uma preocupação muito pequena em relação a isso. Me falta ambição política e econômica – aliás sofro muita pressão por isso, por não saber ganhar dinheiro, não saber vender meu trabalho, não buscar nem usar o prestígio para FLÁVIO LAMENHA

nulpho (Carlos Ranulpho, marchand), que tinha galeria de arte E ele disse que não comprava porque desenho não vendia. Fiquei danado, coloquei tudo de novo debaixo do braço e fui-me embora. Em São Paulo cheguei a vender alguns.

Senhor Sentado – nanquim aquarelado sobre papel, sem data (30 x 15cm)

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conseguir uma condição econômica melhor. Mas eu não sei. Eu tenho vergonha de chegar junto às pessoas influentes que conheço e “cavar” bolsas, prêmios, salões... Eu tenho a chave da porta, mas não abro... Talvez seja pura inabilidade, mesmo. Então por que você não contrata alguém para cuidar disso? Já pensei nisso, mas se você entra neste circuito, neste sistema, bom... Eu sou totalmente indisciplinado. Um agente ou marchand vai exigir uma produção. Ele vai dizer: “Olhe, você tem que produzir tantas obras porque para o ano você vai ter uma exposição em Roma, outra em Nova York”. É assim que a coisa funciona. E eu não vou deixar de estar lendo na minha rede pra pintar por compromisso. Acho que essa minha falta de disci-

correr, a tapa, porque o amigo disse que ele estava vendido, só sabia pintar peitos condecorados, personagens de caras vazias, só pra agradar, e ele saiu correndo atrás do camarada. Mas depois ele tomava consciência de que o amigo estava falando a verdade. Tanto é que no fim da vida ele abandonou tudo isso pra fazer aqueles desenhos totalmente loucos. Aí ele já estava totalmente liberto. Outro era Rubens, um verdadeiro chanceler, um político de mão cheia, riquíssimo, conselheiro da corte até em questões de guerra. É como João Câmara, que tem essa habilidade extraordinária com a pintura, tem a capacidade de fazer política e uma competência para fazer negócios impressionante. Ele fez uma exposição em São Paulo que foi matéria de primeira página da Gazeta Mercantil, que não trata de arte, com a manchete: “O pintor que sabe FLÁVIO LAMENHA

Figuras – aquarelas, sem data (30 x 20cm)

plina e ambição é um defeito, não estou dizendo que faço isso por glamour, não. Eu vejo meus amigos com uma facilidade incrível de se enquadrar nisso. Têm computador, página na Internet. Eu não tenho computador nem telefone celular. E não quero! Às vezes João Câmara me chama pra mexer no computador dele e eu digo: “Rapaz, isso me dá um sono danado!” Prefiro ficar na cama lendo como ainda agora. Aliás, eu estava lendo sobre a vida de Goya, que fazia esse tipo de articulação. Era o pintor do rei. Tinha tanto prestígio que era capaz de fazer com que a um político expatriado por fazer oposição ao rei, fosse dado o direito de voltar à Espanha. Tinha adversários na pintura. Falavam mal dele, ele falava mal dos outros. Porque todos disputavam o lugar de pintor do rei, que dava muito dinheiro. Uma vez ele botou um amigo dele pra 58 Continente Multicultural

vender suas obras”. Economia pura, não? (risos) Eu não sei nem o preço dos meus quadros. Deixo tudo com Macira. Sua mulher funciona como sua empresária? É, como minha agente. Mas não exclusiva. Ela não cuida de pautas, contatos, essas coisas. Ela vende os quadros, mas sem a preocupação comercial de fazer para mim uma “carreira”. Até porque o que nós chamamos aqui de marchands ou galeristas são donos de espaços ou paredes onde se penduram quadros, à espera de alguém que as queiram comprar. Se vender, eles tiram a comissão, se não, devolvem a obra ao artista. Não conheço nenhum que contrate uma exposição, que compre os trabalhos e os mantenham em acervo próprio. Me parecem mais corretores de terrenos em beira de praia.


Com a globalização, hoje se faz arte do mesmo jeito em toda parte. A criatividade não é mais aquela coisa dividida. Mas as linguagens devem estar soltas. Uma língua presa não diz nada.

Quer dizer que o seu percurso artístico também não tem planejamento nem teorização intelectual, é todo instintivo. Nunca teve. Nunca fiz um plano com metas. O que se relaciona com o desenho, com a pintura, a arte em geral, eu gosto mas não teorizo. Não gosto de dar opiniões. Hoje você tem uma, amanhã

tem outra, se contradiz. Tem coisas que na juventude eu achava que não prestava e hoje acho fantásticas. Hoje, como o Andy Warhol, eu gosto de tudo. Só não gosto de quem diz que faz arte e não faz. Mas se for arte, pode ser do jeito que for, no estilo que for. Agora, pode ser bom e eu não querer botar na minha parede. É outra coisa. Pelo fato de você ser muito espontâneo e Câmara muito intelectualizado, e serem muito amigos, houve um tempo em que as pessoas do meio comentavam que você estaria tendo uma influência muito forte dele e isso estaria atrapalhando sua pintura. Como você reagiu a isso? É engraçado. Quando estive em São Paulo fiquei diante de um quadro de Braque e outro de Picasso, e não via diferença, mas não vejo ninguém falar nisso. Todo mundo tem influência de todo mundo. Quem não tem influência? Só se for cego. Todo mundo tem influência de Giotto, a partir do momento em que ele estabeleceu a pintura autoral, assinada, deixando de ser um ofício artesanal, passou a ser uma arte. Você vê um Miró e vê um Klee, às vezes se confundem. Você vê um Miró na pintura e Matisse nos recortes ou Calder nos móbiles, vê as formas se confundirem umas com as outras. Se você olhar a pintura dessa nova geração, muitas vezes você tem que olhar a assinatura para saber de quem é o quadro. Essa questão sobre Câmara e eu é resultado do provincianismo. Uma vez cheguei a me contrariar com isso. Pessoas amigas, sinceras comigo, chegavam e diziam: “Você precisa se afastar de Câmara pra FLÁVIO LAMENHA

É por isso que você não faz muitas exposições? Eu tenho horror a exposição. Uma exposição requer tempo, prazo. Se alguém quiser fazer a exposição com o que eu tenho no ateliê, eu faço. Mas, trabalhar pra uma exposição, aí eu não sei quando vai ser esta exposição. E nenhuma galeria nem empresário vai querer isso. “Ah, quando estiver pronto, me avise”. Não. Isso não existe. É uma desvantagem comercial que eu tenho. Eu gosto é de pintar. Sem me preocupar com mais nada. Além do mais, sou muito desorganizado e sem nenhuma disciplina para organogramas de ofício. Se no momento em que estiver pintando procurar uma cor e não encontrá-la uso outra, sem nenhum constrangimento. Meu arquivo é uma mapoteca com duas gavetas emperradas, das cinco abarrotadas de papel, e que às vezes fico anos sem abrir ou consultar. Quando me perguntam porque exponho tão pouco, em tom de brincadeira, mas que pode ser verdade, digo que é porque não gosto de elaborar o indefectível curriculum vitae, coisa chata de ler. Cada ano que passa vou excluindo o que não acho importante. Um dia, de tão resumido, deverá restar apenas meu monograma.

Paisagem – óleo sobre tela, 2000 (1,30 x 1m)

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FLÁVIO LAMENHA

Se você pinta um penico e diz que o que tem dentro são suas idéias ou o retrato do mundo, sairá nas colunas sociais e pronto: temos então mais um famoso artista plástico na praça Isso é coisa de quem não tem o que dizer nem sabe o que está falando. O sujeito chega nos vernissages, com um copo de bebida na mão, querendo cagar regra, mostrar conhecimento, dizer que sabe, e fica dizendo besteira. Mas isso não importa, não interfere em nada. Hoje sua obra é totalmente diferenciada da de João Câmara, tanto quanto a de Gil em relação a José Cláudio. Exatamente. Mas ainda tem gente que chega aqui, olha um quadro meu e pergunta: “É de João Câmara?” Não tem nada a ver. Não é possível que a pessoa seja tão burra e cega. Eu digo: “Ah, é sim” (risos). Não tenho mais idade para estar me preocupando com isso.

O Poeta – óleo e tinta acrílica sobre tela, 1999 (1,30 x 0,96m)

poder se libertar”. Eu me libertar do quê? Eu nunca fui preso a nada! Há alguns trabalhos feitos em parceria, não é? Teve uma época em que a gente chegou a desenhar muito juntos, fazendo desafios, como os violeiros. Quer dizer, há uma confiança no trabalho um do outro. O grande painel sobre a Inconfidência, que João fez em Brasília, eu e Zé Carlos Viana colaboramos. Pegar num pincel e dividir um quadro com João Câmara não é pouca coisa. Outro painel, a óleo, dificílimo, que tinha prazo para entregar porque era para o aniversário de Roberto Marinho, eu estava lá, ajudando. É porque há confiança e convívio, que faz com que um entenda o outro. Teve uma época em que se falou a mesma coisa em relação a Gil Vicente, que estaria sendo muito influenciado por José Cláudio...

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Você não tem nenhuma preocupação com a glória, não é? A melhor alegoria para imaginar a glória e a fama é uma escada em projeção infinita. Nela não cabem todos e todos querem alcançar o último degrau. Mas, em perspectiva, os degraus ficam cada vez menores, cabendo poucos, pois se assim não fosse a escada quebraria. Então, resta só a ilusão dos bobos que, colocados de cabeça para baixo, pensam ter alcançado o píncaro. É a mesma coisa da parábola do rei que está nu. Se você pinta um penico e diz que o que tem dentro são suas idéias, ou o retrato do mundo, sairá nas colunas sociais e pronto. Você será convidado para eventos e jantares, o colunista cantará loas de como é ser descobridor de talentos. Temos então mais um famoso artista plástico na praça. Entre outros aspectos, há na sua pintura uma forte crítica social. Por que? Eu pinto o que estou vendo na minha frente. Se eu morasse num lugar que só tivesse pedra, eu ia pintar pedra. Mas eu convivo com pessoas,


FLÁVIO LAMENHA

Colocar um monte de areia no chão, colocar caquinhos, é uma linguagem, está expressando alguma coisa. Eu só não sei como fazem os colecionadores para guardar esse negócio vejo as maquiagens, as expressões padronizadas, o ar blasé ante um momento cultural. Por outro lado, se eu assisto na televisão uma cena de guerra, eu pinto aquilo. A selvageria também tem sua expressividade. Como você vê a arte contemporânea em que importa mais o conceito do que a obra. Acho bom. Tudo que é expressão artística é bom. É uma arte efêmera, não é? Colocar um monte de areia no chão, colocar caquinhos, é uma linguagem, está expressando alguma coisa. Eu só não sei como fazem os colecionadores pra guardar esse negócio. Creio que é mais a coisa documental, em fotos, vídeos. Você vê a arte do Christo, que embrulha uma montanha. Ele não vai deixar a montanha embrulhada eternamente, não é? Divide um país de uma ponta a outra com uma cortina. Ele queria embrulhar o Pão de Açúcar com papel de presente. É um conceito. E deve ficar bonito. Além do mais ele vive disso. São produções caríssimas. Eu não tenho fôlego para fazer um negócio desses. A rapaziada aí faz isso e muito bem. Pela televisão paga você percebe melhor isso de globalização e vê que na Índia, no Japão, na França, nos Estados Unidos, faz-se esse tipo de arte do mesmo jeito. Não tem diferença. Eles são bem informados. Com a Internet então já é quase um convênio. A criatividade hoje não é mais aquela coisa dividida: arte regional. O que também é outra linguagem e as linguagens devem estar soltas. Uma língua presa não diz nada. Ninguém entende. Por outro lado tem muita gente preocupada em ser moderna. Moderno pra mim, que fez a arte partir para outro sentido é o Giotto, quando ele saiu de dentro da casa, abriu a janela para colocar um plano de paisagem. Então Giotto é um descobridor, um revolucionário. Isso, antes de 1500. Goia era um pintor que vivia dramaticamente sofrendo por causa da técnica. Era muito

embasado em Velasquez e quando começou a se desligar da linha, esfumando mais a forma, sentiu que estava descobrindo alguma coisa. É por aí. Hoje cada um diz que é moderno. Mas está inventando alguma coisa? Não está inventando nada. Um dia desses vi um filme sobre a vida de Andy Warhol e numa cena ele vai dar uma entrevista na televisão. Quando ele entra, com aquela comitiva com a qual ele sempre andava, estava lá toda aquela parafernália de técnicos, luzes, a repórter nervosa porque ia entrevistar o grande Warhol. Começa a entrevista e ela faz uma pergunta esperando uma resposta estrambótica: “Que tipo de pintura você gosta?” E ele: “Todas”. E ela fica esperando e ele silencioso. Aí ela pergunta: “Qual o pintor de que você mais gosta?” “Todos”. E foi assim até o fim. Ele só no monossílabo. No final a repórter disse toda deslumbrada: “Muito obrigada, foi uma beleza!” Ele levantou-se e foi embora (risos). É essa a tendência de um tipo de artista, buscar nos artifícios uma maneira de ser diferente. Mas o que é importante é que em arte não existe moderno ou antigo. Ou existe arte ou não.

Soldado na Guerra – óleo sobre tela, 1991 (1,20 x 1m)

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Retrato de Delano, por João Câmara – grafite e aguada em nanquim sobre papel, sem data (29 x 22cm)

FLÁVIO LAMENHA

Delano fez uns desenhos de timbre surrealista, num ou noutro inscrevendo temas da literatura de cordel, alterando a ingenuidade dos monstros pelas referências românticas

Paisagens e figuras

S

eu Delano começou com este ne- traços gerais da figura. Coisa diferente de copiar gócio de fazer arte ainda menino, gessos em claro-escuro. Foi bom. Aprendeu a pincopiando gibis e inventando ou- tar com têmpera de ovo, a esticar telas, a fazer bases tros. Há meninos que têm essa com cola de carpinteiro e alvaiade. Conviveu com bossa para desenho e, hoje, eles outros artistas, coisa mais difícil de apreender. podem ser bem observados pelas Foi assim. Depois, começou a fazer uns defamílias, que, se têm uma grana, senhos hachurados, a nanquim. Quem começou mandam o fedelho para uma escolinha, onde exer- com isto, aqui, foi José Cláudio que seguiu o traço cerão notável criatividade e livrarão os pais, por al- de Pedroso d’Horta. Ou, então, nada disso, Aldegum tempo, da histeria e de pentelhices causadas mir Martins andava fazendo uns tracejados tampelo excesso de sensibilidade. bém, só que os de Zé Cláudio eram abstratos e, deA família de Seu Delano não ligava muito pois Maria Carmen fez inúmeros desenhos assim, para isto, mas, também, não se importava. Botou- com figuras, abstrações, textos manuscritos. o para fazer letras e contas, o ginásio, essas coisas. Seu Delano adotou esta técnica para fazer Deixou-o rabiscar por conta própria. Tinha um ir- uns desenhos grandes de timbre surrealista, num mão com gosto para poesia. É poeta, jornalista. ou noutro inscrevendo temas da literatura chamaOutros que fizeram Direito. São juízes, desembar- da de cordel, alterando (ou trocando) a ingenuidagadores. Deu para ler, porque naquele tempo havia de dos monstros e bestiários pelas referências rolivros nas casas e os adolescentes os liam quando mânticas às gravuras de ilustração de Gustave Doficava escuro no terreno baldio das peladas e eles se ré, aquelas tapeçarias bem feitas, o artesanato mirarefugiavam no alpendre, sob as muriçocas e uma culoso, a fantasia épica e clássica e tonitruante, a lâmpada nua. O Quixote, Machado, Eça. Raros atmosfera fuliginosa dos dramas e dos desastres. álbuns de pintura. Gauguin, Van Gogh... Na juventude estas coisas são grandes e dignas e Deste jeito, um dia, foi parar no curso de de- revoltosas e novas. Passou um tempo fazendo estes senho que Abelardo da Hora dava no Movimento desenhos e foi depois viajando para dentro da conde Cultura Popular. Poses rápidas com tracultura emergente, recomeçou a modelo. Anotar a lápis a postura, os João Câmara pintar umas fantasias com cores áci62 Continente Multicultural


das, a desenhar também, dei- Uma cara mescla-se para o pintor, é uma penitência cobrada contra o anedótico: xando, então, a trama mais esà paisagem em “Faça-me uma figura, mas lemgarçada, o cozido do traço mais largo. Chegaram umas figuras benefício da figura, bre-se de que ela será uma pincaricatas, umas tipologias des- que rejunta assim as tura”. É esta restrição antideeste dissolvente do critivas que lembrariam o vitríoqualidades de seu miúrgica, ego que trata os personagens lo de Crumb, fossem mais beatambiente pintados como elementos de nicks e menos universais. aparição e não de imposição. Aí, Seu Delano foi para Talvez a presença da paisagem, a insistência São Paulo tentar a vida pintando, desenhando, fazendo caricaturas, charges para jornal, tirinhas, sto- visual da paisagem como estrutura gráfica, digo a ryboards e também os instantâneos desenhados dos linha do horizonte, o prumo da gravidade, os artegols da rodada, aqueles esquemas vivos que, desde fatos e a rubrica natural de contrastes de luz, a o advento do videotape, do replay e dos tira-teimas perspectiva do próximo e os campos infinitos, tudo eletrônicos e digitais, sumiram das folhas de espor- isto que cativa Seu Delano para pintar umas nestes. Pena. Em todo caso, serviu-se Seu Delano das gas de natureza, cobra necessidade de impregnaraulas de pose rápida de Mestre Abelardo para po- se às figuras humanas. Daí que uma acaba e a der flagrar a labonotação (a coreografia em esque- outra recomeça. É claro que este exercício não é um jogo de ma) de clássicos e peladas. Tenho tido vontade de tomar a liberdade de sugerir a Seu Delano a reto- empurra-empurra entre figura e fundo. A escolha mada destes desenhos, embora, ou talvez porque, o figurativa, seu sistema, é clara para Seu Delano. saiba adicto – até compulsivo – dos jogos via TV Há a inelutável presença do humano – e do desude campeonatos de todas as Ligas: italiana, espa- mano, em contratipo –, a ironia, a crítica ou, até mesmo, acreditem, uma simpatia jovial para com a nhola, até mesmo da javanesa. Depois da faminta e glamurosa vida de free- coisa retratada. Há a nudez... E, ainda mais, há figuras revestidas, isto é, lancer, na Poluicéia Dos Avariados Seu Delano retornou a estes pagos mais ou menos felizes, onde pintadas em indumentárias com vida própria. Do começou a praticar litografia, a retomar a pintura mesmo modo que as esculturas de Seu Miguelane a jogar futebol de botões (jogo que muito se asse- gelo não ficariam de pé – humanas e de carne e osmelha aos croquis dos gols que retratava, insisto so fossem –, as roupas que Seu Delano mete nas figuras só podem ser costuradas no corpo da pinem lembrar). Tanto nas gravuras que produziu, quanto tura. Elas impõem a geometria de um corte e cosnas pinturas que vem produzindo desde então, Seu tura – e de adereços – à qual as figuras reagem ora Delano incorporou um convívio entre o gráfico, isto com total desconforto, ora como se se conformasé, o desenhado, anotado, sugerido em esboço, e o sem ao estado e ao estatuto. Conformação. Está aí um palavrão – palacenário, a caixa paisagística ou interior que serve de fundo ou de substância para as figuras. Explico- vrinha que todo artista enfrenta em duplicidade de me: Seu Delano desenha uma figura que tende a se significativos. Pois, se seu trabalho é exatamente diluir, quando pintada, na própria substância de seu conformar e as exigências à sua alma são de não desenho. Expliquei-me pouco ou mal. Há uma re- conformação, como escapar da cilada? Talvez Seu Delano nos dê a resposta pessoal lação ambígua entre o ícone principal, a figura temática e o fundo sobre o qual ela estaria teorica- ao pintar e desenhar dentro de um mesmo quadro, mente assentada. De fato, em suas pinturas, uma ao fazer o usineiro pancreator símile de sua paisacara mescla-se à cor e ao gesto assinalador da paisa- gem-terra, ao temperar o cozinheiro nas cores de gem. Figura e fundo têm a mesma importância no seus próprios cozinhados. Sei, não. Coisa difícil. Melhor jogar botão. quadro, mas esta confusão é em benefício da figura Ou não. De que adiantaria? Um dia isto vira arte que assim, rejunta as qualidades de seu ambiente. É uma peripécia de caráter técnico, mas mesmo... também uma aptidão e um gosto pessoal.De fato, João Câmara é pintor Continente Multicultural 63


Ante o fato

La Maquina de la Vida, por Félix Farfan – técnica mista sobre papel, sem data (80 x 1,20cm)

aótica paisagem. Uma banca de revistas, pato Donald, Patinhas e vampiros em atos sexuais. Facas expostas na calçada, lixos reciclados à venda. Meninas prostitutas com seus corpos manchados pela miséria, homens pequeninos aos gritos, demonstrando brinquedos amarrados em árvores. Policiais bexigosos, crianças bandidas e ébrios, a lama, o lixo, o centro. Parada final: o dinheiro do ladrão separado e o grito da morte preparado. Andar rápido por sobre revistas velhas no chão. A cidade que ando. A cidade que amo. Bate forte o coração. O caldo de cana, o corpo sujo, a dor de barriga, os dentes podres, ausentes, só a indigência presente. Pulo fora da moldura e deito em minha rede para observar, daí, esse quadro de imagens fortes que poderia muito bem ser de Félix Farfan. Hong-Kong, Kiew, Kentucy, Santa Cruz de la Sierra, Recife, São Paulo, seja lá onde for você encontra uma história em suas figuras e tintas. Parece que o que Farfan quer mesmo é acurar a loucura do seu dia-a-dia, fazer de si um retrato falado, ou, melhor, um retrato fiel. Os traços fortes envolvem seus pensamentos para um mundo interior e crítico, evoluindo a confusão para o lado real e irreal do ser. Onde estou? Não interessa. Filosofia aí não vale. O que importa é não ser útil, não ser sutil, não ter educação, buscar a verdade na porrada, arrancada à força. Não se deve olhar seus quadros com gestos finos e melindrosos, dedos levemente postos na boca, expressão inteligente. Parecerá falso. São quadros para serem vistos sentado em tamboretes, queixo apoiado nas mãos e uma expressão facial preocupada mesmo, diria até que com medo. O que Farfan diz não é nenhuma piada. É um canto trágico e doloroso. As cores contundentes, agressivas, não são tiradas de nenhum manual de aquarela, mas do chão, das rochas e montanhas, do lugar onde ele

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PAULO VASCONCELOS JÚNIOR

C

Farfan pisa, mesmo que esse lugar seja um ônibus desconfortável ou uma revista rasgada. Não brinque ante as imagens de sexo dos seus desenhos. A sensualidade neles não é mentira nem verdade, é fato. O que ele sabe é assim e pronto, sem teorias ou mistificações. Quem já engulhou com sua áspera sexualidade foi por prazer, e o terá quantas vezes queira em sua parede. As expressões pavorosas, banhadas em cores firmes, são tiradas do tempo presente, das crianças esculpidas pela fome da Zona da Mata pernambucana ou regiões miseráveis da África. Poderiam ser pintadas com sangue de gente ou animal sobre desenhos a carvão de florestas devastadas. Frases soltas, gritos presos, traços livres, desconexas imagens, coerentes temas. Tudo é harmonia. A confusão absurda da arte de pintar um mundo real, como se em vez do pincel a máquina fotográfica fosse o instrumento de trabalho. O discurso do pintor é sua própria risada. A imagem da existência caída e corrompida. Ao invés da Jerusalém celeste, a Babilônia. a imagem ignota, a alquimia da quadratura do círculo. A vida, a morte, a esculhambação total, tanto faz. Farfan pinta e aparece. Um absurdo absurdo ou então então. Fim. Trecho do texto de Delano Uma História Pitoresca ou um Engulho ante o Fato Farfan, a respeito do pintor Félix Farfan, da nova geração de artistas de Pernambuco.


FLÁVIO LAMENHA

FLÁVIO LAMENHA

Delano diante de seu Autoretrato – óleo sobre tela, 1999 (1,95 x 1,30m)

O Perigo de Sempre – litografia, 1977 (47 x 30cm)

Cronologia 1984 – Integra a Panorama/84 – Arte sobre Papel, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Exposição individual no Mercado da Ribeira, em Olinda. 1986 – Participa do Salão de Arte Global com a mostra 5 Artistas Pernambucanos, no Instituto Brasil-Estados Unidos. Participa do Projeto Três Visões – Fernando de Noronha, da Companhia Editora de Pernambuco.. 1997 – Integra a mostra coletiva de inauguração do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, no Recife. 1999 – Ao lado de Maria Carmem e Ferreira, participa da exposição Ateliê Pernambuco, no MAMAM. FLÁVIO LAMENHA

1945 – Franklin Delano de França e Silva nasce em Buíque, Pernambuco. 1961 – Passa a receber orientação artística de Abelardo da Hora, Wellington Virgolino e José Cláudio. 1965/1966 – Participa da Exposição de Arte Nordestina, em Natal, Rio Grande do Norte. Ganha o segundo e primeiro lugares nos Prêmios de Desenho dos XXIV e XXV SPMEP, respectivamente. Participa da 1a Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia. Participa da mostra coletiva Seis Artistas Nordestinos, no Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Participa de coletivas no Ateliê de Arte Sacra do Recife. 1967 – Integra o ateliê + 10, em Olinda, ao lado de Anchises Azevedo, Montez Magno, Wellington Virgolino, Maria Carmem, Liêdo Maranhão e João Câmara. Com Luciano Pinheiro e João Câmara expõe na Galeria de Arte do Teatro Popular do Nordeste. 1974 – Exposição individual no Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco. Funda, com João Câmara e outros artistas, a Oficina Guaianases de Gravura. 1976 – Participa da mostra Desenho em Pernambuco, na Gatsby Arte. Expõe na Galeria de Arte do Recife.

O Senhor da Guerra (detalhe) – óleo sobre tela, 1991 (1,20 x 1m)

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MARCO ZERO

Poetas

perdidos num mercado deserto

O poeta proletário vive na condição de atormentado pela eterna busca de equilíbrio entre a conquista do “feijão e do sonho”

O

poeta é um ressentido”. Este verso de Drummond tem uma importância para mim que talvez não o tenha para o grande poeta. Eximindo o autor de Rosa do Povo da conotação que agora procuro atribuir ao seu claro e, paradoxalmente, enigmático verso, ouso acreditar que ele diz de modo preciso a condição do poeta neste e noutros tempos nem tão precisos. Conheço um amigo poeta que é capaz de agredir qualquer estranho se este o chamar de poeta. Toda vez que isso acontece, ele procura lembrar a sua bem-sucedida profissão liberal. E, no entanto, é um dos poetas mais creditados e citados pelos grupos intelectuais de sua terra. É preciso lembrar que uma pessoa só é respeitada em sua vocação verdadeira se esta coincidir com alguma profissão realmente respeitável pela ordem de valores vigentes em seu meio. Quem quer ser chamado de poeta entre pessoas que têm do poeta uma imagem falsa e, de certa forma, desabonadora? Quem pode deixar de ser ressentido se está sempre sob a suspeita do “crime” de ser inútil?

Cabral, um poeta que considero o mais coerente artista do país, um dia respondendo a uma entrevista minha, em presença de outros companheiros da Geração 65, revelou o seu interesse de não ser chamado de poeta. Logo ele, que influenciou gerações e é recebido com regozijo e carinho por onde quer que vá. Apresentando uma argumentação puramente técnica, que não me convenceu, disse ele que preferia ser chamado de escritor. Isso talvez eu não tenha colocado na entrevista que fiz para o Diario de Pernambuco, mas foi um fato que não consegui esquecer. Drummond, Cabral, também são ressentidos? Se o forem, o ressentimento não é próprio apenas dos pequenos e desconhecidos. Relendo essas anotações feitas, em 21.03.1978, no meu livro inédito, A noite da longa aprendizagem – notas à margem do trabalho poético, incursionei em uma vicinal desse tema lembrando-me dos escritores de formação proletária – e não temo usar este termo, pois abusus non tollit usum – que se defrontam com uma série de impasses logo que se iniciam na prática literária. O primeiro deles é o de como dividir o pouco tempo diário que lhes sobra entre a preparação intelectual e a produção literária propriamente dita. Quando o

Alberto da Cunha Melo 66 Continente Multicultural


impulso da criação é avassalador, eles geralmente relegam para segundo plano ou para plano nenhum o aprendizado de línguas estrangeiras e o estudo da teoria e da história literárias. De certa forma, creio que foi isso o que ocorreu com a maioria de meus companheiros de geração, a chamada de 65, e nessa maioria eu sou o primeiro a me incluir. Isso, no entanto, como as próprias obras o atestam, não impediu que meus companheiros de geração escrevessem uma poesia de alta qualidade, mas também não os exclui da condição de atormentados pela eterna busca de equilíbrio entre a conquista do “feijão e do sonho” ou pesadelo literário. João Cabral achava que isso era positivo porque dava mais independência à poesia, mas o grande poeta não era propriamente de família proletária e as atividades de diplomata não exigem, ao que eu saiba, pelo menos para os diplomatas de carreira, um horário de oito horas e relógio-de-ponto. Quanto aos escritores de formação proletária, que mal conseguem terminar um curso superior, e se empregam como professores ou jornalistas, ou entram na burocracia do Estado, algum tempo começa a lhes restar para o estudo de uma língua estrangeira ou o estudo teórico. Passada a mocidade e, se sua poesia – limito-me aos poetas – consegue algu-

ma notoriedade local, logo mais apresenta-se um outro impasse ou um outro atentado à nesga de tempo que conquistaram passando por cima de mangues e sertões. São os apelos para que escrevam resenhas, apresentações e prefácios. Se a esses apelos junta-se a necessidade – que é o que mais acontece – de complementar sua renda, passam a escrever artigos de crítica pra tudo quanto é jornal ou revista, além de elaborar longas comunicações para congressos e seminários literários. Agrava-se o antigo impasse entre estudo e criação, com a chegada de um outro, entre a criação e a análise da obra alheia, a crônica ou o artigo para jornal ou revista, ou pior, quando o poeta ingressa para o mundo da propaganda, que vai devorar não só o seu tempo como também sua capacidade criadora. Foi o caso, por exemplo, do poeta Valdemir Veloso que, sempre que me encontrava, revelava sua angústia em face do devastador processo de anulação do seu potencial literário, perdido entre comerciais de toda a parafernália do consumo. Experimentei esse processo durante dois anos em que a antimercadoria que é a poesia permaneceu embotada pela “amarga lição de pressa” do mundo publicitário. Alberto da Cunha Melo é poeta, jornalista e sociólogo

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LITERATURA Retrato de Mário de Andrade, por Cândido Portinari – óleo sobre tela, 1935 (73,5x60cm)

A luta sem trégua de Mário de Andrade para conciliar uma arte experimental e funcionalidade social

Ética da

forma e ética da participação

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REPRODUÇÃO

O

rientado para a atualização estética do Brasil, como bem sintetiza Oswald de Andrade na frase “Acertar o relógio império da literatura brasileira”, o Modernismo inicial se desdobra sob o signo da experimentação. Acertar o relógio significava regular nossa expressão estética em consonância com as vanguardas européias, atualizar nosso código expressivo assimilando-o às trepidações estético-culturais da modernidade. Já aí, no alvorecer modernista regido pela revolução da forma, ou da linguagem artística, Mário de Andrade se distingue como o mais informado participante das hostes modernistas. Essa circunstância, somada a outras de lastro moral necessárias ao exercício da militân-

los Drummond de Andrade, além da colaboração ativa que empresta às páginas do periódico nacionalista Terra Roxa e outras terras. Em suma, a conversão do Modernismo internacionalista em nacionalismo militante vai gradualmente imprimindo nitidez ao relacionamento complexo entre a estética e a ideologia no cerne movente do movimento. Retomando a distinção proposta por Lafetá entre projeto estético e projeto ideológico, pode-se corretamente repetir que o primeiro prevalece no curso dos anos 20, enquanto o segundo rege o processo artístico-cultural do decênio seguinte. O processo é todavia complexo, como já o sugeri antes, pois na prática viva da arte e da cultura ambos se contaminam e interagem. Especificando essa relação – melhor direi, correlação – tensional e ambígua na obra e na militância intelectual de

Mário lutou fora e dentro de si contra os demônios da forma e da participação

Fotografias para carteira de identidade – 1927

cia artística, concorre para logo convertê-lo num Mário de Andrade, intentarei demonstrar como ele luta fora e dentro de si com e contra esses dois dos dois líderes incontestes do movimento. No curso dos anos 20, incorporados à nossa demônios: a ética da forma e a ética da particihistoriografia literária como a fase heróica do Mo- pação. Embora o processo de maturação criadora dernismo, a ética da forma se exprime na obra de concorra para que mais tarde encontre meios de Mário tanto na dimensão teórica, contida na for- imprimir mais nítida formulação a esses termos mulação de uma poética da nova arte, quanto na ora polares, ora paralelos, ora convergentes, mas prática (o poema e a narrativa ficcional materiali- sempre indissociáveis, o fato é que não logrou até zando as proposições teóricas na criação literária o fim da vida repousar numa solução definitiva ou estrita). Se nesse momento de ruptura dos códigos conciliadora. Intentando, já um tanto em lugar impróprio, expressivos o projeto estético se sobrepõe ao ideológico, logo mais ambos se contaminam, sobretudo precisar o título desta comunicação, talvez a alguns a partir do momento em que a dinâmica do pro- cause estranheza a expressão Ética da Forma. Um cesso modernista assimila o nacionalismo e a busca exame apressado do fluxo das vanguardas deste da nossa identidade cultural como dados funda- século poderia induzir à crença de que muitas mentais de particularização. Este ponto de inflexão delas, inspiradas numa militância belicosa e destruestá bem documentado, entre outras múltiplas fon- tiva, cindiram na prática qualquer elo significativo tes, na correspondência que em meados do decênio entre ética e forma. Se é fato que Mário, como os vanguardistas em geral, usou Mário de Andrade mantém com Manuel Bandeira e Car- Fernando da Mota Lima e abusou da arma do choque Continente Multicultural 69


REPRODUÇÃO

Como se evidencia no – épater le bourgeois, como é Crítico do parágrafo precedente, emboevidente num poema como vanguardismo e do ra tenha eu condensado fatos Ode ao Burguês –, da irreveformalismo e argumentos atribuídos a rência, do escândalo, da proMário de Andrade sem me vocação dirigida pelo cálculo inconseqüentes, deter em citações diretas, há pragmático, sua ação de vanreclamou do artista uma ética dirigindo sua ação guardista não deslizou nunca responsabilidade social intelectual em pleno fervor para o cinismo, a negatividade da revolução formal. Ela se absoluta ou o niilismo. A hisperante a obra e o adensa e tensiona a partir do tória, seja a política, seja a culpúblico momento em que ele abraça tural, não se faz, nos momentos de ruptura ou mudança brusca, à margem da o nacionalismo cultural com ênfase militante e até destrutividade e da violência. O Modernismo bra- proselitista. É aí que emerge a questão: como consileiro constitui uma ilustração amena desta verda- ciliar arte experimental e funcionalidade social? de, mas é de qualquer modo um momento de eclo- Pode o artista ser ao mesmo tempo socialmente são destrutiva comandado pelas correntes renova- útil e esteticamente hermético? Mário se propõe doras do nosso processo artístico-cultural. Assim, de modo explícito esta contradição já em 1924, antes mesmo da correnMário de Andrade foi te da vida e da política muitas vezes irreverente, exacerbarem o conflito muitas vezes cabotino, entre a ética da forma e muitas vezes agressivo e a da participação. destrutivo, mas há sem Eis o que diz a dúvida uma intencionarespeito, escrevendo palidade ética dirigindo ra Manuel Bandeira no sua ação substantiva. ano acima indicado: A intencionalida“Toda e qualquer rebusde ética se evidencia, por ca literária que prejudiexemplo, em pleno fercar a clareza da expresvor experimental das são literária relacionada vanguardas, quando exié defeito. Daí o pouco gia do artista o domínio interesse que tenho por artesanal – e mais amMallarmé, Góngora, plamente estético – da Reverdy e porção. O arte que se propunha próprio Rimbaud em transformar. Crítico impenitente do vanguardismo, assim como do for- muitas das suas páginas me desagrada agora. Só foi malismo (entendendo-se aquele e este como incon- supremo no Saison en Enfer. Daí também a minha seqüentes ou gratuitos), reclamou sempre do artis- evolução para uma arte cada vez mais simples e nata um princípio de responsabilidade social e estética tural, arte de conversa que toda a gente entenda”. Mário de Andrade nunca solucionou essa perante a obra, em primeiro lugar, e em seguida perante o público. Assim como dizia não acreditar contradição compreendida entre a forma e a particina obra gratuita, esteticamente desinteressada, pação, entre a liberdade expressiva e a arte dirigida também criticava qualquer tentativa de experimen- para um fim utilitário ou momentâneo. Traduzindo talismo que não se baseasse no conhecimento da- a contradição em outros termos alternativos, a funquilo que se queria transformar, ou “fazer errado”, ção expressiva e a função comunicativa da literatura como dizia, no sentido de transgredir qualquer tipo lutam no cerne da obra de Mário uma luta sem rede norma contra a qual o artista investisse sua ne- pouso, embora antes mesmo de 1930 se tenha emgatividade. Noutras palavras, só se transforma con- penhado em acentuar a segunda em detrimento da primeira. Talvez não exista simplesmente solução seqüentemente aquilo que se conhece.

Retrato de Mário de Andrade, por Anita Malfatti – óleo sobre tela, sem data (51x41cm)

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para o problema, e ao cabo reste ao artista optar seja pela soberania da expressão – como o fizeram James Joyce, os pintores abstratos e a vanguarda musical erudita, para ficar nestes exemplos imediatos –, seja pela arte participativa tantas vezes diluída em banalidade e fôrma sem forma. Mas se com uma mão confere prioridade à função comunicativa, com outra – a que redige Macunaíma, por exemplo – repõe a contradição. Uma mão, observe-se, escreve esta autêntica profissão de fé participante na qual a obra, enquanto

valor especificamente estético, se dissolve em pregação utilitária: “Minha arte, se assim você quiser, tem uma função prática, é originada, inspirada dum interesse vital e pra ele se dirige. (...) Minha arte aparente é antes de mais nada uma pregação. Em seguida é uma demonstração. (...) Minha vida é uma erupção de ardências de amor humano, eu só vivo pensando nas realizações desse amor. É natural pois que os motivos da inspiração nasçam do que toma todo o meu motivo de viver. Daí o lado intelectual, pregação, demonstração da minha pseudo-arte. Arte que se o for tem sempre um interesse prático imediato que nunca abandonou”.

A outra mão, todavia, já o frisei acima, entrega-se com rigor e paixão à longa e maturada forma de Macunaíma. E esta obra, que é em termos de criação ficcional a mais alta expressão do nosso nacionalismo cultural, reitera em Mário a contradição entre expressão e comunicação na medida em que imprime relevo e prevalência ao primeiro termo, daí resultando uma obra inventiva no andamento deliberado e consciente da composição formal, uma obra polissêmica e, como tal, crivada de ambigüidade, ironia e inversão paródica dos códigos convencionais. Esticando ainda um pouco mais a corda das tensões dialéticas no intento de precisar essa contradição vivida por Mário de Andrade, ela não se esgota na formulação polar acima impressa. Mário vai além do questionamento da literatura experimental incorporando à contradição o artista que opta pela obra, ou pela literatura, em lugar da vida generosamente vivida. O exemplo aqui suposto nos remete para o seu ensaio sobre Machado de Assis. Escrevendo sobre o nosso artista supremo durante as celebrações do seu centenário, começa Mário por se propor uma pergunta retórica: amas Machado de Assis? A tentativa de resposta é já a imediata transpiração de uma luta que se estende pelo corpo do ensaio sem que ao cabo se resolva. Mário admira Machado de Assis, curva-se humilde diante da sua supremacia literária, nele identifica o grande vitorioso da forma, o dominador irrecusável de todas as técnicas e meios expressivos, mas lhe recusa amor, mas conclui por admitir a impossibilidade de se entregar amorosamente à obra de Machado de Assis. Em suma, Machado deve ser objeto de admiração e de culto, mas não de amor. Na visão exaltada e missionária de Mário, faltou a Machado o sopro de amor generoso recobrindo a aspereza do gênio. “Machado de Assis não profetizou nada, não combateu nada, não ultrapassou nenhum limite infecundo. Viveu moral e espiritualmente escanchado na burguesice do seu funcionarismo garantido e muito honesto, afastando de si os perigos visíveis. Mas as obras valem mais que os homens. As obras contam muitas vezes mais que os homens. As obras dominam muitas vezes os homens e os vingam deles mesmos. É extraordinária a vida independente das obras-primas que, feitas por estas ou aquelas pequenezas humanas, se tornam

Alto-contraste de foto de Mário de Andrade, 1945

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Para Mário, faltou a Machado o sopro de amor generoso recobrindo a aspereza do gênio

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REPRODUÇÃO

A sombra de Mário de Andrade, na fazenda de Tarsila do Amaral, 1º de janeiro de 1927

grandes, simbólicas, exemplares. E se o Mestre não pode ser um protótipo do homem brasileiro, a obra dele nos dá a confiança do nosso mestiçamento e vaia os absolutistas raciais com o mesmo rijo apito com que Humanitas vaiou o sedentarismo das filosofias de contemplação. E se o humorismo, a ironia, o cepticismo, o sarcasmo do Mestre não o fazem integrado na vida, fecundador de vida, generoso de forças e esperanças futuras, sempre é certo que ele é um dissolvente apontador da vida como está”. Exigente e contraditório, exige Mário antes de tudo de si próprio em si próprio, se contradizendo de forma continuada. Se combate a própria supremacia olímpica de Machado de Assis, como

acabamos de observar, supremacia que supostamente lhe teria fechado as portas de uma expressão artística mais humana e calorosa e mais generosamente repartida com os leitores dele, combate a forma impermeável à participação, assim como combate a participação desarmada do rigor construtivo da forma artística. Por isso, coerentemente, entra em desacordo com o experimentalismo mais radical de Oswald de Andrade nos anos 20, para logo mais tarde, no decênio assinalado pelo predomínio do projeto ideológico, combater tanto a literatura participante de esquerda acomodada no gosto fácil da mimese naturalista quanto o absenteísmo metafísico de Tasso da Silveira, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso e outros escritores de formação católica. Como está visto, eu não resolvo a contradição que pontua este texto. Não a resolvo, antes de tudo, por estar consciente de que o próprio Mário de Andrade não a resolve no conjunto da sua obra, nem tampouco da sua vida, sob muitos aspectos indissociável daquela. Acrescentaria que, até onde alcanço compreender, a contradição não se resolve aqui por ser ela própria insolúvel. Sendo assim, talvez o mérito desta comunicação consista em trazer a público uma questão ideal para o exercício do debate: a questão insolúvel. Não concluiria, entretanto, sem antes procurar sugerir grosseiramente algumas linhas de avanço na reflexão de Mário apertado, e até atormentado, pela tensão irredutível entre a ética da forma e a ética da participação. Em 1938, Mário de Andrade escreve um texto, O Artista e o Artesão, no qual procura refinar conceitos estéticos passíveis de resolver, ou pelo menos conciliar em termos práticos, a contradição que observava existir entre a liberdade expressiva do artista e a função utilitária e comunicativa compreendida na arte que pratica. Operando com os conceitos de artesanato e técnica, principia frisando a necessidade universal do primeiro. Todo artista verdadeiro, enfatiza, tem que por força ser um artesão, isto é, dominar os processos e exigências compreendidos pelo material da sua arte. O artesanato, ou o conjunto dos meios elementares envolvidos na fatura da obra, é uma necessidade e é também a parte verdadeiramente ensinável da técnica. Esta, por sua vez, compreende um outro grau, que Mário designa


como sendo a virtuosidade ou, noutras palavras, a ciência da técnica tradicional. Embora frise que esta parte da técnica é também ensinável, observa não ser ela imprescindível. Aliás, tomá-la por imprescindível seria correr graves riscos. Como ele próprio assinala, a virtuosidade pode representar um grande perigo, “não só porque pode levar o artista a um tradicionalismo técnico, meramente imitativo, em que o tradicionalismo perde suas virtudes sociais para se tornar simplesmente ‘passadismo’ ou, se quiserem, ‘academismo’; como pode tornar o artista uma vítima de suas próprias habilidades, um ‘virtuose’ na pior significação da palavra, isto é, um indivíduo que nem sequer chega ao princípio estético, sempre respeitável, da arte pela arte, mas que se compraz em meros malabarismos de habilidade pessoal, entregue à sensualidade do aplauso ignaro”.

Por fim, a técnica compreenderia um último e mais importante grau, aquele que Mário designa como sendo a técnica pessoal. Se de um lado compreende os dois modos antes referidos, o artesanato e a ténica tradicional, a ambos transcende não só por ser inensinável e imprescindível, mas sobretudo por ser uma expressão do que chamamos de ‘talento’, por encerrar na sua manifestação complexa “a solução pessoal do artista no fazer a obra de arte”. Seria demorado discutir as implicações técnicas e estéticas desses conceitos e distinções propostos por Mário de Andrade. O que me interessa acentuar, tendo em vista a natureza desta comunicação, é a articulação desses conceitos, sobretudo o de técnica pessoal, com o problema que nos ocupa: a contradição entre liberdade expressiva e funcionalidade social na obra de arte moderna. Segundo entendo, o conceito de técnica pessoal proposto por Mário em O Artista e o Artesão, tenderia a retificar a contradição que enquanto tal repousaria mais na formulação conceitual do que na natureza da relação que encerra. Ao propor um conceito de técnica pessoal passível de compreender não só o artesanato e a virtuosidade, mas também “a objetivação, a concretização de uma verdade interior do artista”, Mário tenta, segundo me parece, uma formulação conciliadora dos pólos contraditórios que atravessam muito da sua obra e das suas reflexões e dilaceramentos estético-ideológicos. Se esta interpretação é sustentável, convém todavia lembrar que nela Mário não encontra repouso ou solução pacificadora para a sua obra posterior. Bastaria pensar em textos como A Elegia de Abril, de 1941, e O Movimento Modernista, do ano seguinte, ambos reunidos em Aspectos da Literatura Brasileira, e um conjunto de crônicas musicais inicialmente publicadas na Folha da Manhã, em 1944, nos quais a contradição entre o individualismo expressivo do artista e os imperativos de funcionalidade social da arte se elevam a um nível extraordinário de tensão. No entanto, me pergunto, que artista perderia hoje o sono lutando em si e contra o mundo movido pela ambição de resolver a contradição entre a ética da forma e a ética da participação? Fernando da Mota Lima é professor assistente do departamento de Ciências Sociais da UFPE

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COMUNICAÇÃO

PALAVRA O que hoje tem significado pleno, amplo, amanhã pode ser apenas uma idéia presente no imaginário da linguagem

T

omei a liberdade de nomear esta matéria com uma única palavra. Esta, por si, já tem o seu poder comunicativo. Contém em si mesma a idéia e o significado. Porém, este não é estático, e sim, dinâmico. Está em constante simbiose com a vida, com a sociedade e a realidade. Se hoje tem significado amplo, pleno, amanhã pode ser uma idéia presente apenas no imaginário, como foi para alguns no passado. Assim é a palavra. Assim é o sistema comunicativo composto por ela, a língua. Gustavo 74 Continente Multicultural

Os estudiosos afirmam que língua é um organismo vivo, que se desenvolve e se modifica a cada momento. O cotidiano e a dinâmica da vida jogam com o vocabulário acrescentando e aposentando termos, para depois ressuscitá-los novamente. E diversos são os motivos e formas como novas palavras são incorporadas ao cotidiano, seja por questão moral, política, ética, adaptação às novas tecnologias. Um exemplo de intervenção vocabular no campo da política aconteceu no Brasil dos tempos da ditadura militar. O cientista polítiBorges co Michel Zaidan explica que a lín-


gua tem basicamente duas formas: a comunicativa – a predominar o lado pragmático, a comunicação simples, o coloquial; e a criativa – onde o lado poético, artístico e filosófico constroem o pensamento e desenvolvem idéias. A repressão aconteceu mais significativamente na forma criativa. Artistas e produtores de cultura foram obrigados a desenvolver uma linguagem alegórica para maquiar as idéias em seus trabalhos. Apesar da perseguição, o desafio da estreita liberdade de criação não impediu que artistas como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Giafrancesco Guarnieri e Glauber Rocha produzissem obras de valor artístico e contestatório. Os meios de comunicação e a publicidade se adaptaram rapidamente à patrulha governa-

A forma como a política intervém no vocabulário recebeu célebre crítica do escritor inglês George Orwell. No seu livro 1984, Orwell mostra uma ditadura em um pequeno país da Oceania onde o vocabulário e os dicionários são obrigados a diminuir seu conteúdo, a fim de reduzir a capacidade reflexiva e a percepção da realidade do povo. O vocabulário se tornou interesse humanitário a partir da Declaração Universal dos Direitos Lingüísticos, proclamada em Barcelona, em 1996. A preocupação em evitar o uso de palavras que apresentem qualquer conotação depreciativa aumentou com o crescimento do Movimento em Favor dos Direitos Humanos a partir dos anos 80. Membro engajado, o professor do Departamento

mental. “A Rede Globo floresceu à sombra da ditadura militar” – afirma Zaidan. E nestas agências culturais um novo processo de influência no vocabulário foi iniciado a partir de um ponto de vista cosmopolita e americanizado. O estilo de vida americano penetrou nos lares brasileiros através dos meios de comunicação e da publicidade. “A população passou a copiar modelos disseminados pela indústria cultural e se afastou da política. É o que chamam de geração coca-cola, que não teve contato com a cultura anterior a 64, como o tropicalismo e o cinema novo.” – acrescenta Zaidan.

de Letras da UFPE, Francisco Gomes de Matos, desenvolve trabalhos de pesquisa na área do Direito Lingüístico, concentrando-se no que chama de Pedagogia da Positividade. Esta estuda, analisa e promove a utilização de um vocabulário positivo, humanitário, construtivista. O uso de “positivadores” ou adjetivos que visam à depreciação. Francisco Gomes, que apresentará sua pesquisa no I Congresso Mundial sobre Linguagem e Diplomacia, na Ilha de Malta, neste primeiro semestre de 2001, destaca o poder edificador desta positividade lingüística a partir da sala de aula: “Por ser o aspecto mais variável de uma língua, o vocaContinente Multicultural 75


bulário deveria refletir nossa cosmovisão construtiva, pois estaremos educando as crianças, os jovens, os adultos e idosos no uso consciente de um vocabulário que dignifique a condição humana”. Esta preocupação é fruto da influência direta que o vocabulário cotidiano recebe do preconceito, campo fértil para criação de expressões negativas. Termos são cunhados a transcender seus sentidos primários e ganhar tom pejorativo. Palavras simples são apropriadas por um caráter maldoso e passam a exercer efeitos depreciativos. Nos meios de comunicação em geral, evitase classificar alguém como “negro”, por exemplo, que requer dose extra de cuidados para não parecer preconceituoso, ainda que no fundo o seja. Sai o negro e entra em campo o “afro-brasileiro”. O termo pretende decompor grosseiramente as etnias formadoras do negro brasileiro, garante frieza científica na nomenclatura e afasta qualquer intenção pejorativa mais evidente. Aos interessados no tema da discriminação na comunicação, Francisco indica o livro Preconceito Lingüístico, de Marcos Bagno (Editora Loyola – 1999). Daí surge uma forma criadora de expressões com origem no eufemismo. Um eufemismo inadequado que denota o preconceito mais que o esconde. Está definido o termo politicamente correto, a cercear a linguagem e a imprimir um tipo de censura ideológica que distorce o sentido primário e garante conotações mais amenas, mas que termi-

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A era digital fez surgir novas palavras baseadas no inglês, mas com um bom sotaque nordestino: saite, jó estique, ê meio, uíndois e dá um lôde nam por distanciar a percepção da realidade e, conseqüentemente, corroboram a alienação. Como exemplo, a permuta da expressão “pessoa pobre” por “pessoa humilde”. A expressão toma emprestado o sentido de uma virtude considerada positiva, de uma propriedade sentimental e abstrata que pode estar presente tanto em ricos quanto em pobres, para denominar uma condição unicamente sóciofinanceira. Enfim, uma palavra positiva descrevendo uma condição negativa. Francisco Gomes ressalta que o caráter positivo do vocabulário não deve ser confundido com este eufemismo inadequado, pois não se trata de esconder uma situação, e sim, observá-la de forma humanizadora. Hoje, pouco se ouve de alguns termos do passado político nacional. Empreiteiros, industriais e usineiros, passaram a ser tratados como “empresários”. Antigas classificações ganharam status público negativo na imprensa, e, com o passar dos anos, mudou-se a terminologia. As atividades ainda existem e as pessoas que as exercem são as mesmas. Mudou a forma de descrição e, conseqüentemente, a imagem pública. Palavras como “camponês” e “país subdesenvolvido” foram substituídas por “homem do campo” e “país em desenvolvimento”. Michel Zaidan atribui o fato à nova leitura sociológica pós 1964. A sociologia analisava o Brasil a partir do “nacional desenvolvimentismo” que estudava o campesinato e o latifúndio. A Teoria da Dependência desenvolvida pelo então sociólogo, hoje presidente da República, Fernando Henrique Cardoso passou a analisar a sociedade a partir da relação das elites com as empresas internacionais. Tal teoria deu origem ao “modernismo conservador” na Sociologia, que substituiu o “nacional desenvolvimentismo”, que via o País não mais como uma nação rural e sim, urbana. A globalização da cultura e a evolução dos meios de comunicação permitiram um contato diário e amplo com diferentes culturas e línguas. Os estrangeirismos predominam no comércio, numa


obsessão por palavras em inglês, francês, espanhol, italiano e até japonês e chinês. Os grandes centros de compras são os grandes abrigadores das lojas com nomes estrangeiros, e já em si trazem a nomenclatura em inglês Shopping Center. Fato, aliás, curioso porque em inglês os centros de compras são chamados de malls. Ou seja, shopping center é um termo inventado pelos brasileiros. A grande fonte contemporânea de novos termos está relacionada com a era digital. Surgiu um dialeto: Verbos como deletar – apagar; zipar – compactar; kicar – chutar alguém para fora de uma sala de bate-papo; já têm parte no dia-a-dia. E daí, seguem expressões que se mantém em inglês, mas com bom sotaque nordestino: saite (site); romipeige (homepage); mauze (mouse); draive (drive); jó estique (joystick); ê meio (e-mail); cedê rum (cdrom); uíndois (windows); maquintóchi (Macintosh); onlaine (on line); lapitópi (laptop); zípe draivi (zip drive); môdein (modem); dá um lôde (download); rarde disque (hard disk); e por aí segue.

Mas, o que extrapola os limites dos neologismos são as vitrines de lojas. E não precisam ser exatamente aquelas de nomes estrangeiros. Sustos podem ocorrer ao cidadão que se depara com frases escritas assim: 30% OFF 1+4X s/ juros. Símbolos matemáticos misturados ao inglês e ao português indicam os descontos oferecidos pela loja e as condições de pagamento. Michel Zaidan afirma que “nação é sinônimo de língua, pois ela é a sua identidade cultural” o que explica as manifestações contrárias às invasões estrangeiras e até um projeto de lei tramitando no Congresso Nacional para regulamentar os estrangeirismos. Francisco Gomes complementa: “o vocabulário é o Everest de uma língua, quanto mais se pesquisa mais se descobre novas formas de expressão”. Quem não estiver atento às rápidas mudanças na língua vai ficar à margem do processo comunicativo, e logo, não compreenderá a realidade à sua volta.

A palavra escrita e a história do homem

A

s palavras são a matéria-prima para construção de idéias e para o desenvolvimento da comunicação entre os homens. O ato de dar nomes às coisas permitiu otimizar os diálogos, desenvolver a reflexão e progredir cientificamente. A língua é tão importante no desenvolvimento, que a História da humanidade só começa com a invenção da escrita cuneiforme pelos Sumérios 3000 a.C., e tudo mais antes disso, é pré-história. O homem conhece seu mundo, a realidade que o cerca, o chão em que pisa, as abstrações e os sentimentos que o tomam, através das palavras. Nomes que expressam a idéia e permitem a percepção consciente da existência e da experiência. A classificação e a nomenclatura facilitam na definição de diversos fatos, objetos e fenômenos que rodeiam o homem pensante e se configuram em instrumento de percepção e também análise da realidade. Com isso, a língua detém uma relação direta com esta realidade a ampliar ou mesmo restringir a capacidade cognitiva dos falantes. No início do século 20, o filósofo francês Ferdinand Saussure teorizou que a língua pré-existe ao homem, e que este não é autor de nenhuma idéia que já não estivesse contida na língua. O homem apenas

compõe, a partir dos sentidos singulares das palavras, por regras estruturais da língua e pelos sistemas de significado da cultura, outros sentidos. O estruturalismo lingüístico de Saussure tem importância fundamental no estudo do homem moderno, pois descentraria, junto com as teorias de Marx, Freud, Lacan e Foucault, o antropocêntrico sujeito de Descartes. Código encadeador de significados, a língua é formada por palavras que ampliam ainda mais o campo reflexivo, a nomear tudo o que conhecemos e experimentamos, e a formar nossa concepção de realidade. À medida que detemos um código comum que nos permite compartilhar destas experiências e ampliar nossa visão de mundo, desenvolvemos idéias. O mito da Torre de Babel, onde cada um dos condenados falava uma língua diferente, exemplifica como a inaptidão para se comunicar estabelece uma prisão sem muros, um mundo restrito, uma realidade pífia. Gustavo Borges é jornalista e mestrando em Comunicação pela Universidade de Brasília


CRÔNICA DE UMA CIDADE

No Agreste

e em mim

No mais íntimo de mim, sinto falta do estalido da lenha no fogo, do areado nas panelas, a gente de trouxa na cabeça indo lavar os panos no Rio Ipojuca, o canto do curió, aquela água gelada do pote...


P

assei uma parte da minha vida no interior de Pernambuco e de mim mesmo. Principalmente, vim de lá. Daí, aceito Antonio Tabucchi – ou seria Fernando (António) Pessoa? – quando diz que a saudade não é palavra, é uma categoria de espírito. Sim, eu – também Antonio, de nacionalidade brasileira, província nordestina e crescido à fralda de um monte chamado Bom Jesus, em Caruaru – concordo plenamente. Tanto que dou-me a velhas lembranças do corrimboque agrestino que forjou a minha malbaratada e singularíssima figura. E confesso, hoje e aqui, que pouco, muito pouco, de mim nasceu comigo. De fato, essa mão sem calos que estendo ao cumprimento não é minha. Ela vem de conveniências sociais da Capital, onde ancorei o meu encouraçado destino. Não é meu esse assunto econômico sem sal (e às vezes picareta) que me dá o de-comer. Tampouco me pertencem originariamente esse asfalto escaldante, esses ruídos burros, essas químicas e agonias. Sei que são parafernálias práticas, mas não me dou bem com microondas, freezer, lavadoras de prato e roupa, telefone fixo ou celular, agenda de qualquer espécie (sobretudo, eletrônica). No mais íntimo de mim, sinto falta do estalido da lenha no fogo, do areado nas panelas, a gente de trouxa na cabeça indo la-

var os panos no Rio Ipojuca, o canto do curió, aquela água gelada do pote... O elevador consegue me encher – já quis seqüestrar ascensorista, apontando uma arma: “Vamos a Cuba!” Carro, gravata, cartão de crédito e crédito em geral – até o desta crônica – também. Nenhum papel que não seja literário – mesmo se exigido pela cidadania – me diz respeito. E este computador assexuado então... Careço duma estética mais prazerosa, igual à que tive na infância de bonecos e utensílios do Mestre Vitalino. Preciso de um texto que fale sem pieguice de alvoreceres do pé-de-serra, do aboio sonoro de vaqueiros, dos balidos tristes da ovelha, da dolência dos chocalhos, da volta das ribaçãs e das rolinhas. Ser-me-ia útil não saber de política – teoria e prática que me deram tanta cadeia e nenhum emprego público. Sem alienação, prefiro a estridência e o reluzir dos bacamarteiros e das fogueiras juninas da minha terra, sina e lugar. Esse sabor que me conclui o apetite não é de nascença. Nem do Agreste – meu país de avelós, de barro e de caroá. Poupem-me da cuisine française e do vinho Mouton-Rothschild, não mereço tanto. Tampouco me sirvam pratos litorâneos. O único vínculo que tenho com o mar é ter um parente que morreu engasgado com uma espinha de cioba – afora isso, mais nada. Minha relação aquática, já disse, é com o Ipojuca – e mais dois ou três riachos que lhe são tributários. Sim, aturo a Internet. Contudo, que fique longe do meu ouvido a língua inventada pela Informática, com seus insossos digitalizar, disponibilizar, deletar e idiotices congêneres. Necessito, porém, ser convidado para a festa da linguagem. Que venham me dizer que a vaca está prenha e que o milho pendoou. Que alguém chegue pra me contar, sem saber o aonde, que não sei quem disse que a arrouba do algodão está por não sei quanto. Pode ser surreal, mas eu necessito. À parte tais vicissitudes tão gigantes e características quanto a feira da minha cidade, ser-me-á extremamente doce descobrir que o açude sangrou e que há esperança. Assim, sei que o gado sobrevive, que muitas vidas estorricadas estarão a salvo e que a alma do povo não será esticada no curtume daquela canção do Caetano Veloso. Nada disso em mim deve ser por acaso. (Aliás, não é.) Antônio Falcão é escritor

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MÚSICA

Do mangue ao mito

Chico Science surgiu num momento histórico em que uma juventude social e culturalmente excluída não se via representada no cenário musical do país


GEYSON MAGNO / LUMIAR

D

a lama ao caos, do caos ao mito – uma mistura de talento, tragédia e momento histórico tornaram Chico Science uma espécie de novo mito. O fenômeno, detonado a partir de sua morte, num acidente automobilístico, em 2 de fevereiro de 1997, tornou sua influência onipresente. Fãs o reverenciam com um ardor que beira à idolatria, crianças fazem trabalhos sobre ele nas escolas, jovens da periferia inspiram-se no seu exemplo para tentar ser artistas, autoridades o homenageiam, artistas lhes dedicam suas obras. Uma cena emblemática desse processo: três garotos participavam de um concurso de dublagem num shopping local. Um representava Michael Jackson; o outro, Elvis Presley, e o terceiro, Chico Science. O músico Fred 04, da banda Mundo Livre S/A e um dos pais do chamado Manguebeat, comentou: “Percebi ali que o processo era incontrolável, não era armação da mídia. O mito já havia se alastrado pela periferia". Nos últimos quatro anos ninguém recebeu tantas homenagens em Pernambuco quanto Science. Seu papel no movimento Manguebeat é objeto de estudos em universidades de Pernambuco e dos Estados Unidos e sua carreira, embora curta, já foi tema de livro – Chico Science, A Rapsódia Afrociberdélica (Edições Ilusionistas, 2000), do professor e escritor Moisés Neto. É um trabalho originado da tese de pós-graduação do autor em literatura. Nele Moisés chega a qualificar Science de lenda. O cantor aparece com destaque em outro livro, Do Frevo ao Manguebeat (Editora 34, 2000), do crítico musical José Teles. Camisetas estampando sua imagem tornaram-se tão comuns no eixo Recife-Olinda-Jaboatão quanto as de outro ícone da juventude, Che Guevara. E o seu nome já recebe do poder público uma reverência costumeiramente reservada só a personalidades consagradas – Chico Science é hoje nome de um túnel, no Recife, e de um mangue, em Olinda. Nos últimos quatro anos ele tem sido o homenageado de diversas “feiras de ciências” e outras atividades culturais das escolas secundárias. Virou figura carimbada como assunto de trabalho escolar. Em favelas do Recife, jovens dançam ao som de suas músicas e imitando as “mungangas” que ele fazia nos palcos. Vandeck

Embora não fosse um carnavalesco, Science foi escolhido como o homenageado do Carnaval de Olinda deste ano, por meio de votação do público, via Internet e máquinas eleitorais instaladas em alguns pontos da cidade. Não se tem notícia, nos últimos anos, de um não-carnavalesco recebendo esta homenagem. Ainda que sua música não tenha, a rigor, relação direta com o Carnaval, o que se constata desde a sua morte é que, nesse período, ela é executada em praticamente todos os pólos de folia do Recife e Olinda. Science, que em versos de uma de suas músicas falava em “esculturas feitas de lama", foi homenageado também por uma escultura de verdade, feita de granito e bronze. A obra – intitulada Movimento Mangue Hum – é de autoria do artista pernambucano Augusto Ferrer e representa uma versão futurista de uma pata de caranguejo. Está instalada no Parque das Esculturas, no Shopping Center Recife. É impossível que numa manifestação organizada por ou para jovens pelo menos um deles não esteja vestindo camiseta com a imagem de Science. “É uma forma de a gente garantir a sobrevivência de sua memória e mostrar o quanto gostávamos dele", justifica o estudante Diógenes Barros, de 19 anos, usuário também de camisetas de Che Guevara. “As bandeiras levantadas pelos dois são aquelas com que a gente se identifica. Chico e a juventude foram sintonia desde o início", completa César Marconi, 23 anos, companheiro de fã-clube.

As raízes do mito A força que a influência de Chico Science adquiriu torna-se extraordinária quando se constata que ele e o Manguebeat surgiram à margem da chamada indústria cultural. Sua música não era tocada nas FMs, ele não aparecia nos programas de TV que conseguem fazer celebridades em apenas um domingo e suas composições não traziam aqueles ingredientes do sucesso fácil – ao contrário, até. Além disso, gravou apenas dois CDs – Da Lama ao Caos e Afrociberdelia –, que, juntos, até a sua morte, venderam cerca de 120 mil cópias. Hoje a vendagem de ambos bateu nas 265 mil cópias. Um terceiro CD (na verdade um álbum duplo), CSNZ, foi lançado em sua homenagem, em 98, com músicas cantadas por ele Santiago ao vivo, remixes e quatro inéditas Continente Multicultural 81


EDUARDO QUEIROGA / LUMIAR

Jovens fãs, no Recife: “Foi sintonia desde o início”

de sua banda, a Nação Zumbi. Este vendeu até agora 60 mil cópias. Como explicar, então, o processo de mitificação que o vem cercando desde a sua morte? O que transforma o artista em mito? Fácil responder quando o artista vem carregado nos ombros de uma poderosa indústria cultural – como James Dean, outro ídolo da juventude a morrer jovem (24 anos) e em um acidente automobilístico. Mas e quando não há uma “poderosa indústria cultural por trás"? A característica trágica da morte do cantor pernambucano, e o fato de estar no início da carreira, com um futuro brilhante pela frente, esclarece um pouco a mitificação. Um pouco, só. Para compreendê-la de forma mais aprofundada é necessário bater às portas da universidade. Lá a explicação é que Chico Science surgiu num momento histórico em que uma juventude social e culturalmente excluída não se via representada no cenário musical do País (com uma ou outra exceção) e do Estado (sem exceção). Era um período em que Pernambuco importava ídolos. A música, a postura, as composições dele identificaram-se com o momento. Enquanto bandas de rock e outros artistas do resto do País falavam de temas mais comuns a uma juventude burguesa, ele falava em 82 Continente Multicultural

urubu, molambo, lama, palavreado que nunca esteve em primeiro plano na música pop. Ele abordava originalmente temas do cotidiano de uma juventude que necessitava expressar-se e não tinha os meios para tal. Essa combinação de necessidade e oferta, conjugada com sua morte, teria desembocado na sua mitificação. O economista Paulo Teixeira, que está fazendo uma tese no mestrado em Ciência Política, na UFPE, sobre o Manguebeat, chama a atenção para a “sintonia” entre as letras do cantor e a realidade do momento em que ele vivia. “Ele falava exatamente do mundo dessa geração excluída, e isso facilitou a comunicação com este público", afirma. O pesquisador – que está sendo orientado pelo cientista político Michel Zaidan – vê o movimento e o cantor como articuladores de uma cidadania que metaforicamente nasce da lama. “A temática deles é a questão da exclusão social, da denúncia da violência, da fome", ressalta. “A partir daí é que é possível afirmar, como o faz um amigo meu, que a música desse pessoal, e em especial a de Chico, é a trilha sonora do momento de indefinição, insegurança e violência dos anos 90". O movimento Manguebeat, que teve em Science seu mais retumbante nome, está sendo es-


Quando ele morreu, um crítico do Estado de São Paulo o definiu como “porta-voz de sua geração". O The New York Times noticiou a sua morte, com destaque: “Chico Science, 30, estrela da música pop brasileira", foi o título da matéria. Nela Chico é apontado como o “fundador do movimento de maior impacto da música brasileira, desde a Tropicália” (edição de 5 de fevereiro de 97).

O legado do mangue Muitos artistas e críticos consideram que Science e o mangueBeat alteraram “a ordem das coisas na música brasileira". Teriam influenciado produções de artistas de tendências diversas, como Gilberto Gil, Max Cavalera (ex-Sepultura), Elba Ramalho, Pedro Luís e a Parede ( “É difícil não se deixar influenciar pela música dele"), do Rio, Moraes Moreira (BA), Planet Hemp (RJ), Fernanda Abreu (RJ), O Rappa (RJ), Pavilhão 9 (grupo paulista de rap). Também é ressaltado que ele abriu as portas para vários grupos que, em Pernambuco, batalhavam por uma oportunidade para se mostrar. “Ele foi o bico de foguete de novas mudanças", disse Silvério, ex-Cascabulho e agora em carreira solo. “Um cara que estava na frente. Teríamos ganho muito mais se ele ainda estivesse conosco", completa Cannibal, da banda Devotos, do Alto José do Pinho, zona norte da cidade. “É o nosso Bob Marley", afirmou Lenine, fazendo uma comparação que se tornou freqüente. À margem desse cipoal de elogios encontram-se algumas vozes dissonantes. Soam de dois puristas da brasilidade, avessos a influências estrangeiras: José Ramos Tinhorão, considerado por alguns o mais eminente crítico musical do País, e Elomar, o compositor baiano que foi uma espécie de precursor da expansão da música nordestina no EDUARDO QUEIROGA / LUMIAR

quadrinhado em pelo menos duas outras teses de mestrado em Pernambuco. Uma na área de comunicação, pela jornalista Carolina Leão, e a outra em Antropologia, pela psicóloga Paula Lira de Vasconcelos. Pesquisadores de universidades estrangeiras – Daniel Davison Charder, John Murphi, Kirsten Ernst, Philip Galinski – também estão elaborando teses sobre o tema. Alunos de graduação igualmente se servem do Manguebeat como assunto para o trabalho final de conclusão dos cursos. Foi este, por exemplo, o tema utilizado pelo baterista da banda Querosene Jacaré, Adélson Luna, em sua conclusão do curso de Jornalismo. Atualmente Luna concilia sua atividade musical com a de editor da revista cultural divulgada na Internet, Manguenius (www.manguenius.com.br), criada pelo músico e produtor Zé da Flauta. Um outro aspecto a ser considerado na mitificação de Chico Science é o seu papel – dada a repercussão nacional e mundial que o seu trabalho obteve – no soerguimento da auto-estima dos pernambucanos. A originalidade de sua produção logo chamou a atenção local e dos grandes centros do País. Science colocou Pernambuco no mapa-mundi da música. O seu primeiro CD, Da Lama ao Caos, lançado em 1994, foi escolhido como um dos 10 melhores discos do ano pelo vetusto The New York Times. Um dos críticos mais destacados do jornal, Jon Pareles, um cara pra lá de antenado com a música brasileira, considerou o trabalho de Chico como “o rock brasileiro de alcance mais amplo desde a Tropicália". Science e sua banda, Nação Zumbi, fizeram três turnês pela Europa e Estados Unidos, o que contribuiu para que o trabalho deles obtivesse maior ressonância internacional.

Escultura homenageia o Manguebeat, em shopping center

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Science e Nação Zumbi, na lama: teses analisam o caos

O Movimento Manguebeat e o cantor seriam os articuladores de uma cidadania que metaforicamente nasce da lama. A temática é a questão da exclusão social, da denúncia da violência, da fome. A partir daí é que é possível afirmar que a tal música, e em especial a de Chico, é a trilha sonora do momento de indefinição, insegurança e violência dos anos 90 sudeste do País, nos anos 70. “A nossa diversidade cultural dispensa coisas como o Chico Ciência, que acasalou o rock no baião e desovou o Manguebeat", ressalta Elomar “O Chico Science mergulhou o internacional na lama do Mangue (...). Não é nada. É uma indústria de consumo", sentenciou Tinhorão. Contudo, os partidários do Manguebeat lembram a preocupação de Science e de alguns grupos em buscar inspiração na cultura popular, o que abriu espaço para artistas populares participarem de eventos dos quais, antes, nunca se imaginaria pudessem fazer parte. Mestre Salustiano e D. Selma do Coco, convidados de festivais de

84 Continente Multicultural

rock, são dois exemplos. A projeção obtida em manifestações semelhantes propiciaram que alguns desses artistas gravassem seus próprios CDs. Tudo isso explica a mitificação do cantor. Apesar da força que mostra no momento, porém, há quem a considere um fenômeno passageiro, como o cientista político Michel Zaidan. Outros crêem que o processo tende a consolidar-se nos próximos anos. Independente do que venha a acontecer, uma certeza é evidente: Chico Science, o “caranguejo com cérebro", o artista que dizia ter “Pernambuco embaixo dos pés e a mente na imensidão", fincou raízes no imaginário do povo.


FRED JORDÃO / IMAGO

Os fundamentos

do mito

As raízes de fenômenos como a mitificação de ídolos pops estão no romantismo e os frutos pendem da árvore da globalização

N

o mesmo ano em que morreu num acidente trágico em Olinda, o cantor e compositor Chico Science, uma tese foi defendida na Universidade do País Basco. O prazer do trágico: semiósis do vídeo-rock nos anos 90, de Marta Pérez-Yarza. É provável que a autora jamais tenha ouvido falar no astro pernambucano, mas o seu estudo analisa temas que são absolutamente comuns ao mundo em que ele esteve inserido e podem ocorrer no universo do Recife ou num povoado do Japão. Science é um herói chico da aldeia local (interessante reflexo antropológico tem o fato de muitos grupos de adolescentes de grandes cidades se chamarem tribos) sintonizado com outros da aldeia global. Todos fazem parte da mesma indústria (mais que indústria) cultural. Foi ela que permitiu ao cantor as portas do sucesso com os shows e as citações em reportagens nos jornais de grandes cidades. Todos os dias nascem chicos apaixonados por música nos vários cantos do planeta. Pouquíssimos terão a chance de adotar com êxito um sobrenome da língua do país colonizador e chegar triunfais na sua mais importante cidade. A maioria dos pernambucanos não vai além da condição daquele personagem do poema Tabacaria, de Fernando Pessoa: serão sempre da Mário

FRED JORDÃO / IMAGO

favela, ainda que não morem nela. Outros terão mais sorte se puderem conseguir que reconheçam o seu algum talento e o transformem em mercadoria. Mas seja qual for o destino, serão o resultado da estética e da sociedade de consumo, que exalta uma arte (na verdade, não é mais disso propriamente que se trata) em que quase todos os seus consumidores poderiam rigorosamente não só imitar, mas até superar os seus ídolos. Sublinhe-se a palavra ídolos para lembrar que é apenas um dos diversos elementos que associam o mundo da música e do vídeo ao mito. Já o sabia isso, na década de 60, Gillo Dorfles, e agora Marta Pérez-Yarsa, que informa: o seu interesse em estudar o assunto (vídeo-rock) nasceu da leitura dos textos de LéviStrauss sobre o pensamento mítico. Dentro disso, uma idéia que sobrevive ainda muito forte em todos os níveis, sobretudo entre os jovens: a do “indivíduo genial". Tudo isso tem os seus fundamentos bem remotos na época do romantismo, assim bem explicado por Isaiah Berlin: “Estas são as bases fundamentais do romanticismo: a vontade, o fato de que não há uma estrutura das coisas, de que podemos dar forma às coisas segundo a nossa vontade, quer dizer, que somente começam a existir a partir de nossa atividade criadora e finalmente, a oposição a toda concepção que tente representar a realidade com alguma forma suscetível de ser analisada, registraHélio da, compreendida, comunicada a ouContinente Multicultural 85


O movimento mangue é resultado desse romanticismo, da vocação local para a criatividade e de condições culturais que tornam qualquer som uma obra relevante

tros, e tratada, em algum outro aspecto, cientificamente. O campo em que se manifesta com maior evidência esta atitude, e sobre o que eu não disse até agora nada, é o campo da música. É interessante e até divertido seguir o desenrolar das atitudes que se tomaram frente a música desde princípios do século 18 até meados do século 19. Durante o século 17, e particularmente na França, a música era considerada, praticamente, uma arte menor". Atente-se para o fato de que o autor está a referir-se à música erudita, que também é o campo a que se refere Lévi-Strauss quando estuda as relações entre música e mito. No nosso caso o interesse do mito é muito mais antropológico (o modo como os cantores são mitificados) que estrutural. Isaiah Berlin lembra que os criadores do romantismo na Alemanha foram pessoas da margem social (guardadas as evidentes distinções e proporções, serviriam como paralelo para entender parte das origens do movimento manguebeat no Recife): “Eram pobres, tímidos, pedantes, e basicamente inadaptados à sociedade. Viam-se desprezados com freqüência, pois costumavam servir como preceptores a homens de importância e, constantemente, se sentiam agravados e oprimidos. Está claro que estavam confinados e recolhidos em seu próprio mundo". O movimento mangue é resultado em parte desse romanticismo, da vocação pernambucana para a criatividade e, principalmente, das condições culturais do século 20 que transformaram qualquer tipo de som em obra relevante, e levaram milhões de pessoas a considerar os seus cultores quase deuses, ou pelo menos heróis (no caso de Science, mártir) desse já imenso panteão, com uma diversidade de expressão enorme, como enumera Marta Pérez-Yarsa: “Punk, afterpunk, rock, heavy metal, trash metal, rap, reggae, country, pop, hard86 Continente Multicultural

core, noise, hip hop, house, techno, trance, jungle, ambient, ciberdelia... o panorama atual da música jovem é um leque de diferentes manifestações em mudança constante. Diante do distanciamento e atitude crítica quanto ao texto cultural próprio da cultura burguesa, o que caracteriza os fãs da música pop é seu entusiasmo e compromisso total". São esses “entusiasmo e compromisso total” que se vêem em diversos setores da sociedade pernambucana (como se conclui da reportagem de Vandeck Santiago). São os fãs e os contrafãs que regem a atitude dos pernambucanos diante das suas coisas, como se não fosse possível uma atitude crítica ou de aprovação desprovida de algum pathos. No entanto, ver o acontecimento mangue fora de uma análise global do que ocorre nas diversas sociedades hoje dominadas pelo capitalismo é incorrer no mesmo equívoco de encontrar Pernambuco demasiado solto por sua originalidade e força ou excessivamente sintonizado com o mundo pela mesma razão. As relações entre cultura e poder (e no caso especial do Recife, onde marginal e oficial necessariamente não são antagônicos) são complexas demais para sequer serem esboçadas neste artigo, mas convém não examiná-las com a ingenuidade que se costuma ter nesses assuntos, e atentar, por exemplo, para o que diz Antonio Méndez Rubio, no artigo “Estado de sítio: cultura, música popular e crítica social": “Como a autenticidade na world music gera uma tensão não resolvida entre o componente local e sua fetichização, no rock produziria uma convivência conflitiva entre aspectos populares (como a comunidade, a corporalidade dialógica ou a rebeldia) e seu fetiche em forma de autenticidade (e suas variantes como a genialidade, a originalidade, a propriedade. (....) Assim como o rock abriria espaços de conflitos entre cultura popular e cultura de massa mediados


por valores modernos da alta cultura, também o rock parece um território útil de cara a avançar nos atuais debates sobre globalização e cultura. Com efeito, a difusão transnacional da música rock e os traços culturais associados a ela na segunda metade do século 20 faziam possível um novo mapa de contatos interculturais. Neste mapa, uma nova cultura juvenil mundializada passava ao primeiro plano do ócio e do consumo ao tempo que ajudava a esboçar novas zonas de visibilidade para subculturas e contraculturas de muito diversa índole. Este âmbito móvel e instável se converteu em algo crucial na hora de explicar o que aconteceu com a música popular nas últimas décadas". Desse modo, a primeira coisa a tentar compreender antes de converter Chico Science no herói pernambucano por excelência é como se dá a relação da cultura com o poder e as massas, e desse modo se compreenderá como ele pode ser incensado ao mesmo tempo pela periferia e pelos governantes. Não há nada de sobrenatural nisso. Há uma perfeita lógica nessas coisas da sociedade pernambucana, que, se psicanalisada no conjunto, se revelaria um perfeito exemplo de um daqueles tantos seres míticos que tanto alimentam quanto matam os seus filhos. Foi um poeta morto jovem também em acidente de tráfego quem escreveu: “Recife, cruel cidade, águia sangrenta, leão, amiga dos que a maltratam, inimiga dos que não". Os versos estão lá no seu Guia prático da cidade do Recife, mas ao citar o poema, as autoridades passam por cima disso e se referem somente àquele verso que já se tornou chavão: “pois é do sonho dos homens que uma cidade se inventa". Num texto de outro poeta, Manuel Bandeira, fala-se da vida inteira que podia ter sido e não foi. Pernambuco assumiu na prática o seu verso como epígrafe. A história do Estado é uma mescla de idealismo, violência e frustração. Quando entroniza um mártir como Science reflete um pouco de tudo isso. Quase ninguém sabe hoje em dia, mas Pernambuco já tentou ser um país através de revolução. Não conseguiu até agora ser mais do que o país basco falhado de si mesmo. A aparição de fenômenos como o manguebeat no circuito da música internacional não é nenhuma vitória épica, como gostariam os mais ufanistas, e sim o simples fruto (entre muitos) da estranha árvore sem raízes que é a tão mal falada globalização.

CRONOLOGIA 1966 – 13 de março, nasce em Olinda Francisco França, o Chico Science 1984 – Chico integra a Legião Hip-Hop, um grupo de dança de rua 1988 – Criação da Banda Loustal 1990 – Fundação de Chico Science & Nação Zumbi 1991 – Em 1º de junho, o primeiro show, no Espaço Oásis, Olinda 1992 – Divulgação do Caranguejos com Cérebro, texto que ficou conhecido como o Manifesto do Movimento Mangue, escrito por Fred 04 1994 – Lançamento do primeiro CD - Da Lama ao Caos - e primeira excursão internacional pela Europa (cinco países) e Nova York 1996 – Gravação do segundo CD - Afrociberdelia (África + cibernética + psicodelia) 1997 – 2 de fevereiro. O fim da jornada DISCOGRAFIA Além dos dois CDs (Da Lama ao Caos e Afrociberdelia) e de um gravado após sua morte pela CSNZ, com gravações ao vivo, Science teve participáções em coletâneas e discos de outros músicos: – Festival Les Encontres Transmusicales – Rennes, França – Heimatklange Festival - Alemanha – Revista Showbizz – Revista Jam – Hollywood Rock 96 – Video Music Brasil 96 (MTV) – Red Hot + Rio – Coletânea Rei - homenagem a Roberto Carlos – Alface - Paraná – O Silêncio - Arnaldo Antunes – Trilha sonora do filme O Baile Perfumado – Fernanda Abreu – Coletânea Abril pro Rock – Coletânea do Greenpeace – Revista Trip Fonte: Meteoro Chico - José Teles - Editora Bagaço, 1998, e Jornal do Commercio


MIL PALAVRAS

S

egundo o professor Paulo Cunha, há coisas que desconhecemos porque estão perto demais. Quando chegamos pela primeira vez a uma bela cidade, nos deslumbramos com detalhes da paisagem muitas vezes desconhecidos – ou despercebidos – pelas pessoas que moram ali. Porque vemos cotidianamente uma cidade, pensamos que a conhecemos e a vemos de fato, quando, na verdade, justamente por isso, deixamos de prestar atenção em muita coisa. Com isso, perdemos a chance de nos deleitar com o que as cidades têm, às vezes, de mais secreto e misterioso.

Recife – que é uma cidade bela – está repleta de figuras, umas lindas, outras estranhas, algumas monstruosas mesmo, nas quais, comumente absorvidos em nós mesmos, não prestamos a devida atenção. São estranhas entidades, nos espreitando com expressões enigmáticas. São também tranqüilos espectadores dessa nossa vida tão cheia de inútil barulho e fúria inútil, como disse o poeta. O ensaio fotográfico Fantasmas Urbanos registra esses personagens e nos desvenda uma vida paralela que palpita silenciosa em diversos recantos da nossa cidade. E que, geralmente, nem percebemos.

Fantasmas


MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO

Anjos, querubins, donzelas, deuses e deusas, leões alados, pássaros, fantasmas, monstros. Estáticos, majestáticos, ora expostos, ora explícitos, ora velados em recônditos jardins

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO

Fotos: Mônica Vasconcelos

urbanos

Continente Multicultural 89


ESTAÇÃO FERROVIÁRIA

PRAÇA MACIEL PINHEIRO


Imóveis nas ruínas e nos beirais, incrustrados nas fachadas, enfumaçados pela marca do tempo. À espreita, à procura, à espera de um olhar, “nessas paragens do vago onde toda a realidade se dissolve”


ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA

92 Continente Multicultural

São formas aladas que se desprendem do chão ao lado de formas que mordem o próprio metal de que são feitas; são bichos mais assustados que assustadores; são faunos de língua lúbrica e riso irônico, espiando a vida que passa


PRAÇA DEZESSETE

PRAÇA DO DERBY

MUSEU DO ESTADO DE PERNAMBUCO


ENTREMEZ

Cortem

a cabeça

ou os danos do teatro interativo

A

Alheios à tradição e em busca de uma vaga contemporaneidade, muitos grupos teatrais perseguem fórmulas de programas parece absurda. Cinpessoas procuram o de televisão

história qüenta Armazém 13 do Cais do Porto, para assistir a uma peça encenada por um grupo de Londrina, no Terceiro Festival Recife do Teatro Nacional. Trata-se de Alice Através do Espelho, livre adaptação do texto clássico de Lewis Carrol. O fato de ser num depósito de mercadorias não é novidade. Há muito, os diretores experimentam os espaços mais insólitos para mostrar os seus trabalhos, abandonando as tradicionais caixas italianas. A cenografia construída com plásticos negros lembra as barreiras em contenção de uma favela. Nada de douramentos barrocos. Subimos uma escada sem corrimão até um cubículo estreito, onde temos de nos alternar em posições desconfortáveis para ver a cena. De um sofá, onde está deitada a Alice, saem personagens. De repente, a Alice atravessa um espelho, e somos empurrados para um tobogã que o espelho escondia. Sem qualquer consulta prévia, atiram-me de escorregador abaixo. Uma senhora gorda desce gritando e se esborracha lá embaixo. Agarra-se a uma estrutura de arame, que se solta e vem de encontro ao meu rosto. Meus óculos são atirados

Ronaldo Correia de Brito 94 Continente Multicultural


longe, meu rosto é ferido. Tudo muito interativo e teatral, bem ao estilo da Rainha de Copas: cortem a cabeça! No escuro e sem os óculos, nada enxergo. Perco-me da minha mulher que, a essa altura, esmagada por um teto que desce, tenta escapar se arrastando por uma estreita passagem. O insuportável livro de Lewis Carrol não poderia estar melhor representado. A produção me segura e me amordaça com ordens sussurradas de que devo calar-me. Não posso atrapalhar o desenvolver da peça. Sinto vontade de sair interagindo e botar tudo abaixo. Contenho-me. Sou da classe teatral. Quero os meus óculos de armação de titânio, com lentes inquebráveis e sem reflexo, que me custaram os olhos da cara. O público parece gostar dos maltratos. Dez adolescentes histriônicos, os atores, gritam, amarram algumas pessoas, fazem cócegas com peninhas em outras, ordenam que cantem, dancem, se arrastem, e elas obedecem. É o novo modelo de comportamento teatral, o de programa de televisão ou show de rua, onde o importante é comunicar-se. Desmonto a minha ira sagrada. Esqueço o meu prejuízo. Eu não saí de casa, como um grego do período de Péricles, para ver uma tragédia de Sófocles. Já não se vai ao teatro buscando-se uma elevada experiência de educação espiritual e ética. Nem também se pode comparar essa vivência moderna com as representações coletivas da Grécia antiga. Na praça principal de uma vila, homens e mulheres reuniam-se em torno de um lagar. Amassavam a uva com os pés, cantando e dançando. Uns puxavam o coro, outros respondiam. A forma circular daquele teatro improvisado, a embriaguez, a louvação ao deus Dioniso, são os temas fundadores da tragédia grega. No Brasil, onde vivemos os mais diversos estágios de cultura, ainda não transpusemos os abismos de uma arte dita culta e outra popular. Quando vejo os jovens de Londrina tentando fazer teatro, o que fica em mim é a impressão do “artificial”. Nada soa verdadeiro. A eles interessam mais os malabarismos e expressões. O

oposto do que sentimos ao ver um ator popular representando, quando alma, corpo e mente falam como um só. Sente-se que civilizações altamente complexas se inscreveram no seu inconsciente, ao longo da história. Os jovens de Londrina perderam essas referências culturais e não atingiram uma qualificação técnica que compense essa falta. Há poucos dias vivi uma experiência marcante. Ministrava um curso sobre a dramaturgia do Mateus e resolvi estudar alguns teatros de tradição, antes de apresentar o meu personagem. Entre as características do Mateus, a mais difícil de compreender é a polaridade masculino/feminino. Não temos essa referência na nossa cultura, como no teatro japonês Kabuki, em que atores masculinos, os onnagatas, se especializam em papéis femininos. O relato de um velho Mateus, de 68 anos, que veio trabalhar conosco no último dia de aula, e que brincava desde os 15 anos, deixou-nos inquietos. Para aquela figura hierática, pai e avô de grande prole, viver e representar pouco se diferenciavam. Ele contou: “Comecei brincando como Daminha. No Boi de Reis, mulheres não brincam, e eu fazia esse papel feminino. Usava tranças louras, anáguas de renda e peitos postiços. Quando me arrumava e botava a maquiagem, ninguém dizia que eu não era uma mulher. Eu ficava linda. Um dia, quando me apresentava, um rapaz olhou para mim e perguntou se queria namorar. Pedi licença ao meu Mestre e ele consentiu. Andamos pela praça de mãos dadas, tomamos refrigerante e ele me levou em casa. Coloquei duas cadeiras, uma de frente para a outra, e mandei que sentasse. Entrei pro meu quarto e tirei a fantasia, bem devagar. Quando limpei o rosto, fiquei triste. Vesti minhas roupas de homem e voltei para a sala. Sentei-me de frente para o rapaz e esperei. Meu pai passava na sala e o meu namorado perguntou a ele: Onde está aquela moça morena que entrou comigo? Aquela moça morena é esse homem que está na sua frente, respondeu meu pai.” Ronaldo Correia de Brito é escritor e médico

Continente Multicultural 95


ÚLTIMAS PALAVRAS

Cultura indigente

M

esmo a modernidade que hoje espelha toda essa parafernália eletrônica para os lares do mundo, via sputniks de última geração, planadores de antenas informativas e culturais, ainda faz muita gente nos surpreender com seus desconhecimentos. Com tanta generalidade adicionada à nossa língua pátria, por vezes ainda nos deparamos a absurdos perfurocortantes. Não só à sintaxe lusíada, mas também quanto a não saberem da nossa história, de seus personagens, heróis – em geral mártires - lamentavelmente que nunca venceram, no entanto deixando lições nunca esquecidas. Dia desses, palestrando com universitários, preferi trocar de lugar para melhor me ventilar e ter a claridade da fresta de uma janela enquanto dissertava um texto de Pereira da Costa. Surpresos, os velhos-jovens discentes tanto perguntaram sobre dona Fresta (que deveria estar debruçada na janela), como não sabiam quem foi nosso historiador. Jovens que não mais lêem hoje em dia preocupam qualquer país. Não se ligam no Aurélio, pouco se interessam pelo passado, seus ancestrais, sequer plantaram uma roseira, declamaram Bilac ou cantaram Cartola, e se desligam sempre que o assunto assuma a grade da literatura. É uma pena, só comparável aos bedegüebas que vivem ligados somente em pagodes, raps e nos horóscopos adivinhadores de suas vidas vazias. Lembro-me do médico e cientista Orlando Parahym, que, de certa feita, me confidenciou, quando recém-formado e iniciava sua carreira nos grotões do Salgueiro, belo Sertão pernambucano. Ao se deslocar, à tardinha, para atender uma parturiente num roçado a seis léguas da sede,

saudado com as regalias do matuto – que reina a norma receptiva do nordestino –, cumpriu seu dever e logo fez gritar o mais novo rebento da casa. Terminado o trabalho do parto, desabou um pé-d’água daqueles, que o deixou impossibilitado de retornar, uma vez as carroçáveis estradas desabonarem a piçarra enlameada. Convidado assim a pernoitar, o doutor Orlando certificou-se com o dono da casa de que o mesmo lhe garantiria a sua volta ao primeiro sinal da cruz assobiado pelos galos-decampina da manhã – Pai, Filho, Espírito Santo... Amém! Ao acordar, o jovem médico já encontrou a mesa pronta do almoço (naquela época de 1937, almoço de sertanejo era às oito da matina). Cercado de mil gentilezas sentou-se à mesa com toda a família do anfitrião e, curioso por todos estarem presentes e junto dele haver uma cadeira vazia, perguntou: “Por favor, seu Duzinho, poderia o cativante amigo me dizer de quem é esta cadeira ao meu lado?... O senhor espera por alguém?...". “Sim, seu doutor, a cadeira é do cinesíforo." Intrigado, o hoje saudoso amigo e mestre das letras ficou a imaginar como se podia colocar um nome tão estranho em alguém. E logo chegou o homem. “Pronto, doutor... Este é o tal do cinesíforo que vai levar o senhor de volta..." “Muito prazer, Seu Cinesíforo..." Ao chegar na cidade, Parahym encontra o professor de português, Alberto Soares, e logo indaga o que significa cinesíforo. “É motorista, condutor, bulieiro... Palavra de origem grega." E aproveitou para alfinetar o doutor vindo das bancas acadêmicas: ‘Aqui é mais do que normal usarmos o vocábulo correto nas nossas comunicações... Pelo visto, Orlando, infelizmente vocês da capital cultivam muito o hábito da cultura indigente". E, imediatamente o fez ler 360 dias de Boulevard, de Theo Filho, que não se cansa de usar esta palavra em todo o livro.

Rivaldo Paiva – escritor 96 Continente Multicultural




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