Cariri Revista - Edição 4

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FOTOS: Rafael Vilarouca

Impossível ficar indiferente à madeleine proustiana: “Todas as flores do nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas residências, e a igreja, e toda Combray e suas redondezas, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de minha xícara de chá.” Nesta época do ano, em que os sabores do passado se misturam com os planos para o futuro, a Cariri Revista quis saber de diferentes caririenses qual é a comida que os leva de volta à infância, a chave gustativa do tempo, o sabor de afeto mais profundo. Muitas respostas foram servidas e a mesa ficou repleta: bolo de carimã, tareco, mugunzá, pequizada... Refeição é afeição: muitos se emocionaram, alguns choraram, outros foram pedir às mães que preparassem as delícias passadas. E você, leitor, qual é a sua madeleine preferida? PARA DAR SUSTÂNCIA “Éramos oito irmãos e morávamos em uma casa muito grande, rústica, feita à moda antiga, de meia parede, com muitas janelas. Ficava no Crato, em frente à Praça Bicentenário, que na época a gente chamava de bosque. No quintal havia muitas árvores. Eu costumava ficar pendurado em um pé de siriguela tocando violão e, entre o intervalo das músicas, comia uma fruta. Na época, a dificuldade de criar tantos filhos gerava muita criatividade. A comida tinha que ter determinados nutrientes, mas não podia ser nada caro. O fubá de milho era barato, assim como a massa de puba. Então, uma comida que me faz lembrar da minha infância é o mingau de carimã, que é a massa fermentada da mandioca, que chamam de puba. Pega essa massa, dissolve no leite com ovo, adocica e bota uma pitadinha de sal pra constar. Isso minha mãe servia muito no café da manhã, porque dizia que dava sustância”.

COMENDO PELAS BEIRADAS “Quando eu como arroz de leite, eu lembro da tarde. Acho que o Crato era um pouquinho mais frio naquela época e essa comida quente esquentava o entardecer. A luz do fim do dia... É colocar arroz de leite na boca e sentir de novo aqueles momentos que tive na infância – momentos que ficaram mais esporádicos quando cresci. Eu criança vinha aquele prato enorme com dois ou três dedos de arroz de leite muito quente. Foi quando eu entendi o que é comer pelas beiradas. As beiradas vão esfriando e ficando mais gostosas que o meio, porque se botar a colher no meio queima tudo. E o mais bacana é a diferença de textura. O arroz vem quente no prato, depois esfria e se forma aquela camada de leite. Lá dentro fica cremoso. Aí eu ficava assistindo o ‘Sitio do Pica-Pau Amarelo’, cinco horas da tarde, a hora que vinha essa comida. E isso era todos os dias, dos meus seis aos doze anos. E agora, toda vez que eu como arroz de leite, eu me lembro daquela parte da tarde. Até pedi à minha mãe para fazer hoje”. [Allan Bastos, fotógrafo]

CHEIRO DE CHUVA, CHEIRO DE BOLO “Eu chorei muito lembrando. É como se você voltasse ao passado e sentisse até o cheiro. Eu lembrei do bolo de milho de minha tia Jú. Eu era bebê, tinha uns três anos, e a gente ficava no quintal pra roer a panela do bolo de milho que ela fazia. Era no final do ano, ela sempre fazia esse bolo no final do ano. Eu me lembro do cheiro do bolo, do fogão à lenha e do cheiro da chuva. Era o casamento de dois cheiros quando eu lembro disso, o cheiro do bolo e o cheiro da chuva no quintal. Sempre que eu acordava eu corria pra lá, de calcinha, corria pra casa de tia Jú. Quando chegar no Mauriti vou correr de novo. [Yasmine Moraes, escritora e fotógrafa]

[Abidoral Jamacaru, músico e compositor]

CARIRI REVISTA 61


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