Jornal Plural N.4 | 2014

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CONTO AOs TEMPOs

A mulher e o rio

Por Tânia Cristina dias Rio guarda segredos, mulheres não. O velho Chico conhece muitas histórias, mas Isabel, que já não é tão jovem, conhece mais. É do tipo que fala tanto, que conversa com objetos, porta, vaso, cadeira, ferro para passar roupas... Se o seu interlocutor é dotado de movimento, tanto mais: - Já vai, né? Costuma falar com o vento empurrando a cortina da janela. – Olha que desse jeito você me mata de susto. Para o gato espreguiçando na varanda. Foi essa corriqueira mania de falar da vida alheia, ou conversar com os seres inanimados, que permutou seu livre destino por um exílio permanente. Desde que soube da estranha transmutação de Basílio, seu vizinho solteiro, repetia a mesma história para todos que encontrava: - Diz que....Basílio cansou de ser gente. Que fosse o pensar ou a vasta extensão da forma que constituía sua existência. Compromissos, trabalho, discussões em família... o que mais lhe cansava era a convicção das pernas. Essa eterna mania de andar. Esse exagero de tantos membros e articulações. Não que fosse exímio na arte dos movimentos, não se tratava disso. Mas de algo mais interiorano. Aquele jeitão que constitui um e não a outro. Peculiaridade. Era do tipo que não gostava de quase nada, alguém ou fato. Fadar-se, era rotineiro, ideológico até. Enquanto falava era possível antever na forma como torcia a boca, elevava as sobrancelhas um gosto extremo por revelar tal história. Bastava qualquer trejeito do ouvinte ou coisa, que se submetia ouvir, ela prosseguia. - Não lhe agradava compromisso, a família era um fardo genético, não gostava de gente, como também, por tanto não se agradar do que existe fora, não agradava de si. Seu corpo era estranho. Por isso o rio São Francisco, foi subterfúgio. Esperança. De assim reverter em qualquer outro tipo de forma. Não pense que ele gostava de você. Não acredite mesmo! Continuava, mal dando tempo para refazer a saliva ou a respiração. Formava aos poucos uma babinha seca e branca na extensão da sua boca. E naquele momento onde iniciava algumas pequenas fissuras nos lábios secos, ela passava rapidamente a língua, em ponta de faca, por eles e continuava sua narração. - Acredite você ou não, mas ele mergulhou os pés na água do rio e esperou acostumar àquela temperatura. Falo isso porque vi tudinho acontecendo, com esses olhos aqui.

Apontava os olhos como se fosse possível ao ouvinte tirar qualquer tipo de prova dali. À medida que apontava, aproximava mais o rosto do interlocutor. De tal forma, que era possível sentir o seu hálito de clousep. - Pisou com cuidado as pedrinhas redondas, duras e se alongou para o fundo, aos poucos. E, quando já estava todo no interior do rio... de certa forma, por certo tempo, foi um pouco homem e um nascente bicho de rio. Porque o passar das horas nas águas amolece as pontas dos dedos. Causam aqueles pequenos enrugamentos. O que ninguém sabe, é que vencer dias e noites nesta mesma imersão, gera brânquias, guelras, limo e visgo. Parava mais uma vez para se certificar do entendimento alheio. Caso não houvesse ela se apossava das suas pequenas recordações das aulas de biologia e continuava. - Mutação. Já ouviu falar sobre isso, não é mesmo? É assim que acontece com as espécies. Bicho que perde as pernas e rasteja que perde os dentes que não usa, que fica no meio de ser ave ou mamífero e outras tantas mudanças de bichos. Eu sei porque conferi, dia após dia, a mudança dele. Para dar mais ênfase ao fato, batia uma das mãos sobre a outra. Causando certa cadência entre o movimento e o ritmo de sua fala. - Foi quando vi Basílio mais Curimbatá que homem. Nesse ponto, exatamente quando acabou a sua transformação ele ensaiou um pequeno balançar de calda. Moveu-se rápido, o corpo surpreendentemente leve, aquoso, brilhante, límpido... Ensaiou um salto, bailarinou salteando água, ar, respingos, prateando e colorindo os movimentos. Era outro. Livre de si e dos outros, dos outros, de tantos outros. Enfatizava o movimento das mãos excluindo a porta, a cadeira , ou a pessoa ou bicho ouvinte a sua frente, como a dizer: Ele se livrou de você também! - E por dias, talvez semanas, (como temporalizar tempo de peixe?) bastou ver a vida, através dos seus recentes olhos redondos. Um mundo aquoso por assim dizer. Comeu do que dispunha: Lodo, algas, insetos. Vinha até a beirinha do rio, assim perto da prainha, e olhava pra gente. Parece até

que dizia: veja, sou outro, mas ainda sou infeliz! E como não dispunha de contentamento interior, nem mesmo em forma de peixe, começou a achar o bom, quase isso. O belo, já estrangeiro. Porque você sabe que existe gente assim, né? Nada está bom, bom de fato. E se tem desse tipinho no nosso mundo de gente, tem também no mundo dos bichos. Acho que tem até pedra assim: tediosa, queixosa, descontente! Respirava. Dava uma pausazinha para aumentar a ênfase de que gente assim é chata mesmo. - Tornou-se um peixe petulante, contagioso. Abusou das iscas, aproximou das redes, fezse visto, exibido. E se não teve êxito nisso, foi por muito pouco. Propiciou a perdição de uma legião de seguidores ingênuos. Em qualquer tipo de mundo , ar, terra, água, existe aquele que simplesmente não gosta. Que ousadamente deseja ser sempre outro e outro e outro. E de tanto querer peixe-Basilio, homem-curimbatá, deixou suas guelras e brânquias, deixou de ser peixe, foi virando aguinha transparente, em meio ao rio barrento, nascenteando, riocenseando caudalosamente. Bem assim do jeitinho que eu estou lhe falando... Acabava de relatar a história e perscrutava o olhar do ouvinte, a respiração, a movimentação da testa ou nariz de surpresa. Porém, depois de tanto contar e repetir, para vizinhos, geladeira, conhecidos, desconhecidos, ventiladores,maçanetas, contou para seu próprio médico. Deitaram-na em um hospital geral, na ala destinada aos transtornos mentais ou às mulheres com muita imaginação. E eu que falo e conto essa história, não relato meu próprio nome, por medo de um mesmo destino ou porque já não lembro mais como me chamo. Mas confirmo que é verdade de fato. Porque vi e assisti cada canto dessa história. Isabel, sem querer provou a dureza do corpo. E teve que viver alienada do tempo naquele hospital. Para sempre. Já Basílio feito rio prosseguiu. O rio e o homem prosseguiram livres, como os homens sempre caminham, aquosos, soberanos, seguindo seu destino mar.

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 4 | DEZEMBRO DE 2013 A FEVEREIRO DE 2014

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