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DIVERSIDADE

SEXUAL, CULTURAL E DE GÊNERO NO INTERIOR PAULISTA DOS ANOS 80

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RAFAEL BAZO JR.

TEXTO E EDIÇÃO: KÁTIA SARTORI 23/10/2017 22:59:47


Ficha Técnica Pesquisa e coordenação: Rafael Bazo Júnior Texto e edição: Kátia Sartori

Apoio:

Ilustração de capa: Caique Ferreira Diagramação e tratamento de imagens: Deivison Oliver Produção de vídeo e imagens: Gerson Costa Júnior

Realização:

Produção gráfica: Páginas & Letras - Editora e Gráfica Ltda. e-mail: paginaseletras@uol.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Bazo Júnior, Rafael. Diversidade sexual, cultural e de gênero no interior paulista dos anos 80 / Rafael Bazo Jr.; texto e edição Kátia Sartori. -- São Paulo : Páginas & Letras, 2017. ISBN 978-85-8191-066-6 1. AIDS (Doença) 2. Comportamento 3. Diversidade cultural 4. Diversidade sexual 5. Entrevistas 6. Identidade de gênero 7. Lençóis Paulista (SP) - História I. Sartori, Kátia. II. Título. 17-09237

CDD-305.3981612

Índices para catálogo sistemático: 1. Diversidade sexual : Relações de gênero : Lençóis Paulista : São Paulo : Sociologia 305.3981612

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Sumário Capítulo 1 - OS ANOS 80

Relações humanas............................................................................................................ 08 Os pontos de encontro..................................................................................................... 09 A diversidade nos bares................................................................................................... 11 Carnaval........................................................................................................................... 17

Capítulo 2 - SEXUALIDADE

Segredo............................................................................................................................. 22 A descoberta..................................................................................................................... 23 Nos tempos da escola....................................................................................................... 25 Em outra pele................................................................................................................... 27 A dificuldade em se assumir........................................................................................... 29 Preconceito....................................................................................................................... 29

Capítulo 3 - AIDS

Uma sentença de morte................................................................................................... 34 O câncer gay..................................................................................................................... 34 Falta de informação......................................................................................................... 35 A dor da perda................................................................................................................. 36 Vida positiva.................................................................................................................... 38 Perfil dos Entrevistados............................................................................................... 39

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Introdução por Rafael Bazo Jr.

Vivemos em uma época em que a discussão sobre diversidade, sexualidade e gênero tem tomado a mídia. Até alguns anos atrás não existiam personagens homossexuais em telenovelas, por exemplo. Hoje as discussões chegam a documentários e telejornais no horário nobre da TV aberta. Toda essa informação e, consequentemente, a exposição dessas pessoas junto com os direitos conquistados, como o casamento igualitário, contribuem para normatizar a aceitação da homossexualidade nos tempos atuais. Muitas pessoas associam erroneamente isso a um modismo. Não é porque o assunto nunca foi exposto no passado, que significa que ele não existia. A ideia do livro documentário surgiu exatamente da dificuldade em encontrar e mostrar para as pessoas as “raízes” da homossexualidade, que sempre existiu mas de uma forma muito velada principalmente nas cidades do interior onde os “armários” são ainda mais trancados por conta de fatores ineren-

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tes, como a importância que os sobrenomes exercem nesse território, a força da igreja na praça central que sempre é um ponto de referência, deixando claro que a religião é totalmente influente ainda na maioria das cidades pequenas. A proximidade das pessoas também é um fator que colabora para a construção da rede de fofoca (bulliyng), já que em uma cidade interiorana, onde todos se conhecem, e quase tudo é compartilhado, um LGBTT vira motivo de chacota e sofrimento com comentários pejorativos, romances gays são sufocados e ficam limitados a acontecer as escondidas, diferente da capital, onde a probabilidade de encontrar as mesmas pessoas é menos comum. A perseguição no interior é frequente. A maioria não vai em festas gays na sua cidade (isso quando acontecem), por medo da exposição e preconceito, por isso sempre acabam indo para “baladas LGBTT” em outro lugar. Em cidades pequenas o gay é estigmatizado e se transforma no centro das atenções, das fofocas e de olhares tortos, são na maioria das vezes cidades conserva-

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doras, onde gays acabam virando “figura folclórica” principalmente os homens mais femininos ou mulheres mais masculinas. É comum notar a existência da “bichinha da cidade”, concentrando as mais diversas manias, hábitos e costumes relacionados ao estereótipo. Dentro desta estrutura opressora apenas os gays heteronormativos que é um padrão canonizado de regras que acaba limitando a liberdade do outro de viver abertamente a sua sexualidade são “aceitos”. A realidade é que a vida de um gay no interior, na maioria das vezes, é bastante distinta em relação ao gay que mora em uma cidade grande. Esse livro busca através de entrevistas com pessoas que viveram nessa época em pequenas cidades, traçar um panorama contando como eram construídas as relações e trazer a tona um registro do passado do interior paulista nos anos 80, com toda sua escassez de informação da época, ausência da internet entre outras peculiaridades, retratando a cultura local e como foi o “ínício” da discussão da AIDS que chega atrelada a homossexualidade. Uma grande parte da epidemia de AIDS está conectada à comunidade gay que enfrenta barreiras

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sociais e estigma que fazem com que ela seja vulnerável ao HIV. É possível falar sobre direitos gays sem tocar no assunto HIV, já que a maioria dos gays não tem HIV. Mas não dá para falar sobre HIV sem falar sobre direitos dos homossexuais. (Kevin Frost) O objetivo principal deste livro documentário é trazer luz para esse tema colaborando para educar pessoas tornando confortável falar sobre o assunto. Vale lembrar que até 1973 a homossexualidade era oficialmente considerada uma doença nos EUA e no Brasil, até 1990. Em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da sua lista internacional de doenças mentais em uma Assembleia Geral além de retirar a nomeação de “homossexualismo” – o prefixo “ismo” na medicina indica doença. A data é considerada um marco e se comemora o Dia Internacional contra a Homofobia. Nada de bom acontece quando as pessoas se importam mais com as diferenças do que temos em comum, por isso estão reunidos aqui pessoas de sexo, orientação sexual e etnia diferentes com o objetivo comum de constuir a história.

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Apresentação Propomos ao leitor uma viagem a um passado não muito distante. Todas as geringonças tecnológicas que nos rodeiam hoje só existiam nas peças de ficção científica. Voltamos ao mundo no qual o contato humano era feito por meio de telefone fixo, das cartas e telegramas. Que a música era consumida em discos de vinil e em fitas k7. No cenário político, os movimentos sociais reconquistavam, pouco a pouco, os direitos democráticos. Na música, os grupos de rock e os principais nomes da MPB reproduziam esse discurso nas canções e também nas atitudes no palco. As pequenas cidades do interior, na sua grande maioria com menos de 50 mil habitantes, continuaram alheias a estes comportamentos e transformações. Sem a dinâmica da comunicação existente nos dias atuais, possibilitada, sobretudo, graças ao avanço tecnológico, os jovens e adolescentes desse período viviam imunes ao que acontecia nos grandes centros. A vida tranquila, os poucos mas efervescentes bares existentes nas cidades de

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Lençóis Paulista e Bauru, atraíram pessoas de toda a região e ajudaram a quebrar um pouco da monotonia. Sexualidade era um tabu. O comportamento esperado pelas comunidades era a união heterossexual. Quebrar este padrão e ousar em se assumir como diferente poderia ter sérias implicações, como ser excluído de um grupo e sofrer preconceito. Em meio a este ambiente interiorano, em que as pessoas muitas vezes mantinham sua sexualidade em segredo para se protegerem, surgiu a AIDS. Como a doença foi detectada inicialmente em homossexuais e se propagou rapidamente entre esse grupo, o ‘câncer gay’, como chegou a ser intitulada, reforçou o preconceito e intolerância. Por meio dos relatos de quem cresceu e de algumas pessoas que descobriram sua sexualidade neste período, resgatamos as características sociais e culturais, como eram tratadas as diferenças de gênero, nas pequenas cidades do interior, nos anos de 1980.

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Capítulo 1 Os anos 80

“Meus heróis Morreram de overdose Meus inimigos Estão no poder Ideologia! Eu quero uma pra viver” (Cazuza/ Roberto Frejat - Ideologia, lançada em 1988)

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Relações humanas

O diretor de teatro Nilceu Bernardo foi

“... Tinha mais ou menos esse encaixe aí de afinidades entre as meninas e os meninos. Mas eram clubes meio que fechadinhos...” (Nilceu Bernardo) 08 08 pl-Miolo_ID2017.indd 8

adolescente nos anos 80. Passou a infância numa fazenda e mudou-se para cidade aos 12 anos, em 1984. Nasceu e passou toda a sua vida em Lençóis Paulista. Não havia celular, tampouco internet. Telefone fixo era um bem de consumo de alto valor, por isso, restrito a poucos. As relações eram mais pessoais, sem interferência de aparelhos ou equipamentos. Na escola marcavam de se reunir nos finais de semana, numa praça ou na casa de alguém do grupo. Conforme recorda Bernardo, as opções não eram muitas. As pessoas frequentavam os mesmos lugares. Essa é uma característica muito peculiar das cidades pequenas do interior: todas as pessoas se conhecerem e se encontrarem no mesmo lugar. Do ponto de vista cultural, isso ajudou a fixar o nome de alguns bares, e seus respectivos proprietários, nas lembranças dessa geração. “Geralmente a gente andava em grupos, em bandos. Bandos de meninos, bandos de meninas e às vezes a gente se encontrava. Tinha mais ou menos esse encaixe aí de afinidades entre as meninas e os meninos. Mas eram clubes meio que fechadinhos. Era um trabalho muito intenso para organizar os encontros. No final de semana nós íamos passando um na casa do outro, até que numa casa a gente parava, fazia

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uma cuba libre, uma coca-cola com cachaça e limão, antes de sair para um determinado point.” Para as adolescentes do sexo feminino, em muitas famílias, as regras eram rígidas. Muitos pais simplesmente não permitiam que os filhas saíssem a noite. A professora Isabel Cristina Correia mudou-se para Lençóis nos anos 80, mas conheceu pouco sobre a vida noturna. “Eu não saía muito de casa, minha mãe não deixava. Nas raras vezes em que saía ia para o Csec e tinha os bailinhos. Mas nessa época eu estava namorando e a mãe dava a hora. Minha mãe né? Daquela época que levava e buscava na escola, mesmo a gente sendo adolescente, ela tinha muito cuidado.”

Os pontos de encontro Nessa época, segundo o relato de Nilceu Bernardo, era comum a galera se encontrar no Pepeus Drink’s Bar. A partir dali, seguiam para as casas noturnas que realizavam shows, como o Habeas Copos, a Boate do Pepeus, Grafite ou Estação Primeira Bar, o Vagão. No final da década, a casa noturna Querequexé também chegou fazendo sucesso. Ainda havia o Cine Guarani, os bailes do Ubirama Tênis Clube e no ginásio do CSEC (Clube Social, Esportivo e Cultural) como opções mais tradicionais de programa para o fim de semana.

Mario Silvio Marques, que frequentou o bar do Pepeu’s, acredita que o estabelecimento foi um dos primeiros na região a receber homossexuais, embora nunca tenha se popularizado como um bar gay. “Eu frequentei o Pepeu’s, mas numa época que ‘tava’ tudo normalizado. Os gays saíram todos do armário e ele abriu uma lanchonete lá no canto, descendo o posto, era um triângulo e abriu uma boate gay. Não era bem gay, mas a frequência de homossexuais era grande. O Pepeu era um cara que tinha tino para o comércio. Se ele levasse uma caixa de cerveja para a esquina, ele vendia tudo.” Citado algumas vezes pelos entrevistados, o Habeas Copos foi criado por Nivaldo Bispo e um casal de amigos, Chu Arroyo e Jean Moretto. Habeas Copos era o direito ao copo. Um bar que defendia a boemia e com a proposta de trazer para Lençóis Paulista grandes nomes da música, conforme descreve um dos idealizadores. “Fizemos o bar com a intenção de chamar esse pessoal que estava na vanguarda da música paulistana. Tanto que a gente começou com João Filardi. Pouca gente conhecia ele na época, né? Porque a gente até assustou: João Filardi, quem que é esse ilustre desconhecido? Mas ele era um ‘puta’ de um músico, nível de Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti e tal. Tocava com esse povo. A gente trouxe ele para

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começar o bar. E daí veio a ideia de trazer esse povo que não tão era conhecido. Trouxemos Arrigo Barnabé, Tetê Spíndola, Jorge Mautner, Nelson Jacobina, Patife Band (Paulo Barnabé), que é irmão do Arrigo, Alzira Spíndola, que é irmã da Tetê. Então, um chamava o outro, falava do outro e a gente ia trazendo. Tinha público na época, não é que nem hoje, por exemplo. Tinha um público curioso para ver essas bandas

tocarem. Nem conheciam, não precisa ser conhecido para toca. E porque também não tinha muita coisa na cidade. Nós montamos esse bar e durou um tempo aqui. Na época, tinha outros bares, mas não de trazer música ao vivo. Tinha o Pepeu’s, Estação Primeira, que fazia samba com o pessoal da casa, e nós ficamos acho, que até 90, com esse bar e depois que eu levei ele para Bauru.”

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Embora na memória de quem conte as opções não pareçam muitas, os jovens de toda a região se reuniam nos bares e casas noturnas de Lençóis Paulista. O servidor público João Sérgio Pimentel vivia na cidade vizinha, Macatuba, e relembra histórias dessa época. “Macatuba, naquela época, era a usina, os bairros, e os sítios, que eram as colônias. Então o movimento aqui era só de final de semana, que vinha todo mundo para a cidade. Quando não tinha nada aqui, a gente tinha que procurar outros lugares. Eu ia para Pederneiras, isso já com 16, 17 anos. Em Lençóis, eu fui muito nos bailes daqueles clubes no centro. Aí depois dos 20, por aí, que começou o Querequexé, o Habeas Copos. Para nós, sexta e sábado era sagrado ir para esses lugares, fosse de carona, de carro. Às vezes a gente ia e eu não sabia com quem voltar. Chegávamos lá e todos nos conheciam. Era uma delícia.” Segundo o diretor de teatro Nilceu Bernardo, ir num show promovido pelo Habeas Copos ou pelo Querequexé era o máximo de diversão que a cidade de Lençóis Paulista conseguia promover aos jovens daquela época.

“Para ir num show desse a gente economizava um mês inteiro. Era um grande encontro. Só de estar com os amigos já era uma grande troca. E na época, a gente tinha que aprender a fumar junto porque fumar era moda. Eu tive mais dificuldade em aprender a fumar do que a parar de fumar. Era um exercício: a gente comprava um maço de cigarro, a gente fumava no grupo, tinha que fumar o maço inteiro porque não podia levar para casa o cigarro, né? E até que a gente criava o hábito de fumar que era uma coisa elegante, era uma coisa para você estar inserido. Então você tinha que beber, tinha que fumar para você estar inserido no grupo. Aceito e estar inserido no grupo.”

A diversidade nos bares Os bares e casas noturnas que promoviam a diversidade só foram surgir no interior de São Paulo na década de 90, em meio a desconfiança e rótulos. A empresária Maria Cristina Haga abriu uma casa noturna em Bauru: a Tina. O espaço era voltado ao público GLS,

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Tribuna Lenรงoense, Jornal O Eco e Jornal da Cidade


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sigla para Gays, Lésbicas e Simpatizantes, que foi a referência utilizada para definir homossexuais e transexuais à época. Conforme recorda Maria Cristina, frequentar um bar ou casa noturna que tinha a pecha de “gay”, significava se assumir como tal. “Quem ia na boate é porque era homossexual. Infelizmente era assim, foi assim. Tinha pessoas, que quando eu montei a primeira boate, elas desciam a rua, saiam do barzinho, na Duque (rua Duque de Caxias, em Bauru), desciam a rua e entravam, assim, meio que muito rápido para não ser visto entrando ali.” O advento da internet e das redes sociais facilitou a divulgação de informação e o reconhecimento da diversidade, a luta por respeito e direitos civis. Na década de 90, a divulgação dos espaços voltados ao público que hoje classificamos como ‘diversidade de gênero’ era feito de modo mais pessoal e direto, recordado por Maria Cristina. O esforço da empresária trouxe resultados. A boate atraía pessoas de diversas cidades da região de Bauru. “Não se tinha o mundo virtual, e-mail e tudo mais que tem hoje, Facebook e então na época, para a inauguração, fiz o flyer e fui na casa das pessoas que eu conhecia e pedia para chamar os amigos que conheciam outras pessoas. Um foi chamando o outro, foi boca a boca. E com isso, fui pegando os endereços das pessoas para mandar uma correspondência em casa,

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“Às vezes a gente ia e eu não sabia com quem voltar. Chegávamos lá e todos nos conheciam. Era uma delícia.” (João Sérgio Pimentel) 15 15 23/10/2017 23:00:15


“...Tinha pessoas, que quando eu montei a primeira boate, elas desciam a rua [...] e entravam, assim, meio que muito rápido para não ser visto entrando ali.” (Maria Cristina Haga) 16 pl-Miolo_ID2017.indd 16

um flyer no envelope kraft, que era uma cor escura para não aparecer o que tinha dentro. Não era fácil, não. Toda semana tinha que correr atrás de propaganda, gráfica, correio, montar, mandar, enviar. Era muito rústico, meio que da idade da pedra, se comparando a diferença de tempo. Eu não tinha telefone na casa, porque fazia pouco tempo que tinha começado, não sei o que aconteceu que não tinha telefone fixo, não tinha celular, era tudo por correio. Foi assim devagar, foi lento o começo para expandir e também não era o objetivo de chegar até as pessoas muito rápido, com muita informação de ser GLS. Se eu fizesse muita propaganda, eu achava que ias pessoas deixariam de frequentar.” A drag queen Rubya Bittencourt, também abriu uma casa noturna em Bauru, em 1995: a Fake Club. Mais do que promover entretenimento, o ator se tornou uma referência na luta por direitos e contra a homofobia. “Quando nós inauguramos a primeira boate especificamente direcionada para o público GLS, não tinha LGBT, LGBTT, não tinha esse monte de sigla, era GLS. Para mim, até hoje, essas siglas não significam nada. Quem quer se divertir não vai atrás de sigla. A minha vontade era montar uma boate para trazer os shows de São Paulo para cá, independente de quem a frequentasse, porque todo mundo seria muito bem recebido. E aí nós agregamos pessoal de Marília, Pederneiras, Lençóis Paulista, Agudos,

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Duartina, Arealva, todas essas cidades satélites, todas essas cidades que foram em massa na nossa inauguração, porque a proposta era simples: diversão de qualidade voltada para público de bom gosto, para bom entendedor meia palavra basta. A gente trouxe shows das drags mais famosas do Brasil, naquela época. Em 1996 trouxemos gogoboys para fazer streap, naquela época não existia no interior de São Paulo. Eu posso afirmar com toda segurança do mundo, e com material para provar, que eu fui um empresário de Bauru que abri, tive coragem de abrir, a primeira boate voltada exclusivamente para o público LGBTT daquela época. Fizemos um sucesso maravilhoso que incomodou a prefeitura na época. Depois de 30 dias, nós fomos fechados pela prefeitura, porque alegaram inúmeras coisas, menos preconceito para boate, porque não era motivo plausível. Mas, eles fecharam. Aí eu aluguei outra boate.”

O Carnaval O Carnaval nas pequenas cidades do interior, com seus bailes nos clubes e seus desfiles de rua, também provocam nostalgia. Alguns personagens, como a cabeleireira Francine Pomini Portilho, e o cozinheiro José Célio Montoro, até hoje são lembrados como destaque, pela produção de suas alegorias (veja as fotos das páginas seguintes). pl-Miolo_ID2017.indd 17

Curioso perceber como alguns homossexuais e transexuais, mesmo vivendo em pequenas cidades, sujeitos a preconceito, eram reverenciados durante essa festa. Suas performances eram bastante aguardadas pelos públicos dos bailes e espectadores que acompanhavam os desfiles de rua. Francine fez sucesso nos carnavais de Pederneiras e Macatuba, que são municípios vizinhos, e promoviam bailes que atraíam visitantes de toda a região nas décadas de 80 e 90, bem como também desfilou por diversas cidades. “Os anos 80 foram muito bons, muito marcantes, um período muito gostoso. Eu fui várias vezes destaque nas escolas de samba. Desfilei fora também. Em Bauru, em Andradina, São José do Rio Preto. Lá também tive oportunidade, tive o privilégio de conhecer o Clodovil, Isabela Dantas, todo aquele pessoal, aqueles destaques famosos de capa de Manchete (principal revista de celebridades no período). É foi muito bom, sim, marcou muito. Uma coisa que hoje nós não temos mais. Fica uma lembrança muito gostosa. É uma nostalgia muito boa, sempre está presente quando chega a época de carnaval. A gente reacende assim por dentro um pouco, fica aquela euforia, aquela coisa gostosa. Eu gosto muito de bailes, de desfile de carnaval. Eu mesma idealizava as minhas fantasias, eu mesma confeccionava.

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Acervo pessoal dos entrevistados

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“Enfrentava alguns atritos, sim. Tinha. Mas, a gente deixava isso de lado, passava por cima, como se fala, o que vem de baixo não me atinge. Então pau na máquina, brilhar de salto alto e tudo.” (José Célio Montoro)

Obtive vários prêmios como destaque, tanto aqui como fora. Realmente foi muito bom. Aqui em Pederneiras tinha vários blocos. Em 83, eu desfilei como destaque para o bloco Apolo, do Clube Alvorada. Desfilei em escola de samba por 20 anos. As fantasias eram assim, eu mesmo idealizava os meus modelos, eu mesmo costurava e bordava. Eu tinha um tempo de confecção de uns nove meses, porque eu tinha fantasias com 25 mil pedrarias à mão, uma a uma. E fazia cinco fantasias, uma para cada noite: sexta, sábado, domingo, segunda e terça. As fantasias de desfile de domingo e terça eram mais ricas, mais elaboradas.” Em Lençóis Paulista, a grande atração do carnaval era a escola de Samba Unidos do Morro, bem como os blocos que desfilavam pela rua XV de Novembro. José Célio Montoro foi um dos pioneiros da escola e também desfilava como destaque. “Quem começou a escola foi Paulinho Montoro, um primo meu, já falecido. Nós montamos saindo da porta de casa. Uma roupinha muito mixuruca, na época, mas não deixou de ser uma escola. Foi uma época boa, o carnaval que a gente fazia. Enfrentava alguns atritos, sim. Tinha. Mas, a gente deixava isso de lado, passava por cima, como se fala, o que vem de baixo não me atinge. Então pau na máquina, brilhar de salto alto e tudo.”

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Capítulo 2 A sexualidade

“O pária escreve uma poesia corrosiva, de acidez clássica, de beleza terrível. O pederasta, o ladrão, o mendigo, o enjeitado, o encarcerado prestes à condenação perpétua (como se esta já não lhe fizesse parte da alma) produz literatura” (Carlos Eduardo Ortolan Miranda, mestrando em filosofia pela USP, sobre o escritor Jean Genet, em artigo da Revista Cult)

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Segredo

Em pleno século 21 e apesar de tan-

tos avanços no campo dos direitos civis e humanos, assumir-se como diferente ainda é tabu para muitas pessoas. Há mais de três décadas, para grande parte dos homossexuais, assumir-se como tal era carregar uma marca e muitas vezes ser excluído de grupos de amigos, arriscar o emprego, provocar uma crise familiar. Estamos falando de centenas de municípios com menos de 50 mil habitantes. O preconceito, a perseguição, são considerados mais sólidos em cidades do interior, por conta da forte presença religiosa, tradição familiar e escassez ou inexistência de espaços destinados ao público LGBTT. Há de se considerar ainda que as informações eram escassas e havia quem tratasse a homossexualidade como doença até na comunidade médica. Essa linha de pensamento existiu até a década de 90. Segundo os relatos dos entrevistados, por causa destas características, quem ousava se assumir homossexual costumava enfrentar preconceito e hostilidade. De acordo com o diretor de teatro Nilceu Bernardo, no mundo das artes, uma das principais referências negativas para a 22 pl-Miolo_ID2017.indd 22

homossexualidade era o escritor francês Jean Genet, assumidamente gay, citado nos textos dessa época como assassino, assaltante, ladrão e pederasta, o que fazia com que a homossexualidade soasse como algo extremamente marginal. Era uma opção negativa, uma escolha errada, imprópria e assumir-se tinha consequências. “Geralmente as pessoas não eram aceitas dentro de determinado grupo. A gente via que realmente eram pessoas que viviam numa certa solidão. Então as pessoas não se assumiam, e quem era assumido tinha essa grande dificuldade. Eu conheci uma pessoa nessa época. A gente não tinha proximidade porque as pessoas não se aproximavam. As pessoas tinham realmente essa coisa de distância e de preconceito, inclusive, no meu grupo de meninos. Tinha um rapaz que morava perto de casa, ele era bastante afeminado, então eu me lembro que até alguns dos meninos mexiam, gritavam e tiravam sarro e a pessoa tinha que se defender. Era bate-boca na rua pelo simples fato da pessoa estar passando. Na década de 70 para frente, com os grandes nomes da música popular brasileira se assumindo como homossexuais, emitia alguma coisa de intelectualidade, de conhecimento, de sensibilidade. No interior era to-

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talmente diferente, era uma coisa meio que esdrúxula mesmo: ou se assumia um papel no carnaval, como a gente tinha alguns nomes da cidade que desfilavam no carnaval da Rua XV, vestido de mulher e tudo mais. Então naquele momento as pessoas aceitavam, brincavam, viam aquilo como uma brincadeira. Eu, me remetendo às imagens daquela época, vejo que é uma coisa bastante chocante, é uma coisa bastante crua, dura e violenta. Eu tenho a imagem dessa situação e a forma de se falar extremamente preconceituosa, das piadas.”

A descoberta Seis dos oito entrevistados para este livro e documentário são homossexuais. A maioria deles começou a perceber sua sexualidade ainda na adolescência. A única exceção foi a professora Isabel Cristina Correia, que por mais de 20 anos teve um casamento heterossexual. Mesmo para quem descobriu a homossexualidade cedo, aceitar-se como gay podia resultar em sérios conflitos. Estamos falando de uma organização social em que a atração pelo mesmo sexo é tratada como doença, em que não existe informação e que predominam valores e regras que reforçam o preconceito. Para o cozinheiro José pl-Miolo_ID2017.indd 23

“Tentei suicídio uma vez, tudo por causa disso. E aí deixei tudo de lado, falei: não, vou enfrentar a vida e como enfrentei.” (José Célio Montoro) 23 23 23/10/2017 23:01:15


“Ele (meu pai) morreu sem saber, mas a minha mãe sabia, eu contei para ela e ela não soltou fogos de artifício. Ela ficou mais de 15 dias sem falar comigo.” (Mario Silvio Marques) 24 pl-Miolo_ID2017.indd 24

Célio Montoro a descoberta poderia ter sido traumática. A família chegou a procurar ajuda de médicos. “Eu tinha 12 anos e minha mãe percebeu. Ela falou coisas a respeito, eu falei que era mentira e depois eu fui assumindo. Então, eu não escondi nada de ninguém. Como a gente não esconde de Deus, então, pra quê esconder do ser humano? A pessoa tem que assumir o que é. Teve um exame que me levaram, que os próprios parentes fizeram o meu pai me levar, me deram choque errado, foi um escândalo na época. Mas, tudo passa, você acostuma graças a Deus. Tentei suicídio uma vez, tudo por causa disso. E aí deixei tudo de lado, falei: não, vou enfrentar a vida e como enfrentei. Agora em São Manuel foi duro para mim. Lá, eu tinha os cabelos muito compridos, fiquei quase oito anos sem cortar cabelo, e o delegado vivia na minha cola para cortar o cabelo, que não podia andar na cidade com aqueles cabelos. Aquele preconceito todo. Eu nunca dei importância.” Também cheio de questionamentos e conflitos, Mario Silvio Marques descobriu a sexualidade na adolescência. A falta de informação levava os jovens ao sofrimento e à depressão. “Eu descobri olhando para o corpo de um homem. Eu achei diferente e esse ho-

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mem ficou na minha cabeça muito tempo, mas não aconteceu nada. A minha maneira, eu procurei saber o que estava se passando comigo, porque não era, eu achava que não era normal. Então eu fui à procura de resposta, porque eu não podia ‘deslanchar’ a minha homossexualidade, porque não sabia o que era isso, e depois que eu soube, fiquei chocado. Eu, gostando de um homem, cheguei a namorar mulheres. Mas, não deu jogo, eu queria aquele lá. E com ele foi coisa de pele. A partir daí, eu comecei a tomar rumo nas coisas, só que eu tinha um pai e uma mãe. Como que eu ia falar que eu gostava de homem? O meu pai percebeu alguma coisa, mas ele não via o caso assim. Na época estava começando a entrar drogas aqui em Lençóis. Ele achava que eu era usuário. Então ele ia no lugar onde tinha a droga e eu ficava livre para ir no outro lugar. Ele morreu sem saber, mas a minha mãe sabia, eu contei para ela e ela não soltou fogos de artifício. Ela ficou mais de 15 dias sem falar comigo. Um dia eu cheguei do hospital, ela estava no sofá e falou: ‘Vamos conversar. Se você quer essa vida, então você vai me fazer um favor’. Eu falei: ‘Que favor?’, ela falou assim: ‘Seja feliz. Coisa que eu não fui nessa minha vida inteira.’ .”

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Nos tempos da escola Outro relato dos entrevistados é que, assumir-se gay numa comunidade pequena, sustentada por valores pré-determinados, além da própria exposição, poderia envolver outras pessoas. A empresária Maria Cristina Haga, após descobrir sua sexualidade, ainda na adolescência, optou por fazer uma viagem ao exterior. Mudou-se para o Japão por um tempo. “Quando eu estudava, quando estava no colegial, eu sentia atração pelas minhas amigas. Então, tinha uma lá que me chamava atenção. Ela tinha vindo de outra cidade e senti algo diferente. Queria estar perto, mas não era nada assim que envolvesse sexo. Ela era filha do gerente de um banco, também por isso não podia expor isso para ela e nem para as minhas amigas, minha família. As coisas foram acontecendo assim, aos poucos, reprimida. Eu resolvi sair de da cidade, realmente, por causa disso, pela minha opção sexual, que já sabia que sentia algo diferente por mulher. Antes de ir para o Japão, eu fiquei com uma menina, aconteceu. E isso foi em 90. Foi a primeira vez que eu fiquei com uma menina.” É muito comum a sexualidade começar a aflorar nos tempos da escola. Foi 25 23/10/2017 23:01:16


“[...] mas não há nada que no momento que me faça recordar algum bullying, algum preconceito não. Alguma coisa assim de leve, mas nada assim tão agressivo. Graças a Deus, fui bem aceita, eu procurei fazer minha conquista.” (Francine Pomini Portilho) 26 pl-Miolo_ID2017.indd 26

assim com Paulo Balderramas, a drag Rubya Bittencourt, que se viu atraído por um colega de classe quando era adolescente. “A gente descobre que é gay, ou que é diferente daquilo que a sociedade está impondo para gente, como se comportar, quando a gente descobre que tem um amigo de classe que é tão bonito que você quer passar todo dia conversando com ele. Eu me toquei nessa época, em 1979, 1980. Eu morava em Londrina, estudava no Colégio Tiradentes. Lá, eu tive um amigo, muito, muito amigo, chamado Tony, que a gente passava o dia inteiro juntos, a semana inteira juntos e a gente não se desgrudava. Só que na nossa cabeça de criança, nós não entendíamos o porquê que isso acontecia. Hoje, eu me questiono se era puramente amizade ou se realmente lá na nossa infância, com sete anos de idade, a gente já se gostava, um do outro, e não sabia o que era. E ao passar dos anos, conforme a gente vai lendo, descobrindo, se informando, vendo outras situações, nos descobrimos homossexuais.” Avesso à convenções, o servidor público João Sérgio Pimentel diz que sempre procurou viver de acordo com seus sentimentos, desde que era adolescente. Por isso, acredita que tenha vivido menos conflitos por sua sexualidade. Ele acredita que a per-

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cepção ocorreu primeiro entre os colegas e os amigos que o rodeavam. “Naquela época, na parte de afirmação sexual, eu ainda não atinava essas coisas, eu simplesmente vivia. Então, namorava um menino, quando pintava, saía com uma menina, então não tinha essa divisão, parece, eu nunca senti isso. Eu sofri bullying sem saber, isso no colegial. Tinha aquela hora da brincadeira que diziam: agora vamos fazer o grupo das meninas e dos meninos. Juntavam 11 meninos, tinha 11 meninas e ficava eu. As meninas me escolhiam, e eu brigava por isso, só que eu não percebi. Eu não me via dando algum trejeito, alguma coisa, só que as pessoas já percebiam e já faziam isso. Essa época, eu sofri bastante. Foi o começo, só que assim mesmo eu não percebia essa condição sexual, foi amadurecendo depois. Eu namorava as meninas. Mas aí foram diminuindo os namoros com meninas, até que, no fim, eu vi que era isso mesmo.”

Em outra pele A cabeleireira Francine Pomini Portilho também descobriu que era transexual na adolescência. Com uma base famipl-Miolo_ID2017.indd 27

“[...] Eu acho que as pessoas que não se assumem, sofrem muito. Às vezes pensam de não estragar a vida dos pais, dos mais próximos, e acaba estragando a dela [...].” (Isabel Cristina Correia) 27 27 23/10/2017 23:01:16


“[...] Toda essa roda de amigos me expurgou. Eu me vi, depois de 20 anos, sozinho, sem ninguém para conversar, sem ninguém para sair, sem ninguém para confidenciar [...].” (Rubya Bittencourt)

liar bastante sólida, acredita que fez a passagem sem grandes traumas. “Eu me descobri assim bem cedo, entre os 15 e os 17 anos. Eu me sentia bem diferente. Eu sempre fui uma pessoa assim bem sensível. As minhas amizades eram com as meninas. Era sempre mais com as meninas. Fiz tratamento hormonal por um período pequeno, mas intervenção cirúrgica eu não tenho. Na época foi assim, sempre é uma novidade, mas não há nada que no momento que me faça recordar algum bullying, algum preconceito não. Alguma coisa assim de leve, mas nada assim tão agressivo. Graças a Deus, fui bem aceita, eu procurei fazer minha conquista. Eu acho que o que eu sou hoje graças ao que conquistei... O que a gente planta é o que a gente colhe. Eu sou uma pessoa que sempre tive amizade com as meninas, tem algumas trans sim que eu tenho amizade, eu sou uma pessoa bem reservada. Eu levo uma vida normal, me vejo assim com uma vida normal, nada assim de tão diferente.”

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A dificuldade em se assumir A professora Isabel Cristina cresceu dentro de uma família com regras rígidas, especialmente para as meninas. A homossexualidade era uma coisa distante, de pessoas distantes. Não era muito comum gays e héteros assumirem uma amizade, por exemplo. “Nessa época eu não me recordo de ninguém que fizesse isso, de se assumir. Tinha aquelas pessoas que a gente achava que gostava do mesmo sexo. Mas é bem diferente de hoje. Eu acho que as pessoas não tinham coragem de assumir, tinham medo, eu penso assim. De um tempo para cá, isso mudou bastante. As pessoas têm se assumido. Eu acho que as pessoas que não se assumem, sofrem muito. Às vezes pensam de não estragar a vida dos pais, dos mais próximos, e acaba estragando a dela e de outras por fazer aquilo que não deseja. Com certeza é bem diferente hoje em dia. As pessoas agora estão sendo o que querem ser, não têm mais medo. Estão se aceitando, se assumindo porque tá diferente, embora a gente veja muitas coisas que acontecem, ainda, que parece que é fora da realidade, como as pessoas que são ataca-

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das, por simplesmente, por ter uma outra opção sexual, que a gente fala, parece uma aberração. Isso daí é bem retrógrado, mas tem, não tão próximo da gente, mas tem.”

Preconceito Nas pequenas cidades do interior, quase todos se conhecem. As tradições religiosas reforçam e reforçavam a ideia de que família deveria ser formada por uma casal heterossexual com filhos. Era um comportamento esperado. O único comportamento aceitável. Fugir desses padrões podia ser perigoso. Nem todos estavam dispostos a encarar as consequências. Muitos levaram uma vida escondida. Outros preferiram se mudar para grandes centros, onde o modo de vida fosse diferente, em busca de aceitação de sua condição. Quando os entrevistados, homossexuais ou não, pensam sobre os anos 80, especificamente sobre sexualidade e diversidade de gênero, as lembranças muitas vezes são chocantes. Os homossexuais tinham tratamento escancaradamente diferenciado, jocoso e até mesmo cruel, conforme relato do diretor de teatro, Nilceu Bernardo. “Hoje ainda existem piadas, existem brincadeiras, mas a gente sabe que as relações e o respeito são diferentes, compa-

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rando àquele período. Ter um homossexual na família era um choque. Foi nessa época que eu comecei a fazer teatro, aí vinha um outro preconceito também: as meninas que fazem teatro não prestam; os meninos são homossexuais. O homossexual era relacionado à promiscuidade, então quando se dizia a alguém que era gay, se entendia que o cara era promíscuo. Estava aberto a qualquer tipo de relação, a qualquer momento, com quem fosse. Você ter um amigo gay era você se assumir gay. Eram bastante complicadas essas relações. Por isso que eu digo que era meio que solitário para as pessoas. Cada um ficava com os seus iguais, vamos imaginar assim.” Para Rubya Bittencourt, assumir a condição de homossexual era uma batalha muito grande, sob o risco de perder o amor e o convívio com amigos e familiares. “A maior tristeza que eu lembro da minha vida foi, numa roda de amigos, muito grande. Quando descobri que era gay, contei para todo mundo, sem vergonha nenhuma, que eu gostava de outros homens. Toda essa roda de amigos me expurgou. Eu me vi, depois de 20 anos, sozinho, sem ninguém para conversar, sem ninguém para sair, sem ninguém para confidenciar,

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justamente porque eu confiei nesses meus amigos e eles me tiraram do grupo. Depois acabei sendo reintegrada porque eles acharam que eu era muito legal.” O servidor João Sérgio Pimentel acredita que após passada a fase da escola, em que era vítima de brincadeiras preconceituosas - embora muitas vezes não percebesse - que formou uma personalidade forte e que conquistou espaço na comunidade. “Eu quero viver, se te incomodar problema seu. Acho que eu consegui, porque eu conquistei simpatia, aqui todo mundo gosta de mim. Acho que consegui fazer com que me aceitassem desse jeito. Porque assim, não é que se assume, eu me vi assim! E tem aquelas situação com as ‘amigas’ que chegam e dizem: eu aceito sua opção. Quem faz uma opção dessa na vida? Então, primeira coisa, se as pessoas aceitarem, tem que saber o que tá falando, não é opção. Quem vai fazer uma opção de ser uma coisa que todo mundo abomina, mete o pau? Eu começo as conversas, minhas, desse jeito com as pessoas que vem com essa história: não é opção, então se você me aceita, saiba primeiro a maneira como você fala.” Sem ter plena certeza de sua condição homossexual, Cristina Haga viu amigos gays sofrerem preconceito.

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Jornal da Cidade e Bom Dia 31 pl-Miolo_ID2017.indd 31

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“Tinha um amigo meu, ele é mais velho um pouco, morou muitos anos em São Paulo, hoje ele voltou para o interior, trabalha em cargo público. As pessoas falavam, comentavam, só que era do mesmo grupo, da mesma turma. Íamos em barzinhos, a gente se encontrava, mas sempre tinha um olhar diferente. Eu mesma, sem saber, olhava diferente, pensava diferente. Mas, não tanto quanto outras pessoas. O interior tem isso. Hoje eu entendo, eu procuro entender tudo da melhor forma possível e a gente não pode criticar, pois tem que se olhar primeiro para depois ver o que os outros estão fazendo.” José Célio Montoro chegou a ouvir xingamentos. “Era viado, mariquinha. A palavra gay não existia. Eu me sentia bem sozinho. Muitos pegavam menina para andar, para ir no vai e vem do jardim. Na época, São Manuel também tinha muito isso daí. Eu sempre fui sozinho, mas tive amigos em todo lado, gra-

ças a Deus. Até hoje, se perguntar por aqui, todo mundo me conhece, e tem aquela amizade séria, não é aquela falsidade.” Já Mario Silvio sofreu ameaças de agressão. Mas enfrentou o preconceito de cabeça erguida. “Nós saíamos de cara lavada. Teve moto que subia em cima da calçada para nos atropelar. Se nós não tivéssemos cuidado, eles passavam com carro em cima da gente. Nos bares, era difícil atender a gente. Então, eu falei para o meu amigo: ‘A coisa tem que mudar’. Ele falou assim: ‘Só nós dois?’ Eu falei, ‘teve uma batalha que foi vencida por um homem só’. Então nós criamos uma coragem e vamos à luta. Aonde a gente não podia ir, a gente ia, nunca ninguém bateu em nós. Nós vivemos um inferno particular, mas ninguém ousava chegar perto de nós. Tinha curiosidade, mas ninguém queria ser o primeiro. Então aconteceu. Então aquele primeiro falou para os outros que não era nada daquilo. Mas é difícil reviver essas coisas.”.

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Capítulo 3 AIDS

“Hoje a tristeza não é passageira Hoje fiquei com febre a tarde inteira E quando chegar a noite cada estrela parecerá uma lágrima.” (Renato Russo - A Via Láctea E. Corações Perfeitos)

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Uma sentença de morte A Aids se popularizou no Brasil nos anos 80. Não havia muita informação sobre a doença, forma de contagio, exames capazes de detectar o vírus. O que se sabia é que jovens que contraíam a doença morriam rapidamente. Dessa forma, a Aids virou sinônimo de uma “sentença de morte”. A empresária Cristina Haga viu o final trágico de quem contraía a doença já no início dos anos 80, quando ainda era adolescente. “Em 83 a Tina Turner veio para o Brasil fazer um show em São Paulo e eu fui nesse show. Fiquei no apartamento dos amigos do meu irmão, da nossa cidade. Nesse apartamento morava um rapaz de São Paulo. Após o show, esse rapaz que morava junto faleceu de AIDS. Eu não sabia, não conhecia, foi a primeira vez que eu fui para lá, para esse apartamento. Eu fiquei em choque. Nossa, uma novidade a AIDS. Não teve um preconceito, mas um ponto de interrogação. O que é isso? Por que morreu tão rápido? As pessoas comentaram ali, os amigos comentaram que estava tudo bem, ficou internado tantos dias e veio a falecer. Na época o corpo foi cremado. Não sei se foi por causa doença, provavelmente sim. Foi um choque saber como era uma doença assim devastadora e rápida a morte. Eu conheci várias pessoas, depois disso,

que eram soropositivas e que vieram a falecer. Muitas pessoas, não foram poucas não. Se eu parar para pensar, muita gente que eu conheci, antigamente, do sexo masculino, muitos são soropositivos ou já faleceram.”

O câncer gay Em 1981, os hospitais dos Estados Unidos relataram 41 casos de pacientes jovens com sarcoma de Kaposi, um câncer raro que até então se manifestava quase somente em idosos. Os pacientes morreram pouco tempo depois de entrar no hospital. Todos eram homossexuais masculinos. Outros casos surgiram e logo ficou claro que havia uma nova doença, um “câncer gay”, batizado de grid (sigla em inglês para “imunodeficiência relacionada aos gays”). Nos anos seguintes, a doença se espalhou para heterossexuais e mulheres – até então considerados a salvo da epidemia. Foi então que a doença ganhou o nome de aids (sigla em inglês para “síndrome da imunodeficiência adquirida”). O fato de que os primeiros casos diagnosticados de AIDS fossem em pacientes homossexuais reforçou ainda mais o preconceito e os rótulos atribuídos aos gays, principalmente o da promiscuidade. Rubya Bittencourt lembra que ouviu falar da AIDS pela primeira vez no programa Fantástico, da Rede Globo.

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“Você tinha Eids (pronúncia em inglês) e isso era muito terrível, porque naquela época, nos anos 80, as pessoas apontavam os homossexuais como os portadores e como os propagadores do vírus. Sem entender o que aquilo significava, a gente foi sendo engolido por essa falsa acusação e sendo apedrejado pela sociedade sem saber. Os meus primos de terceiro, segundo grau, eu ia para casa deles e eu via que tinha copo separado, prato separado, toalha para tomar banho separada. Eu não entendia, porque para mim era normal, foi uma pessoa educada que separou os utensílios, essa roupa de cama para mim. Claro que, depois, eu senti na pele que eles não estavam querendo que eu usasse utensílio ou a mesma roupa de cama porque eu era homossexual, e podia possuir, eu podia ser portador de Aids. Isso foi terrível. Teve gente da minha geração que literalmente parou de transar, porque a gente ficou morrendo de medo de morrer. Transar para gente era uma condenação para a morte. Não podia transar porque você não sabia se o outro tinha, ninguém falava porque isso não era aberto.” A pandemia da doença aterrorizou a geração, conforme relembra José Célio Montoro. “Foi horrível, eu tinha medo de pegar até em dinheiro. Chegava a informação de que alguém tinha morrido e já diziam que era Aids. Nem era. Até hoje eu não acredito porque, gra-

ças a Deus, com tantos homens que eu já fiquei, nunca tive doenças venéreas, nunca passei por nada. Olha que eu tive muitos parceiros, nunca usei preservativos.”.

Falta de informação Segundo o empresário Nivaldo Bispo, a AIDS provocava receio em todos. Evitava-se até o mínimo contato físico com quem pudesse ter a doença, até mesmo um aperto de mãos. “Era uma coisa que amedrontava todo mundo. No grupo de teatro, depois de um tempo, a gente foi saber que um dos atores teve AIDS, depois que ele saiu fora do país, foi embora para a França. Mas, era uma coisa muito assustadora para todo mundo, para os jovens da época, a gente já sabia há um tempo, todo mundo ficava com um pouco de receio. Aquela coisa que o pessoal falava: se pegar na mão, se abraçar... Tinha o teatro, às vezes até as pessoas não iam ver porque falavam: ‘Mas aquele sujeito que trabalha lá tem AIDS’. ”. Para o diretor de teatro Nilceu Bernardo, muito do preconceito teve origem nas informações contraditórias sobre a doença. Ele conta que a Aids foi abordada numa aula de biologia, com a sigla SIDA (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida), quando estava no Ensino Médio. A docente na época relacionou 35

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o mal à homossexualidade. Não havia meios de contestar essas informações. “Foi uma apresentação que nós tivemos como algo terrível, como se fosse uma tragédia do século realmente e que estaria impossibilitando todas as relações sexuais, “apesar de”, e isso é uma fala da minha professora de biologia na época, “ser uma doença de homossexual”. Que aquilo poderia se disseminar muito fácil, como se fosse alguma coisa que se tivesse pegando na esquina, no aperto de mão. A gente não tinha internet, não tinha celular ou computador. As informações eram do Globo Repórter, dos programas especiais, dos comunicados de Jornal Nacional, então era muito complicado se ter essas informações, você não tinha muito onde buscar. Como era novo, mesmo se você fosse à biblioteca você não encontrava. Então realmente era uma confusão e ficamos muito assustados.”

A dor da perda “[...] Tinha o teatro, às vezes até as pessoas não iam ver porque falavam: ‘Mas aquele sujeito que trabalha lá tem AIDS’. ” (Nivaldo Bispo)

A notícia de que grandes nomes da música, como Cazuza e Fred Mercury, tinham Aids teve grande impacto. Esses astros vieram a falecer devido às complicações da doença. Mas, para João Sérgio Pimentel, além de comoção, essas notícias também reforçavam o preconceito contra os gays. “Se a pessoa engordava: tá com AIDS.

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Se emagrecia, tá com AIDS. Isso eu percebi, essa relação da AIDS com a homossexualidade na época teve muito. A pessoa ficava até meio ressabiada, era ignorância. Ninguém sabia, na verdade, o que era. Na mídia víamos, só gay que morria, porque eram os que faziam sucesso e as pessoas comuns que também morriam, não tinham repercussão. Então, em Macatuba, as pessoas viam isso daí.” Para Rubya Bittencourt a Aids chegou com a intensidade de uma onda mortal, um tsunami. “Quando a nossa geração percebeu que a Aids era real e que as pessoas estavam morrendo por causa dessa doença, a gente foi inconscientemente se preparando para perder outros amigos antigos. A gente começou a pensar: fulano fazia isso, nós fizemos isso juntos, então eu também posso estar propício. Todo mundo estava com medo. Quando foi sendo mais acessível os exames, a gente foi ficando um pouco mais relax. Eu passei por toda essa fase do AZT (coquetel anti-aids), de você descobrir, de amigos teus terem reações horríveis, de você amedrontado... Perdi amigos, muitos. Perdi.” Francine Portilho conta que já perdeu várias pessoas conhecidas para a doença, quando a epidemia chegou de forma devastadora. “A gente passou a saber da Aids através

“Eu e um amigo passávamos na rua e falavam: ‘aidético, outdoor da AIDS’.” (Mario Silvio Marques) 37 37

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de jornais, televisão e revistas. Já perdi várias pessoas conhecidas, aqui de Pederneiras, pessoas de cidades vizinhas que realmente vieram a óbito devido à essa enfermidade.”

Vida positiva Mario Silvio trabalhava no hospital de Lençóis quando ouviu médicos discutindo sobre o que chamavam de câncer gay. Na pequena cidade de Lençóis Paulista, cinco mortes haviam sido atribuídas à AIDS. “A primeira vez, eu soube do moço, que morava aqui em Lençóis, de família abastada e até hoje eles não aceitam que o irmão morreu de AIDS. Eu conheci um médico de Botucatu que fez os testes no meu braço e nas minhas costas para o grau da minha imunidade. Até aí estava tudo bem... Depois disso foi crescendo na cidade o câncer gay.” O preconceito que sofreu na época em que assumiu a homossexualidade não é nada se comparado às formas que as pessoas o atacaram porque tinham medo da doença: “Eu e um amigo passávamos na rua e falavam: ‘aidético, outdoor da AIDS’. Era coisa é pesada mesmo. Uma vez morreu um paciente no hospital e eu fiquei horrorizado com a forma que ele morreu. Não tinha remédio e a única prevenção

que tinha era a camisinha, mas ninguém usava, até hoje não usa. Um amigo meu, da farmácia, jogou um lote enorme fora porque estava vencido, jogou fora porque ninguém compra camisinha.” Mario Silvio contraiu o vírus através de uma relação desprotegida. Mesmo sabendo dos riscos e da forma de contágio, relata uma noite de loucura que o levou à doença. “Sabe um cacho de abelha Europa? Daquelas que três picadas matam? Tinha um cacho lá. Eu sabia que eu não podia mexer. E numa noite de loucura total eu transei com ele sem camisinha, porque ninguém achava a camisinha no quarto. Então eu pensei que uma vez não pegava.” O vírus ficou inoculado por dois anos. Mario Silvio descobriu porque sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral), um quadro médico que não tem nenhuma relação com a Aids, e um dos médicos sugeriu um teste para HIV. “Quando ele veio com a resposta, eu sabia que tinha sido aquela noite, uma única vez. Depois eu tive outro AVC, mas não tive doenças oportunistas, porque o AVC é um caso isolado.” Depois dos dois AVCs, Mario Silvio ainda teve um diagnóstico de neurotoxoplasmose e de câncer nas costas. “Um médico de Botucatu disse que meu caso era improvável, por eu continuar falando e lúcido.”

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Perfil dos Entrevistados

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Francine Pomini Portilho A cabeleireira Francine Pomini Portilho se define como uma pessoa meiga, carinhosa, prestativa e atenciosa. Assumiu sua condição de trans ainda muito jovem. Atualmente mora em Pederneiras, sua cidade natal. Ela fez muito sucesso na região Centro-Oeste nos anos 80 como destaque nos carnavais de rua e dos salões. “Eu acho que o que eu sou hoje se deve a tudo que conquistei. O que a gente planta é o que a gente colhe. Eu levo uma vida normal!”.

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Isabel Cristina Correia É professora e mãe de dois filhos. Se mudou para Lençóis Paulista na adolescência. Depois de 23 anos de um casamento heterossexual se separou e há seis se relaciona com uma jovem, que conheceu no trabalho. Enfrentou todos para viver a relação em que se sente completa. “Eu era casada há 23 anos, nunca tinha me relacionado com nenhuma mulher, nem sentia atração por outra mulher e de repente eu me apaixonei por essa moça, que era uma professora que dava aula na minha escola. Nunca me preocupei com o que as pessoas vão falar. Eu gosto de falar do meu relacionamento. Não tenho porque esconder.”

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João Sérgio Pimentel Atualmente é servidor público em Macatuba, cidade onde nasceu e viveu toda a sua vida. Nunca teve problema em assumir sua homossexualidade. Por seus trabalhos ligados às tradições culturais e ações sociais é muito respeitado e querido no município. “Estou com 58 anos, não tenho nada para esconder. Nunca escondi nada da minha vida, só não fiz alarde. Sempre falo com meus amigos, quando eu morrer, que eu vou ser cremado, mas se eu tivesse uma lápide, eu ia escrever: Vivi! Intensamente...”

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José Célio Montoro O cozinheiro aposentado José Célio Montoro é outro destaque dos carnavais de rua em Lençóis Paulista nos anos 80. Quando se travestia para a festa popular, se apresentava sob o codinome de Maricélia. “Eu sempre assumia a ficar à vontade no palco, entre duas plumas e um fio dental, e para mim, era alegria. Era meu mundo, parecia que eu estava nas nuvens, foi um tempo bom. Apesar de todos tropeços que tinha, todas as pedras que caíram, eu nunca me importei. Eu sempre soube armar o meu guarda-chuva”.

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Maria Cristina Haga A empresária Maria Cristina Haga, de 49 anos, vive em Bauru há 25. Na década de 90 abriu e administrou a Tina’s, uma das primeiras boates voltadas ao público gay e atendia frequentadores de toda a região. “Marília, Jaú, já chegou vir até de Tupã, que é mais longe ainda, Botucatu, Torrinha, Ourinhos, toda região, abrangia um círculo grande daqui. Pessoal de fora também conhecia. Foram 16 anos do mundo GLS. Quando eu comecei tinha poucas boates, casas ou bares GLS. Às vezes falavam em São Paulo e as pessoas conheciam, ouviam falar da Tina. Foi legal, foi bom enquanto durou”.

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Mario Silvio Marques Atualmente aposentado, Mario Silvio Marques desde muito jovem enfrentou preconceito por assumir-se homossexual. Após uma relação sexual desprotegida, contraiu HIV, que é mantido sob controle com o medicamento que é distribuído gratuitamente pelo SUS e possibilita que tenha uma vida normal. Vive em Lençóis Paulista. Ele diz que gosta muito de ler, de cinema e de música erudita. Seu Escritor preferido é Oscar Wilde, gosta muito da seguinte citação dele: “Um instante de prazer cria a dor que permanece para sempre”.

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Nilceu Bernardo O diretor de teatro e servidor público Nilceu Bernardo foi adolescente nos anos 80 e frequentou os principais bares que faziam sucesso na noite lençoense. Como espectador, acompanhou o preconceito que acompanhava os homossexuais na época e esse sentimento ser reforçado com a chegada da Aids. “Da década de 70 para frente, com os grandes nomes da música popular brasileira se assumindo, ser homossexual emitia alguma coisa de intelectualidade, de conhecimento, de sensibilidade. No interior era totalmente diferente. Era uma coisa meio que esdrúxula mesmo. Ou se assumia um papel no carnaval, como a gente tinha alguns nomes da cidade que desfilavam no carnaval da Rua XV vestido de mulher e tudo mais”

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Nivaldo Bispo Nivaldo Bispo de Carvalho é empresário, músico e atualmente trabalha com agricultura orgânica. Participou de grupos de teatro na juventude e nos anos 80 decidiu montar em Lençóis Paulista o bar Habeas Copos, que significava o “Direito ao Copo”. O bar ficou conhecido por trazer para o interior grandes nomes da Música Popular Brasileira. “O Bar era um lugar que a gente trazia pessoas muito diferentes. Entre eles havia homossexuais. O Jorge Mautner veio com o namorado. Na época era assustador, quando viram os dois juntinhos, era uma coisa... Para o público, não era muito normal, apesar deles serem músicos, bons músicos, ótimos, tocavam tudo, era isso que eu trouxe eles para fazerem. Mas, essa coisa deles estarem juntinhos, assustava um pouco as pessoas”.

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Rubya Bittencourt A drag Rubya Bittencourt é vivida pelo ator Paulo Balderramas, cujo nome de batismo é Paulo Henrique Martins. A personagem nasceu na década de 90, como uma das atrações da Fake, boate voltada ao público homossexual que funcionava em Bauru. É considerada uma referência na luta LGBT. “É muito difícil, a gente que viveu nos anos 80, falar sobre isso porque vira um paradoxo. Porque hoje nós temos tanta informação, tanto conhecimento e é tão bom viver hoje, que eu acho que fica muito mascarado esse preconceito que, ainda, assombra nossa sociedade”.

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