Revista Prea 23

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ANA Luís Carlos Guimarães

O que me chama atenção é um homem sozinho numa mesa, nos seus cinqüenta anos bem morridos, a entornar seu chope silenciosamente, o homem de paletó cor de goiaba. Necessariamente funcionário público, na vizinhança da obesidade e do enfarte, o homem de paletó cor de goiaba, tem cinco filhos, três netos, uma mulher de barriga caída e varizes nos braços e nas pernas, um apartamento de dois quartos no 12º andar do Edifício Flor das Laranjeiras (financiado em 25 anos, com correção monetária, pelo BNH), calos na sola do pé direito, dentes cariados, fígado inchado, acessos semanais de asma brônquica, uma sogra que encarna o dragão vomitador de fogo, uma acentuada hipermetropia na visão esquerda e bolsos furados. E mais: no morrer de cada dia, o homem de paletó cor de goiaba tem os ouvidos rasgados pelo barulho do trânsito, sua sangue poluído de asfalto na repartição, nas filas de ônibus e do INPS. Entornando silenciosamente o seu chope, o homem de paletó cor de goiaba parece um boi. Um boi. Não o boi que pasta no campo, mas o boi que vão levando ao matadouro.

Luís Carlos Guimarães (Currais Novos, 1934 – Natal, 2001) foi advogado e juiz de direito, e trabalhou como revisor nos principais jornais do RN. Estreou na poesia com O aprendiz e a canção, parte da “Coleção Jorge Fernandes”, editada pela Imprensa Oficial do Estado, em 1961. Também escreveu contos, novelas e haikais. Foi tradutor de Rimbaud e de muitos poetas latino-americanos. Segundo Sanderson Negreiros, “Luís Carlos Guimarães soube, mais do que todos nós, seus companheiros de romagem terrena, consagrar o que, nele, já foi definido como lirismo modelador de espanto: comungar a dor da existência, sem angústia destruidora, nem esse falso anarquismo intelectual que se traveste de vanguarda”.

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