Princípios, Volume 02, Número 03, 1995

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EDUFRN - Edifora do UFR


ISSN 0104-8694

PRINCIPIOS

Departamento de Filosofia

CCHLAlUFRN

Ano II - n2 3 - Jul.lDez.l1995

EDUFRN - Editora da UFRN


l Universidade Federal do Rio Grande do Norte

REITOR

Jose lvonildo do Rago

Vlce-Reltor

6tom Anselmo de Oliveira

DIRETORA DO CENTRO DE CI~NCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

Sonia Maria de Oliveira ethon

CHEFE DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Roberto Lima de Souza

COORDENADOR DA GRADUACAo DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

Lia Maria Alcoforado de Melo

CONSELHO EDITORIAL

Antonio Basilio Thomaz de Menezes

Cinara Maria Leite Nahra

Claudio Ferreira Costa

Hermano Machado Ferreira Lima

Jose Eduardo de Almeida Moura

Juan Adolfo Bonaccini

Lia Alcoforado de Melo

Maria da Paz Nunes de Medeiros

Markus Figueira da Silva

Oscar Federico Bauchwitz

EDITOR

Lia Alcoforado de Melo

EDITORACAo ELETRONICA

Fernando Minicucci Yamamoto

Ender~o: Departamento de Filosofia da UFRN, CCHLA, Campus Universitario

Lagoa Nova, CEP 50072-970 - Natal/RN PUblicayio semestral Pr~o do exemplar: R$ 5,00 Aceita-se permuta

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EDUFRN - EDITORA DA UFRN DII8900 \lJce.D1"'900 / Coordena<;Oo de Attes Coc>rc1ena¢o GratIca Capo Foto/lto Gro~

Impressao Acabomento

Si~eide Pereira Alva Medeiros FrCWlciscoGuilherme de Sa1tCWla OIovoOlivo Luiz FrCWl<;:a de Souza / Moria Jose Uma MCWloeiGerddo de AloUjo Jose Gilberto Xovier/JCWlciJiBento de NoronhcVMacos AntOnio GIIlo Equipe Iecruco do EOUFRN


Errata do artigo "A prova por reducao ao absurdo na 16gica classica", de autoria de Maria da Paz Nunes de Medeiros, publicada na Principios, v.ii, n.1. Na pag. 122 na sub-secao 1.3 Onde se h~ (A), leia-se (rA) e onde se Ie de inferencia (TA), leia-se ( I' ~A) Na na sub-secao1.4 Onde se Ie: 1) -(A/\-A)

2) (A~B) B(-AvB) 3) - \fx(A ~ B) 3x (A /\ - B) 4) (AvB),-B A 5) Teorema da Deducao (TD): se T, A B, entao I' A

~

B, onde A

e uma formula fechada. leia-se:

1) 2) 3) 4)

~-(A/\-A) ~ (A ~ B) B (- A v B)

- \fx(A ~ B) ~ 3x (A /\ - B) (A v B), - B ~ A

5) Teorema da Deducao (TD): se I', A ~ B, entao A e wna formula fechada.

r

~A ~

B, onde

Na pag. 123. secao 2 Onde foi apresentada a formula (B/\ -B) partida, leia-se (B/\ -B) No Esquema da prova Onde se Ie: 1) A 2)-C

hipotese hipotese auxiliar


i) K

1 - (i-l ), regras de inferencia ou axiomas i+1) A, C K 1 - i, deducao i+2) A -C ~ K i+1, TD i+3)A,--CvK i+2, R.Aux. (2), MP i+4) A ,-K R.Aux. (1) i+5)A , --C i+6) A,C i+7,A~C

i+3,i+4, R.Aux. (4) i+5, RN 1 - (i+6), TD

leia-se

hip6tese hip6tese auxiliar

l)A 2)-C

i) K i+ 1) A, i+2) A i+3) A i+4) A

1 - (i-I), regras de inferencia ou axiomas 1 - i, deducao ~-C~K i+1,TD ~- - Cv K i+2, R.Aux. (2), MP ~- K R.Aux. (1) C K

i+5) A ~ - -C i+6) A ~ C i+7) ~ A ~C

i+3,i+4, R.Aux. (4) i+5, RN 1- (i+6), TD

Na pagina 124, sec;ao 3, na prova por reducao ao absurdo Onde se h3

8) 'tfx (x

~<I»,'tfx (XE<I>~xEL1)?XE<I>/\X~<I>

leia-se

8) 'tfx (XE<I»,'tfX (XE<I>~XEL1) ~XE<I>/\XE<I>


APRE~EJMTACAO

Inevitavelmente, esta apresentacao nao pode escapar ao aspec足 to perigratico, quase protocolar - digamos - que constitui 0 cerne de um texto dessa ordem. Nao nos furtamos, todavia, a tarefa que nos foi confiada. Consideramo-Ia, ate, uma homenagem, sobretudo por ser sabedor do zelo extrema com que 0 corpo editorial vem cuidando desta revista, de cada texto, da sua qualidade em todos os aspectos, e isso, muitas vezes, extrapolando as medidas de nossas reais possibilidades. Ja disse Einstein, certa vez, que cada epoce e cada gera9ao elaboram sua maneira de pensar, transmitem-na e constituem, assim, as marcas caracteristicas de uma comunidade. Por isto, cada um deve participar na eteoorecso do espirito do seu tempo. E, realmente, neste espirito que os artigos aqui enfeixados refletem um momenta fecundo de producao dos nosso professores, dos nossos colaboradores que nos honram com a sua participacao. Sao trabalhos que sinalizam tendencies e interesses dentro de uma diversidade que poderiamos chamar de harmonica na medida em que ha um solo comum de fidelidade a razao em busca da verdade e do saber. Ha, em todos os trabalhos, 0 espirito do pesquisador obstinado, do perscrutador, do inquiridor. Nao ha verdades definitivas nem mquietacoes que se Iimitem ao espaco das paqlnas de que se apropriam as palavras, as ideias, os signos. Ha e havera sempre 0 espaco para 0 nao dito, mesmo quando fisicamente ja nao ha espaco.


Nao existem questoes antigas ou questoes novas em filosofia. Existem problemas que sao filosoficamente relevantes ou nao, Os que assim 0 sao, e porque se rnantern instigantes, capazes de susci足 tar nas mentes a fascinacao, a inquietacao, 0 espanto. Os interesses revelados na pesquisa filos6fica, assim, podem nos fornecer pistas nesta direcao, e uma pequena amostra disso, pode ser aqui mapeada de forma nao exclusiva. Sao aspectos selecionados do que fazemos hoje, em pesquisa no campo da Filosofia. A arte sera sempre algo que fascina e espanta. Sera ela, portanto, objeto de insuspeitas consideracoes e reflexoes. Ouestoes interessantissimas de fiJosofia da linguagem, de espistemologia, de ontologia e metafisica, de etica e de filosofia social e politica comparecem igualmente a este numero. PRINCipIOS, com mais esta edicao, vem contribuir, portanto, para projetar a nossa lnstltuicao e a nossa comunidade de pensado足 res.

Roberto Lima de Souza


A ldeta de uma "nova ordem" ou 0 remapeamento do caos: Ensaio sobre a ststernatlzacao do "mundo vital" 9

Antonio Basilio Novaes Thomaz de Menezes

o imperativo categ6rico e das liberdades

0

princlpio da coextstencla

Cinara Maria Leite Nahra

13

Revendo a distlncao constatativo/perfomativo Claudio Ferreira Costa

32

Essas coisas que somos n6s (0 sujeito na filosofia popperiana) Gustavo A. Caponi

47

o Pincel e a Camera, ou considera<;6es acerca do problema da repreaentacao na pintura e no cinema Jorge Vasconcelos

o

65

amor e a oralidade 00

J~A~m~C~~o

Peculiaridade e dificuldade do conceito de idealismo transcendental em Kant Juan Adolfo Bonaccini

Probabilidade indutiva e sua relacao com de casualidade

92 0

principio

Lia Maria Alcoforado de Melo.................................................................. 102

o

problema do mal na teodtceta de Leibiniz

Maria de Lourdes Borges

110


Anotacoes a margem das duas lntroducoes a critica da faculdade de julgar. com vistas a tdentlflcacao dos pressupostos da arte nao figurativa Maria Marta Guerra Husseini

_119

Epicuro e a morte como perda da subjetividade Markus Figueira da Silva

140

Ontologia e estettca: Uma filosofia do tempo poetico Mirian de Carvalho.................................................................................. 147

o

livre r da metaflsica de Arist6teles: ontologia - a ciencla do ser enquanto ser

Susana Amaral Vieira

155

Reflexoes sobre a amizade Epicuro de Samos

166


A ldela de uma "nova ordem" ou 0 remapeamento do caos: ensaio sobre a sisternatizacao do "mundo vital"* Antonio Basilio Novaes Thomaz de Menezes Departamento de Filosofia da UFRN/UFRJ

RESUMO

o presente ensaio traz uma breve reflexao sobre a perspectiva habermasiana de sistematlzacao do "mundo vital", examinada no quadro hist6rico da questao da "p6s-modernidade". Esta trata da relacao, apontada por HABERMAS (03:t II), entre as esferas do "sistema" e do "mundo vital", aplicada em termos de uma teoria da sociedade que se coloca frente a ideia de uma "nova ordem mundial". A ideia de uma "nova ordem mundial" situa-se no contexto hist6rico da queda do Muro de Berlim, do fim da utopia socialista, e da afirmacao do Capitalismo como a unico sistema s6cio-econ6mico vigente nivel mundial. Progn6stico de um futuro pr6ximo que desde ja se anuncia, sua contextualizacao hist6rica preconiza as novas parametres. as quais a pensamento deve obedecer como expressao de seu pr6prio tempo. Configurada no ideal de uma Europa total mente unificada, idealizada par Kojeve: au no triunfo do Capitalismo Liberal de Fukuyama, a ideia de uma nova ordem traz implicita uma mterpretacao (correta au n80) da concspcao hegeJiana de "fim de

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• Trabalho apresentado na V SEIvlANA DE HUIvlANIDADES DA UFRN - 1995 1 Optarnos pela traducao de LEBENSWELT como "mundo vital", seguindo a tradicao de alguns comentadores que distinguem 0 termo do conceito renomenol6gico de "mundo da vida".

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historia". Esta, aproximada de uma forma muito peculiar a um tipo de cornpreensao do Pos-Moderno, tal como se encontra na nocao de "Post Historie" de Arnold Gehlen. Desaparecidas as premissas do esclarecimento, como expressao da modernidade, a pos-modernidade se caracteriza a partir das suas consequencias que permanecem em vigor. Noutros termos, um quadro da rnodemizacao social auto足 suficiente, que progride em torno de uma coniuqacao da tecnica e da ciencia com as leis funcionais da economia e do Estado. Corporificado num sistema an6nimo, auto-operacionalizavel em todas as suas instancias, coordenadas nos seus sub-sistemas, este se caracteriza como imune as influencias, De modo que, pensar a ideia de uma nova ordem como remapeamento do caos na incomensurabilidade do contexto historico, implica examina-la no seu cerne funcionalista. Torna足 la como principia ordenador da realidade, enquanto nucleo de cristalizacao de uma concepcao de mundo que tem na sua raiz aquila que Habermas identifica como "sistematizacao do mundo vital". Objeto de analise, a ideia de uma nova ordem se coloca sob a otica do carater geral da retacao entre "sistema" e "mundo vital" a partir dos pressupostos de uma concepcao habermasiana da teoria da sociedade. 0 "mundo vital" se caracteriza como a conjunto de referencias do mundo cotidiano dos atores socials, situado na dimensao do entendimento intersubjetivo, enquanto pano-de-fundo nao ternatizavel da acao comunicativa, a qual serve tarnbern como celeiro cultural de conviccoes e ideias basicas. Em contrapartida, a "sistema", como oposto que Ihe e derivado, aparece como principia de tematlzacao e ordenamento instrurnental-estrateqlco dos elementos nao ternatizaveis que emergem do pano-de-fundo atraves de crises e patologias que a "mundo vital" esta sujeito no processo de raclonalizacao social. Assim, dentro dessa perspectiva, considera-se a "sistema como um desdobramento do proprio "mundo vital". Caraoteriza-se entao uma ligac;ao indissociavel entre as terrnos, que tem no "sistema" a limite da torca explanatoria, de resolucao de crises e expncacao de paradoxos do "mundo vital", as quais ele esta sujeito pelo proprio carater dinamica que apresenta. Em termos gerais, a interpretacao de uma nova ordem como remapeamento do caos, se aproxima dessa ideia de indissolubilidade entre "sistema" e "mundo vital" como elementos constitutivos do "complexo dialetico" que caracteriza a sociedade na sua dupla face: da inteqracao social, cujas ortentacoes sao colhidas no mundo vital; e da integracao slsternica, produzida pelos modos estrateqicos de ordenar a acao. Tal aproxirnacao so e possivel na medida em que, a

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ideia de uma nova ordem mundial tem implicito 0 pressuposto de uma sociedade global, que se articula sobre 0 pano-de-fundo de um largo espectro de contextos IingOisticos-culturais, e que se racionaliza diante das evidencias tematizadas do mundo vital. Pensar 0 sentido de remapeamento na ideia de uma nova ordem, e pensar 0 carater dmamico que se apresenta em dois niveis: do sis足 tema, na instancia de apropriacao dos elementos do mundo vital e no desenvolvimento da sua propria dinarnica, e do mundo vital, na sua relacao COJTl 0 sistema e como horizonte possivel de ternanzacao. Nes足 se sentido, 0 carater de reterritorializacao na sistematizacao do mun足 do vital, implica numa redefinicao dos parametres caracterizadores doslimites de cornpreensao para a velha divisao de mundos em termos de uma sistematizacao global, a partir da diversidade de contextos no qual 0 mundo vital se caracteriza como caos. Habermas(2:45-92) discutindo com Marcuse, sobre 0 carater da sisternatlzacao tomada na sua estrutura funcional, salienta a ideia de deslocamento dos conflitos, do interior do sistema para a periferia, como modelo de sistematizacao. Este, enquanto uma forma de reterrttorializacao do sistema, pode ser compreendido em dois aspectos. 0 primeiro, de um enfoque "rnicroscopico", do interior das sociedades, que se caracteriza pela formacao de guetos e de um imenso contingente de excluidos, que como tais estao incorporados no interior da sua estrutura. E 0 segundo, de um enfoque "macroscopico", de uma dlvisao mundial de paises, onde 0 mesmo modelo sistematico se repete, diferenciando-se apenas nas formas e graus de vlolencia quelhe e implicita. Assim, sobre a velha divisao economicista entre primeiro e terceiro mundo se coloca uma nova ordem transnacional que tem a face de um sistema anonimo, auto-operacionalizavel, 0 qual se diferencia apenas no processo de sisternatizacao do mundo vital em suas diferentes instancias, Oeste modo, 0 dito "primeiro mundo", pode ser caracterizado pelo processo de sisternatizacao que se operacionaliza no contexte de uma socializacao democratica com a destruicao lenta, mas progressiva dos valores e culturas de tradicao salida. Eo "terceiro mundo" atraves de um processo de sistematizacao que se operacionaliza no contexte de uma sociallzacao selvagem com a destruicao acelerada dos valores e culturas recentes. As consequencias de tais processos, ainda que se diferencie em cada caso, como especificidades regionais do processo de slsternatizacao, todos apresentam um dado comum: a reacao violencia da sistematizacao do mundo vital, diante da sua propria deqradacao.

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Contudo, pela pr6pria complexidade dialetica que envolve a relacao entre sistema e mundo vital, a resposta a deqradacao do mesmo pela sisternatizacao nao se reduz apenas aos aspectos patol6gicos das sociedades au as res pastas possiveis no interior do pr6prio sistema como movimentos (feminista, gay, ecol6gico, etc ...) de contestacao. Do mesmo modo, para alern dos simples efeitos, a resposta a deqradacao do mundo vital tam bern implica uma maior cornplexiflcacao do mesmo, como uma forma de recuo a medida que avanca a processo de sistematlzacao. Pano-de-fundo nao ternatizavel da acao comunicativa, a mundo vital absorve a desdobramento da sisternatizacao e as seus efeitos, enquanto celeiro IingOistico-cultural de urn tipo de comunlcacao situada, que data-os de urn novo sentido na pratica intersubjetividade cotidiana, como forma de escapar a malha estrateqico-instrurnental do sistema, atraves da sua cornplexificacao. Nessa medida, pensar a nova ordem em term as criticos do processo de slsternatlzacao, atraves do carater dlnarnlca da relacao entre sistema e mundo vital, significa resgatar a velho ideal de ernanclpacao esquecido pela p6s-modenridade. Recolocando a pr6prio projeto do esclarecimento sob urn novo prisma: como "possibilidade de urn projeto de vida nao-tracassado" (HABERMAS, 1:182), no interior da estrutura do proprio sistema.

REFER~NCIAS BbBLIOGRAFICAS 01. HABERMAS, Jurqen. Pensamento Pos-Metaflsico. Rio de Janeiro: Tem足 po Brasileiro, 1990. 02.

Tecnica e ciencia como ideologia. Lisboa: Edic;:6es 70,1987.

03.

Teoriade la accion comunicativa. Tomo II. Madrid:Taurus, 1987.

04. SIEBENEICHLER, Flavio B. Jurqen Habermas. Razao Comunicativa e Ernancipacao. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.

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imperativa categ6rica e a principia da coextstencia das liberdades

Cinara Maria Leite Nahra Departamento de Filosofia da UFRN

RBStl:JMO

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presente artigo denominado 0 Imperativo Categ6rico e 0 Principio da Coexisiencie das Liberdades foi apresentado na forma de conferencia no curso de extensao em Etica e Filosofia Politica promovido pelo Departamento de Filosofia da UFRN. o artigo trata da relacao entre 0 Imperativo Categ6rico de Kant eo principio universal do direito denominado por Kant de principio de coexistencia das liberdades. A tese maior sustentada pela autora a de que 0 principio universal do direito s6 pode ser perfeitarnente compreendido a luz da teoria moral kantiana. As teses menores sao as de que 0 conceito de justica em Kant corresponde ao conceito deconformidade ao dever e a de que existe em Kant uma hierarquia entre moral, direito e politica devendo a politica estar subordinada ao direito e este a moral.

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1. 0 imperativo categ6rico e cia das Iiberdades

0

principio da coexlsten足

A nOy80 de contrato social em kant serve como modele para que as leis humanas sejam,de alguma forma, favorecedoras de um mundo mais moral, ou menos imoral, mais etico. Tudo se passa como se, algum dia, os hom ens tivessem consentido em abdicar do estado de natureza, um estado injusto, e tivessem contratado a entrada no estado de civilizacao. Qual a caracteristica do estado de civilizacao? A exlstencla de leis visando 0 estabelecimento da justica. E exatamente isto 0 que

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Kant procura, ou seja, 0 justo. Se a procura de kant no que se refere a sua filosofia pratica em geral e sobre 0 que e moral, 0 que e certo ou errado, no que se refere a sua filosofia do direito a procura recai sobre o que e justo. Na Rechtslehre Kant (2:103) questiona 0 que e 0 direito e indica um caminho para responder a questao. Nao devemos procurar 0 que eo direito conjunturalmente, em cada epoca, mas devemos questionar qual e 0 criterio universal pelo qual podemos conhecer 0 justa e 0 injusto. Para fazer isto devemos abandonar os principios empiricos e realizar a investiqacao na propria razao, a fim de a partir dai estabelecer os fundamentos para uma legislac;:ao empirica posslvel. Kant (2:104) entao, vai estabelecer 0 principio universal do direito, o principio da coexistencia das liberdades, assim enunciado: "Ejusta toda ar;ao que permite, ou cuja maxima permite, que a liberdade de arbitrio de cada um coexista com a liberdade dos outros, segundo uma lei universal" 2.

Kant (2:105) segue afirmando que "se minha ar;ao ou meu estado pode coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal, aquilo que impede ou obstaculiza isso e, em relar;ao a mim, injusto; em efeito esta opo足 sir;ao, esta resistencie, nao pode coexistir com a Iiberdade segundo leis universais".

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injusto, entao, em Kant nao e apenas a nao coexistencia das liberdades, ou seja, quando 0 exercicio da liberdade de alquern afeta o exercicio da liberdade de outro. E claro que quando alquem utiliza de sua liberdade de um modo que interfere na liberdade alheia este alquem esta cometendo um ate injusto. 0 injusto, porern, e mais do que isso. Atos injustos nao serao somente aqueles que interferem ativa足 mente na liberdade alheia, como por exemplo, um assassinate ou um sequestro, mas serao tambern aqueles que interferem passivamente na liberdade do outre, ou seja, aqueles que interditam acoes que po足 dem perfeitamente coincidir com a Iiberdade de todos. Assim e que se uma pessoa pratica qualquer ate que nao fere a liberdade de outro, estando de acordo com uma lei universal, interditar ou proibir este ate e cometer uma injustica.

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Antes de seguir adiante e necessario entender em que sentido Kant esta empregando 0 conceito de liberdade aqui. Kant distingue dois sentidos de liberdade. 0 primeiro e a liberdade transcendental (cosrnoloqica) que e a faculdade de iniciar espontaneamente um estado e cuja causalidade nBo esta sob outra coisa que a determine quanta ao tempo (KrV 562 B). 0 segundo e a liberdade pratica que definida (KrV 5628) como a inoepeoaencie do arbitrio frente a coerciio pelos impulsos da sensibilidade. A liberdade pratica negativa e definida (GM ) como sendo a propriedade da vontade de agir independentemente de causas estrennes que a determinem, e a positiva (autonomia) como a propriedade da vontade de dar a lei para si propria (GM) ou como causalidade de um ser enquanto e/e pertence ao mundo inteligivel (KpV.). A liberdade a que Kant se refere no principio de coexistencia das liberdades e a liberdade pratica negativa, ou seja, aquela que se refere a capacidade que os homens tern de agir por sua vontade propria, sem impedimentos ou obriqacoes externas. Vamos tentar entender exatamente 0 que Kant enuncia neste principio que ele chama de principio universal do direito. Relendo 0 principio Kantiano.entao, a luz desta expllcacao sobre 0 conceito de liberdade, podemos dizer que ele enuncia que e justa toda acao que permite, ou cuja maxima permite, que os individuos facarn 0 que bem entenderem na sua .etacao com os outros, desde que este "fazer 0 que bem entende" esteja de acordo com a lei universal. Ja injusta sera toda acao que impede que os individuos facarn 0 que bem entenderem na sua relacao com os outros, se este "fizer 0 que bem entende" estiver de acordo com a lei universal. Mas que lei universal e essa que nos fala Kant? Nao pode ser outra senao a lei moral, que no campo humane assume 0 carater de Imperativo Cateqorico. 0 que Kant diz, pois, segundo nossa interpretacao, ao enunciar 0 principio de coexlstencia das liberdades, e 0 seguinte: (i) Sao justos todos os atos praticados por X que podem coexistir com a Iiberdade de todos, nao ferindo 0 Imperativo Cateqorico (nao sendo contraries ao dever). (ii) Se um ate praticado por X pode coexistir com a liberdade de todos, nao ferindo 0 Imperativo Cateqorico (nao sendo contrarlo ao dever), qualquer ate que obstaculize ou impeca 0 ate de X, e injusto. (iii) Sao injustos todos os atos que obstaculizam ou impedem a liberdade de X se a liberdade de X pode coexistir com a Iiberdade de todos.

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Para continuar a nossa exposicao sobre esse principio maior da filosofia do direito kantiana, 0 principio da coexistencla das liberdades, sera necessario fazer um lange parentese a fim de esclarecer a nocao kantiana de Imperativo Cateqorico, [a que na mterpretacao que estamos fazendo. ambos estao intrinsecamente relacionados.

2. 0 imperativo categ6rico

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Imperativo categ6rico Kantiano e assim enunciado na segunda secao da Grunlegung zur Metaphysik der Sitten: "Age unicamente se足 gundo uma maxima que tu possa querer, ao mesmo tempo, que ela se tome uma lei universal" . Kant entende que mesmo 0 entendimento comum pode distinguir qual forma e ou nao e, na maxima, capaz de se adaptar a uma legislac;:ao universal. Segundo ele: "Se nos perguntamos qual e a pura moralidade que deve, como uma pedra de toque, servir para reconhecer a importencte moral de cada a~ao, devo avisarque somente os fil6sofos podem tor足 nar duvidosa a solu~ao desta auestso, pois na razao comum dos homens ela 13, nao por f6nnu足 las gerais e abstratas, mas pelo uso habitual, desde muito tempo resolvida, como a distin~ao entre a mao esquerda e a mao direita" (KANT,

3:165). Apesar disto, Kant devera discutir filosoficamente esta questao, Se a maxima pode ser universalizada ela se adapta a uma legislac;:ao universal,caso contrario nao. Mas 0 que significa, no campo do pratico, a possibilidade da universalizacao? Quando uma maxima pode ser universalizada e pode valer como principio de uma legislac;:ao univer足 sal? Quando essa maxima, uma vez adotada por todos, nao se destr6i necessariamente ou nao coloca a razao em conflito consigo mesma. Kant no scollo do Teorema 3 da Kritik der praktischen Vernunft vai dar 0 exemplo do dep6sito. Tenho como maxima aumentar meus rendimentos por todos meios seguros. Tenho tarnbem.ern rnaos.urn deposito cujo proprietario morreu e nao deixou nada escrito. Pode ser uma lei universal meu principio de negar um deposito quando ninquern pode provar que ele me foi confiado? Nao, pois este principio,uma vez universalizado se auto-destruiria ja que teria como resultado a supressao de todo deposito. que devemos fazer aqui um exercicio de abstracao a fim de que seja possivel compreender a questao da moralidade que e sempre

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anterior ao direito e as leis do Estado. Sabendo-se de anternao que todos vao negar que possuem em rnaos um valor pertencente a outro quando for impossivel prova-Io, ninquern mais confiaria valores a ninquern, pois so tem sentido confia-Ios quando esta praticamente acordado que eles serao devolvidos. Se todos sabem de anternao que ninquern devolve ernprestlmos, entao desaparece a pranca de realizar ernpresnmos. E possivel traduzir este exemplo contempora­ neamente. Se todo mundo soubesse que os depositos feitos em bancos nao seriam creditados na conta do cliente, ninquern mais efetuaria estes depositos levando isto, consequenternente, a destruicao da pratica e portanto da maxima de depositar em bancos. 0 que ocorre neste exemplo a que as rnaxirnas nao cabem como principios univer­ sais da acao a medida em que, ao serem adotadas por todos, causam a destruicao das praticas pelas quais elas sao responsavets, conse­ quenternente destruindo-se. Ja no classico exemplo da promessa 0 que ocorre teoricamente mais forte do que 0 que acontece nos casos acima citados. Neste exemplo Kant(4:104) nos diz que:

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"Para resolver de modo mais curio e segura 0 problema de saber se uma promessa mentirosa conforme ao dever,preciso somente perguntar a mim mesmo: Ficaria eu satisfeito de ver minha maxima(de me tirar de apuros por meio de uma promessa nao verdadeira) tomar 0 valor de lei universal? E poderia eu dizer a mim mesmo:toda gente pode fazer uma promessa mentirosa quan­ do se acha em uma dificuldade que nao pode sairde outro modo? Reconheco que posso, em verdade, querer a mentira,mas nao posso que­ rer uma lei universal de mentira, pois, segundo tal lei nao poderia haver ja promessa alguma, porque seria inutit afirmar minha vontade relati­ vamente as minhas al}oes futuras a pessoas que nao acreditariam em minha afirmal}Bo. ou ,se precipitadamente 0 tizessem, me pagariam na mesma moeda. Por consegDinte a minha maxi­ ma, uma vez arvorada em lei universal, destruir­ se-ia necessertemente"."

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Uma lei universal de mentira teria 0 seguinte teor: 'Todos devem mentir, ou seja, toda vez que alquern afirmar algo ou afirmar a sua mtencao relativamente a atos futuros deve faze-lo de modo falso". Em tal caso toda vez que alpuern prometesse algo a outrern tudo 0 que

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saberiamos sobre 0 objeto da promessa e que ele nao seria realizado. Se urn devedor prometesse saldar uma divida saberiamos que ela nao seria saldada, se urn patrao prometesse urn aumento de salario saberiamos que ele nao seria dado, se urn governo prometesse a conclusao de uma obra saberiamos que ela nao seria concluida. Diferentemente dos casos anteriores em que a universalizacao das maxirnas acarreta sua auto-dissolucao, no exemplo da falsa promessa a universalizacao provocaria nao so a dissolucao da maxima como a destruicao da racionalidade no campo da acao. Seria absolutamente irracional que os seres humanos, ao declararem suas intencoes de a980 devessem faze-Io sempre de modo falso. 0 resultado pratico rnais provavel disto seria 0 de que sob a vigencia de semelhante principio pratlco nenhum sistema de leis poderia ser aplicado e nenhuma sociedade vingaria. . No exemplo do suicidio tam bern ocorre destruicao da maxima. A questao colocada por Kant e sobre se uma pessoa sofrida e desesperada que nao ve perspectiva de sair desta sltuacao ao longo de sua vida esta moral mente autorizada a cometer suicidio. A pergunta quando universalizada se coloca do seguinte modo:"Por amor a si mesmo as pessoas podem dar cabo a sua vida quando e racional supor que Ihes aguarda mais sofrimentos do que alegrias?" No caso 0 principio que orienta a maxima do suicidio e 0 do amor de si. 0 principio do amor de si, entretanto, tern como funcao ultima a conservacao da vida. Ao universalizar a questao vemos entao que e impossivel que urn principio que tern como objetivo a preservacao da vida possa orientar, ao mesmo tempo, a desnuicao da vida. Assim e que a maxima que ordena 0 suicidio na adversidade se destroi quando universalizada. Quando Kant (3: 140) fala de destrulcao das maxirnas nos tres exemplos acima aduzidos, ele aponta para 0 fa to de que certas rnaximas.se sao universalizadas,aniquilam a si mesmas,ou seu objeto, no caso,as promessas , os depositos e a vida. E importante atentar para 0 fato, no entanto, de que existem alguns exemplos, como 0 do talento e da caridade que nos apresentam maxirnas que nao se auto足 destroem quando universalizadas mas que nao podem servir como leis universais. No exemplo do talento Kant se questiona sobre se os homens estao moralmente autorizados a serem negligentes em relacao ao desenvolvimento de seus talentos naturais e abandonarem-se ao prazer e ao gazo da vida. No caso, nao haveria destruicao da maxima porque e perfeitamente possivel que ela subsista ao ser universalizada.

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o que nao e possivel, entretanto, e que os homens queiram que ela se tome lei universal da natureza. o mesmo se da no exemplo da caridade. E perfeitamente possi­ vel que subsista uma lei universal que ordene aos homens que impor­ tem-se somente com sua vida e nada facarn para auxiliar aqueles que se encontram em pior situacao. Impossivel, no entanto, e querer se­ melhante lei. Esta impossibilidade de que queiramos a universali­ zacao de certas rnaxirnas e aventada novamente por Kant(4:142): "Se prestarmos aten980 ao que se passa em nos mesmos sempre que transgredimos qualquer dever, descobriremos que na realidade n80 que­ remos que nossa maxima n80 se tome lei uni­ versal, porque isso nos IMPOSSIVEL; 0 con­ trerio dela que deve universalmente continuar a ser lei; nos apenas tomamos a liberdade de abrir nela uma exce980 para nos, ou em favor de nossa inclina980. Assim, se conskiersssemos tudo partindo de um s6 ponto de vista, 0 da ra­ Z80, encontrariamos uma contreaiceo (Widerspruch) na nossa propria vontade, a sa­ ber: que um certo principio seja objetivamente necesssrio como lei universal e que subjetiva­ mente n80 deva valer universalmente, mas per­ mita exce90es. Mas como, na realidade, consi­ deramos nossa a980 ora do ponto de vista de uma vontade totalmente conforme a rezso, ora, por outro lado, vemos a mesma a980 do ponto de vista de uma vontade afetada pelas inclina­ 90es, n80 h8 aqui verdadeiramente nenhuma contradi980, mas sim uma resistencte da inclina­ 980 as prescri90es da rezso, pela qual a resis­ tencia a universalidade do principio se transfor­ ma numa simples generalidade, de tal modo que o principio prstico da rezso se deve encontrar a meio caminho com a maxima. "

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Qualquer espirito com vocacao filos6fica nao pode deixar de se perguntar sobre qual e 0 carater dessa impossibilidade do querer. Por que os homens nao podem querer a universaiizacao de algumas rnaxirnas que sobrevivem ao criterio da auto-destruicao? Uma vontade que quisesse a universalizacao de rnaximas contrarias ao dever seria uma vontade diab6lica. Kant se refere a uma vontade ou ser diab6lico na sua obra Die Religioninnerhalb der Grenzen der blosen Vernunft para dizer que 0 principio do mal entre os homens

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nao deve ser procurado nem em tal vontade nem na sensibilidade. Kant(5:78) define uma intencao diab61icacomo uma intenc;ao( principio subjetivo das rnaxirnas) de admitir 0 mal enquanto mal como motivo em sua maxima e diz que: "0 principio do mal nao pode ser colocado em uma depravarrao da razao morallegisladora pois seria necesserio poder extirpar desta a autori­ dade da lei e negar a obrigarrao que dela deriva, o que impossivel. Conceber um ser agindo Ii­ vremente e desobrigado da lei moral seria con­ ceber uma causa agindo fora de toda lei, 0 que seria contradit6rio"

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Segue Kant(5:78) afirmando que: "Para fundamentar 0 mal moral conceber uma rezso Iiberada da lei moral, maligna sempre( uma vontade absolutamente me) seria demais, por­ que assim a oposirrao a lei seria elevada ao grau de motivo (pois sem um motivo 0 arbitrio nao pode serdeterrninado) eo sujeito se tomaria um ser diab6lico. Este caso nso se aplica aos ho­ mens".

Estas passagens da Religiao nos fornecem a chave para a com­ preensao do carater da impossibilidade de querer a unlversalizacao de rnaximas que nao se auto-destroem. A natureza humana e sensivel e racional nao sendo possivel fugir a isto. Embora os homens devam tentar aproximar-se 0 mais possivel de uma suposta vontade santa, total mente racional, a total equiperacao a esta vontade ou seja agir sempre racionalmente impossivel para os hom ens, dado que sua natureza tarnbern sensivel impede a concretizacao deste ideal. Assim como nao podem fugir a sua condlcao de seres sensiveis os homens tambern nao podem fugir a sua condicao de serem dotados de racio­ nalidade. fato dos hom ens serem dotados de razao faz com que eles desde sempre reconhec;:am as leis dadas por esta. Reconhecer as leis da razao e reconhecer 0 dever. 0 reconhecimento do dever e, entao, inato ao homem dada sua natureza racional e por isso,todos os homens sao capazes de apontar acoes conformes ou contrarias ao dever. Entao e impossivel para os seres humanos que desde sempre sao tarnbern racionais, negar a obriqacao derivada da lei moral. Um ser humane diab61ico que seria um ser nao animal, porque dotado de livre-arbitrio , e que agiria sempre de acordo com rnaxirnas

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imorais tomando sempre maximas contrarias ao dever como principio de sua acao, seria um ser irracional porque nao reconheceria 0 dever. Um ser dotado de livre-arbitrio e totalmente irracional nao seria huma­ no, e portanto nao podem existir seres humanos dotados de livre­ arbitrio e totalmente irracionais, que seria 0 caso dos seres dotados de vontade diab6lica. E impossivel,pois, que existam seres humanos diab6licos.Se existem seres diab61icos eles nao sao humanos, e se os seres sao humanos entao nao sao diab6licos. E esse 0 carater da impossibilidade gerada no querer que aven­ tavamos nos exemplos anteriores. Sendo a vontade humana nao dia­ b61ica e impossivel para ela querer a universalizacao de maximas que sao flagrantemente contrarias aos ditames da razao. Feita essa longa exposicao sobre 0 Imperativo Categ6rico, po­ demos voltar, agora, ao princlpio universal do direito, que considera como justa toda acao que permite que a liberdade de cada um coexista com ados outros segundo uma lei universal, e como injusta toda acao que pode coexistir com a liberdade dos outros segundo uma lei uni­ versal e que e impedida ou interditada. Assim sendo, e claro que uma acao como uma tentativa de as­ sassinato seria evidentemente injusta, a medida que a liberdade de arbltrio do agente (no caso 0 individuo que tentou 0 assassinate) con­ flitua com a Iiberdade da vitima (0 individuo que sofreu a tentativa de assassinato). Tarnbern seria injusto, por exemplo, qualquer ate que proibisse os individuos de usarem barba, a medida que 0 usa da bar­ ba nao conflitua com a liberdade dos outros. Vamos, entretanto, analisar um outro caso, como seria 0 do roubo. Vamos supor 0 individuo X que rouba uma determinada quantia do individuo Y. Analisada a acao a luz do principio da coexistencla das liberdades seria possivel dizer que 0 ate de X nao pode coexistir com a liberdade de Y? Apenas se conskierassemos que Y (a vitima) tem a liberdade de ter dinheiro e de usufruir deste do modo que melhor Ihe aprouver. Mas se e assim, X (0 ladrao) tarnbern poderia argumentar que existe uma soma finita de riquezas e que se Y tem riquezas que X nao tem ele estara interferindo na liberdade que supostamente X (0 ladrao) teria de usufruir destas riquezas. Como seria possivel, entao, dizer que 0 ate de X, roubando Y, injusto? S6 poderemos caracterizar 0 ate de X (0 ladrao) como injusto se levarmos a serio a expressao segundo uma lei universal que faz parte da defini<;:ao do principio universal do direito. Em nossa loterpretacao, pois, 0 principio da coexistencia das Iiberdades, que 0 princlpio uni-

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versal do direito, definiria como sendo justa toda acao que permite, au cuja maxima permite, que as individuos facarn a que bem entende­ rem na sua retacao com as outros, desde que este "fazer a que bem entende" esteja de acordo com a lei universal. Ja injusta sera toda a980 que impede que as individuos facarn a que bem entenderem na sua relacao com as outros, se este "fazer a que bem entende" estiver de acordo com a lei universal. Mas a lei universal nada mais do que a lei moral, que no campo humano toma a forma de Imperativo Cateqorlco, e assim, justa seria toda a9ao que permite que as individuos tacam a que quiserern na sua relacao com as outros desde que isto nao fira a Imperativo Cate­ gorico, assim como injusta e toda a9ao que impede que as individuos tacarn a que bern entenderem na sua relacao com as outros se este "fazer a que bem entende" nao ferir a Imperativo Cateqorico. A luz desta mterpretacao e possivel caracterizar a roubo cametido par X como injusto, a medida que a exercicio de seu livre-arbitrio, neste case, conflitua com a liberdade do outro segundo uma lei uni­ versal, au seja, contrario ao Imperativo Cateqorico. 0 individuo X, ainda que possa cometer a roubo, nao pode querer que se instaure uma lei universal de roubar. A liberdade que X tem de roubar nao pode coexistir com a Iiberdade de Y segundo uma lei universal, en­ quanta que a liberdade que Y tem ,de ter dinheiro e usufruir deste , pode perfeitamente coexistir com a liberdade de todos segundo uma lei universal. principia universal do direito e norteado pelos mesmos funda­ mentos do imperativo categ6rico, au seja, a razao, a universalidade e a forma. A diferenca que enquanto a Imperativo Cateqorico nos for­ nece uma regra para julgar se nossas a90es sao au nao contrartas a moral, a principia do direito nos fornece uma regra para determinar se elas sao justas au nao. 0 Imperativo Cateqonco um principia capaz de orientar a a9ao individual, e a principia do direito e capaz de ori­ entar as leis, as consutuicoes e as Estados. Epossivel que uma acao seja justa e nao seja moral? A res posta Kantiana parece ser sim, Toda a sua distin980 entre "agir par dever" e "agir conforme ao dever" parece fundamentar esta resposta. Para Kant, uma a980 s6 "por dever", au seja, s6 moral, se realizada sem nenhum interesse ,sendo motivada pela mera representacao do Imperativo Cateqorlco. As a¢es realizadas em fun980 de algum calcuo interessado, ainda que nao estejam em contradicao com a Imperativo Cateqorico. sao consideradas acoes "conforme ao dever", mas nao sao acees marais.

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o exemplo do comerciante trazido da Fundamenta9ao da Meta­ fisica dos Costumes em que este fornece 0 troco certo a uma crianca nao por uma mera representacao do dever mas sim por urn calculo interessado, e bastante elucidativo. 0 comerciante nao agiu moral­ mente, nao agiu "por dever", a medida em que a motivacao da acao foi 0 interesse em manter 0 nome do estabelecimento ou algum outro deste tipo. Entretanto, ele agiu justamente, agiu "conforme ao dever", a medida em que sua acao n80 e contraria ao Imperativo Categ6rico. Tal a980 - fornecer 0 troco certo a uma crlanca- tarnbem e perfeita­ mente compativel com 0 principio da coexistencia das Iiberdades, sendo, pois,uma acao justa. Parece haverem Kantuma coincidencia entreas acoes"conforme ao dever' e as acoes "justas", de modo que toda a980 conforme ao deverseriaumaa980justa,e vice-versa. Poroutro lado, evidentemente, nao ha coincidencia perfeitaentre 0 campo da moralidadee da justica, a medida em que toda a980 moral seria uma a980 justa, mas nem toda a980 justa seria uma a980 moral. Porem, apesar de n80 necessariamente haver correspondencia entre agir moralmente e agir justamente, deve haver na filosofia kan­ tiana correspondencla entre 0 legal e 0 justo, de modo que 0 legal seja o justo. Eo legal sera 0 justa quando as leis derivarem deste principio geral do direito que a 0 da coexistencla das liberdades. o ideal de direito de kant a 0 de uma sociedadeem que cada urn possa gozar plenamente de sua liberdade, desde que este exercicio da liberdade n80 afete 0 direito que os outros tern de tarnbem gozar de sua liberdade, tudo dentro dos limites daquilo que a conforme ao dever. Ha na sua filosofia urn profundo respeito ao cldadao, ao indivi­ duo. Os individuos podem exercer 0 seu arbitrio como quiserem, mas nao devem poder agir contrariamente ao que a razao determina. Em ultima instancia, 0 limite da liberdade a 0 limite da razao e qualquer sistema legal deve estar fundamentado nesta concepcao, A filosofia Kantiana toma profundamente a seno 0 respeito pelo in­ dividuo e pela individualidade, masconsiderando 0 individuo comomembro deumacomunidade deseres dotados derazao pratica quedevem interagir entre si e aJjos atos n80devem poder invadir 0 limite da liberdade do outro. Quando os atos praticados porX naointerferem na liberclade de nenhum Y, sendo conformes aodever, qualquer leiqueseja feita obstacelizando osatos praticados porX,obstaculizendo a liberclade deX, einjusta. A intervem;:ao do Estado navidadosindividuos deveserlimitada. 0 Estado naodeveinterferir navida deurnsujeito quando estesujeito naoestaagindo contra a liberdade de outras pessoas. Principios. Natal, a. II, n. 3 Jul./Dez. 1995

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Porern, quando a ayao do sujeito coloca em risco a Iiberdade de outras pessoas, a intervencao do Estado se justifica plenamente. Assim que, quando ha uma violacao a regra geral da coexistencia das liberdades, esta plenamente justificada a aplicacao da pena no sentido de restringir a Iiberdade daquele que arneaca a liberdade alheia. Kant (4:106) chega mesmo a dizer que "0 direito e a faculdade de cons­ tranger sao uma e mesma coisa". Faz parte, entao, da nocao de direito, a arneaca, 0 constrangimento, a apncacao da pena. No plano moral isto completamente diferente. No plano moral 0 individuo nao pode levar em conta na sua acao motlvacoes empiricas, como por exemplo "fazer algo para nao sofrer as conseqOencias pe­ nais". No plano do direito,ao contra rio, seria praticamente impossivel pensar um Estado em que nao houvesse modo de constranger os individuos a cumprir suas leis. No texto Sobre 0 dito comum: isto pode ser certo em teoria mas nada vale na pratica de 1793, Kant nos diz que 0 direito a limitayao da Iiberdade de cada um a condicao de sua consonancia com a Iiber­ dade de todos, enquanto esta possivel segundo uma lei universal; e o direito publico 0 conjunto das leis exteriores que tornam posslvel semelhante acordo universal. E ja que toda a restncao de liberdade pelo arbitrio de outrem chama-se coacao, segue-se que a constituicao civil e uma relacao de homens livres que ( sem dane de sua liberdade no todo de sua ligayao com os outros) se encontrariam, no entanto, sujeitos a leis coercivas. Ainda neste texto ele vai afirmar que 0 estado civil considerado como situayao jurldica, funda-se em tres principios a priori que seriam a Jiberdade de cada membro da sociedade como homem, a igualdade deste com todos outros,como sudito e a inde­ pendencia de cada membro de uma comunidade como cidadao, Estes prindpios nao seriam leis que 0 Estado ja instituido da, mas leis segundo as quais apenas e posslvel uma institui y80 estavet, segundo os puros prindpios do direito . Pode-se dizer que estes prin­ cipios seriam, entao, os principios a partir dos quais deve se fundar 0 Estado. Vai nos interessar discutir aqui 0 primeiro destes principles. que a liberdade. A liberdade como prindpio para a consntutcao de uma comuni­ dade expresso na formula:

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"Ninguem pode constranger ninguem a ser feliz

a sua maneira mas a cada um iJ permitido bus­ car a felicidade pela via que Ihe parecer boa, contanto que nao cause dana a liberdade aos outros (isto 13, ao direito dos outros) de aspirar a

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um fim semelhante e que pode coexistir com a liberdade de cada um, segundo uma lei univer足 sal possivel. Um govemo que ditasse aos sudi足 tos a maneira como eles devem ser felizes seria o maior despotismo que poderia haver" (Kant,

6:127).

Com relacao a felicidade Kant em varios momentos de sua obra considera a felicidade como questao de foro intimo; 0 que a felicidade para um pode nao ser para outro, e nao ha nada que obrigue as pessoas a colocarem algum determinado objeto como devendo ser universalmente perseguido para que elas sejam felizes. Kant (5:154) vai dizer que a proposicao "salus publica suprema civitatis lex est", ou seja, 0 bem publico a suprema lei do Estado conserva intacto seu valor e autoridade, mas 0 bem publico que mais importa levar em conta e justamente a constitulcao legal, que garante a cada um a sua Iiberdade mediante leis, pelo que fica ao arbitrio de cada um buscar a felicidade pelo modo que melhor Ihe parecer, desde que nao cause dana a liberdade legal geral , por consegOinte, ao direito dos outros como suditos. que 0 Estado deve fazer, entao, nao prescrever em que deve consistir a felicidade de cada individuo, mas sim, simplesmente garantir as condicoes de possibilidade da felicidade de cada individuo. Trata足 se de gerar e garantir 0 conjunto de condicoes formais a partir das quais cada individuo estara em condicoes de construir sua vida e buscar sua felicidade do modo que Ihe parecer melhor. A primeira destas condlcoes justamente a garantia de que se 0 individuo nao ferir a Iiberdade do outro ele tambern nao sofrera interdicao no usa de sua liberdade, ou seja, ele podera levar sua vida como quiser. Observe-se, aqui, como e estreita a faixa na qual deve se situar o Estado, e como dificel que ele se mantenha dentro dos seus dominios. Se ele nao garantir esta condicao minima aos individuos, que a condicao da coexistencia das Iiberdades, corre-se 0 risco de cair numa versao kantiana daquilo que Hobbes chamou de "guerra de todos contra todos", ou seja, um estado de possibilidade iminente de conflito, ja que a Iiberdade de cada um estaria permanentemente arneacada, e com isso, estaria tarnbern permanentemente arneacada a sua dignidade. Por outro lado, se 0 Estado pretender ir alern da garantia destas condlcoes formais e arvorar-se 0 direito de prescrever o que deve constituir 0 objeto da felicidade de cada individuo, cai-se no extrema oposto e 0 Estado passa a ser desp6tico ameacando, entao, justamente a liberdade que ele deveria garantir.

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Dentro da concepcao kantiana 0 direito natural fundamental e 0 direito a Iiberdade. Na Rechtlehre, Kant(2:111) nos diz: "Liberdade (independencia do arbitrio ) enquan­ to pode subsistir com a Iiberdade de qualquer outro segundo uma lei geral, e este 0 unico di­ reito originario que cabe a cada homem em sua propria humanidade".

No Iivro Direito e Estado no Pensamento de Imanuel Kant, Nor­ berto Bobbio sustenta que as varias teorias da justlca distinguem-se com base na resposta que deram a pergunta sobre qual eo fim ultimo do direito, e que as varias respostas podem ser divididas em tres gru­ pos. 0 primeiro destes grupos considera ajustica como sendo ordem, e considera como fim ultimo do direito a paz social. Dentro deste grupo, cujo expoente maior seria Hobbes, 0 direito fundamental que seria necessario salvaguardar seria 0 direito a vida. 0 segundo destes grupos, que deriva da concepcao Arlstotellca, considera a justica como igualdade e a finalidade do direito seria , entao, garantir a igualdade seja nas relacoes entre os individuos, seja nas relacoes entre 0 Estado e os individuos. 0 terceiro destes grupos considera a justica como sendo liberdade, e teriamos aqui, a filosofia Kantiana do direito como sendo a expressao mais caracteristica e consequents desta teoria. Segundo Bobbio(1 :73): "Com base nesta concep~ao 0 tim ultimo do di­ reito a Iiberdade (e entenda-se a Iiberdade external. A razao ultima pela qual os homens se reuniram em sociedade e constituiram 0 Estado a de garantir a expressso maxima da pr6pria personalidade, que nao seria possivel se um conjunto de nonnas coercitivas nao garantisse para cada um uma estera de Iiberdade, impe­ dindo a viola~ao por parte dos outros. 0 ordenamento justa e somente aquele que con­ segue tazer com que todos os consorciados pos­ sam usufnJir de uma estera de Iiberdade tal que Ihes seja consentido desenvolver a pr6pria per­ sonalidade segundo 0 talento peculiar de cada urn. Aqui 0 direito e concebido como um conjun­ to de Iimites as liberdades individuais, de ma­ neira que cada um tenha a seguran~a de nao ser lesado na pr6pn'a estere de Iiceidade ate 0 momenta que tembem nao lese a estera de Iiceidade dos outros. Portanto, nao e suticiente,

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segundo

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ideal do direito como liberdade, que

o ordenamento juridico estabe/e~a a ordem, nem

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que esta ordem seja baseada na igualdade (tembem uma sociedade na qual to足 dos sejam escravos e uma sociedade de iguais, ainda que iguais na escrevidso). E necessssno, para que brilhe a justi~a com toda sua luz, que os membros da associa~ao usufruam da mais ampla liberdade compativel com a existencia da propria associa~ao. Motivo pelo qual sene justa somente aquele ordenamento em que fosse estabelecida uma ordem na liberdade. 0 direito natural fundamental pelo qual esta concep~ao e refor~ada e 0 direito a liberdade".

Se consideramos que esta concepcao concepcao de justlca e aquela da qual nasce a tnsplracao para a teoria liberal do Estado veremos que a teoria do direito kantiana e urn dos fundamentos te6ricos do Estado liberal. Qual eo tim do Estado segundo a concepcao liberal? E a Iiberdade individual. A pertelcao do estado esta na garantia e desenvolvimento da Iiberdade individual. Isto signitica dizer que 0 estado n80 tern fim pr6prio, mas este fim coincide com os fins dos individuos. A tarefa deste Estado nao sera prescrever fins para cada individuo mas criar as condicoes legais para que cada urn possa perseguir e alcancar seus pr6prios fins, sem prejudicar 0 direito que 0 outro tern de fazer 0 mesmo. Isto posto, cabe ainda uma investlqacao da concepcao kantiana sobre a relacao entre moral e politica. No texto Sobre a dlscrepancla entre moral e politica a prop6sito da paz perpetua ele vai trabalhar a concepcao de que a moral deve estar acima da politica, ou seja, que a politica deve estar sempre subordinada a moral. Se a politica diz "sede astuto como as serpentes", a moral vai acrescentar, como condlcao limitante, "e sem maldade como as porn bas" . Kant tern claro que nem sempre a politica segue de maos dadas com a moral, e que, portanto, n80 verdade que aquele que age moral mente no campo politico e 0 que mais sera beneticiado. Essa clareza kantiana sobre como as coisas se d80 no mundo a mesma que nao Ihe permite cair no otimismo ingenuo e dizer que os virtuosos serao felizes neste mundo. Para Kant parece 6bvio que n80 necessariamente os virtuosos sao felizes, assim como n80 necessariamente a moralidade e a melhor politica. Mas se nao assim que as coisas S80, assim que as coisas devem ser, de modo que 0 fato de que nem sempre os politicos morais

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se d~em bern nao motivo para que nao se aja moralmente na politica, nao motive para que a politica nao esteja subordinada a moral. Para Kant(7:56)

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"Embora a proposi9BO a honestidade melhor do que qualquerpolitica contenha uma teoria que a pratica com muita frequencia contradiz, a pro­ posi9BO igualmente teotice a honestidade melhor do que qualquer politica esta infinitamen­ te acima de toda obje9Bo, sendo mesmo a con­ di9BO indisoenssvel da politica".

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A proposicao "a honestidade melhor do que qualquer polltica" significa 0 mesmo que "a moralidade e melhor do que qualquer politi­ ca", e esta acima de qualquer objecao porque uma proposicao dada pela razao pura pratica, dizendo respeito ao dever. E condicao indis­ pensavel da politica porque se a politica nao estiver limitada pela moralidade, seu pr6prio objetivo, que 0 de estabelecer urn estado de justica aonde as liberdades possam coexistir, estara ameacado. Esta finalidade podera ser substituida por meios e objetivos particulares que podem nao ser condizentes com este fim. Kant vai fazer uma interessante distinyao entre 0 politico moral e o moralista politico. 0 politico moral e 0 homem que assume os principios da prudencia politica de urn modo tal que possam coexistir com a moral, enquanto que 0 moralista politico seria aquele que forja uma moral uti! as convenienclas do homem de Estado. o politico moral formularia 0 seguinte principio:

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"Se alguma vez na Constitui9BO de um Estado ou nas rela90es entre Estados se encontrar de­ feitos que nBo foi possivel impedir, um dever, sobretudo para os chefes de Estado, ref/etir so­ bre 0 modo como eles poderiam, logo que pos­ sivel, ser corrigidos e coadunar-se com 0 direito natural tal como e/e se otereceaos nossos olhos como modelo na ideia da rezso, mesmo que te­ nha que custar 0 sacrificio do smor-proprio" (Kant, 7:59).

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Ja os politicos moralizantes: "mediante a desculpa de principios politicos contretio« ao direito, sob 0 pretexto de uma na­ tureza humana incapaz do bem, tomam impos­ sivel tanto quanta deles depende 0 melhoramen­ to, e perpetuam a viola9Bo do direito .. em vez da

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ciencis estes astutos politicos lidam com tecnicas, porque s6 pensam em adular 0 poder (para nso perder sua vantagem pessosl) sban­ donando 0 povo e se possivel 0 mundo inteiro" (Kant, 7:61).

Com estas conslderacoes sobre moral e politica Kant vai definiti­ vamente consolidar sua concepcao sobre 0 estado de direito. 0 Estado de direito e aquele que tem como funcao principal a instltuicao de um estado juridico, ou seja, onde cada um possa coexistir com os outros segundo uma lei universal. Kant (2:70) vai dizer que: "Um pn"ncipio da politica moral e que um povo deve congregar-se num Estado segundo os con­ ceitos exclusivos da Iiberdade e da igusldade, e este principio nao se funda na estuci«, mas no dever".

Kant (7:76) vai nos dar um criterio para saber se nao ha discrepancla entre moral e politica, que vai ser a formula transcendental do direito publico que e a seguinte: "sao injustas todas as ac;oes que se referem ao direito de outros homens cujas rnaxlrnas nao se harmonizam com a publicidade". Este principio sera simultaneamente etico e juridico. Segue Kant (7:76): "Uma maxima que eu nao possa manifestar em voz alta sem que ao mesmo tempo se frustre a minha pr6pria inten~ao, que deve permanecer secreta se quiser ser bem sucedida e que eu nao posso confessar publicamente sem provo­ car de modo inevitiwel a oposi~ao de todos con­ tra meu prop6sito, s6 pode obter a necesserie e universal rea~ao de todos contra mim, cognoscivel a priori pela injusti~a com que a to­ dos amea~a".

Trata-se,claro, de uma formula negativa, que serve para que se saiba 0 que nao e moral em termos de politica, legislac;ao e julgamen­ tos. Todas aqueles criterios ou mesmo decretos ou leis que estao fundados em intencoes ou principios que nao podem ser divulgados, sao imorais. No campo juridico, assim como no campo da etica, a existencla de criterios para [ulqarnento, e estabelecimento de leis que sao universais (e que aparecem como universais pela possibilidade de se tornarem publicos) e um padrao a partir do qual podemos julgar sobre a imoralidade dos julgamentos e das leis.

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Para finalizar podemos dizer que em Kant existe uma hierarquia entre moral, direito e politica. Em primeiro plano, acima de tudo, esta a moralidade e por consegOinte a lei moral, que no plano humano toma 0 carater de Imperativo Categ6rico. Em segundo plano esta 0 direito, e portanto, 0 legal, que deve ser correspondente ao justo. Em terceiro plano esta a politica, que deve estar subordinada ao direito e moral, a moral. Se a polltica se subordina ao direito e este evidentemente que a politica deve estar subordinada a moral. Na filosofia kantiana, apesar de nao necessariamente haver coincidencia entre agir moralmente e agir justamente, deve haver correspondencia entre 0 legal e 0 justo, de modo que 0 legal seja 0 justo. Eo legal sera 0 justa quando as leis derivarem desse principio geral do direito que 0 da coexlstencia das liberdades, principio este que por sua vez nao pode dispensar na sua forrnulacao da nocao de dever, que e uma nocao eminentemente moral. Kant (7:70) afirma que a proposlcao:

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"Que a justiya domine, mesmo que para isso devam perecer todos os velhacos deste mundo, e um honesto principio do direito, que corte to­ dos os caminhos sinuosos trayados pela astU­ cia ou pela viotencle. Apenas este principio nao deve ser mal interpretado, isto e, como se per­ rnitisse utilizar 0 seu pr6prio direito com 0 maior rigor, mas deve ser compreendido como a obri­ gayao dos poderosos de nao recusar a ninguem seu direito, ou de restringi-Io, por desfavor ou piedade de outra pessoa".

Definido 0 direito , a partir de urn enteric universal a partir do qual podemos determinar 0 que justa ou injusto, que 0 principio da coexistencia das liberdades, ja poderemos compreender a politica co­ mo estando obrigada a dobrar os joelhos diante do direito. E enten­ dendo que os critenos para determinar 0 justa e 0 injusto necessitam de urn aporte ao campo da moralidade, atraves do imperativo categ6­ rico concebido como criterio a partir do qual podemos dizer se uma acao e conforme ou contra ria ao dever, podemos entender perfeita­ mente a seguinte afirmacao de Kant (7:74):

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"A verdadeira politica , portento, nao pode dar um passo sem antecipadamente ter prestado homenagem moral, e embora a politica em si mesma seja uma erie dificel, a uniao dela com a moral nao constitui uma erie, pois a ultima corte

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o no cego que a politica nao consegue desatar quando ambas entram em conflito". Podemos ver por aqui que a confluencia entre moral e politica nem sempre existe, e que muitas vezes, estes dois dominios estao em conflito. Sendo assim, para que os homens possam ter clareza sobre como proceder eles devem ter perfeitamente claro a hierarquia entre os dominios da moral, do direito e da politica. Na hora da tomada de decisoes , se a politica conflitua com 0 direito, e a voz do dire ito que deve ser ouvida. Se 0 direito fere a moral e porque ha algo de errado com 0 direito, e se a politica entra em confronto com a moral sao os criterios da moralidade que devemos seguir.

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Revendo a distlncao constatativo/performativo Claudio F. Costa Departamento de Filosofia da UFRN/CNPQ

ABSTRACT In this paper is developed a reconstructive analysis of the conditions for both utterances constative and performative. These conditions were not presented by Austin (in that way), but we must deal with them, if we want that the distinction works. Under the light of this analysis is shown - against Austin - no compelling ground for the rejection of the distinction.

Ao distinguir entre proferimentos constatativos e performativos, Austin apresentou 0 que poderiamos chamar de duas condlcoes basi足 cas de identitlcacao:

Proferimento

Condicoes de identificacao

CONSTATATIVO

e verdadeiro ou falso, (e nao feliz ou infeliz)

PERFORMATIVO

e feliz ou infeliz (mas nao

'--

verdadeiro ou falso) I

Constatacoes, relatos, descricoes, afirrnacoes... na medida em que constituem proferimentos verdadeiros ou falsos, sao modalidades de constatativos. Ja ordens, pedidos, advertencias, ofensas, promes足 sas, garantias, perguntas, apostas, vetos ... sao formas freqOentes de proferimentos performativos, os quais consistem na realizacao de acoes. Tais proferimentos devem preencher condicoes de realiza980, chamadas por Austin de condicoes de felicidade (felicities), sendo entao

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felizes (bem-sucedidos) ou infelizes (malogrados), mas nao verdadeiros ou falsos. A dlstlncao constatativo/performativo importante, na medida em que parece ser generalizavel para toda a linguagem. Assim entendida, ela passa a expressar, ao nivel dos proferimentos, as duas funcoes comunicativas basicas, que seriam a fum;ao cognitiva (atraves dos constatativos) e a fum;ao instrumental (atraves dos performativos), para usar as expressoes de Reichenbach. Como sabido, Austin veio mais tarde a considerar tal distinyao inadequada, substituindo-a pela mais influente teoria dos atos de fala, na qual 0 constatativo, 0 ato assertorico, reduzido a apenas uma funcao a mais no interior de uma multiplicidade de atos llocucionarios. principal argumento por ele apresentado contra a sua propria dlstlncao 0 de que os proferimentos constatativos, alern de satisfazerem os criterios gramaticais para os performativos (pols sao ambos redutiveis a formula F(P)), tarnbern satisfazem condicoes de felicidade, enquanto que os performativos, ao menos em seus pressupostos, tarnbern satisfazem condicoes de verdade. Isso sem contar uma supostamente intratavel vaguidade na nocao de valor足 verdade como condicao de ldentlflcacao de constatativos na Iinguagem ordinaria. Penso que a rejeiyao feita por Austin a referida distlncao uma boa ilustracao de como urn ftlosoto, sob a pressao de novas ideias, pode ser levado a rejeitar urn insight real, tomando-o por mais urn espectro na nebulosa selva conceitual. Creio, pois, que a dlstincao constatativo/performativo perfeitamente sustentavel, e que as objeyoes de Austin contra ela resultam de uma confusao possibilitada por certas similaridades funcionais entre ambos os tipos de proferimento, as quais, porem, nao chegam a comprometer a diferem;a essencial existente entre eles. E 0 que pretendo fazer a seguir aprofundar a analise do que esta realmente envolvido em tal dlstincao, permitindo assim que as respostas as principais objecoes de Austin possam se depreender naturalmente dela.

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1. Dois modi aernantlcos baslcos: frases assert6ricas e frases pratlcas Para efetuar uma analise mais diferenciada, gostaria de cornecar me reportando a uma distincao equivalente a de Austin, pro posta por E. Tugendhat, com base em sugestoes de A. Kenny e E. Stenius. Trata-se da distlncao entre dois modi fundamentais de frase: 0 da frase

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teoretice ou assert6rica e 0 da frase prstice. A frase assert6rica caracteriza-se por dizer como 0 mundo e, caso ela seja verdadeira, enquanto que a frase pratica caracteriza-se basicamente por mostrar como 0 mundo hBde ser, caso ela for preenchida'. Na frase assert6rica temos condiyoes de verdade (Wahrheitsbedingungen) a serem satisfeitas; na frase pratlca, 0 que deve ser satisfeito sao condiyoes de preenchimento (ErfOllungsbedingungen). No primeiro caso a linguagem deve adequar-se ao mundo; no segundo 0 mundo que deve se adequar a linguagem. Tugendhat apresenta a distincao como sendo de natureza sernantlca, acusando fil6sofos como Austin e Searle de terem descurado da dirnensao sernantlca da linguagem, 0 que os levou a perder de vista a distlncao e a multiplicar aleatoriamente os modi. A dlstincao de Tugendhat e, com efeito, sernantica. Ela se dife­ rencia da distinl;ao austiniana pela perspectiva praqrnatica da ultima, que leva em conta as situacoes reais de interacao comunicativa, ou ainda, no dizer de Austin, "0 ate de fala total nas circunstancias totais de fala" - 0 que em principio tembem pode incluir um estudo das con­ dlcoes ditas sernanticas pelas quais satisfaz-se a acao. Minha es­ trateqia para a analise da distincao austiniana sera a de cornecar es­ tabelecendo as condicoes semanticas, implicitas em distinl;oes como a de Tugendhat, passando entao ao estabelecimento de condicoes praqrnatlcas; farei isso partindo do modus assert6rico em direcao a acao constatativa, e depois partindo do modus pratico em direcao a acao performativa. Ao final, compararei 0 conjunto de condlcoes a serem satisfeitas pelo proferimento constatativo com 0 conjunto de condlcoes a serem satisfeitas pelo proferimento performativo assim obtidos, considerando se nao ha diferencas essen ciais envolvidas. Comecemos com 0 modus assert6rico.

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2. Condi<;:6es para os constatativos Considerarei primeiramente tres condicoes da assercao que sao bem conhecidas e que foram sugeridas por G. Frege, sob uma perspectiva basicamente sernantica". A primeira condicao a ser satisfeita em uma assercao e: (a-i) "Acesso a um pensamento"; a um conteudo enunciativo. Trata-se da apreensao ou concepcao de um comeuao enunciativo ou proposicional (que Frege chamava de pensamento, concebendo­ 0, desnecessariamente, no contexte de um realismo ontoI6gico), sem

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que entre em conslderacao se ele e verdadeiro ou falso. Posso, por exemplo, pensar em urn certo livro como estando na estante, sem considerar se ele real mente la se encontra. A segunda condlcao consiste em: (a-ii) "Reconhecimento da verdade de urn pensamento"; adlcao de uma pretensao de verdade ao conteudo enunciativo concebido - ate judicativo.

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Essa condicao satisfeita quando se atribui urn valor-verdade ao conteudo enunciativo pensado. Com a satisfacao dessa condlcao e formado urn julzo. Se, em urn ate mental, adiciono (sob a forma de uma lntencao psicol6gica) uma pretensBo de verdade ao meu pensamento de que 0 Iivro se encontra na estante, realize urn julzo acerca de algo. A ultima condicao fregeana e a da asSert;BO propriamente dita, constituindo-se simplesmente em: (a-iii) "Manifesta<;ao do julzo": acao comunicativa que externaliza 0 conteudo enunciativo adicionado a sua pretensao de verdade; a assercao p.d.

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No exemplo considerado, essa condicao cumprida quando taco a afirmacao: 路0 livro se encontra na estante"; aqui a pretensao de verdade deixa de ser uma intencao psicol6gica para inscrever-se formal mente na manttestacao Iinguistica do conteudo enunciativo. Nao obstante, se quisermos fazer uma analise mais detalhada das condlcoes a serem satisfeitas pelos proferimentos constatativos, nao e conveniente pararmos aqui. Como elas devem envolver 0 ate de fala total na situacao total de fala, devemos acrescentar ainda condlcoes de interacao, essencialmente praqrnaticas. A primeira delas e a 6bvia condicao da acessibilidade da assercao, que consiste em: (a-iv) Presenca de urn ouvinte e de urn contexto adequados da assercao.

arecepcao

Com efeito, pouco sentido teria eu afirmar que 0 livro se encontra na estante, se nao houvesse alquern para ouvir-me, se esse alquern nao soubesse portuques, se nao houvesse estante etc. Neste ponto pode ser considerado que uma condicao como essa nao e estritamente necessaria, pois podemos proferir assercoes em solil6quio, as quais nem por isso deixam de ser assercoes. Isso e correto. Nao obstante, mesmo que essa condicao nao seja necessaria, e importante considera-la, visto que nao parece possivel a nocao de assercao preservar seu papel caracteristico, seu Witz, no caso em

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que a Iinguagem fosse tal que todos os seus usuaries 56 proferissem "assercoes" em sttuacoes de solil6quio, digamos, para dizer algo a si mesmos. Essa conslderacao mostra que uma assercao proferida em solil6quio deve se-lo em urn sentido enfraquecido ou incompleto do termo. a razao em vista da qual importante analisar, como Essa quero faze-to aqui, condlcoes para 0 que chamo de proferimentos exemplares, para os proferimentos tlplcos. que servem de paradigma a uma dada tuncao comunicativa, satisfazendo todas as suas condi足 c;oes relevantes; pois aqueles proferimentos, que deixam de satisfazer uma ou mais dessas condlcoes, podem e realmente costumam ser ainda vistos como satisfazendo a funcao, mas isso por se deixarem conceber como form as incompletas ou parasitarias dos proferimentos exemplares, ao apresentarem suticientes margens de similaridade com os ultlrnos. Essas consideracoes nao valem so para a quarta condicao, Com excessao de (a-iii), as outras condlcoes ja examinadas tarnbern nao sao estritamente imprescindiveis aos constatativos: posso proferir urn constatativo, uma assercao (em urn sentido incompleto do termo), sem te-la real mente pensado ou associado a urn ato judicativo; 0 que nao e concebivel que todas as nossas assercoes fossem assim. Por tim, ha ainda uma ultima e mais interessante condicao, do ge足 nero detalhadamente analisado por P. Grice. A condiyao de que haja:

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(o-v) lntencao do falante de compartilhar informativamente seu juizo com 0 ouvinte. Trata-se de uma intenr;iio informativa, da intencao de comunicar a lnformacao, 0 juizo ao qual se teve acesso, a uma audiencia, com足 partilhando-o com ela. Trata-se, pois, da mtencao de se fazer com que 0 ouvinte "leia" no proferimento 0 mesmo conteudo enunciativo apreendido pelo falante e nele "inscrito", acrescido de sua pretensao de verdade. E essa intencao informativa a que devo ter ao afirmar, diante de alquern, que 0 livro se encontra na estante. Pode-se ainda ponderar que a condicao (a-v) de ambito psico足 sernelhanca da quarta logico e portanto contingente, inessencial, condlcao. Com efeito, nao necessario que 0 falante tenha a lntencao de compartilhar 0 juizo para que se de urn proferimento constatativo. 1550 pode ser ilustrado pelo seguinte eplsodlo de urn conhecido conto de fadas. Crendo-se isolado na floresta, 0 anao de nome Rumpelstiltskin profere seu nome quando danca noite em torno de uma fogueira, sendo entao ouvido por urn mensageiro da rainha, que

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assim descobre seu verdadeiro nome. No entanto, a ultima coisa que Rumpelstiltskin queria na vida era que a rainha viesse a adivinhar seu nome. Nao ha aqui qualquer intencao informativa, mas nem por isso 0 proferimento deixa de ser um constatativo. Finalmente, posslvel reformular a quinta condlcao como uma condtcao (a-v'), na qual certa especle de elemento intencional se apre­ senta como condicao necessaria a todo e qualquer constatativo. Basta, para isso, nao concebermos a lntencao em causa como um aconteci­ mento psicol6gico efetivo, mas como uma intenc;ao psicol6gica poten­ cial, entendendo-se com isso simplesmente a potenciaJidade inscrita na forma do proferimento total, na estrutura gramatico-conceitual que ele em seu contexte evoca, de expor uma intencao a realizar-se em nivel psicol6gico. Trata-se, caso 0 uso nao-psicol6gico da palavra 'in­ tencao' tiver algum efeito perturbador, do que podemos chamar de uma pretensao de comunicayao informativa, da condicao de que venha inscrito, na forma do proferimento, que ele uma ayao informativa, i.e., uma a9ao cuja finaJidade a de compartilhar informativamente um juizo. Nao ha nada de estranho nisso. Se admitimos uma pretensao de verdade a nivel conceitual, por que nao estends-la no sentido de uma pretensao de informar a verdade? Alias, nao a pretensao de verdade, em seu sentido mais completo, forcosarnente uma pretensao de intorma-la? Nao e isso 0 que indica a sua natureza IingOlstica? A condlcao fica sendo entao a da existencia de:

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(a.-v') Ac;ao comunicativa na qual se inscreve a finalidade de se com­ partilhar informativamente um julzo com uma pretensao de informar 0 ouvinte; uma acao comunicativo-informativa.

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Tal a9ao verbal mente explicitada pelo verbo e pelo pronome no proferimento "Quero dizer-te que 0 Iivro se encontra na estante", mas em muitos casos nao chega a ser IingOisticamente, mas apenas contextualmente explicitada. Como a a9ao (a-v') visa compartilhar um julzo, ela pode ser entendida como englobando a condicao (a-iii), como uma elaboracao desta ou sua formutacao mais completa. A condicao (a-v') mostra-se necessaria. Todos os constatativos sao acoes informativas, acoes nas quais se inscreve, mesmo que im­ plicitamente, a finalidade de se informar alguem de um conteudo enun­ clativo com sua pretensao de verdade; de comunicar como 0 mundo

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Embora longe de serem exaustivas, as condlcoes ate aqul alistadas bastam para os nossos prop6sitos.

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3. Condiyoes para os performativos Consideremos agora as condicoes para as frases praticas em acoes (interacoes) performativas. Particularmente interessante 0 fato de que aqui tarnbem podem ser estabelecidas cinco condlcoes, que sao para/etas, mas nao idfmti足 cas as que acabamos de considerar. Parece ter side a semelhanca e o paralelismo entre as condicoes de ambos os grupos 0 que mais contribuiu para confundir Austin, que nao chegou a analisa-las da perspectiva que Ihes seria a mais adequada. A primeira condicao sernantica e analoga a do acesso ao conteudo enunciativo em Frege:

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(b-l) Acesso (freqOentemente esquernatico ou possivel) a um certo

conteudo enunciativo.

Trata-se da apreensao, pelo falante, do conteudo enunciativo do que h8 de ser 0 caso. Por exemplo: se desejo pedir a alguern que ponha certo livro na estante, e porque me e concebivel (junto ao fato do Iivro ser colocado na estante) 0 estado de coisas dele vir a se encontrar la. Note-se que tal aces so ao conteudo enunciativo do que ha de ser 0 caso nao precisa ser conternporaneo ao proferimento. E 0 mais importante: e freqOente que 0 conteudo nao seja pensado em suas particularidades, podendo se-lo esquematicamente, de maneira vaga e incompleta, ou, ao inves, como uma simples possibilidade. Por exemplo, se persuado alquern a fazer uma dernonstracao de como se danca 0 xote, posso nao conhecer os passos da danca, mas devo ter alguma ideia de como isso possa ser, ou, na pior das hip6teses, saber o que dancar uma danca: se nada disso fosse 0 caso entao eu nao seria capaz de dar sentido ao meu proferimento. Isso assim pela simples razao de que os performativos nao tem, como os constatativos, basicamente a funcao de reproduzir informativamente 0 juizo. A pr6xima condleao analoqa a da atribulcao de valor-verdade ao conteudo proposicional nos constatativos. Trata-se de:

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(b-ii) Pretensao de que 0 conteudo enunciativo em questao seja factualmente realizado; a pretensao pratica.

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Chamo de pretensao pr(Jtica ou rea/izativa intem;ao de que um conteudo proposicional seja factual mente realizado, de que ele seja concretizado no mundo, ou, rnais exatamente, de que a ocorrencia ou o estado de coisas a ele correspondente se realize; um exemplo a minha lntencao de que 0 livro seja de fato colocado na estante. A

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pretensao pratica (de que 0 mundo se adeque ao pensamento) para os performativos e analoqa a pretensao de verdade (de que 0 pensamento se adeque ao mundo) para os constatativos, podendo dar-se ambas mental mente, ou inscreverem-se como pretensoes nos proprios proferimentos. Com isso podemos passar a uma condicao correspondente ada assercao p.d., a condicao do proferimento performativo ou pratico: (b-iii) A<;:ao linguistica de externalizacao da pretensao de que 0 conteudo proposicional seja factual mente efetivado; proferimento

prance. Exemplo disso e a realizacao do proferimento: "Quero que 0 livro seja colocado na estante"; aqui a pretensao pratica vem formal mente inscrita no proferimento, nao sendo mais uma intencao psicoloqica, mas indicando-a. 0 conteudo proposicional que se quer efetivar, por sua vez, nao precisa ser geralmente apresentado, e quando 0 e, costuma se-lo de modo parcial e obliquo. A consideracao do ate de fala total tarnbern exige a adicao de outras condicoes interativas (praqmaficas), como a seguinte condicao de acessibilidade: (b-iv) Presenca de um ouvinte e de um contexte adequados a reacao requerida pelo proferimento. Deve haver uma audiencia em um contexte tal que ela esteja em condicoes de fazer com que a pretensao de realizacao da ocorrencia ou do estado de coisas correspondente ao conteudo proposicional seja satisfeita. Se peco que 0 livro seja colocado na estante, uma condicao interativa para tal e a de que haja alquern em condicoes de faze-lo etc. Essa condlcao, diversamente de (b-iii), nao e estritamente necessaria, como tarnbern nao 0 sao (b-i) e (b-ii), ainda que a palavra 'performativo' venha a se aplicar a semelhantes casos em um sentido dependente ou parasltario. Ha, por fim, uma condicao intencional analoqa a condicao (a-v) dos performativos, que e:

(b-v) lntencao do falante de produzir, atraves do (no ou pelo) ouvinte,

a realizacao factual do conteudo enunciativo que ele pretende que

seja factual mente concretizado.

Trata-se da intencao considerada em (b-ii) e expressa em (b-iii), de que 0 conteudo proposicional se concretize factualmente, de que se produza um correspondente dele no mundo, possivelmente no proprio ouvinte (que e parte do mundo), mas com uma importante

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adivAo: a de que isso se de atraves de sua interpreta(f80 pe/o ouvinte. Exemplo: a mtencao de alegrar certa pessoa atraves de um elogio. Tarnbem aqui a lntencao nao precisa ser de ordem psicol6gica, a que se estende pretensao realizativa par ela abrangida. Podemos, pais, reformular a condlcao acima como (b-v'), onde a que chamamos de mtencao reduz-se a simples potencialidade de uma intencao psicol6gica, a qual vem inscrita na forma do proferimento total, na estrutura gramatico-conceitual que ele em seu contexto evoca. Trata足 se, pais. de uma a(fBo rea/izativa, que e como se poderia denominar uma acao que tem par finalidade concretizar, atraves do ouvinte, uma pretensao realizativa, ao mostrar como a mundo ha de ser. A condicao fica sendo:

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(b-v') Ayao comunicativa na qual se inscreve a finalidade de reallzacao factual de um certo conteudo proposicional atraves de um pretenso ouvinte; acao realizativa. Se digo a alquern: "Peyo-te para colocar a Iivro na estante", explicito com a pessoa verbal e com a pronome a elemento interativo especifico da ayBO realizativa (quando tal explicitacao Iinguistica n~o se da, a condlcao (b-v') geralmente satisfeita pelo contexto). Tal ay~o pode ser considerada como a mamtestacao de uma pretensBo comunicativo-realizativa, englobando a pretensao realizativa quanta ao conteudo proposicional da condlcao (b-iii). Como essa ultima, sua efetivacac uma condicao necessaria, vindo inscrita em tudo aquila que chamamos de performativo.

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4. Comparando as condlcoes neceesartas Podemos notar que a proferimento constatativo, dizendo respeito

atransmtssao informativa de um julzo, deve resultar na apreensao do mesmo pelo ouvinte, servindo entao, basicamente, como um meio para a realizacao de possiveis fins decorrentes da utilizacao da mformacao pelo ouvinte (analogia: passagem de um bastao na corrida olimpica); ja 0 proferimento performativo, dizendo respeito a uma acao interativo-reaIizativa, tem como resultado um efeito que antes de tudo um fim, mesmo que sirva para outros fins (analogia: segurar a brace de alquern que escorrega). Ainda que a diferenya seja intuitivamente perceptivel, para prova足 la precisamos responder a seguinte questao: e a acao realizativa dos performativos sempre e em qua/quer caso distinguivel da ayBo informativa dos constatativos? Uma cornparacao do efeito informativo

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dos constatativos com os possiveis efeitos concretos visados pelos performativos pode demonstra-lc. Os efeitos pretendidos pelos profe­ rimentos performativos tern a ver com ocorrenclas (ou impedimentos de ocorrenclas) que podem ser basicamente de tres tipos: (a) Ac;:oes mecenices. Tais acoes podem ser movimentos corporais e ac;:oes sobre objetos. Estender a mao €I urn exemplo de gesto; colocar 0 Iivro de volta na estante exemplo de ac;:Ao sobre objeto. (b) Reac;:oes afetivo-vo/itivas. Exemplo de uma reacac pretendida em performativos €I 0 tipo de efeito emocional que se produz no ouvinte por meio de uma ofensa; exemplo de uma reacao volitiva a pretendida em urn ate de encorajamento, que visa animar alquern, motivar a sua vontade. (c) Efeitos cognitivos. Tarnbern €I possivel que haja uma pretensao de interacao realizativa visando urn efeito cognitivo. 5e, por exemplo, urn professor de hist6ria pede a urn aluno para considerar quais deveriam ter sido os resultados s6cio-econOmicos da mortandade provocada pela peste negra no seculo XIV, 0 efeito por ele visado poden) ser a tomada de consclencla, por parte do ouvinte, de estados de coisas, a dizer, a reanaacao de juizos, a apreensao, por este, de conteudos enunciativos com pretensao de verdade. Podemos ter tambern efeitos complexos, advindos de cornblnacoes de (a), (b) e (c), como ocorre em atos de fala determinadores de efeitos s6cio-institucionais, como 0 casamento, 0 batismo etc. . Comparemos agora os efeitos dos performativos com os dos constatativos. Nos tipos (a) e (b) de efeitos fisicos, emotivos e volitivos, nao ha qualquer proximidade com os efeitos visados na pretensao ou acao informativa (a-v'). No tipo (c) de efeito cognitivo ha uma proximidade, mas ela inessencial. Quando afirmo algo, a finalidade da assercao a de informar, de compartilhar 0 mesmo juizo com 0 ouvinte, que 0 "Ie" (como eu, que 0 "inscrevo") no proferimento. Mas nao €I isso 0 que ocorre no performativo de efeito cognitivo, pois 0 modo visado de producao do juizo €I muito diverso. Quando, digamos, peco ao ouvinte para realizar uma ac;:Ao que resulte na cognic;:Ao de que algo €I 0 caso, quando peco, por exemplo, a uma crianca para somar 2 + 2, nao estou compartilhando informativamente urn juizo que tive, mas fazendo com que 0 ouvinte 0 concretize autonomamente em si mesmo (i.e., que ele produza em si 0 pretendido correspondente factual do juizo suposto, 0 qual no caso nada mais do que a sua cognic;:ao por ele). Note-se que sequer preciso que 0 falante tenha

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tido previo acesso ao julzo, mas apenas que ele 0 conceba como posslvel: nao preciso que eu jtt saiba que a ralz quadrada de 9.319 97 para que possa pedir a alguern para calcula-te. conclusao: as condic;Oes necessaries de sanstacao de ambas as formas de acao sao essencialmente diversas, pois elas sao sempre e em qualquer caso distingulveis entre si. Pode-se fazer ainda a seguinte objecao: embora as acees informativa e realizativa sejam sempre distingulveis. a distinyao nao do tipo vigente entre um X e um Y, mas entre um X e um nao-X, entre a transmlssao de uma lntormacao e a producao de um efeito que nBo seja a apreensao de uma mtormacao transmitida. Mas isso, alern de nao ser um ponto considerado por Austin, nao torna a distinyao menos aceitavel; nao menos que, por exemplo, a distinyao entre animais vertebrados e invertebrados, ou entre compostos orqanicos e inorganicos. A dlstincao se justifica praticamente, por exemplo, pelo fato de que em nossa conversacao ordinaria 0 nurnero de proferimentos constatativos aproximadamente tao grande quanta 0 de proferimentos performativos. Se compararmos agora nossos resultados com as condlcoes de felicidade propostas por Austin no capitulo 1\ de How to do Things with Words, torna-se claro porque ele nao consegue visualizar um fun足 damento para a distincao. 0 que ele expoe como condlcoes de fe足 Iicidade nao a, como deveria ser, algo similar ao acima sugerido grupo (b) de condicoes realizativas para os performativos. Suas condicoes de felicidade resumem-se em: (A. 1) seguimento de procedimentos convencionais; (A.2) adequacao de pessoas e circunstanclas: (B.1 e B.2) correcao e completude; (C.1) ocorrencia de certos pensamentos, sentimentos, intencoes: (C.2) coerencia no comportamento sub足 seqOente. Mas esse um conjunto de condicoes geralmente comuns a ambas as formas de a9Bo comunicativa (implicitas nos grupos (a) e (b) de condlcoes), sendo incapaz, portanto, de diferencitt-Ias quanto ao essencial. Logo no inlcio Austin perde de vista 0 que interessa distinguir, plantando assim as sementes da contusao.

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5. Objeyao: indissociabilidade das duas formas de acao Diante do que foi considerado ainda merece ser considerada a seguinte objeyao: constatativos e performativos costumam vir mais ou menos associados, nao existindo em isolamento ou em estado puro, por assim dizer. Que assim deve ser, sugere-o 0 pr6prio fato de

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que acao e contemplacao sao faces complementares e lndlsscclavels da natureza humana. Considere as seguintes proferimentos: (i) (ii) (iii) (iv) (v)

Pe90 que neo voltes tarde. Cuidado: a cao morde. 0 alrnoco esta na mesa. Essa chapa esta quente. 0 ceu esta azul.

Urn performativo tipico como (i) vern intrinsecamente associado a constatacoes, como a do pressuposto contextual de que a porta esta aberta, a reconhecimento dos interlocutores, julzos pertencentes justiflcacao racional do pedido etc. Em (ii) urn elemento contextual explicitado na assercao: "0 cao morde". Em (iii) e (iv) temos atos de fala indiretos que explicitamente possuem a func;ao de constatativos, veiculando intorrnacoes, mas que implicitamente tern a funcao ba足 sicamente performativa de fazer urn convite (iii) e de advertir (iv). Fi足 nalmente, a proferimento constatativo (v) espera ser complementado par uma a9Ao performativa, digamos, a convite para urn passeio. A obje9ao e, pais, a de que devido a essas vanas formas de associacao nao haveriam, ao menos em muitos casas, constatativos realmente distinguiveis de performativos.

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6. Resposta: 0 conceito de tematizar;lJo comunicacional A obje~o acima tambern e falha. Uma resposta adequada exigiria urn tratamento paciente e individuaJizado dos diferentes gatos que miam dentro do balaio. Quero me reservar aqui a uma resposta generica, a qual foi de certo modo curiosa mente sugerida peto pr6prio Austin no final do capitulo XI de seu livro". Ap6s apresenta-la, ele a rejeita, com breves e insuficientes argumentos. J. Habermas percebeu a lmportancla dessa solucao austiniana e buscou reeupera-la, tentando adaptar a que ele chamou de 'teorla dos constatativos", sob forma reconstruida, arquitetOnica de sua praqrnatica unlversar'. Com base nessas ldeias e nas analises anteriores, eis como penso que a soluc;ao pode ser melhor desenvolvida, ao menos em uma primeira abordagem. De fato, elementos informativos costumam vir associados au mesciados a elementos realizativos e vice-versa. Mas isso nAoconstitui dificuldade para a classltlcacao do ato comunicacional, pois podemos geralmente diferencia-lo recorrendo ao que nele e tematizado, enfatizado, sublinhado. 0 que caracteriza as proferimentos

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constatativos, sua condlcao essencial, a tematizayao comunicacional da intenyao de informar comunicativamente um juizo, 0 que concede a acao seu carater informativo (para Habermas tematiza-se aqui 0 conteudo proposicional do proferimento em urn uso linguistico cognitivo); isso junto a uma correspondente desconsideracao de proferimentos performativos complementares a ela associados. Ja a condicao essencial para 0 proferimento ser chamado de performativo a temetizectio comunicacional da intenceo de realizar comunicativamente cerlos conteuaos proposicionais, 0 que torna a ac;ao realizativa (segundo Habermas, uma ternatizacao da relacao falante-ouvinte no que ele chama de uso linguistico interativo), 0 que corresponde a uma desconslderacao de possiveis elementos informativos a ela associados. Alguns exemplos tomam isso claro. Se alquern profere a frase "0 ceu esta azul", e nao se trata de urn ate de fala indireto, 0 proferimento complementar ao qual tal proferimento vern Iigado (por exemplo, urn convite), sera claramente distinguivel dele. Se pedimos a alguern para nao voltar tarde, hi! pressupostos factuais que fazem parte da condicao de adequacao contextual (b), mas nao isso 0 que a satisfac;ao do grupo de condlcoes (b) faz tematizar. Se alquem diz que 0 cao morde ou que a chapa esta quente, 0 ate comunicativo tematiza uma advertencia, apesar de tambern se estar secundariamente realizando atos informativos. a tematizayao comunicacionan Trata-se daquilo Mas 0 que que faz com que se leia nos proferimentos ditos constatativos preferencialmente uma pretensso de verdade, uma ac;ao que visa comunicar lnforrnacao, enos proferimentos performativos, alternativamente, uma pretensao de produzir nao-informativamente urn efeito, uma pretensao ou ac;aocomunicativo-realizativa. A temanzacao comunicacional vern expressa por indicadores que podem ser tanto linguisticos como contextuais. Geralmente ela vern expressa par indicadores contidos na forma IingOistica do proferimento ("Eu afirmo que ..." costuma ser constatativo, com pretensao de verdade; "Eu peco que .:" costuma ser performativo, sem a referida pretensao). Mas os indicadores relevantes tambern podem ser contextuais em urn sentido amplo, 0 que permite que a distinc;Ao passa ser estendida a casos como 0 dos atos de fala indiretos. Se, por exemplo, durante 0 almoco uma mae diz ao filho: "Voce sempre reclama da comida", embora pareca tratar-se de uma constatacao (e realmente a contern), trata-se de urn proferimento claramente performativo, de uma recrtrnlnacao. pois isso 0 que se conclui que

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comunicacionalmente enfatizado no contexto do jogo de linguagem em que 0 proferimento se da, e nao a verdade do conteudo proposicional. Tal consideracao nos leva a concluir que n§o hB indicadores absolutos de ternanzacao comunicacional, sendo isso em ultima instancla decidido por recorrencia as circunstanctas envolvidas em jogos de linguagem por vezes muito especlficos. Com isso podemos reformular mais adequadamente as condi­ y6es para a distlncao entre proferimentos constatativos e performativos da seguinte maneira: ~-

Condi~oes

Proferimento

de

identlfica~io

f------

CONSTATATIVO INFORMATIVO ASSERTORICO COGNITIVO

Ternatizacao comunicacional da pretensao comunicativo-informativa quanto a um conteudo proposicional e seu valor-verdade, tornando a acao informativa, dando-Ihe pretensao de verdade.

PERFORMATIVO REALIZATIVO PRATICO INSTRUMENTAL

Tematizacao comunicacional da pretensao comunicativo-realizativa quanta a certo con­ teudo proposicional, tornando a acao pratica, dando-Ihe pretensao realizativa.

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Como 0 que se tematiza apenas uma pretensao, nao neces­ sario que se saiba que os constatativos sao efetivamente verdadeiros ou falsos, ou que eles foram realmente verificados. Tudo 0 que ne­ que neles se deva ler preferencialmente uma lntencao cessario comunicativo-informativa, uma pretensao de verdade - 0 que inclui, por exemplo, enunciados indecidiveis. Do mesmo modo, nao importa se sabemos serem os performativos efetivamente felizes ou nao. 0 que importa que neles possamos ler preferencialmente a lntencao ou pretensao comunicativo-realizativa - 0 que inclui reallzacoes incompletas, como 0 caso de uma promessa que se ha de cumprir no futuro. Dessa maneira, a distinc;ao toma-se extremamente abrangente, podendo 0 que a ela nao se conforma ser em geral considerado, ou como casos interrnediartcs amblguos, nos quais ambas as formas de ac;ao sao conjuntamente veiculadas, sem significativa predominAncia de uma sobre a outra (como em certos atos expressivos e em decla­ racoes representativas), ou como nao possuindo a natureza de um proferimento, nao fazendo real mente sentido.

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7. ConciusOes Com base nessa pequena (e certamente incompleta e imperfeita) reforrnulacao da distincao constatativo/performativo, facil derivar respostas as obje¢es mais importantes de Austin contra ela. Restam ainda outras obje¢es. Mas penso que elas repousam em equivocos mais ou menos triviais, como a tentativa de mostrar que 0 conceito de verdade demasiado vago para identificar constatativos, 0 que resulta de confusOes quanta ao uso da palavra verdade". Tais equivocos poderiam ser facilmente desfeitos com base em urn exame critico dos textos. Assim reformulada, a distincao constatativo/performativo man­ tern-se como uma analise plausivel das duas formas basicas de ac;Ao comunicativa, das duas fun¢es primordiais da linguagem. Ela confir­ rna Arist6teles, que estava certo ao destacar, no segundo Iivro do Organon, 0 que ele chamava de logosapophantik6s, a frase assertiva, contrapondo-a as outras frases, cuja conslderacao para ele caberia mais ao estudo da ret6rica e da poetlca",

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~s , Eiscomo E. Tugendhat, apoIando-se no primeiroWitlgenstein,apresentaa distin~: "Wrttgenstein hat 1m Tractetus (4.022) cIle aasertorischen Sitze so charakterisiert:"Der Satz zeigt, wie es sich verNllt, wenner wahr 1st. Under NQl, daBes sich so vernalt."Entsprechend wiIIre fUrdie praktischen Sitze zu sagen: der Satz zelgt, wie es sich vernalt, wenn er erfiihlt ist; und er sagt, daBes sich so verhlillen soH oder moge." (E. Tugendhat: Vorlesungen zur EinfOhrung in die sprachanalylische Philosophie, Frankfurt 1978, p. 512) 2

G. Frege:"Der Gedanke", in: Logische Untersuchungen, G. Patzig (ed.), GOttingen 1976(1918), p. 35.

3

J. L. Austin: How to do Things with Words, Cambridge 1975 (1962), pp. 145-6.

• J. Habermas: "Was heiBt Universalpragmatik?", in: K. O. Apel (ed.), Sprachpragmatik und Philosophie, Frankfurt 1978, p. 239. s Austin escreve,por exemplo,que a maior parte <losproferimentossao apenasem certa medide ou em cartos contax/o$ verdadeiros,como no exemplo "A Frani;:8 hexagonar, que pode ser verda­

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deiro dito por um generale fal50 dito por um certOgrafo. Mas 0 conteudoenunciativo de "A frani;:8 e hexagonar dlto pelo general 6 outro, em que a palavra 'hexagonal'tem um sentido vago. E se dizemos que uma tal frase e apenas em certa medida verdadeira, 0 que queremos dizer e que apenas em um certo numerode proferirnentos, ela expressaum conteudoenunciativoverdadeiro. (Cf. J. L. Austin, ibid. p. 143) • Aristoteles: De Interpretatione, in: J. Bames (ed.): TheComplete Worlcsof Aristote/es, vol. I, Princeton 198<4, p.54.

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Essas coisas que somos nos (0 sujeito na filosofla popperiana)* Gustavo A. Caponi Departamento de Filosotia da UFSC

R38fINlO Neste trabalho estudamos a nocao popperiana de "eu" e concluimos que, no marco do racionalismo critico, 0 sujeito conhecedor e 0 individuo empirico; porem 0 mesmo nao deve ser pensado como uma natureza psicol6gica anterior as estruturas sociais mas sim como um artificio institucional.

In this work we study t'ie popperian concept of "self' and we conclude that, in the frame of the critical rationalism, the knowing subject is the empirical individual; but it shouldn't be regarded as a psicological nature that exists before any social structure but as an institutional artifact.

1. Popper caracterizou seu enfoque objetivista da problernatica gnoseol6gica como orientado a construir uma "epistemologia sem sujeito conhecedor". Isto uma epistemologia que, por um lado, nao considerasse 0 conhecimento como um fen6meno mental (psicoI6gico), mas sim como uma estrutura publica (institucional) aut6noma e irredutivel a qualquer conteudo psiquico individual; e que, por outro lado, nao se ocupasse das atitudes subjetivas relacionadas com estas

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• 0 presente trabalho e parte do terceiro capitulo da lese de Doutorado em L6gica e Filosofia da (Paums para uma Critica da CiOncia Realmente EXistente) defendida na UNiCAMP em outubro de 1992. Ci~ncia

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estruturas, mas sim com os procedimentos intitucionalizados que, em relacao as mesmas, fosse mister seguir. Em outros termos: esta epistemologia sem sujeito conhecedor devia se ocupar de urn conhecimento considerado como conhecimento sem sujeito conhecedor. Porern, mesmo que 0 anti-psicologismo proposto por Popper nao pudesse achar uma torrnutacao mais radical e grafica do que essa, devemos reconhecer que a mesma pode conduzir a urn erro. Concretamente: a entender que, na 6tica de Popper, a exclusao do sujeito conhecedor do ambito da epistemologia baseia-se na ideia de que este sujeito e uma realidade pr6pria do Mundo II. 0 problernanco e que, ao cometer este erro, podemos nos ver levados a perder de vista 0 pr6prio radicalismo do anti-psicologismo popperiano e a supor que essa rede de artificios institucionais que e 0 Mundo III fundamenta足 se numa natureza psicol6gica pre-institucionalque 0 haveria construido. o pior e que, dal a pensar que essa natureza e a responsavel pelas declsoes metodol6gicas que a teoria do rnetodo quer impor, ha urn passe quase impossivel de nao ser dado. E, ao da-le, 0 psicologismo que se acreditava conjurado retornaria com maior torca e com ares metafisicos: a estrutura e 0 devir do conhecimento objetivo dependeriam, em ultima instancia, das decisoes de urn sujeito previo a toda ordem institucional e anterior ao pr6prio conhecimento. Oesse modo, 0 decisionismo epistemol6gico de Popper estaria condenado a reviver urn lugar-comum tipico da gnoseologia tradicional: pensar 0 sujeito conhecedor como uma natureza constituinte do fato gnoseol6gico e nao como uma estrutura sujeita e constituida no mesmo processo de conhecer. Porem, ao pretender fundar 0 Mundo III em geral e 0 conhecimento objetivo em particular numa putativa natureza psicol6gica, estariamos cometendo urn erro que Popper [a havia denunciado em A Sociedade Aberta e seus Inimigos. Nesse texto, e com motivo de uma ja citada critica do psicologismo em sociologia, nosso autor refere-se ao difundido erro de supor que, do fate de que as estruturas institucionais sejam lnvencao nossa, haveriamos de concluir que as mesmas seriam explicavels em funyao de uma natureza humana previa as mesmas. Como exemplo de tal atitude, Popper cita aqueles segundo os quais "(...) a mstltuicao tipica que os economistas denominam 'mercado' e cujo funcionamento constitui 0 objeto primordial de seus estudos, pode-se derivar, em ultima mstancla, da psicologia do 'homem econornico' ou, para utilizar a terminologia de Mill, dos tenernenos psicol6gicos da persequicao da riqueza".'

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E do mesmo modo como, seguindo este curso de arqurnentacao, poderiamos chegar a concluir que qualquer rnudanca na ordem do mercado suporia uma rnudanca psicol6gica previa, poderiamos tarnbern pensar que, se 0 conhecimento fundamenta-se numa natureza psicol6gica, qualquer normativa que para ele proponhamos devera ser pensada como urn conjunto de regras orientadas a ordenar nossas pautas suojetlvas de pensamento. Desse modo, a mesmissima ideia de uma epistemologia sem sulelto conhecedor deixaria de ter sentido. Contudo, ha uma maneira de evitar esse erro. A mesma consiste em mostrar que, na 6tica de Popper, 0 sujeito conhecedor nao pode ser pensado nem como uma realidade do Mundo II, nem como uma natureza. Estudando a nocao popperiana de "eu" (self), podemos concluir que, no marco do racionalismo crltico, 0 sujeito conhecedor deve ser pensado como urn artificio terceiro-mundo; isto e: como uma lnvencao institucional e n80 como uma natureza psicol6gica. No pensamento de Popper nao ha lugar nenhum para a natureza humana, e isso, levado ao campo da teoria do conhecimento, conduz a certas consequenclas que trataremos de explicar ao lange deste trabalho.

2. Neste sentido, e como multo bern poderia suspeitar 0 leitor fa足 miliarizado com os textos de Popper, a obra qual devemos nos re足 meter para elucidar a nocao de sujeito que opera no pensamento de nosso autor, nao e outra que sua colaboracao em 0 Eu e seu Ce足 rebra. Pensemos, particularmente, no capitulo IV desta primeira parte escrita por Sir Karl. No mesmo nos encontramos com uma abundante (ainda que desordenada) colecao de argumentos e apreciacoes ten足 dentes a confirmar a presuncao de que "os eus exlstem'". Sem nos determos a analisar os pormenores de tais raciocinios, e sem nos demorarmos numa resenha ou reconstrucao dos mesmos, gostariamos de cornecarmos nossa aproximac;aoda nocao popperiana do "eu", assinalando urn dado que nos parece sumamente relevante: os argumentos aos quais Popper recorre para apoiar sua presuncao sobre a existencia de "eus' sao de natureza similar aqueles argumentos que tinha utilizado para convalidar a postulacao do Mundo III. Isto e: trata-se de argumentos de corte empirico absolutamente alheios e distintos daqueles que os fil6sofos analiticos gostam de construir e de discutir. Partindo de certos fenornenos empiricos, e sem querer chegar a nenhuma verdade necessaria, Popper tenta persuadir-nos de que a

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forma mais verossimil e simples de explica-los consiste em recorrer a extstencia de certos centros de acao e reacao que somos nos. eu aparece assim, nao como pressuposto transcendental da ex­ penenoa, mas sim como objeto da mesma. Por isso, podemos dizer que, para Popper, 0 eu esta inserido no mundo do atual; ou seja: nesse universo no qual interactuam os Mundos I, II e III. que nos interessa remarcar e que, dentro da esfera do atual, 0 eu nao se insere como realidade do Mundo II, mas sim como inquilino do Mundo III. Porern, para entender como e que isto e assim, e melhor nos remetermos as precis6es que Popper formula em relacao a como e que algo assim como 0 eu pode surgir. Neste sentido, cabe lembrar que, para nosso autor, "a linguagem humana e (...) 0 elemento originario do Mundo 111"3. Sabemos, ademais, que Popper reivindicou a conjectura de Monod, segundo a qual:

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A apari~ao da linguagem teria podido preceder, talvez com bastante enteceaenci«; a emergen­ cia do sistema nervoso central proprio da espe­ cie humana e contribuir de maneira decisiva para a sele~ao das variantes mais aptas para utilizar todos os recursos. Em outros termos, seria a Iin­ guagem a que haveria criado 0 homem, e nao 0 homem a Iinguagem. 4

Com efeito, segundo nosso autor: "(...) foi a emerqencia da Iinguagem humana a que criou a pressao seletiva sob a qual emergiu a cortex cerebral e, com ela. a consciencla humana do eu". Assim, pode-se afirmar que "(...) devemos nossa condicao de eu - nossa humanidade, nossa racionalidade - a linguagem (... )"6. Com isto, estariamos nos encontrando com certa dependencia genetica do eu em relacao ao Mundo III: a linguagem, mstitulcao primoqenlta e fundadora do universe cultural, e quem instaura e institui nossa subjetividade. E isto, por si so, constitui motive suficiente para deixar de pensar 0 sujeito como uma natureza anterior a toda ordem institucional. Pelo contrano: vemo-nos conduzidos a pensar 0 eu como sendo um artificio de segundo grau; isto e: um eteito de outro artificio que a linguagem. Por isso, quando nosso autor diz que: "enquanto eu, enquanto seres humanos, somos todos nos produto do Mundo 111"7, nao devemos pensar que se nos esta convidando a constatar, mais uma vez, que nossa natureza pslcoioqica esta cinzelada (ou reprimida) pela cultura. Trata-se de uma tese mais forte e radical, 0 que Popper nos diz e que:

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"n6s pr6prios podemos nos considerar elementos do Mundo 111"8. Noutros termos: somos da mesma substancla que nossas institui~oes.9 Como vemos, a concepcao popperiana de eu nada tem de comum com a nocao de individuo pr6pria do liberalismo classico. Para Popper, o eu nao a uma realidade anterior a ordem social; pelo contrario, a um emergente desta ordem. Neste sentido a que podemos dizer que 0 eu nao natureza psicol6gica, mas sim invencao institucional. Popper se aproxima, assim, as poslcoes de Michel Foucault, mas tarnbern de John Dewey; para este ultimo, as instltuicoes: "sao meios para criar lndivtdualidades":" Todavia, 0 que a n6s interessa ressaltar a que, para Popper, nao ha outro(s) sujeito(s) envolvido(s) na construcao do conhecimento a nao ser esses eus individuais, concretos e historicamente situados aos quais nos referimos. E isso 0 que nosso autor aponta quando diz que "somos, voce e eu, os que fazemos a ciencia 0 melhor que pcdemos?", Se, no pensamento popperiano, ha algum lugar para algo assim como um sujeito gnoseol6gico, esse lugar para n6s: frageis artificios terceiro-mundanos, produtos de uma certa ordem institucional e efeitos (e nao sujeitos) da pr6pria evolucao do conhecimento. Contra a teoria expressionista do conhecimento que nos convidava a pensar as estruturas eptstemicas como manitestacoes de uma ordem mental previa ao ato de conhecer, Popper nos convida a reconhecer que nossos modos de pensar, de conjecturar e de construir hip6teses sao, eles pr6prios, produtos do Mundo III. Ou seja: efeitos da hist6ria do conhecimento objetivo e das outras institui¢es que compOem a ordem do social. Como sublinha 0 pr6prio Popper em A Miseria do Historicismo, nao devemos nunca nos esquecer de que "a 0 carater publico da ciencia e de suas instituicoes 0 que lrnpee uma disciplina mental sobre 0 homem de ciencia lndlvldual''", Neste sentido, cabe dizer que a questao colocada por Foucault em relacao aos modos e aos processos atraves dos quais nos convertemos em sujeito do conhecimento nao uma questao impossivel de ser formulada dentro do espaco de indaga~ao aberto por Popper." Na realidade, se considerarmos a ideta de que nosso eu um produto do Mundo III, todo 0 programa foucaultiano de delinear uma "ontologia hist6rica de n6s rnesmos"> torna-se inteligivel nos termos do pensamento popperiano. de se notar como nao se equivocava Alan Por outro lado, Chalmers quando aparentava esta faceta do objetivismo popperiano com aquela famosa tese que Marx soube expressar assim: "Nao a conscieneia do homem a que determina seu ser, mas sim, pelo

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contrario, a sua existencia social 0 que determina sua consciencia?". Tanto assim que, no que diz respeito insercao dos eus nos processos historicos em geral e na historia da ciencia em particular, podemos dizer (seguindo uma suqestao de Ian Hackinq") que Popper poderia aceitar aquela tese de Althusser, segundo a qual: "os homens (plural) concretos sao necessariamente sujeitos (plural) na hlstoria, posto que atuam na historia enquanto sujeitos (plural). Porern, nao ha sujeito (singular) da historia"." Transladar isto ao ambito especifico da historia da clencla. implica dizer que, nesse peculiar processo de producao, estao envolvidos sujeitos individuais (constituidos em e pordito processo) e nao algum tipo de sujeito universal ou coletivo como poderiam se-Io 0 "eu足 transcendental", a "razao", 0 "espirito", a "humanidade", ou inclusive: a "comunidade cientifica". A este respeito, Popper a rigorosamente fiel a seu individualismo metodol6gico. Mesmo que os individuos sejam urn efeito da ordem das institulcoes, estas ultirnas so podem agir atraves da ayao dos sujeitos que elas constituirem. Popper diz assim: "as institulcoes nao agem, mas apenas os individuos nas ou para as instituicees. A logica situacional destas acoes constituiria a teoria das quase acoes das instltuicoes". au seja: nao se pode pensar nenhuma estrutura coletiva como sujeito de qualquer acao intencional; incluidas aquelas acoes que dizem respeito construcao dessa rede institucional que 0 conhecimento objetivo. Este ultimo so pode crescer e se modificar em virtude do trabalho (mancomunado) dos homens concretos e individuais que somos nos. Assim, devemos assumir que uma teoria so pede substituir outra teoria se e somente se os individuos que sustentavam a ultima comeyarem a aceitar a proposta dos que sustentam a primeira. Uma teoria so pode vigorar se existem individuos que a sustentem; outra coisa distinta 0 que acontece com sua validade. a certo que, sem essas mvencoes institucionais que sao os individuos, nada aconteceria no plano do Mundo III. E de se notar como este modo de entender a relacao individuo足 instituicao nao total mente alheio ao modo como Michel Foucault entende a relacao individuo-poder. A respeito disto, 0 autor da "Microfisica do Poder" disse que: "0 individuo nao 0 vis-a-vis do poder; urn de seus primeiros efeitos. a individuo urn efeito do poder, e, ao mesmo tempo, ou justamente na medida em que urn efeito, o elemento de conexao, a poder circula atraves do individuo que constituiu"19. Sem 0 individuo que ele constituiu, 0 poder seria impotente, ou seja: impens8vel. a mesmo podemos dizer que acontece

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com as lnstituicoes. Por outro lado, esta dependencta das institui90es para com os individuos nos conduz a assumir um dos pressupostos baslcos da tecnologia institucional. Ele mesmo, segundo Popper, reza assim: Nao se pode construir institui90es infaliveis, isto

e, institui90es cujo funcionamento nao dependa amplamente de pessoas: as institui90es, no me­ Ihor dos casos, podem reduzir a incerteza do ele­ mento pessoal, ajudando aos que trabalham pe­ los fins para os quais se projetaram as institui­ 90es, sobre cuja iniciativa e conhecimento pes­ soais depende principalmente 0 exito aestes,"

"As instltulcoes sao como fortalezas?', diz Popper, "tern que estar bem construidas e ademais propriamente guarnecidas de pessoal">. Ou seja: nao podemos sonhar com ordenamentos institucionais cujos mecanismos de controle e de auto-controle nao dependam, em ultima lnstancia, do compromisso moral dos individuos que devem faze-los funcionar. Isso 0 sabemos muito bem os latino-americanos: nao M constituicao capaz de ordenar a vida politica de uma nacao se os individuos que cornpoern sua classe politica se entregam it corrupcao. "Hecha la ley, hecha la trampa" e, se os individuos sempre optam pelo trambique a ordem se desmorona e os objetivos institucionais tornam­ se ut6picos. Em outros termos: nao M possibilidade de relevar os individuos no que atern it sua responsabilidade e compromisso para com os objetivos que motivaram a edlficacao das lnstltuicoes.

3. Assim, se pensamos no caso concreto dessas instituicoes com as "quais tratamos de par certa ordem nos casos no qual vivemos para faze-lo racionalmente previsivel"23 (Ieia-se: nossas estruturas epistemlcas) deveremos convir que as mesmas mal poderiam servir para predizer fenomenos se nao existissem individuos intelectualmente preparados para trabalhar com elas e nelas. Por outro lado, e para nao perder a outra face deste individualismo metodol6gico, devemos reconhecer que esses individuos so puderam chegar a estar preparados para fazer funcionarem estas 'rnaquinas institucionais'?', na medida em que foram constituidos por toda uma serie de dispositi­ vos institucionais (que incluem desde a linguagem ate a educacao superior) que os tornaram capazes de operar com as mesmas. De certa forma: os sujeitos nao sao feitos para 0 conhecimento, mas sim

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feitos pelo conhecimento. Todavia, como dissemos acima, 0 conheci足 mento nada poderia sem esses sujeitos. Do mesmo modo, se deixarmos de considerar estas instituicoes que sao nossas teorias e passarmos a considerar esses espacos institucionais em que tais teorias sao propostas e avaliadas, devemos assumir que os mesmos nao poderiam funcionar do modo desejado se os individuos que neles (e por eles) operam nao acatassem e sustentassem (pelo menos em certa medida) 0 que Popper chama de "tradicao da crltica racional". E e por esta razao que, se insistirmos em considerar a teoria do rnetodo como tendente a propor a construcao ou 0 melhoramento de um espaco institucional para 0 exercicio da crltica, devemos assumir que esta teoria tera as mesmas lirnitacoes que toda tecnologia institucional: nao podera reduzir, nem neutralizar nem prescindir do dito "fator humano". No marco do racionalismo crttico, a ideia de construir uma teo ria do metoda (ou um espaco institucional de crltica e debate) que possa funcionar com presclndencia dos compromissos individuais nao pode ter nenhum lugar. A mesma s6 pode tomar parte dos sonhos do engenheiro ut6pico. Por isso, as maxirnas da teoria do metoda nao podem deixar de interpelar os individuos, e isto e possivel e tem sentido por duas razoes: (1) As regras do metoda sao prescricoes convencionais e nao leis da "natureza humana" ou da "razao". Se assirn 0 fosse, a legalidade por elas definida se imporia ao sujeito por si mesma, por sua pr6pria natureza. Neste caso, a observancia das regras do metoda nao requereria a responsabilidade individual. (2) As regras do metoda sao normas propostas e nao normas cuja vigencia ja se supoe efetiva em algum ambito. Neste sentido, devemos pontualizar que a teoria do metoda nao e uma ciencia normativa; ou pelo menos nao 0 e no sentido que Hans Kelsen da a esse termo. Segundo 0 carnpeao da teoria pura do direito: "que uma ciencia seja qualificada de normativa nao significa que tenha por objeto prescrever uma conduta determinada nem ditar norm as aptlcaveis conduta dos individuos. Seu papel e simplesmente descrever as normas e as relacoes socials que elas estabelecem">. E a continuacao o pr6prio Kelsen acrescenta:

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Para uma ciencie normativa, uma sociedade e uma ordem normativa (...) constituida por um conjunto de normas. Um individuo esta subme足

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tido a uma ordem normativa na medida em que sua conduta esta regulada pelas normas de tal ordem. Uma ordem normativa e eficaz quando, de uma maneira geral, os indivfduos aos quais se dirige se submetem as suas normes,"

Quando dizemos que a teoria do rnetodo nao pretende ser uma clencla normativa, estamos dizendo que ela nao tem como meta a elucidacao da normativa que efetivamente rege os procedimentos da comunidade cientifica, mas sim propor, a essa comunidade, 0 acatamento de um certo conjunto de normas. Como essa comunidade se com poe de individuos, impassivel nao apelar a eles se se pretende que este acatamento se efetive. Mas, clare, uma vez que chegamos a este ponto, pode surgir a objecao seguinte: "se as regras do rnetodo nao expressam as leis de uma natureza humana nem tampouco a normativa efetivamente vigente nos espacos institucionais onde se produz 0 conhecimento, como se pode esperar que certos sujeitos constituidos como tais por essas instltuicoes que fazem a producao de conhecimento rompam com as mesmas e acatem normas que, por assim dizer, sao propostas a partir do exterior?" Cremos que a res posta a tal questao consiste em esclarecer que, para Popper, como para Foucault, 0 individuo sempre esta em posicao de poder trair ou desapontar as formas de poder e as ordens institucionais que 0 constituiram. Como afirma Foucault, "onde M poder, M resistencia?": isto e: "a partir do momento mesmo em que se da uma relacao de poder, existe uma possibilidade de resistencla. Nunca nos vemos tomados pelo poder: sempre e possivel modificar seu dominic em condicoes determinadas e segundo uma estrateqia precisa?". 0 poder, ao constituir 0 individuo que havera de exerce-Io, cria tarnbern 0 foco que havera de resistir a ele e trai-Io. Mas, atencao:

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Os pontos de resisiencie estao presentes em todas as partes dentro da rede do poder. A res­ peito do poder nao existe, pois, um lugar da GRANDE REJEU:;AO - alma da revolta, toco de todas as rebelioes, lei pura do revotucionerio. Mas hil veries resistencies que constituem ex­ ce90es, casos especiais: possiveis, necessen­ as, improveveis, esponienees, selvagens, soli­ teries, consertadas, rasteiras, violentas, irrecon­ ciliaveis, rapidas para a trensecso, interessadas ou sacramentais; por defini9ao nao podem exis-

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tir a nao ser no campo estrategico das de poaer."

rela~oes

Isto e, nAo ha um exterior do poder (ou um exterior das tradicoes e instituic;oes) a partir do qual exercer a resistencla. Esta sempre interior as relacoes de poder; exercita-se no seio da rede institucional e, por isso, sempre supoe alqurn grau de compromisso e de cumplicidade com alguns dos elementos que cornpoern esta rede. Por isso, nao existe possibilidade (nem mesmo te6rica) de exercer a GRANDE RE.IEICAo, a contestacao total (isto e: a grande revolucao que daria lugar a fundacao de uma ordem inteiramente nova e distinta). Contudo, segue existindo a possibilidade de se travarem lutas locais e pontuais que vao modificando, aqui e acola e, sem limite a priori alqurn, a rede de relacoes de poder que constituem nossas instltuicoes, nossos rituais e nossas tradlcoes. E, com esta limitada (e ainda estreita) possibilidade de resisten­ cias locais as formas instituidas de poder das quais fala Foucault, ja e suficiente para que 0 projeto popperiano de uma teoria do metodo tenha sentido e viabilidade. Com efeito, a partir da 6tica pro posta por Popper, 0 conjunto de prescrlcoes que se derivariam de seu criterio de dernarcacao nao tenderia fundacao de um regime de racionalidade absolutamente novo, mas sim mera rnodlticacao parcial de um regime ja existente. que Popper pretendia era que sua indagayao sobre as regras do metoda desse lugar a um melhoramento e a um afianyamento de uma tradiyao ja existente; referimo-nos tradlcao inventada pelos gregos: "a de adotar uma atitude critica frente aos mitos, a de discuti­ IOS"30. A reforma que Popper pro poe e, obviamente, uma reforma parcial, fraqmentaria, Por isso, nao e impensavet que certos individuos possam leva-la a cabo, mesmo que, para conseguir seus objetivos, tenham que resistir a demandas institucionais e modalidades tradicionais vigentes nos espacos de poder em que eles operam e dentro dos quais se constituiram como agentes habilitados para os procedimentos especificos a producao de conhecimentos. E mister compreender que os individuos nao sao 0 produto exclusivo de uma ordem institucional (mica e nornoqenea. mas sim que emergem como efeitos de tradicoes e lnstitulcoes diversas que, por s}la vez, guardam relacoes extremamente conflitivas entre si. Foucaultianamente: os individuos emergem num espaco de poder constituido por torcas de direcoes encontradas e entre-cruzadas que os atravessam e os tornam capazes, pelos menos em principio, de trair ou transgredir os imperativos politicos de quaisquer das institui-

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l;oes que os produziram. 0 individuo a um hibrido, um bastardo defini­ tivamente imprevisivel. Por outro lado, preciso assinalar que, ao caracterizar aos indi­ viduos como emergentes de certas ordens institucionais, estamos reconhecendo certa autonomia deles em relayAo as mesmas. Com efeito, quando dissemos que os individuos emergem em certas ordens institucionais, dissemos que, sem estas ultimas, nAo poderia existir nenhuma forma de individualidade, nenhuma forma de subjetividade; porern, nem por isso estamos dizendo que os individuos se reduzem aos ordenamentos institucionais que os produziram. Neste caso, estar­ se-ia contraditando 0 mesmo individualismo metodol6gico que se dizia propugnar. Na realidade, quando dizemos que os individuos sao emergentes das instituil;oes, estamos dizendo que estas ultlrnas produzem efeitos que as excedem e que somente podem controlar ate um certo nivel alern do qual persiste uma certa indetermlnacao que alguam pode chamar de "Iiberdade". E isso 0 que faz Popper em Sobre Nuvens e Re/6gio$l1. As institui¢es deixam brechas, fendas, que tomam possivel sua transtormacao e evolucao: e nAo sAo outros alern dos individuos os que podem levar adiante essa transforrnacao, Pelos individuos as instltuicoes perduram e se tomam eficazes; porern, tarnbern pelos individuos que mudam, fracassam e perecem. Por lsso, mesmo quando os modos de exercer a cientificidade estejam fixados por uma normativa institucional alheia e anterior as regras_da teoria do rnetodo, a tarefa do episternoloqo tem sentido.

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4. A peculiaridade da nol;Ao de "sujeito gnoseol6gico· que, de fato, funciona nos textos popperianos pode tomar-se mais patente se a compararmos com a nOl;80 de sujeito que se insinua no "Tractatus" de Wittgenstein. Tal cornparacao, por outro lado, permitiria esbocar uma contraposicao entre racionalismo critico e filosofia analitica, e tambern permitiria esclarecer um pouco a indole diversa do antipsicologismo popperiano em relacao antipsicologismo proposto por autores como Ludwig Wittgenstein e GottJob Frege. Assim, devemos recordar que no "Tractatus" 0 sujeito nos a apresentado como alheio ao mundo; como nao incluido no que a 0 caso. Noutros termos: 0 sujeito se nos apresenta como exilado da ordem dos fatos, como alheio a toda facticidade. Porern, para indicar isso, Wittgenstein recorre a uma afirmal;Ao que (quica por sua precisao

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extrema) pode parecer desconcertante: "0 sujeito pensante, representante, nao existe?", Tal 0 impacto dessa frase que, por eta, autores tao diversos como Max Black e Dominique Lecourt chegaram a concluir que a nocao de sujeito nao tinha lugar nenhum na (primeira) filosofia de Wittgenstein 33. Contudo, acreditamos que a consideracao de outros aspectos do "Tractatus" da lugar a pensar que a tese que se esta propondo de outra indole. Concretamente: pensamos (igualmente a urn autor como H.O. Mounce") que 0 que se nos esta indicando que 0 sujeito gnoseol6gico (isto e: 0 sujeito filos6fico e nao 0 eu em pirico da psicologia) nao real, esta excluldo da realidade. certo e que uma leitura correta de semelhante afirmacao exige que sejam consideradas definicoes prevlas do pr6prio "Tractactus". Pensamos primeiramente, nestas duas:

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(A) "0 estado de coisas uma conexao de objetos (coisas)"35 (B) "poder ser parte integrante de urn estado de coisas essencial a coisa". 36

E, em segundo lugar, pensamos nestas outras:

(C) "0 dar-se e 0 nao dar-se efetivos de estados de coisas e a realidade"37 (D) "a realidade total 0 rnundo?".

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Que algo esteja necessariamente excluido do mundo, ou da rea­ lidade, nao pode mais que implicar a impossibilidade de que esse algo possa ser integrante de urn estado de coisas (fato possivel). Porern, dado que 0 poder integrar urn estado de coisas e inerente a condicao de coisa (ver B), devemos concluir que algo que padeca de tal impossibilidade nao pode ser, sob nenhum ponto de vista, conside­ rado uma coisa. Por isso, para que algo possa ingressar na esfera do outra que real ou atual (a palavra que Wittgenstein usa nao "Wirklichkeit") deve poder tomar parte de urn estado de coisas; ou seja: deve ser uma coisa. Portanto, ao dizer que 0 sujeito nao existe, estamos dizendo que ele nao pode pertencer a esfera do real; isto e: estamos dizendo que ele nao uma coisa, nao e urn objeto. E, se algo nao e urn objeto, nso pode tomar parte do mundo dos fatos. A diferenc;:a do que acontece com 0 objeto de uma clencia empi­ rica como poderia se-lo 0 "eu psicoI6gico", 0 sujeito filos6fico aparece (no "Tractatus") como excluido da esfera do que pode ser dito; isto e: aparece como exilado da esfera dos fatos. Significa isso que, entao, 0 sujeito nao tern nenhum lugar na filo­ sofia do primeiro Wittgenstein? Acreditamos que a resposta e definiti­ vamente negativa, e a chave disso nos da a leitura daquele paraqrafo

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uo "Tractatus" onde Wittgenstein nos diz que: "0 sujeito nao pertence ao mundo, mas e um limite do rnundo?", Mesmo quando nao haja onde descobrir no mundo 0 sujeito metafisico, mesmo que para ele nao haja espaco na esfera do que e 0 caso, ainda assim "existe (...) um sentido em que, na filosofia, pode tratar-se nao psicologicamente do eu"40. Porern, para explicar esse modo pelo qual referir-se filosofi­ camente ao sujeito, Wittgenstein e exageradamente lacOnico: "0 eu entra na filosofia devido a que 0 mundo meu rnundo":". Felizmente, se nos dao algumas pistas adicionais: "0 eu filosofico nao e 0 homem, nem 0 corpo humano, nem a alma humana, da qual trata a psicologia, mas 0 sujeito metafisico, 0 limite - nao uma parte do mundo?". 0 sujeito metafisico nao e parte do mundo, nao e parte integrante de um fato, nao uma coisa (se 0 fosse, seria objeto de ciencia empirica e nao seria metafisico); contudo, podemos considera-lo como um limite do mundo que se mostra na correcao indizivel (embora rnostravel) do solipsismo: "0 que 0 solipsismo entende e plenamente correto, so que isso nao se pode dizer, mas se mostra. Que 0 mundo e meu mundo se mostra em que os limites da linguagem (...) significam os Iimites do meu rnundo?". Wittgenstein pretende escrever sua filosofia em primeira pessoa do singular, todavia, devemos saber notar que essa primeira pessoa nao diz a respeito de um objeto do mundo, mas sim que mostra um "eu transcendental" que so se nos oferece como limite do mundo. Ain­ da quando 0 mundo factual apareca lotado de eus empiricos (psico­ loqicos), Wittgenstein propoe 0 solipsismo da apercepcao transcen­ dental. Eis ai 0 sujeito da filosofia wittgensteiniana, um sujeito alheio aos acasos do mundo, mas que se nos lrnpoe como condicao do dar­ se dos fatos desse mundo. Nada pode ser mais oposto a isso que a ideia de "eu" propria da epistemologia popperiana. Popper nao pretende escrever sua episte­ mologia em primeira pessoa (seja do singular ou do plural), mas sim numa terceira pessoa (plural) referida (rnais imperativa que indicativa­ mente) a esses individuos que, na concretude de uma facticidade his­ toricamente situada, operam em e com essas estruturas institucionais que fazem 0 conhecimento objetivo. Como ja foi mostrado no inicio da seccao anterior, esses eus plurais, diferentemente do sujeito wittgensteiniano, se inscrevem na ordem do real-atual (Wirklichkeit); isto e: sao objetos de expenencia possivel e nao condicoes transcen­ dentais para tal experiencla, Lembremos, neste sentido, que, para Popper, "os eus existerrr'": sao coisas deste universo, como as pedras, a dor-de-dentes, eo estado.

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Para nosso autor, "(...) 0 eu nao e urn ego pure (...), isto e, urn mero sujeito"45. 0 eu, como ja assinalamos, e urn centro de acao que interage com outros objetos do mundo e vai se constituindo nessa mesma mteracao. Segundo Sir Karl, urn eu nao nasce, mas se faz: aprende-se a ser urn eu e essa aprendizagem exige da experlencia. Assim, nosso autor pede chegar a dizer que: Para ser um eu ha que se aprender multo, espe­ cialmente 0 sentido do tempo, conosco mesmos estendendo-nos ao passado (...) e ao futuro (...). Mas tal coisa supoe teoria, ainda que seja em sua forma rudimentar como expectativa: nao hiJ eu sem orienta~ao teorica, tanto num espa~o primitivo quanto num tempo primitivo. Assim, 0 eu e 0 resultado em parte da explora~ao ativa do meio e da capta~ao da rotina temporal base­ ada no cicio da noite e do dia. 46

Popper leva as suas ultimas consequenclasa ideia de que 0 eu e urn objeto da experienciae chega a afirmar que nossa pr6pria consci­ encia de ser urn eu e uma conelusao que extraimos da pr6pria expe­ riencia. Isto e, a denominada autc-consciencia nao e mais que uma conjectura que certos fenOmenos empiricos tendem a corroborar. Po­ rem, se aceitarmos que sem urn certo grau de consclencia de si nao existe nada que possamoschamarde "eu", devemos coincidirem que, pelo menos para Popper, 0 sujeito nao e condicao de possibilidadeda expenencra, mas sim 0 resultado desta ultima. Eis al a chave da im­ pugnayao popperiana a nocao de "ego puro". Segundo nosso autor:

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termo tuosottco "puro" se deve a Kant e suge­ re algo assim como "prevk» aexperi(mcia" ou "li­ vre da (contamina~ao day experiencia"; e, des­ se modo, a expressao "eu puro" sugere uma te­ oria que considero equivocada: a teoria segun­ do a qual 0 ego estava af antes da experiencia, de modo que todas as experifmcia estivessem acompanhadas, desde 0 comeco, pelo "eu pen­ so" cartesiano ou kantiano (ou tetvez por "eu estou pensando" ou, em qualquer caso, por uma "apercep~fJo pure" kantiana),47

o eu puro da filosofia, a apercepcao transcendental, e como 0 teatro onde se encena 0 grande espetaculodo mundo ou da experien­ cia. Por isso, pode-se dizer que esse eu filos6fico define os Iimites do mundo. Em troca, 0 eu do pensamento popperiano toma parte deste 60

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mundo, urn ator a rnais dessa colocacao em cena qual ninquem assiste sem estar envolvido. 0 mundo popperiano urn genuino "happening". Assirn, sem recorrer a urn suleito pslcoloqlco, mas sim a urn eu entendido como efeito e agente de fatos sociais, Popper introduz na reflexao eplstemoloqica 0 suieito empirico, real, hlstorlco. Popper se dispoe a pensar 0 sujeito gnoseologico em sua facticidade e esse gesto nao faz mais do que atender exigencia colocada pela intencao de pensar 0 conhecimento como realidade institucional. Em poucas palavras: a concepcao popperiana do sujeito 0 correlato exigido por sua concepcao do conhecimento. Urn conhecimento pensado em sua facticidade de tenerneno mundano exigia pensar em sujeitos hlstonca e geograficamente situados; eis al os eus (os individuos) popperianos. Porern, quando se considera 0 sUjeitocomo objeto de experiencla, e mais ainda quando se considera que nosso proprio eu (para nos mesmos) objeto de experiencia; toma-se imprescindivel formular certos esclarecimentos. Em particular, trata-se de lembrar que, em geral, Popper nao considera que algo assim como a observacao direta seja o modo pelo qual abordamos os objetos que cornpoern a expertencia: e nosso eu nao constitui uma excecao, Por isso, pergunta "como obtemos auto-conhecimentov'", Popper responde afirmando que "(...) nao e por auto-observacao, mas sim convertendo-nos em urn eu e desenvolvendo teorias acerca de nos rnesmos?". Com efeito, para nosso autor, "a consciencia humana do proprio eu esta baseada, entre outras coisas, numa serie de teorias sumamente abstratas't". Assim, Popper pode chegar a dizer que:

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as animais e as plantas tem, sem duvida, um sentido do tempo e expectativas temporais, po­ rem, faz falta uma teoria quase explicita do tem­ po (oo.) para vermos a n6s mesmos em posses­ sao de um passado, um presente e um futuro; em possessao de uma hist6ria pessoal; e cons­ ciente de nossa propria identidade pessoal (.oo) ao longo dessa hist6ria. Assim, pois, e uma teo­ ria que, durante os per/odos de sonho, quando perdemos a continuidade da consdenae, n6s continuamos essencia/mente iguais; e sobra a base dessa teoria 9 que podemos lembrar cons­ cientemente acontecimentos pesseaos,"

Definitivamente: "a consciencia humana do eu esta ancorada na linguagem e (tanto explicita como implicitamente) em teorias

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forrnutadas?". Porern, em chave popperiana. dizer que nosso auto­ conhecimento e te6rico e 0 mesmo que afirmar que a hipotettco ou conjectural. Isto e, nao temos conhecimento imediato de nosso proprio eu, e. 0 conhecimento que de fato possuimos e tao conjectural e injustificado como 0 que temos em relacao aos outros objetos que constituem a rede experiencial. 0 auto-conhecimento, para Popper, nao e mais evidente ou menos faHvel que as outras formas do saber conjectural, e, portanto, nao tern nenhuma preeminencia sobre ele. Este fato, associ ado ideia popperiana de que todo conhecimento essencialmente incompleto (incluido 0 auto-conhecimento). conduz­ nos a constatar a impossibilidade de algo assim como urn "cog ito popperiano". Esses suleitos de que fala Popper nao somente nao sao fundamento da experiencia, mas tampouco sao consclencias auto­ presentes.

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~s , K. Popper(1945). The Open Society and Its Enemies, Prineeton Univ.Press:Prineeton 1963 p.91 (vol. i). , K. Popper (1977). Ths Seifand Its Brain; Springer:N.York 1985. p.l0l. 3

K. Popper (1983). Socledad Ablerta, Universo Abierto. Tecnos.Madrid 1984 p.l 03.

• J. Monod (1967). "Leccion Inauguralde la Cllitedrade Biologia Molecular del Collage de France", em Delldeansmo Fisico al IdNnsmo BiolOgico; Anagrama: Barcelona. 1972. p.33. 5

K. Popper (1977). The Self and Its.... op.eit.• p.13.

• Idem, ibklem. p.l44t. 7 Ibidem. • Ibidem. • E, de acordo com 0 proprio Popper, poderiamos aereseentarque somos da mesma substAneia que nossas obras de arte. Tantoa assim que nosso velho e conservadorautorse atreve a reabilitar (de Jato antes que Foucautt)a hoje jill nlo tlo esquecidateoria segundo a qual "nossa vida a uma obra de arte" (PopperlEccles,1977). Por ou1ro lado, nosso autor nlo deixa de manifestar um pleno acordo com John Eccles quando este Iittimo comenta a idaia referida dizendo: "ereio que se trata de uma kUliaterrtvelrnentelmportante.Pode-se dizer que se trata de algo imediatamentereconhe­ elvel quando se considera uma biografla.Uma biograflaa uma obra de arte ou de erudiltlo ou uma hist6ria sobre um objeto do Mundo III, a saber: um ser vivo; uma autobiografia 0 a ainda mais Intimarnente. Inclusive sa as pessoas nlo t6m uma biografia comprida, pelo menos t6m hist6rias, lembran~s. reminisc6nclas. notlcias necrol6gicas. etc.• que mostram que perteneem ill corrente da eMlizaltio e III cuttura de seu modo peculiar.Haveremosde reconhecerque os individuos slo exemplos vivos de uma vida moral, civilizadae cultivada. sando neste sentidoobjetos do Mundo III com uma mensagem para a humanidade"(Eccles. 1977). Como vemos. Popper e Eccles nAos6 se aproximam de certos pontos de vista de Foucautt,mas tambem (nessa maneira de entender 0 significado moral da exist6ncia humana) sa aproximam de certos pontos de vista que Pier Paolo Pasolini expOs em seu escrito "Ubertilli Responsabilitill Individuale".No mesmo, Pasolini sustenta­ va que: "cada um de n6s sa expressa, sobretudo.vivendo uma vida, realizandoa¢es, instaurando rela¢es com ou1ro, mantendorela¢es com os ou1ros; istoa: se expressa principalmentecom seu exemplo. A linguagem de um homem. a verdadeira Iinguagemde um homem. a seu exemplo, 0

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exemplo que ele da de si mesmo vivendo" (cltado por M. Lahud, 1988). 'oJ. Dewey (1920). Reconstruction in Phil080phy: Mentor Books: New York. 1950, p.152. Nessa mesma obra. John Dewey opOe seu modo de considerar 0 individuo maneira como 0 fez 0 Iiberalismo classico. Para este, nos diz 0 autor, as inst"uilYOes "eram artificiais enquanto os indivi­ duos eram naturais". Em relalY80 forma em que certas teses de Foucault se opOem a essa concepcao classica ja denunciada por Dewey. cabe consultar: D. Gruber (1989): "Foucault's Criti­ que of the Liberal Individual", em The Journal of Philosophy. vol. 86, n.ll.

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K. Popper (1956). Reali8m and the Aim of Science; Hutchlneon: London 1985. p.259.

12K. Popper (1945). Poverty of Historici8m; Routledge: London 1957. p.155. '3 Cfr.

M. Foucault (1983). "A Propos de la Genealogie de L'Ethique: Un Apercu du Travail en Cours" (entretien avec H. Dreyfys et P. Rabinow) em "M. Foucault: Un Parcours Philosophique", Gallimard: Paris, 1984. p.332.

14

Foucault introduz esta nocao na mesma entrevista que mencionamos na nota anterior. E, tarnbem, nesta entrevista onde reivindica a possibilidade de pensar 0 eu como obra de arte.

1sCfr.Alan Chalmers (1982). Qu6es Esa Cosa L1amada Ciencia? SigloXXI: Madrid, 1984, p.170 (c cita1Y8o de Kart Marx de "Uma Contribui1Y80 Critica da Economia PoHtica").

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1·efr. I. Hacking (1975). Por qu6 el Lenguaje Ie Interesa ala Fil080flA? Sudamericana: Buenos Aires, 1979, p.228. Hacking se refere iI afirma~o de Althusser segundo a qual a principal divida positiva do marxismo com Hegel a categoria de "processo sem sUje"o" (Althusser. 1973) e afirma que "Popper a (mica das atuais figuras da filosofia inglesa que se aferra a esse legado de Hegel" (Hacking, 1975). E 0 certo que esse nao 0 unico legado hegeliano que Popper integra a seu pensamento.

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17 L. Althusser (1973). Para una Critica de la PrActica Te6rica; Siglo XXI: Buenos Aires, 1974. p.76. 16K. Popper (1961). A 16gica da8 Cillncias Soclai8, Univ. de Brasilia, 1978 p.27. 19M.Foucault (1976). "Curso del 14/11176", Microfl81ca del Poder; La Piqueta. Madrid, 1979, p.144. '" K. Popper (1945). The Poverty of..., op.cit .• p.80. 21 Idem, ibidem. p.80. 22

Ibidem.

23K. Popper (1949). "Towards a Rational Theory of Tradition" em Conjectures and Refutation8.Routledge: London 1963., p.131. 24 Lembremos que se trata de uma expresslio de Pepper introduzida na nota (16) do capitulo III de Poverty of Hlatorlctam. "'H. Kelsen (1953). Teorla Pura del Derecho,Eudeba BsAs. 1986. p.25. 2B Idem,

ibidem. p.25.

27M. Foucault (1976). La Voluntad de Saber. Siglo XXI, Buenos Aires. 1978. p.116. 2BM.

Foucault (1977). "Non au Sexe Roi"; Le Nouvel Observateur. 12103/1977.

29M.Foucault (1976). La Voluntad de Saber. Siglo XXI. Buenos Aires. 1978. p.116. :IlK. Popper (1949). "Towards a Rational Theory of Trad"ion". em ConJecture8 and Refutatlon8. op.cn., p.127.

3' K. Popper (1965). "Of Clouds and Clocks" em Objective Knowledge. Clarendon: Oxford 1972 32

L.Wlltgenstein (1921). Tractatu8 L6glco-Philo80phlcU8; Ed. Bilingue,Alianza Madrid 1980 §5.631.

"Cfr. M. Black (1964). A Companion to Wlttgen8teln'8 Tractatu8.Cambridge Univ. Press, 1964. p.308; e D. Lecourt (1981). L'Odre et Ie Jeux; Grasset et Fasquelle. Paris. 1981. p.191. 34

H. Mounce (1980).lntroducclon al Tractatu8 de Wiltgen8teln. Tecnos, Madrid, 1983. p.124 e ss.

35L. Wlltgenstein (1921). Tractatu8.... §2.01. ""Ibid., §2.011. 3'

Ibid.• §2.06.

"" Ibid.. §2.063.

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JO

Ibid.• §5.632.

40 Ibid.•

§5.&41 .

•, Ibid.• §5.&41.

42 Ibid.• CJ

§5.&41.

Ibid.• §5.62.

"K. Popper (19n). The Self and Ita...• op.ciI.• p.101.

"Ibid., p.120.

-Ibid.• p.110.

"Ibid.• p.111.

-Ibid., p.109.

-Ibid., p.109.

""K. Popper (1958). The Open Universe. Hutchlneon: London 1985. p.158.

51

Idem. ibid., p.158.

""Ibidem.

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Pincel e a Camera, ou conslderacoes acerca do problema da representacao na pintura e no cinema. Jorge Vasconcelos Departamento de Filosofia da UERJ

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que pretendemos fazer aqui neste texto? Basicamente pensar as relacoes entre 0 fazer do pintor e do cineasta a partir do conceito de imagem. Mas nosso ponto de partida conceitual na verdade nao e a imagem. Nosso ponto de partida, para nossas analises, eo problema da representacao na pintura e no cinema. Perguntamos entao: 0 que a representacao? Para respondermos a esta questao partiremos de uma prancha (de uma imagem), acreditamos que ja conhecida de todos, trata-se de Las Meninas de Diego Velazquez (1656/prancha 1). Michel Foucault fez uma longa descncao deste quadro no primeiro capitulo de seu ja celebre Iivro As Pa/avras e as coises,' Sigamos entao as observa¢es de Foucault. Antes disto, porern, dividiremos em territ6rios pictoricos! a obra de Velazquez para melhor realizar nosso percurso. 0 primeiro territ6rio chamaremos de 0 o/har do pintor. Nele vemos 0 pintor que nos ve, uma relacao de pura reciprocidade, como nos diz Foucault: "o/hamos um quadro de onde um pintor, por sua vez, nos contemp/a. "3 Velazquez substitui 0 modelo pelos esoectadores, que na verdade, somos nos. 0 segundo territorlo pode ser chamado de 0 /ugar da tuz. Ele e encontrado no quadro em sua extremidade direita, em urn pequeno vao, que muito mais se insinua, que propriamente se mostra. Esta luz , sera a luz que i1uminatoda a representacao do quadro que estara por ser pintado pelo pintor, que fita ininterruptamente seus modelos, pretensamente nos, os espectadores. 0 proximo terntono nao poderia deixar de ser outro senao 0 espe/ho. Segundo Foucault, de todas as representacoes oferecidas pela luz que invade a tela, 0

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espelho e a mais visivel, apesar de ser a menos notada ao primeiro olhar sobre a tela; nele vislumbramos dois espectros, que interrogativamente paderiamos apresentar como os pretensos modelos que estao sendo pintados pelo pintor. Foucault nomeia 0 quadro em tais quais representacoes: "0 pintor", "as personagens", "os espectadores" e "as imagens"; para em seguida fazer um resumo desta obra de Velazquez:

r.: basta ria dizer que Velazquez compos um quadro; que nesse quadro ele se representou a si mesmo no seu eteti«, ou num salao do Escorial, a pintar duas personagens qua a infanta Margarida vem contemplar, rodeada de eies, de damas de honre, de cottessos e de anoes; que a esse grupo pode-se muito precisamente atri­ buir nomes: a tradif;ao reconhece aqui dona Maria Augustina Sarmiente, ali, Nieto, no primeiro plano, Nicolaso Pertusato, bufao italiano. Bas­ taria acrescentar que as duas personagens que servem de modelo ao pintor nao sao vislveis, ao menos diretamente; mas que podemos distin­ gui-Ias num espelho; que se trata, sem duvida, do rei Filipe IV e de sua esposa Mariana."4

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ultimo territorio pictorico que destaco no quadro de Velazquez nomei-o de 0 intruso. Chamei-a de "0 intruso", par esta imagem dar con­ ta do personagem que esta no fundo do quadro, como que a espreitar toda a cena, como se estivesse fora da area que constitui a pintura, como se estivesse fora da pr6pria representacao propasta par Velazquez. Esta personagem tudo ve: 0 pintor que pinta; a infanta Margarida rodeada; o casal a cochichar; 0 rei e a rainha a posar; e ate, possivelmente, podemos arriscar dizer, os virtuais espectadores a contemplar 0 quadro. Foucault nos fala em um cicio da representacao: "Partindo do olhar do pintor que, a esquereJa. constitui como que um centro deslocado, distin­ gui-se primeiro 0 reverso da tela, depois os qua­ dros expostos, com 0 espelho no centro, a se­ guir a porta aberta, novos quadros,cuja pers­ pectiva, porem, muito aguda, s6 deixa ver as molduras em sua densidade, enfim, a extremi­ dade direita ajanela, ou, antes, a fenda poronde se derrama a luz. Essa concha em helice ofere­ ce todo 0 cicio da representaf;80: 0 olhar, a palheta e 0 pincel, a tela inocente de signos (sao

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os instrumentos materiais da representa~ao), os quadros, os reflexos, 0 homem real (a represen­ t~ao acabada, mas como que Iiberada de seus comeuaos ilus6rios ou verdadeiros que Ihe sao justapostos); depois, a representa~§o se dilui: s6 se v'em as molduras e essa luz que, do ex­ terior, benha os quadros, os quais, contudo, de­ vem em traca reeonstituir 8 sua propria manei­ fB, como se 81s viesse de outro lugar, atraves­ sando SUBS moIduras de madeira escura. E essa tuz, vemo-la, com efeito, no quadro, parecendo emergir no intersticio da moldura; e de Is e/a al­ can~8 a fronte, as faces, os olhos, 0 olher do pintar que segura numa das meos a palheta e, na outra, 0 fino pince/... Assim se fecha a voluta, ou melhor, por essa tuz, e/a se abre. ''ll

EntAo, 0 que nos interessa aqui, nestadescri<;Ao em Lss Meninas, de DiegoVelazquez, segundo Foucault, e 0 problema da representa­ 9Ao. De como 0 quadro do pintor espanhol como que resume, de for­ ma brilhante. a questaoda representaylo classica, ou como diz 0 pr6­ prio Foucault, ele e"s represents~iiods represents~iio classics"'. Prosseguiremos nosso texto com a apresentayAo de rnais tres pranchas de quadrosdeVelazquez, sendoque as duas subsequentes serao detalhu de Las MMinas (pranchss 2 e 3). 0 primeirodos dois detalhes nosda aver 0 pintor; eo segundo detalhe a infantaMargarida cercadade aias, 0 intrusoa oIhara cena e 0 espedro do casal real ao espelho. Nestesdois detalhes temas a dimenslo precisado problema da representayao, ou de como ale surgena obravelazquiana. I: preciso que prestemos atenylo 80S olhares des figuras retratadas, nAo s6 0 pintorqueolhaseuspretensos modeIos. como dB pequena princesinha: todos estAo a fitar na mesfTIII dir~ um certo ponto, uma certa Iinha de fuga, que por sugestAo, pensamos tratar-sedas figuras reais. Mas o que nos interroga, e prinGipalmente nOll d8 motivosa suspeitar, e de que 0 pintor, na vardade, nIo quane pintar os reis, nem muito menos sua filha cercada de aias, 0 pintor querla pintara propria pintura, com todos os seus jogos de cena, de figuratrAo, de superflcie, seus jogos de plasticidade. A "ausfncia· real coR'Oboraria nesta tese. Sem a presence, a nIo ser espectr8lde FilipeIVe de D. Mariana, seria mais facil conseguir mostrar 0 que 0 pintar realmente almejava: a pintura enquanto pintura. A ~us6ncia do casalrealserviu a Velazquez de estrategia para conleguir seu felo. Foi a partir desta estrategia que 0 pintorconseguiu construirseusterrit6riospict6ricos. Serianeste

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quadro que 0 ate de pintar colocar-se-ia em questao, e com 0 ele 0 problema da representacao. A seguir, entao, meditaremos acerca do ultimo Velazquez, aquele que fara 0 gancho com a obra de Francis Bacon, falo do Retrato do papa Inocencio X (1650lprancha 4) do pintor espanhol. Nesta prancha, temos uma tipica imagem do mestre Velazquez: urn retrato do pontifice da Igreja Cat6lica, sentado, em pose serena, com seu anel papal a mao direita bern visivel e reluzente, quase como que pedindo para ser visto; e mao esquerda urn papel dobrado que nos coloca uma mterroqacao: 0 que esta escrito? Qual seu texto? Por que 0 pontifice 0 segura em urn retrato que iria ficar para a posteridade? Estas sao questoes que no espaco de reflexao que aqui nos cabe nao trataremos. Mas precisamos prosseguir. Vejamos. 0 retrato tern urn forte tom em vermelho, destacando-se a manta e 0 chapeu de Inocencio X. 0 branco de sua batina, nada mais faz que realcar ainda em demasia 0 vermelho hegem6nico da imagem ... Velazquez tenta eternizar Inocencio X. Sua representacao pictorica' precisa ser a mais altiva possivel, a mais fiel aos canones estabelecidos pelo poder secular... Velazquez 0 conseguiu, Inocencio X majestoso em sua representacao pict6rica. Esta imagem precisara de trezentos e tres anos para sefrer uma nova leitura. Uma leitura destruidora do processo representativo pict6rico. Esta imagem prectsara da mao e das tintas de urn pintor irlandes conternporaneo para ganhar uma nova conotacao. Uma conotacao que romperia com os pressupostos do principio da rspresentacao: a ideia de sernelhanca e a figurayao. Precisamos apresentar e meditar sobre 0 Estudo do tnocencto X de Ve/itzquez (1953lprancha 5) de Francis Bacon.

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Antes de cornecarmos a fazer algumas incursoes acerca desta imagem de Francis Bacon, pretendemos colocar 0 problema geral da ert« comum a todas as formas de producao artisticas. Gilles Deleuze vai nos dizer em seu Iivro sobre Francis Bacon a que, 0 grande problema que permeia todas as producoes artisticas seria 0 da captay§o das (oryas. Buscar onde as forcas encontram-se, concentra-las e dtspersa-las em urn unissono. Novamente concentra­ las, reinventando-as: produzindo 0 novo. A questao do novo e 0 pro­ blema da arte, nao 0 da originalidade. Nao he porque buscar a origem do fato artistico. Nao ha porque buscar a marca de urn possivel"genio', os genios morreram com Goethe, ja que a arte modema rompeu defi­ nitivamente com 0 principio da sernelnanca, logo, com a representa­ yao. A mimese urn falso problema: a figuratividade tornou-se uma

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impossibilidade depois da invencao do daguerre6tipo, da fotografia, e mais tarde do cinemat6grafo. Dentro deste panorama das cuestoes que apetecem 0 fazer ar­ tistlco, a pintura vai erigir urn novo patamar, segundo Deleuze, ela esculpiria uma nova realidade, com novos angulos e perspectivas pa­ ra 0 real. Produziria urn novo corpo, urn novo um corpo, no sentido berqsoniano" deste conceito. Urn corpo que age diretamente nos ner­ vos sobre todas as cores, que formam assim, urn sistema de acao direto sobre 0 sistema nervoso. Neste contexto, Deleuze cita a musica como uma especie de contraposicao a pintura. A musica proporia uma linha de fuga interna, um sair, urn nao estar mais presente. Ela ar­ rastaria nosso um corpo, sobre outros corpos. Ela libertaria os corpos de sua mereta, da materialidade de sua presenca, A rnusica desencarna os corpos. Ja a pintura, por sua vez, retorna a esta materialidade dos corpos. Buscar 0 sentido do tato, do pegar, do afagar a materia em toda sua plenitude. A pintura anseia 0 corpo e a carne deste um corpo. Entao, enquanto a rnusica desencarna e desmaterializa, a pintura en­ carna e materializa. A rnusica e 0 pure corpo e a pintura e 0 corpo impuro. A rnusica corneca onde a pintura termina: no tempo. A muslca e a arte pura do tempo, enquanto a pintura engendra 0 tempo na ma­ teria, materializa a temporalidade. Poderiamos nos perguntar: como a pintura torna presente a rea­ lidade viva do corpo? Ou ainda, de outra maneira: como a pintura materializa 0 tempo? Deleuze responde: pelo teto pict6rico puro - as sensecoes. A sensacao em plena carne. A sensacao plena de carne. A sensacao que e plena de intensidade, produtora de um novo corpo, inventora do corpo intenso. Esses estados intensos instauram uma forma nova de corporeidade. Urn corpo que ultrapassa 0 aparelho sens6rio motor da espacialidade habitual e busca 0 tempo, 0 puro tempo ou 0 tempo puro. Urn corpo que acaba por abolir seus pr6prios 6rgaos: urn corpo­ sem-orqeos", Isto pois que, 0 organismo aprisiona a vida, e e precise propor a vida pura, intensa. A pintura de Francis Bacon esta neste lugar. Neste lugar de pura intensidade ou de intensidade pura. Em Bacon a pintura ganharia uma nova rnotivacao, urn novo fa­ zero Este novo fazer esta associado a sua tecnica e as suas imagens. Imagens distorcidas, multiformes, quase monstruosas, que exilam de­ finitivamente a "boa representacao". Deleuze destaca tres elementos basicos da pintura de Bacon: Figuras; Contorno e Estrutura. As Figuras sao os corpos dobrados e tortos, as cabecas sem rostos ... 0 monstro; o Contorno compreende a pista, aroda, 0 lugar e a figura; e a Estrutura

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denota a espacializacao, 0 achatado as cores vivas e uniformes. Para Deleuze, a alma da pintura de Bacon esta em compreender para este pintor 0 que a nocao de Figura. A primeira questao que se coloca sobre a nocao de pintura na obra de Francis Bacon que - figura e figurayao nao sao a mesma coisa. Pelo contrario, a figura urn avesso da figurayao, a figura 0 instrumento do fazer pict6rico de Francis Bacon para acabar com todas as formas de figurayao possiveis. Em Bacon a pintura deixa de referir足 se tendencia, dominante ate 0 impressionismo, de constituir-se como uma orqanizacao 6tica da representacao. Em Bacon a representacao pict6rica nao teve vez, ela feneceu por completo. Tanto que Deleuze chega a dizer na sua obra sobre 0 pintor irlandes que nenhuma ene representativa, mesmo a pintura, sobretudo se pensarmos que a partir do problema que define a pintura moderna: como romper a figuratividade (Figurac;:ao). A pintura, e temos aqui 0 exemplo de Bacon, nao i1ustra, nao conta nada; ela (a pintura) nao narrativa, nem ilustrativa. Para se romper com a figura, Deleuze nos diz que, Francis Bacon produziu uma cattJstrofe, beirou 0 caos, inventou diagramas e confrontou-os com 0 ca6tico. Francis Bacon tarnbern estaria na zona do caosmos, assim como James Joyce" . Uma zona que procura uma nova ordenacao na nebulosidade enlouquecida do caos. Uma zona que reterritorializa todos os processos de desterritorlalizacao. Uma zona que da sentido ao que estava muito vago ... E 0 'que estava vago era 0 pr6prio caos. Reterritorializar, no sentido que nos propoe a obra de Bacon, mais que criar urn novo territ6rio, urn novo topos, a tentativa feita pelo artista, 0 pintor, de inventar uma Iinha de fuga para as tradicionais formas perceptivas impostas pela representacao. trabalho do pintor, depois de Francis Bacon, renovou-se, segundo Deleuze. Suas praneas nao podem ser as mesmas, ha de se olhar uma imagem e va-Ia diferentemente, ha de se fazer novas leituras de velhas imagens, assim como Bacon fez, a partir de seus estudos da obra de Velazquez. Retornemos ao Inocencio X de Francis Bacon.

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Este papa ja nao mais majestoso como 0 de Velazquez. Quase que podemos ouvir 0 sugerido grito de sua boca escancarada. Quase nao podemos ver seu rosto nlo mais magnAnimo. QU8se nao podemos perceber seu anel, que parece ter side eltdido por Bacon. Seu poder foi desterritorializado pela ausllncia do anel e do papel. E urn papa sem titulo ou j6ia. ~ urn papa encarnado, nao mais urn papa celestial ou metafisico. Este nao Inocencio X, 0 papa velazquiano. Esta nao e

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uma imagem representacional pict6rica de um pontifice. Isto nao e uma representacao, Francis Bacon reinventou a arte figurativa, ao colocar 0 problema da morte da figurac;:ao. Em seu lugar surge a Figura. A figura de Inocencio X. Na verda de nem e Inocencio X que vemos nesta prancha, mas a leitura de Bacon da imagem de Velazquez. 0 que vemos toda uma reflexao da pintura sobre a pr6pria pintura. 0 que vemos e uma pintura que pinta a pr6pria pintura. Continuaremos com Francis Bacon, agora com um retrato. Bacon foi um renovador do retrato e do auto-retrato. Isto fica claro na prancha que analisaremos, que e 0 retrato de Isabel Rawsthorme, que Bacon chamou de Estudo de Isabel Rawsthorme (1966/prancha 6). Temos aqui um rosto. Um rosto de mulher a fitar um ponto futuro qualquer a sua esquerda. Esta mulher que esta de semi-perfil quase nao se faz perceber em sua feminilidade a partir do trace, do volume e das cores da imagem distorcida criada por Bacon. Nesta imagem podemos induzir as tecnicas de Bacon para a conteccao de um retrato, e, quica, de toda a sua pintura. 0 pintor utiliza-se da fotografia como materia-prima para 0 seu pintar. Uma foto ocupa um lugar tao importante, para Bacon, quanta seu cavalete e seus pinceis. Ele fotografa seu modelo, batendo murneras fotos, de varias poslcoes diferentes. Seleciona a foto, que a sua percepcao, ganharia melhor conotacao pict6rica. Amplia esta foto e a coloca em frente de um espelho distorcido. Esta imagem que saltaria deste espelho distorcido, seria a imagem a ser pintada por Bacon. Surge assim, seus rostos distorcidos, fora do registro humano. Surge desta feita, os rostos inumenos'? de Francis Bacon. Mas nao s6 a fotografia ocuparia um espaco privilegiado na obra de Bacon; tarnbern 0 cinema seria de suma lrnportancla para 0 pintor irlandes. Por exemplo, 0 filme Encourar;ado Potemkim de Sergei Eisenstein. em particular, a celebre sequencia da Escadaria de Odessa, inspirou Bacon a fazer seus personagens gritarem. 0 grito dado pela mae, que ve seu filho a descer as escadas em um carrinho desgovernado, foi 0 detonador desta importante marca da pintura de Bacon. Estranhamente nao foi a pintura que fez Bacon pintar, e sirn, 0 cinema. Estranhamente nao e 0 homem vivo que e 0 modelo de Bacon, e sim, sua imagem fotografada. Outra tela de Bacon poderia estar fazendo uma alusao, mesmo que indiretamente, a um quadro de Velazquez. Falo da tela de Francis Bacon batizada de Personagem escrevendo refJetido em um espelho (1976/prancha 7). A tela de Velazquez, a qual referia-me, nao seria outra senao a famosa Venus no espelho (1648/prancha 8). Aqui novamente temos 0 espelho como elemento deflagrador da

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situacao pict6rica. 0 espelho que reflete um determinado personagem a escrever e meditar em sua escrivaninha. Seu corpo se apresenta de perfil, e vemos suas costas. Seu corpo esta pleno. Colocado sem nuances mas, mesmo assim, sem quaisquer verossernelhancas com um dado corpo humano. Vemos um corpo, mas nao e um corpo. A figura supera a figural;ao, ou como quer Deleuze, 0 figural ocupa 0 lugar da figurafividade. Tres telas contlnuarao a mostrar as relacees de Bacon com esta nova corporeidade inumana que e 0 como-sem-onieos. A primeira e Personagem em movimento (1985/prancha 9); a segunda chama足 se Estudo do corpo humano (1987/prancha 10); e a terceira e um diptico, uma tela dupla que encerra um mesmo tema com imagens distintas: Diptico - estudo sobre 0 corpo humano (1982-84/prancha 11). Nestas imagens percebemos a irnportancia dada por Bacon para o corpo, para a materia corp6rea. Na primeira imagem, temos a figura de um homem que caminha, temos certeza disso ao ver seus pes fincados ao chao, ao termos claro que seus olhos direcionam-se a um ponto futuro, que uma seta a suas costas enseja um movimentar-se. Alem desta seta que indica 0 movimento, 0 pintor colocou outra seta no quadro; esta apresenta-se ao pe esquerdo do personagem ca足 minhante, um pe enorme, distorcido, bem ao gosto de Bacon. Um pe que extrapola a instancla de humanidade deste personagem que aci足 ma chamamos de homem, mas que, na verdade, e um inumano. Nas duas pranchas subsequentes e nos dado ver dois estudos sobre 0 corpo humane (?). No primeiro estudo, ha um personagem sobre um plato, que parece fazer um determinado movimento com os braces, que nos incita a pensar que trata-se de arremessar de um "objeto quase", de um arremessar um "nao existente", de arremessar 0 nada. o personagem parece estar fincado sobre esta plataforma pelo seu pe esquerdo, que nao aparece na imagem, como que submergindo em meio a materia. Bacon parece querer transformar uma pintura em uma escultura, ou melhor levar elementos da arte escult6rica para 0 pict6rico, pensar a tridimensionalidade pr6rpio da escultura ao plano da tela. No segundo estudo do corpo humano, temos um diptico: um duplo de imagens, que de modo algum cede a tentacao de uma possl足 vel narratividade, tao comum a imagens que se duplicam ou triplicam. Em Bacon um dlptico, nao ha 0 contar ou narrar uma est6ria. Tanto a primeira imagem do dlptico, quanta a segunda trabalham com a deformacao, com 0 corpo decepado, ambas estao sobre plataformas (a primeira sobre uma mesa, a segunda sobre uma especle de caixa).Todas as duas possuem setas indicativas a apontar um sentido. Ambas as

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setas apontam para as pemas dos personagens decepados, para os membros destes novos corpos inventados por Francis Bacon. Alern delas, das tres imagens que remetem ao corpo e a seu movimento, faz-se mister pensarmos a partir de uma prancha, que aborda uma sene de outros problemas na obra pict6rica de Francis Bacon. A tela que refiro-me e a Segunda versao da "pintura 1946" (1971/prancha 12). Independente deste titulo eniqrnatico dado pelo autor, apreciemos nesta prancha uma enorme riqueza de quest6es colocadas pelo pintor.Vemos no centro da imagem, urn homem sentado sobre urn clrculo, protegido por uma especie de guarda-chuva em urn ambiente predominantemente amarelo, que tern no seu fundo da imagem a figura de uma cruclfixacao esqueletica. Temos a distorcao, aroda, 0 tema religioso que retorna, a referencia a outras pinturas da hist6ria da arte. Temos urn tipico Francis Bacon. Temos uma tela que procura renovar 0 pintar. A ultima imagem de Bacon nos remete a uma paisagem, como 0 perceotoÂť deleuzeano. Uma paisagem completamente atipica. Bacon chamou esta imagem de simplesmente Paisagem (1978/prancha 13). Esta paisagem, podemos deduzir, queremos crer, tratar-se do planeta Terra. Vemos 0 azul dos oceanos, vemos 0 que pode parecer a Lua. Vemos uma especie de penugem, que poderiamos pensar se tratar dos continentes. E, urn cilindro, que faz a relacao do planeta com seu satelite. Esta paisagem esta para alern e, de alguma forma, aquern das zonas perceptivas tradicionais, da percepcao pura e simples da visibilidade, ela e uma paisagem que precisa ser percebida, ou melhor vista, nao com os olhos, mas com as maos. Deleuze, nos dira em seu estudo sobre Bacon, que existe uma tensao clara no pintor entre 0 visual eo tactil. E que ha a supremacia deste ultimo sobre 0 primeiro. Como se fosse mais facil fugirmos da representacao tocando ao lnves investirmos da direcao dada pelo olhar. Bacon - quase urn empirista da pintura - segundo Deleuze. Voltemos representacao, agora nao mais atraves de Velazquez, mas daquele pintor ccntemporaneo. que juntamente com Francis Bacon, desafiou por completo a figuratividade a representacao pict6rica com seu principio de semelhanc;a. 0 pintor e Rene Magritte, e seu quadro chama-se A trai~ao das imagens (Isto neo um cachimbo) (1928-9/prancha 14). Parece curioso, uma imagem que anunciaria uma pretensa contradicao para com seu enunciado. Uma imagem de urn cachimbo desenhada com urn titulo que Ihe nega enfaticamente: afinal, isto e ou nao e urn cachimbo? Precisaremos retornar a Michel Foucault para

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tentarmos dar respostas a este problema. Foucault remontaria ao problema da representacao, discussao que iniciou-se com um texto da decada de sessenta 14, com um ensaio sobre 0 pintor frances, dito surrealista Rene Magritte. 0 livro se intitularia da pr6pria obra de Magritte que procuraremos desvelar: Isto nao um cachimb015. Neste livro sobre Magritte, Foucault faria uma critica ell pintura ocidental a partir da obra do pintor surrealista frances. Ele, Foucault, diria que a pintura ocidental estaria erguida sobre dois pilares: 0 primeiro afirmaria a separacao entre a representacao piastica (que implica a semelhanc;a) e a referencia linguistica (que a exclui). Far-se-ia ver-se pela semelhanc;a,falar-se-ia atraves da diferenc;a. Ou 0 texto seria regrado pela imagem ou a imagem pelo texto. Magritte subverteria estes principios ao colar letra & imagem. Um cachimbo desenhado nao parece nem rnais nem menos com um cachimbo que a palavra cachimbo. Magritte estabelece outro principio para 0 problema da semelhanc;a. 0 pintor pinta 0 similarnao 0 semelhante. Nos diz Foucault sobre Magritte,

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'.: sua pintura parece, mais do que qualquer outra, presa a exatidao das semelhences, a tal ponto que ela as multiplica voluntariamente, como para contirme-tes: nao suficiente que 0 desenho de um cachimbo pare9a com outro ca足 chimbo denhado, que ele pr6prio, pare9a com um cachimbo. "16

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Em Magritte ha uma irnbricacao entre letra e imagem, entre 0 quadro e seu titulo que, de forma alguma, a legenda ou 0 titulo do quadro assumiria um simples papel de comentario verbal ell imagem pict6rica. Os dois sao discursos. Discursos paralelos que se costuram a partir de uma certa tensao entre a letra e a imagem. Falo da obra, da obra pict6rica. Mas a grande questao colocada pela pintura de Rene Magritte, para Michel Foucault, nao foi esta re-associacao entre letra/imagem, mas a derrocada proposta pelo pintor, da semelhanc;a para, em seu lugar, colocar a similitude. "... Magritte dissociou a semelhan9a da similitude e joga esta contra aquela. A semelhan9a tem um 'padrao': elemento original que orden a e hierarquiza a partir de si todas as c6pias, cada vez mais fracas, que podem ser tiradas. Asse足 melhar significa uma reterencie primeira que prescreve e classifica. a similar se desenvolve em series que nao tem nem comeco nem fim,

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que e possive! percorrer num sentido ou em ou­ tro, que nao obedecem a nenhuma hierarquia, mas se propogam de pequenas diferem;as em pequenas diferen~as. A semelhan~a serve a re­ presenta~ao, que reina sobre ela; a similitude serve a repeti~ao, que corre atraves dela. A se­ melhan~a se ordena segundo 0 modelo que esta encarregada de acompanhare de fazer reconhe­ cer; a similitude faz circular 0 simulacra como rela~ao indefinida e reversivel do similar ao si­

mner:"

Magritte subverteu por completo a representaeao ao preterir a sernelhanca e, em seu lugar, colocar a similitude. Ao negligenciar 0 modelo e afirmar 0 simulacro. E, principalmente ao fazer da pintura uma serie enlouquecida de imagens. Nenhuma expressao artistica do Seculo XX trabalhou de forma tao radical e veemente a proliteracao das series e 0 simulacro quanto a Pop 'Art. A estetica de Andy Warhol (prancha 15) foi rica em tornar fake 0 que se pretendia por verdadeiro. Uma estetica que, como a de Magritte, disse nao a sernelhanca e afirmou 0 simulacro, fazendo vingar a potencie do falso. Nossas explanacoes sobre 0 problema da representacao na pintura, a questao da imagem pict6rica, eo fazer do pintor, findam-se por aqui. Agora, precisamos relacionar este fazer do pintor com a arte que e exclusivamente de nosso seculo: 0 cinema. Antes de abordarmos 0 fazer ctnematoqrafico que procurou romper com a ideia de sernelhanca, a narratividade e a representacao, faz-se mister, fazermos alguns apontamentos acerca da arte do cinemat6grafo. Nao propriamente acerca de seu fazer tecnico: a persistencia retiniana que nos possibilita fisiologicamente perceber como realidade uma llusao, mas das muitas possibilidades com as quais podemos pensar 0 cinema. Tambem, neste ponto de nosso discurso, estaremos "roubando" da obra de Deleuze os principais conceitos para pensar 0 "fazer-cinema". Gilles Deleuze fez uma nova leitura da hist6ria do cinema, ao inves de le-Io de forma retilinea - a passagem do mudo para 0 sonoro, por exemplo - construiu uma poderosa taxionomia das imagens clnematocraflcas. 0 fil6sofo frances valeu-se primordialmente da semi6tica do ingles Charles Sanders Peirce e do pensamento de Henri Bergson, particularmente seu conceito de imagem. Tanto das imagens

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Iigadas ao movimento e ao aparelho sensorio-motor, quanta as imagens associadas ao tempo e as situacoes oticas e sonoras puras. Construiu, assim, um novo painel para dar conta das imagens cinernatoqraftcas, que agora estariam divididas, segundo seus novos para metros, nas imagens-movimento que foram associadas ao chamdo Cinema Classico Narrativo; e as imagens-tempo que surgiriam em funcao da eclosao do Cinema Moderno. Enquanto a primeira tipologia cinematografica liga-se indiretamente representacao: com 0 tempo subordinando-se ao movimento; 0 fluxo narrativo sendo continuo; e os personagens agindo e reagindo frente a frente. Um cinema que implica acao e reacao, preso que esta, inexoravelmente, ao aparelho sensoria motor, ao habito, e a uma determinada forma de subjetividade. Independente disto, ha de se ressaltar das muitas obras-primas que foram esculpidas sob a egide deste cinema, aiern dos fantasticos cineastas que souberam servir-se da gramatica tradicional ctnematoqraftca para construir filme exepcionais. No mais, toda a primeira fase da historla do cinema estaria colocada dentro do registro de imagens que Deleuze chama de imagens-movimento. Entretanto, 0 cinema que especialmente trataremos aqui e 0 moderno. 0 cinema que romperia com 0 principio de sernelhanca, com a narratividade e com a representacao. Sera depois dos anos quarenta deste seculo que 0 clnernatoqrato conheceria sua modenizacao. No momenta em que a literatura, 0 teatro e as artes plasticas, particularmente, a pintura, ja haviam rompido totalmente com os principios representacionais. Mas a dita setima arte e ainda um enfant, extremamente jovem, e ate por isso pouco explorada, para as potencialidades que 0 seu fluxo de imagens pode oferecer. Falaremos, a principio, de tres importantes cineastas modernos e de suas reflexoes filmicas sobre 0 fazer cinernatografico, para em seguida abordarmos um determinado filme, que retrata de modo exemplar 0 que chamaremos de cinema-no-espelho (novamente aqui 0 espelho), ou o filme-dentro-do-filme. cinema moderno como uma de suas principais vertentes e problemas trouxe tona a questao da criacao e da auto-referencia: um cinema que fala do proprio cinema, que busca a todo momenta pensar a producao e a invencao cinernatoqrefica. Dentro desta vertente, tres cineastas sao exemplares: Federico Fellini, Jean-Luc Godard e Wim Wenders. Fellini talvez tenha sido 0 maior cineasta italiano; foi roteirista e ator no inicio do movimento que calcou a modernidade cmernatoqrafica: 0 Neo-realismo. Trabalhou como assistente do criador do movimento - Roberto Rossellini. Seu filme Oito e Mezzo (Oito e

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Meio) foi a obra que inaugurou 0 que charnel de cinema-no-espelho ou 0 filme-dentro-do-filme. Suas questoes fundamentais sao 0 insolito e 0 grotesco na vida-espetaculo, onde urn humor, quase circense, constrasta-se com uma profunda reflexao sobre a memoria e a existencia. Godard urn dos grandes nomes do movimento clnematoqraflco frances que promoveu uma revolucao na maneira de filmar: a Nouvelle Vague. Foi critico de cinema e "militante" de cinematecas, dizia fazer critica clnematoqraflca. ou criticas-filmicas; e quando tornou-se cineasta retrucou, afirmando fazer filmes-criticos. Subverteu a maneira de filmar; seu filme A bout de souffle (Acossado) de 1959 urn marca para a hlstoria do cinema. E, por ultimo, temos Wenders. 0 mais importante cineasta do chamado Novo Cinema Alernao. Todos os seus filmes praticamente referem-se, de alguma forma, ao cinema, a passagem do tempo, a solidao da vida modema. Os tres tern algo em comum. Ao fazerem do cinema a possibilidade para 0 pensamento dar conta do mundo, aumentando-o, produzindo足 o novamente, reinventando-o, nada mais fizeram do que refletir a propria vida no cinematoqrafo. Fazendo 0 cinema refletir-se, pensar足 se, voltar-se para si mesmo, num esforco completamente caro a arte modema, que acabou por chegar mais tarde ao fazer cinematoqraflco. Estes cineastas, na verdade, sao cineastas-pensadores ou pensadores-cineastas, ja que inventaram as imagens para 0 mundo e urn mundo novo de irnaqens. Com suas obras colocaram em xeque a representacao classlca para 0 cinema. o filme que utilizaremos para fazer rapidas digressoes acerca do processo filmico e da crise da representacao Mepris (0 Desprezo) de Jean-Luc Godard de 1963 (prancha 16). N' 0 Desprezo, urn roteirista contratado para reescrever uma adaptacao para 0 cinema da Odisseia de Homero. 0 produtor do filme 0 convida, juntamente com sua esposa, a passar dias na IIha de Capri, onde as filmagens estao em andamento. 0 diretor do filme, baseado na saga mitol6gica de Ulisses, Fritz Lang, que interpreta a si proprio. Como podemos ver, urn filme-dentro-do-filme. Ressaltando que Godard n80 prende-se aos cliches, nem as par6dias comuns a este tipo de producao: ele vai ao centro dos problemas da realizacao cinematoqratlca, tendo como pane de fundo as relacoes entre as personagens. que nos interessa colocar, para finalizar, que Godard n80 faz nenhuma concessao as formas narrativas tradicionais; que seus personagens n80 agem nem reagem frente aos outros; nem que em seus filmes 0 tempo subordina-se ao movimento. 0 tempo acaba por

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tornar-se a materia bruta deste fazer cinernatoqraflco. 0 tempo pr6prio cinema.

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FOUCAULT, Michel - As Palavras e as Co/sas. 58. ed. Slo Paulo: Martins Fonles, 1990.

, A utiliza~o do conceito de territ6rio, para eslabelecermos uma delenninada leitura de uma obra pict6rica, nlo fol faita em vlo. Enlendemos a arte como produloras de afecros e percepros no senlido empregado par Gilles Deleuze e Felix Guallari em seu 0 que II a Filosofia? A arte produz

eslas insllncias a partir do fazer de seus artifices, com a linalidade de nlo ler finalidade. Com 0 inluito de produzir novas subjelividades, novas fonnas de vermos 0 mundo ou com novos mundos de fonnas. Angulos novos para 0 real. Ou melhor,novos Ingulos para descortinannos a realidade. Esle e 0 papel da arte no lexto de Deleuze e Guallari. Assim, 0 perceto, em particular,ganharia um astatuto de paisagem,de topos. Um lugar de cria~o, um novo lugar para a cria~o: uma inven~o de lugar. Nada melhor,enllo, do que utilizannos uma calegoria cartogralica para pensannos uma arte das superficies como a pinlura. Desla faita, utilizaremos a no~o de terrlt6rio como conceito, nos valeremos daqui par dianle dos lerril6rios picl6ricos para problemalizar a represental;'o na pinlura. a FOUCAULT, Michel- As Pa/avras e as Co/sas, p. 20.

• FOUCAULT, M. op. cit., p. 25. 5

FOUCAULT, M. op. cit., p. 27.

• FOUCAULT, M. op. cit., p. 31. 7

Nlo utillzaremos nesle quadro de Vel6zquez, 0 conceito de lerr1t6rio picl6r1co, par enlendermos que esla n~o conceitual6 melhor utilizadaquando pensadaem lermos pulral, au saja, quando a imagem que esla sandoexposla pede mais de um lerr1t6rio pict6rico,ou mals de uma abrang6ncia 10pol6gica, 0 que 010 ocorre com 0 quadro em questlo: 0 Retraro de Inocltnc/o X. Um lerr1t6rio pict6r1co compreende 0 eapIII~ e a espacialidade propasta peIo pinlor para uma detenninada imagem, suas mulllplas divtsOes e passlvels "personagens". Ja no retralo do papa velezquiano 0 que matsse ressaltae 0 volume, as Ions e as cores da obra, e nlo as rela~ do papacom oulros posslvell "personagens", 0 papa esti 116.

• DELEUZE, Gilles - Francis Bacon: Logique de la Mnsation (2 vol.). Paris: La Vue Ie Texte aux editions de Ia ditr6rence,1981. Nesle lexto 0 fil6sofo frlnc6s conlempartneo, tra~rIa um plano de anillses da obra do pintor irlandts, em que esle terla relnventado a ligura~o, ao abandon6-la e proper, em sau lUgar, a Figura eo Figural. Esla obra compreendedols lomas ou volumea,em que, sua primelra parte axp6e um texto sobre a obra de Bacon, para em sau segundo momenta apre­ santar pranchas do pintor. • A refer6nciaconcellualmenclonadatrata do pensadorfrlncAs Henri Bergson(185&-1941). Bergson crlarta com sua filosofia de Insplral;Aovttallsla uma nova maneira de pensar 0 corpo, a maleria e sun rela¢es com 0 esplrtto. Sua inten~o maior era, espirllualizar a malerla, a partir do exemplo da mem6ria. Partlndo de que ludo 0 qua existe no universo sAo imagens acentradas, e que essas lmagens acenlradas, sa reecentram momenlaneamenle a partir de uma determinada imagem, que ele chamartade um COfPO; 0 fll6sofo construirla um pensamento abSolutamenleoriginal para dar contado problema da conscl6ncia e de suas posslblidadespara produzirmos represanta¢es do real. Selia no tlvro inlllullldo Matiltre et IMmo/re, publicado em 1897, pela PUF de Paris, que Bergson desenwlveria estas leses. canceito de corp0-sem-6rg1os foI desanvolvido par Gilles Deleuze e Felix Guallari no Ilvro Mille Plateaux - capital/sma et IChiz~nie, publtcado pela Ies editions de minuit de Paris em 1980.

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" James Joyce criou uma n~, que a nosso ver, e muito Interessanlepara pensarmoaa arte, e em especial a Alte Modema: 0 caosmo. Uma mislo de caos e cosmos. Uma mistura da caolicidade

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com oroenacao: como Nietzsche, que nos propOe uma ebrieguez lucida, Joyce nos incita a amar足 mos 0 caos sem abidicarmos do rigor. A Arte Modema foi pr6diga em exemplos que corroooraram com as teses joyceanas: Picasso, Mir6, Schoenberg e Orson Welles, apenas para citar alguns. Gilles Deleuze trabalhou esta nocao de Joyce em seu livro L6gics do Sentido, traduzido pela Perspectiva de Slio Paulo em 1974, no capitulo Platllo 130 Simulacro. 12 0

conceito de inumano nos remete diretamente ao de cOrpD-Sem-6rgllos trabalhado por Gilles Deleuze 13 Felix Guattari. Ver nota 10.

13

14

0 conceito de percepto e associado as artes por Gilles Deleuze e Felix Guattari n'O que /I a Filosofia? Ver nota 2. FOUCAULT, M. As Palavras 13 as Coisas, op. cit.

15 FOUCAULT,

M. Islo nilo /I um cach/mbo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

,. FOUCAULT, M. tsto nilo /I um cach/mbo, p. 42-3. 17 FOUCAULT,

M. op. cit., p. 60-1.

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amor e a oralidade

Jose Ramos Coelho Departamento de Filosofia da UFRN

RElelAlM째 o amor e 0 6dio, dois sentimentos fundamentais do ser humano, estao ligados as fases evolutivas do desenvolvimento sexual infantil, as quais, por sua vez, sao sobredeterminadas pelas relacees intersubjetivas que a crianc;:a experimenta. Tentando precisar 0 significado do amor como 0 sentimento de unidade entre dois seres diferentes, no qual 0 amado assume uma importancia vital para 0 amante, somos levados a definir 0 6dio como 0 sentimento de oposicao entre diferentes seres que estao afetivamente ligados, onde 0 ser odiado representa aquilo que deve ser eliminado, expulso, destruido. Se 0 amor liga-se a fase oral, ao 6dio compulsivo parace ligar-se em determinadas pessoas a uma certa consfituicao da fase anal, onde 0 comportamento transgressor surge como uma forma<;ao de compromisso entre a repeticao de uma viol!ncia sofrida e a tentativa de libertar-se dela. PALAVRAS-CHAVE: amor, 6dio, libido.

Desde tempos imemoriais os poetas tern cantado 0 amor em prosa e verso, sendo enorme a literatura sobre 0 assunto. Muitos fil6sofos, igualmente, abordaram esta questao, procurando dar defirncoes e explicacoes deste sentimento tao inquietante e profundo. A pslcanallse veio lancar uma nova luz sob este fen6meno, ao esclarecer certos aspectos das escolhas dos objetos de amor. Pretendemos aqui estabelecer uma relac;Ao entre este sentimento e 0 periodo da vida infantil que Freud denominou de "fase oraf. A primeira retacao de amor que a crianc;a experimenta atraves dos cuidados maternos e da amamentacao, Quando Ihe oferece 0 seio, a mae da a cranc;a nao apenas alimento (Ieite), saciando-Ihe a

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fome, mas tarnbem amor, sob a forma de carinho e do prazer da succao. A sexualidade da crianca apoia-se, entao, sobre a necessidade de aurnentacao, que esta a service da autoconservacao. Em outras palavras, a fome e 0 amor surgem, de inicio, intimamente ligadas. Estabelece-se entao uma relacao erotica entre a crianc;:a e a mae, caracterizada por um sentimento fusional em que a crianc;:a nao sabe e nao conhec;:e os limites de seu corpo, julgando ela e a mae constituir um todo indiferenciado, tal como de fato ocorria no estado fetal. a corte do cordao umbilical nao interrompe 0 sentimento de identidade, que perdura por bastante tempo. Se a mae ama 0 filho(a), entao ela 0 ve como alquem que a complementa, alquern que e uma extensao de seu proprio corpo e que a preenche. Acreditamos que esse sentimento de identiticacao entre a crianc;:a e a mae e 0 que vai fundamentar 0 sentimento de amor. Baseados no paradigma da oralidade, poderiamos provisoriamente definir 0 amor como 0 sentimento de unidade entre diferentes seres que estio afetivamente Iigados. a amor, com efeito, trasmite uma sensacao de infintude oceanica, um desejo de mergulhar numa totalidade que venha preencher e satisfazer a fome de amor, como a crianc;:a que busca 0 corpo grande e aconchegante da mae. Tentando precisar melhor essa definic;:ao, poderiamos comparar essa ideia de identificac;:ao amorosa com dois conceitos que Ihe estao bastante proxirnos, os de imitac;:ao e endopatia. Um comportamento caracteristico, observavel ate mesmo no reino anitnal, e a tendencla a vestir ou incorporar as feic;:Oes do ambiente com objetivos defensivos, para adquirir seguranc;:a ou integrar­ se ao meio. Esta e, por exemplo, a func;:ao do mimetismo, quando os seres vivos camuflam-se para fugir dos predadores, assumindo, no proprio corpo, as cores e formas do meio circundante. as animais, especial mente os pequeninos, apreciam muito imitar os mais adultos nas suas brincadeiras, 0 que Ihes permite dominar e adqurir novos conhecimentos, 0 mesmo fazendo as nossas crianc;:as. Gabriel Tarde', procurou mostrar a importancia desse fator na reproducao e constltulcao da vida social, sustentando que a maior parte dos fenemenos sociais consistia em imita¢es. Para ele, contudo, a imitacao consistia na reproducao behaviourista e exterior de atitudes e acoes, sem que ficassem explicitados os fatores internos que provocavam este comportamento. as gregos antigos usaram tarnbern 0 conceito de lrnltacao (mimesis), entendendo-o porern num sentido metafisico. Assim ocorreu entre 0 pltaqoricos, para quem as realidades sensiveis e externas das

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coisas imitavam a sua realidade interna, a qual era essencialmente numerica", Platao, na opiniao de Arist6teles, conservou a mesma tese dos pitag6ricos, mudando apenas 0 nome: ao inves de dizer que as coisas sensiveis imitavam as idelas (eide), preferiu dizer que aquelas "participavam" destas. Contudo 0 termo imitacao foi utilizado tarnbern num sentido estetlco, como quando Platao diz que a arte imita a natureza, sentido que aparece tambern em Arist6teles, quando afirma que a traqedia lrnltacao de acees elevadas. lmltacao consiste al em reproduzir na obra de arte a imagem de uma coisa que se pretende descrever. Embora haja al um processo de recriacao artistica, a obra produzida deve conservar algo de semelhante ao modelo que imitou. Endopatia, por sua vez, a usado para traduzir 0 termo alernao EinfOhlung (ein= um; fOhlung = sentimento), tarnbern traduzido porem足 patia. Empregando este conceito, Theodor Lipps procurou explicar 0 sentimento de ldentiflcacao estetlca, sustentando haver nele dois com足 ponentes, a projecao e a lmitacao. Pela primeira 0 sujeito se extendia ate 0 objeto, enquanto que pela segunda se apropriava de certos aspectos dele. Assim, para que pudesse haver uma verdadeira apre足 ensao de uma obra de arte, era precise ocorrer um processo iden足 tificat6rio. Ora, se todos esses processes (imitayao, endopatia) se fundam na identificayao com 0 outre, entao a defirucao do amor perde a sua especificidade e se torna um conceito indiscernivel em meio a tantos outros. Caberia averiguar, portanto, em que 0 sentimento de identiflcacao amorosa distingue-se dos demais, para que possamos cornpreende-lo na sua singularidade. A res posta a esta questao nos parece estar na especificidade peculiar pela qual a crianca se identifica com a mae. Vimos que, na fase oral, 0 amor apoia-se na fome, a sexualidade ligando-se a autoconservacao do individuo. 1550 explica 0 fato de que 0 apaixonado nao 56 se identifica com 0 outro, mas ainda que esse outro assume para ele um valor supremo, sente como uma necessidade imperiosa e vital a presence desse objeto amado, tal como uma crianca ell sua mae. Assim sendo, poderiamos completar a nossa definicao acrescentando que 0 amor 0 sentimento de unidade entre diferentes seres que estio afetivamente Iigados, onde 0 ser amado assume uma importincia vital para 0 amante. A relacao entre 0 comer e 0 amar, ou entre as necessidades de autoconservacao e a sexualidade pode ser constatada nos mais diversos campos, como por exemplo na linguagem enos mitos.

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Uma mulher sexual mente atraente e descrita como "gostosa", "apetitosa", "uma fruta", etc. Um rapaz belo e desejavel e chamado de "pao", "massa", "urn doce", chegando a dar "agua na boca". Nas rodas masculinas, em geral os homens nao dizem "eu tive relacoes" mas sim "eu comi" determinada parceira. "Todas as sociedades", escreveu Levi-Strauss 3 , "concebem uma analogia entre as relacees sexuais e a alirnentacao: mas, conforme os casos e os niveis de pensamento, ora 0 homem, ora a mulher, ocupa a poscao do que come e do que e comido"... E fornece varies exemplos: "Entre as regras do casamento e as proibir;oes alimentares, existe, primeiramente, um teco de fato. Tanto entre os tikopia da Oceania, quanto entre os nuer da Africa, 0 metiao se abtem de consumir os animais e as plantas proibidas a sua mulher, porque 0 alimento ingerido contribui para a formar;ao do esperma: se 0 homem agisse dife­ rentemente, no momenta do coito, introduziria no corpo de sua mulher 0 alimento proibido"[. ..] ·Ora, essas aproximar;oes so fazem i1ustrar, em casos particulares, a analogia muito profunda que, em toda parte, 0 pensamento humano pa­ rece conceber entre 0 ato de copular e 0 de co­ mer, a tal ponto que um muito grande nomero de linguas os design am pela mesma palavra.Em yoruba, 'comer' e 'casar'se dizem por um unico verbo, que tem 0 sentido geral de 'ganhar, ad­ quirir'; uso simetrico ao frances, que aplica 0 verba consommer ao casamento e arefeir;ao''''...

Jose Carlos Rodrigues acrescenta: "Os Tupari designam 0 coito por locur;oes cujo sentido proprio e 'comer a vagima (KOma kaY, 'comer 0 penis' (Ang kaY. 0 mesmo se passa em Mundurucu... Um mito Cashibo relata que ape­ nas criado 0 homem, pediu de comer, e 0 Solo ensinou... plantar milho ... e outras plantas co­ mestiveis. Entao 0 homem perguntou 8 seu pe­ nis: 'E tu, que queres comer?' 0 penis respon­ deu: '0 sexo teminino'." 5

A oralidade, como vemos, eo processo de mcorporacao que a acompanha, tem uma importancia fundamental na formacao do individuo. Feuerbach conseguiu resumir esta ideia na seguinte f6rmula:

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homem eo que come". Sao inurneros os exemplos que nos vem das sociedades selvagens que confirmam esta afirmacao. Vejamos alguns exemplos da dieta da came. Os caribes recusavam-se a comer tartarugas para nao fica rem estapldos e pesados como elas. Os creeks, cherokees e os membros de outras tribos pensavam que aqueles que se alimentassem de came de veado ficariam mais velozes do que aqueles que preferissem a came de gada ou porco", Na India setentrional, as pessoas imaginavam que, comendo olhos de coruja, poderiam ver na obscuridade do mesmo modo que essas aves notumas, etc. Sabemos que a trnportancia da identificacao na constituicao do psiquismo humane adquiriu uma lmportancla consideravel para Freud, a ponto de ele definir 0 ego como um "precipitado de investimentos objetais abandonados e que ele contern 0 registro de todas as escolhas passadas de objeto" ou ainda 0 superego como a introjeyao dos pais, ou a melancolia como a incorporacao do objeto amado perdido, ou ainda que um sintoma hlsterico pode ocorrer por identlficacao fantasistica com 0 obleto amado, etc. Se essas lndicacoes preliminares nos abrem um novo caminho para a consideracao deste tema, sera que 0 6dio poderia tarnbern ser abordado a partir do paradigma da analidade? Oportunamente tentaremos responder a esta questao, como tarnbern voltar ao tema da oralidade, tentando articula-lo com a constituicao da vida social. "0

, Ct. As Leis da Imila.;Ao.

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3

Ct. Arislole. La Mlllaphysique. A, 6, 987 b 12, especialmente 0 comentano Tricot 0 Pensamento Selvagem, p. 156.

a nota 1.

• Idem. p.130. s Tabu do Corpo, p. 77. o Ct. Frazer, La Rama Dorada, p. 592.

REFER~NCIA~L10GRAFICAS 01. ARISTOTE - La Metaphysique, Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1964,

v.1.

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02. FRAZER, J. - La Rama Dorada; Magia y Religion, Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1944.

03. FREUD, S. - "The Ego and the Id", in: Great Books of the Western World, Chicago: University of Chicago, 1952, v. 54. 04. LEVI-STRAUSS - 0 Pensamento Selvagem, Sao Paulo: Companhia Edi足 tora Nacional, 1970. 05. RODRIGUES, Jose Carlos - 0 Tabu do Corpo, Rio de Janeiro: Achiarne, 1979. 06. TARDE, Gabriel- As Leis da Imita9aO, Porto: Res, sId.

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Peculiaridade e Dificuldade do Conceito de Idealismo Transcendental em Kant* Juan Adolfo Bonaccini Departamento de Filosofia de UFRN/UFRJ

o conceito de Idealismo Transcendental e aplicado por Kant para diferenciar o empreendimento da Critica da razao Pura dos sistemas idealistas tradicionais. 0 autor analisa 0 conceito tentando mostrar que ele e inseparavel do conceito de fenemeno e do polemico conceito da coisa em-st. Feito isso, evidencia algumas das dificuldades que 0 referido conceito coloca a partir da analise de algumas objecoes "classicas'' levantadas pelo Idealismo Alernao. Palavras-chave: Kant - Idealismo Transcendental - Fenorneno, Coisa Em-si.

1. 0 conceito do Idealismo Transcendental possui uma relevancia toda especial no ambito da filosofia critica. 0 proprio Kant toma posicao em face da tradicao mediante a apresentacao e a elucidacao deste conceito. No entanto, ainda que implicito ao lange de toda a CRP1 , poucas vezes e mencionado de modo explicito. A Refutac;ao do Idealismo (8274ss) por exemplo, nao se pode entender sem 0 referido conceito - e no entanto 0 termo "Idealismo Transcendental" nao aparece nela; 0 mesmo se pode dizer da Estetlca Transcendental (sobretudo do ยง 8), onde Kant defende a "Idealidade Transcendental" do espaco e do tempo, bem como de inurneras passagens da Analitica

*Trabalhoapresentadona 47" ReunlaoAnual do SBPe - sao Luiz(MA}em 10/07/1995

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e da Dialetica. A mesma observacao cabe ainda em relacao a varlas passagens do prefacio, notadamente a que versa sobre a chamada "Revolucao Copernicana" (8 XVI-XVII) e a nota (8 XXXIX - XL) que Kant acrescenta para clarificar um trecho da Refutacao do Idealismo. Mesmo assim muitos interpretes e defensores do idealismo transcendental ficariam inclinados a admitir que 0 conceito acima referido resume 0 argumento ou ideia central da filosofia crltica de Kant, independentemente de ele aparecer de modo expHcito ou nao. Creio que Verneaux, Paton, Allison e todo 0 Idealismo Alernao nao se oporiam a essa assertiva" . Todavia, implicaria esta situacao, para elucidar 0 conceito de Idealismo Transcendental, ter de reconstruir ou comentar toda a CRP ou toda a obra kantiana? Se assim fosse, seria impossivel falar aqui de Kant, e ate ensina-lo em sala de aula. Mas nao parece que seja assim, uma vez que podemos ler, se nao a obra inteira, pelos menos a CRP, como a apresentacao e 0 desdobramento de um unico argumento. Compreender esse argumento envolveria sem duvida 0 conhecimento da crltica inteira. No entanto, parece-me licito pensar que algumas passagens dela serao mais ou menos esclarecedoras para esse tim. E que alguma ou outra obra posterior tarnbem nos pode ajudar na lnterpretacao. Se assim for, sera precise apontar tais passagens, bem como a obra adicional capaz de auxiliar no assunto. Existem duas passaqens na primeira crltica que sao bastante conhecidas e citadas pelos estudiosos de Kant. Uma delas a crltica do quarto paralogismo tal como parece na primeira edi<;ao (A369/380). A outra a secao sexta da Antinomia da Razao Pura (8 519/525 - A 491/497). Eo texto que nos pode auxiliar, dentre os varies escritos de Kant, 0 dos Pro/egomenos. Nao que seja 0 unico, mas um dos mais citados com relacao ao tema que tratamos aqui. Sobretudo os paraqratos 13 e 49, bem como as claras observacoes de Kant que aparecem no Apendice da obra em res posta it recensao de Feder e Garve." A questao que deve ser decidida doravante, feitas ja as ressalvas ate que ponto ou em que e observacoes preliminares necessarlas, medida devemos nos demorar em tais passagens? Mais explicitamente, parece que deviamos resumir 0 que Kant diz em cada passagem, comparar por sua vez cada uma delas entre si e s6 entao chegar a definir a peculiaridade do argumento kantiano. Apesar disso, tomaremos um outro caminho mais breve, sobretudo em funcao do carater desta apresentacao e do exiguo espaco de tempo que possuimos. Isto nao um ponto pacifico, pois para muitos essas

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passagens nAo comportam apenas diferentes forrnulacoes, Muitos sao as que pensam haver deslizes, lrnpreclsoes e mudancas de rumo da parte de Kant ao comparar umas as outras. Ainda assirn nAo seria injustlflcado tentar recompor a argumento de Kant. Porque: 1) Kant pretendia estar dizendo a mesmo; e 2) sobretudo, porque fica claro que a contexto da discussao com "realistas transcendentais" e "idealistas empiricos" permite distinguir de maneira univoca a ideia central de Kant.

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o argumento de Kant e a seguinte: nao conhecemos as coisas tal como elas sao nelas mesmas, mas isto nao significa negar sua existEmcia. Ora bern, como se explica esse argumento? No meu entender ele se baseia num problema, num impasse gerado pela metafisica tradicional. A partir desse problema Kant avanca dais argumentos que sustentam a argumento central do idealismo transcendental. 0 problema parte da indiferenya e do ceticismo gerados pelo dogmatismo da metatlsica" . Com base neste pressuposto - definido par Kant como a usa da razao para aiern da expenencia sem a exame previa de sua capacldade" - a filosofia anda em circulos, volta atras freqQentemente e nao chega a urn consenso, mergulhando em contradlcoes e desavencas" . 0 problema evidencia que a metafisica carece de urn criteria segura e de urn metoda unificado. Os dais argumentos de Kant partem disso: em primeiro lugar, a falta de urn criteria segura e de urn metoda impedem a metafisica de encetar a "caminho segura de uma ciencia" , levando as interlocutores a entrarem em confllto" ; e como as argumentos dos metafisicos se contrariam uns aos outros mas sao coerentes do ponto de vista logico, a conflito das opinioes e dos sistemas metafisicos patenteia urn conflito da razao consigo mesma: uma aporia aparentemente insoluvel que conduz a pr6pria razao a urn rigoroso auto-exarne" . Em segundo lugar, esse auto-exame revela duas coisas importantes: 1) a pressuposto dos metafisicos e que mediante a razao pura e passiveI conhecer as coisas tal como elas sao nelas mesmas; mas isso leva a inumeras contradi~oes; 2) que mesmo desconsiderando este ultimo aspecto nao se pode deixar de ver uma talacia no procedimento dos (metafisicos) dogmaticos, pois eles pretendem obter urn conhecimento a priori das coisas em-si mesmas, portanto, universal e necessaria, e totalmente desvinculado da experiencla, atraves da simples analise 94

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dos conceitos; ocorre porern que para saber algo a priori das coisas nelas mesmas seria precise que elas fossem dadas primeiramente numa expenencla qualquer, mas assim eu nao poderia saber a priori nada delas em-si mesmas, a partir de simples analise do seu conceito 10 . Donde, seria urn contra-sensa pretender urn conhecimento a priori das coisas em si mesmas, pois, ou ele nao seria a priori ( e neste caso nao haveria urn conhecimento universal e necessarlo, 0 que contraria as ciencias) ou entao nao seria urn conhecimento das coisas em-si mesmas. Afinal, como eu poderia conhecer a priori qualquer coisa, em-si mesma, antes mesmo que ela me fosse dada? Para isso seria prceiso pressupor uma "harmonia preestabelecida", ou coisas do tipo. Mas, e se eu nao conhecesse as coisas em-si mesmas; se eu as conhecesse apenas na medida em que se manifestam e as captasse segundo as lirnitacoes do meu aparelho cognitivo, de acordo com a capacidade e a estrutura de minha mente finita, incapaz de conhecer realidades ulttrnas? Nesse caso eu poderia saber algo a priori das coisas, antes mesmo que elas me fossem dadas, embora esse saber nao fosse nada pertencente a sua essencia, Eis a hip6tese de Kant: "Ate agora se sup6s que todo 0 nosso conheci­ mento tinha de se regular pelos objetos; porem todas as tentativas de estabelecer mediante con­ ceitos algo a priori sobre os mesmos(. ..) fracas­ saram sob esta pressuposi9ao. Por isso, tente­ se ver de uma vez se nao progredimos mais nas tarefas da metafisica admitindo que os objetos tem que se legular pelo nosso modo de conhe­ cer (conhecimento), 0 que concorda melhor com a possibilidade requerida de um conhecimento a priori dos objetos, que deve estabelecer algo sobre os mesmos antes de nos serem dados(. ..). Se a intui9ao tivesse que se regular pela nature­ za dos objetos [enquanto coisas em-si - J.A.B.], nao vejo como se poderia saber algo a priori a respeito da ultima; se, porem, 0 objeto (como objeto dos sentidos) [como fen6meno - J.A.B] se regular pela natureza de nossa faculdade de intui9ao, entao poderei muito bem representar­ me esta possibilidade".ll

Assim, todas as tentativas que partiam do pressuposto segundo a qual somos capazes de conhecer as coisas em-si mesmas fracassaram: levaram os metafisicos a interminaveis e estereis disputas e colocaram a pr6pria razao em situa<;iio dificil, indecisa e abalada

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pelas contradicoes. Alern do mais, como isso fosse pouco, tornaram aparentemente impossivel 0 conhecimento pure que elas mesmas pretendiam, visto que nada se pode saber a priori das coisas em-si mesmas. Desse modo se explica a maneira como Kant chega a formular seu argumento: se com base na ideia de que conhecemos coisas em si mesmas fomos levados a inurneras contradicoes, e se e absurdo pretender urn conhecimento a priori de coisas em-si mesmas, pois nao se pode conhecer a priori nada em-si mesmo, entlo fa~amos 0

experimento de considerar que nao conhecemos objetos que sao coisas em-s; mesmas, mas sim objetos que sao fen6menos, apari~6es de co;sas que ne/as mesmas desconhecemos. Isto contudo, nao explica como e que se pode afirmar a existenc;a daquilo que se confessa desconhecer. Dito de outro modo: entendemos como e por que Kant levanta no pretaclo a hip6tese do Idealismo Transcendental (cuja tese sera demonstrada ao lange da eRP), mas nem por isso nos vemos obrigados a admitir sem mais que conhecemos objetos que seriam fen6menos, i.e, apancoes de coisas que devemos pensar mas nao podemos conhecer. Ao que parece, para resolver urn impasse, Kant acaba por criar outro. Este â‚ŹI 0 parecer de Schulze, Jakobi, Fichte, Hegel e outros. As objec;:oes destes autores podem ser resumidas basicamente em duas": 1) como posso dizer que conheco os objetos se admito que nao os conheco tal como eles sao neles mesmos? 2) dizer que nao conhecemos as coisas em-si mesmas, mas tao somente os seus fen6menos, nao implicaria considerar as primeiras como sendo causas de minhas representacoes, 0 que constitui uma aplicacao iHcita e inconsequente da categoria da causalidade?' Ambas consistem numa acusacaode inconsequsncia. A primeira e feita par Hegel e aponta para a dificuldade que se cria com 0 conceito de coisa em-si por implica uma relativiza~o do discurso" . Dizer que conheco os fen6menos implicar enfraquecer a distincao entre fen6meno (Erscheinung) e nusao (Schein) - seria como que uma auto­ fagia ... Se eu confesso que s6 conheco 0 que aparece, mas nao 0 que e em sl, 0 que eu digo e 0 que aparece; eo que aparece e no ambito do discurso aquilo que parece: 0 que nao e. A Segunda Objec;:ao esta na raiz do Idealismo Alemao e foi formulada pela primeira vez por Schulze e Jakobi contra interpretacao de filosofia critica empreendida por Reinhold. A partir dessa polsmica a objecao vai se sofisticar e se estender a Fichte, a Schelling, e

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finalmente ao pr6prio Hegel, os quais com base nesta obje~o tentaram, como Maimon, suprimir a coisa em-st." Posta a dificuldade, talvez fosse de bom alvitre rever 0 texto de Kant antes de aventurar qualquer posicionamento.

3. Kant comeca a sexta secao da Antinomia da Razao Pura com uma passagem que se tomou no minimo bastante conhecida. Nela define explicitamente 0 conceito que nos ocupa: "Demonstramos suficientemente na Estetica Transcendental - diz Kant - que tudo que e intuido no espat;o ou no tempo, portanto, todos os objetos de uma experiencia possivel para nos, nao passam de fenomenos, i.e, meras represen­ tat;oes que tal como sao representadas, como seres extensos ou series de muoences, nao possuem uma existencia fora de nossos pensa­ mentos e fundada em-si. Denomino este con­ ceito doutrinal de Idealismo Transcendental". 15

Temos agora que Idealismo Transcendental nao e apenas a hi­ p6tese de que nao conhecemos coisas em-si mesmas, e sim fenOme­ nos, mas ainda a tese de que os fenOmenos sao representa~6es de seres extensos que sofrem rnudancas de acordo com series tempo­ rais, representacoes de substancias extensas interagindo e mudando atraves do tempo. 0 problema e que a passagem diz que extensao, rnudanca, temporalidade, substancialidade e todos os conceitos men­ cionados tacita ou explicitamente sao tarnoern representa~6es. Cabe indagar: onde fica 0 representado? Para responder essa questao devemos ver 0 que se segue no texto. Para Kant "representa¢es" ai significa "modifica¢es de nossa sensibilidade". Para 0 "realista transcendental" que Kant critica (por exemplo, Newton), sAo "coisas subsistentes em-sin ou, como Kant diz na Estetica, "realidades absolutas". Mudan<;a, extensao, substancia, espaco, tempo, etc., nao seriam para 0 realista transcendental meras representa¢es. Seriam coisas em-si mesmas. Mas, afirmar isso, dira Kant, conduziu a inurneras contradlcoes. Portanto nao podemos admiti­ 10. Por outro lado, 0 conceito de Idealismo Transcendental nao se opOe apenas ao conceito de "realismo transcendental", mas tarnbern ao conceito do que Kant denominou por vezes "idealismo empirico". Este "aceita a realidade pr6pria do espaco", diz Kant (8519), mas Onega ou,

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pelo menos, considera duvidosa a exlstencia dos seres extensos", nao concedendo "nenhuma diferenya suficientemente demonstravel entre 0 sonho e a verdade", aceitando todavia a realidade dos tenomenos do sentido interne no tempo. Esta postura, que as vezes referida a Berkeley e a Descartes, assemelha-se a identifica-se ao ceticismo acerca dos sentidos, 0 qual para Kant nega ou duvida da existencia das pr6prias coisas exteriores, levando ao extrema de nao permitir discernir 0 que e sonho do que e real. Portanto tampouco pode ser admitido. No §13 dos Pro/eg6menos Kant vai acrescentar um ponto importante para distinguir 0 seu idealismo "transcendental" deste idealismo "empirico" ou "material": a aceitacao explicita da exis­ tencia dos objetos externos enquanto coisas em-si mesmas, indepen­ dentemente de n6s, que sao a "causa nao-senslvel" (B522) dos fe­ nernenos e permitem discernir estes ultirnos, enquanto representa­ c;:oes que obedecem a lei da unidade da experiencia, dos sonhos e das representacoes ilus6rias. Mas nesse sentido eles "s6 sao reais na percepcao", na medida em que ela nos apresenta "a realidade de uma representacao empirica, i.e, fenameno"(B521-522). E com isso pa­ rece que nao avancamos muito, pois eles s6 sao reais enquanto per­ cebidos como reais - 0 que aproxima Kant de Berkeley muito rnais do que ele acreditava." Ora bem, se pensarmos na Estetica poderemos lembrar que: 1) nao podemos intuir e, portanto, nem conhecer nem pensar nada que nao tenha curacao no tempo e que nAo ocupe um espaco extenso; 2) que, por isso, espaco e tempo sao condlcoes unicamente sob as quais objetos podem ser intuldos; 3) que 0 espaco e tempo sao as formas puras de sensibilidade porque condicionam a priori toda a materia que pode ser dada aos nossos sentidos a forma espacio-ternporal: e 4) que por serem espaco e tempo formas de sensibilidade, i.e, formas unicamente sob as quais seres racionais finitos podem intuir objetos, deve-se admitir que estes ultirnos sao tenornenos e nAo coisas em-si mesmas. Este ultimo e para n6s, agora, 0 mais relevante. Porque aqui a hip6tese vira uma tese: ja nAo e uma mera assercao que se mostra possivel em face da contraria. Ora sabemos que s6 conhecemos tenornenos e que nAo conhecemos as coisas tal como elas sAo nelas mesmas porque somos condicionados ave-las e conhece-Ias de acordo a nossa estrutura mental e corporal, a qual por sua vez limita

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nosso alcance e condiciona 0 tipo de acesso a tudo que co­ nhecemos. Assim, enquanto 0 idealismo empirico ou material con­ sistia para Kant em sustentar que os dados sensiveis sao ilusOes e que oscorpos sao irreais, sendo sua existencia duvidosa ou inde-

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rnonstravet e enquanto 0 realismo transcendental sustentava que es­ pace e tempo eram propriedades reais das coisas e os fen6menos coisas em si mesmas, vemos agora que a tese de Kant combina dois aspectos: 1} 0 idealismo transcendental, 0 qual em resumidas contas consiste na negac;:ao do conhecimento das coisas em si mesmas; 2} 0 realismo empirico, para Kant correlato necessano do primeiro, que consiste no postulado da existencia das coisas em-si mesmas. Este segundo ponto e 0 mais poillmico porque Kant 0 formula defendendo a realidade empirica dos fen6menos - nao das coisas em-si mesmas. Mas podemos perguntar: afinal, 0 que garante a "realidade" empirica do fen6meno, enquanto representacao, senao a "existencia" de urn suporte que deve ser admitido, ainda que em-si seja incognocivel? Nao basta dizer que sao as leis da unidade da experiencia, porque e precise que algo seja dado para que seja reunido numa consciencia de uma expenencia, e 0 que dado, enquanto fen6meno, remete ne­ cessariamente para uma causa "inteligivel". A melhor maneira de con­ tomar 0 problema parece consistir em dizer que a coisa em si e con­ dic;:a0 17 do fen6meno - e esse sentido tarnbern harmonizaria a am­ bigOidadedo termo "objeto transcendental" tal como aparece no terceiro capitulo da Analitica dos Principios, onde par momentos Kant identifica coisa em si, ao n6umeno em sentido negativo e ao objeto trans­ cendental, pensados como condicao desconhecida e incoqnosclvel." A tese de que s6 conhecemos tenomenos ("a doutrina da sensi­ bilidade" que esta na Estetica Transcendental) ao mesmo tempo a doutrina dos n6umenos em sentido negativo - diz Kant - ,i.e, de coisas que 0 entendimento deve pensar sem esta relacac com 0 nosso modo de intulcao, (...) como coisa em-si rnesrnas"." Mas, porque 0 entendimento "deve pensar" noumenos? Que de­ ver e esse? Ocorre que quem julga sempre 0 entendimento e nao os senti­ dos, portanto ele que decide quando ha fen6menos ou llusao. de acordo com as suas leis, que sao as leis da experillncia; mas como pode ele julgar corretamente se esta em face de urn fen6meno ou de uma llusao, a nao ser lancando mao de experillncia que os sentidos fazem de urn ou mais fen6menos dados? E como distinguir 0 fen6me­ no da ilusao a partir do que e fenOmeno? Impossivel. Parece que deve haver outro elemento para tanto. Este elemento e a coisa em-si. Resta saber, todavia, se isto, que nao senao urn postulado (Paton" ­ Prolegomenos, §13/Apendice), nao configura urn problema. Pois co­ mo e que urn conceito-Iimite, que nos restringe ao ambito de intuic;:ao sensivel enos proibe pretender conhecer 0 que s6 poderia ser objeto

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de intuic;ao intelectual, nao pode ser usado assetoricamente (8310足 311), e no entanto acaba por se-lo, visto que implica uma existencia real? Tudo parece indicar que devemos admiti-Io, e ponto. Mas, por que? Nao tera Hegel razao ao dizer que e urn contra-senso afirmar 0 que dizemos que nao pode ser afirmado? Parece que tanto Kant quanta Hegel tern boas razees para discordarem entre si. De outra parte, e llclto objetar a Kant urn uso inadequado da categoria de causalidade ao postular 0 conceito de uma coisa em-si? Ou melhor, basta dizer que se trata de uma condlcao do fenOmeno ou de uma aplicacao do principio da razao suficiente (Nicholas Rescher)" o ato de postula-la? Nao sera que Kant esta afirmando de fato a exis足 tencta daquilo para 0 qual nao possui razoes 16gicascomo as alegadas para responder segunda objec;ao? Aparentemente ha duas solucoes possiveis: ou Kant tern razao, ou Hegel e 0 Idealismo Alernao a tern. Na verdade, parece-me dificil que perante esta dificuldade seja sufici足 ente utilizar-se de urn raciocinio binarlo, Primeiro porque nao resolve acontenda ao ponto de apaziguar ambas as partes, que tern todas duas suas razoes: segundo porque face dificuldade e lmportancia do problema parece ser, senao evidente, pelo menos filosoficamente mais relevante considerar que nao estamos perante uma dificuldade qualquer, mas perante uma antinomia. Mais precisamente perante aqui足 10 que os gregos chamaram de antilogia. Este ponto de vista nos convida a sustar as pretensoes de ambas as partes e a refletir sobre os pressupostos e as lrnplicacoes do problema em questao. Nesse sentido gostaria de dizer que essa terceira via me parece a mais adequada ao espirito da filosofia, bern como ao de ambas as partes em questao. Talvez ela nos aponte para a impossibilidade de proferirmos qualquer discurso sem pressupormos necessariamente uma certa ontologia subjacente aos emerios epistemol6gicos que adotamos - a qual, naturalmente, nao se deixa justificar por e/es sem incorrer em circulo. Sobre isso, porem, nao podemos nos estender aqui.

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Slio

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tuiz, 10 de julho de 1995

NOTAS & fllJBER~NCIAS 1

Critica da Razllo Pura (= C.R.P)

2

Ver refer6ncia completa na bibliografia

3

Publicada em 19/0111782 nas "Noticias lIustradas de GOtlingen". Veja-se R. Verneaux. Le Yocabulaire de Kant Paris. AUbier-Montaigne. 1967. pp.53/54

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• AIX-X 5

BXXX:V

6

BVII/ B XIV

7

Ibidem

6

B XX. Cf com B8 e B434ss

9

B 434ss.

10

B XXX:V. Cf com B XXX. Ver tarnbern ProlegOmenos, §§ 14,15,16.

11

BXVI-XVII

" Na verdade,seriam tres essas obje¢es. ct. nosso artigo: "Acerca do conceito de tenOmeno na C.R.P." (em preparacao). Aqui, porem, nao tratamos da terceira. 13

ct. Fenomenologla do Esplrita,

" Ct. par exemplo, J. Rivelaygue.

Introdu~o

- (Vide reterencia completa na Bibliografia)

L~ons

de M.taphyslque Allemande. Paris Grassel. 1990. Vol. I, Cap. III, pp. 123ss. Vertamt>em N. Hartmann. A Fllosofla do Ideallsmo Alem~. Lisboa. Calouste Gulbenkian. 1983. Cap. 1,2,3 da primeira parte e Cap. 5 da seguda.

15

B 518 - 519

16

P.F. Strawson, The Bounds of Sense, London, Methuen & Co. 1966. p.22

17

Palon, Adickes e Strawson concordariam com essa solucao, mas Allison e Prauss nAo. Veja-se, par exemplo, H.E. Allison, Kanfs. Transcendental Idealism. New HavenlLondon. Yale University Press. 1983. Capllulo 11. H. Seidl, "BemerXungen zu Ding an sich und Transzendenlalem Gegensland in Kanis Kritik der reinen Vernunft", in: Kant·Studien, 63 (1972), pp. 305-304; P.F Strawson. The Bounds of Sense. London. Melhuen & Co. 1966. pp. 250ss; H.J. Paton, Kanfs Metaphysic of Experience. LondonlNew YorX.Allen & Unwin. 1951. Vol. I, pp.62ss; G. Prauss. Kant und das Problem der Dlnge an s/ch. Bonn: Bouvier. 1974. pp.32-43 (Apud Allison); E. Adickes. Kant und das Ding an Sich. Beriin: Pan. 1924. p.5 (Apud Allison).

16

A 372

,. B 307 '" Kant's Melaphvsic ot Experience. London/New YorX.Allen & Unwin, 1951. Vol I. pp. 51ss / 70ss. 21

"Noumenal Causality", in: Lewis While Beck (Org.) Kant's Theory of Knowledge. Dordrechl: Reidel. 1974. pp. 175-183.

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Probabilidade indutiva e sua relacao com 0 principio de casualidade Lia Maria Alcoforado de Melo Departamento de Filosofia

R~O A questao do estabelecimento de quais argumentos indutivos tem maior probabilidade de se aproximar mais da verdade, liga-se com maior intensidade aos raciocinios que envolvem generaliza<;oes humeanas. 0 principio de causalidade, suporte basico da legitimidade da indu<;ao cientifica, discutido neste trabalho a partir das obje¢es de HUME, existencia de uma logica que garanta sua racionalidade. Objetivou-se construir uma arqumentacao justificativa que mostrasse que HUME nao prova atraves de sua teoria cetica, que 0 principio causal irracional; muito embora que nao se tenha ainda conseguido, cornprova-lo como racional.

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1. A probabilidade indutiva A discussao sobre 0 conceito de probabilidade indutiva, vern sendo efetuada em razao tanto dos raciocinios indutivos estatisticos como dos raciocinios humeanos. Segundo NOLT & ROHATYN (05:401) a probabilidade de conclusoes verdadeiras, nessas duas formas de raciocinios, depende em grande parte, da torca existente entre as premissas e a conclusao. Os enunciados fortes informam mais, independentemente de suas veracidades cujas conclusees sao fracas com probabilidades indutivas pr6ximas de zero (0). Somente os enunciados autocontradit6rios tern probabilidade indutiva igual a zero (0). Portanto, existe uma inversao na proporcionalidade de torcas entre premissas e conclusao em raciocinios indutivos, ou seja, quando as premissas sao fortes as conclusoes sao fracas e vice-versa.

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Uma das dificuldades no tratamento dos raciocinio indutivos, diz respeito a questao de como verificar a intensidade da forca das conclusc5es, a partir das regras de irnpllcacao e equivalencia 16gicas na cornparacaoentre enunciados. A regra de implicac;ao dedutiva entre dois enunciados, somente determina qual deles mais forte, ou seja, quem tern menos probabilidade de ser verdadeiro e 0 enunciado que implica 0 outro, nao estabelecendo 0 quanto 0 primeiro e mais forte que 0 segundo. E pela regra da equivalencla 16gica, isto e , quando dois enunciadosimplicam dedutivamenteurn ao outro,fica estabelecido que esses enunciados tern forcas iguais se estiverem sob 0 mesmo conjunto de clrcunstanclas. Portanto, as regras de impllcacao e equivalencia 16gicas, somente determinam a torca relativa entre enunciados indutivos, 0 que e muito pouco em termos de auxilio ao estabelecimento das probabilidades entre eventos. Foi PEIRCE (06: 163) quem descobriuque todo argumento deriva sua forca da verdade geral da dasse de inferencias a qual ele pertence, cuja "probabilidade de qualquer consequsncia 0 nurnero de vezes em que ocorrem ambos, 0 antecedente e 0 conseqOente, dividido pelo nurnero total de vezes nas quais 0 antecedente ocorre.路 Esta definicao de probabilidade pode ser expressa como:

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Sendo:

p = probabilidade da consequencia; A = antecedente; C = consequente.

Dai foram deduzidas as regras para adicao e rnultlphcacao de probabilidades. Essas regras possibilitam que se trabalhe com varias consequenclas, as quais se relacionem com as mesmas premissas. Tem-se al portanto a utilizacao da rnaternatica com certos expedientes para minorar muitas dificuldades. Os raciocinios que envolvem generalizacc5es estatisticas utilizam amostras ao acaso, por isso podem ser justificados rnaternaticarnente, o mesmo nao ocorrendocom as generalizacc5es chamadas humeanas. Isto porque a lnterpretacao destas ultimas subjetiva, e portanto, depende do conhecimentoe das circunstanclaspara que se estabeleca o grau de crenca que deve ser medido. A probabilidade estatistica de

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uma generalizayso ser verdadeira, dada em funcao de duas quantidades: 0 tamanho da amostra e a forca da conclusao, ou seja,

se em n% de s, F it G. Entio, quase nOk de todo Fit G

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Sendo: F =propriedade que define a populacao; G = propriedade estudada; s nQ de casos observados (selecao ao acaso): "todo" populacao em estudo.

=

=

~

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A relayao entre "n" e "s" feita com base em nurneros de intervalo de conflanca. para cuja definicao de amostra significativa, em relacao ao tamanho da amostra, existe uma prova matemanca A comcdencla de propriedades designadas por G nas premissas e conclusao, bern como a forrnulacao neutra das questOes, sso aspectos importantes na consideracao da generalizayao estatistica. As generaliza¢es humeanas nao possibilitam estabelecer uma amostra ao acaso, porque a populacao relevante interliga-se com objetos ou eventos futuros, 0 que representa urn tipo de uniformidade pressuposta e de grau incerto. Nesse caso, a populacao tern tamanho infinito uma vez que abrange fenOmenos futuros e uma amostra de tamanho finito, nao podendo ser estabelecido matematicamente, a proporcao entre as propriedades que definem a populacao e as propriedades em estudo. Eis porque existe rejeiyao sobre esse tipo de generalizayao por parte dos chamados te6ricos ceticos e de boa parte dos J6gicos. Segundo HUME apud WATKINS (08:13) ¡0 ceticismo concede que cada um de nos tem uma boa dose de conhecimento egoci3ntrico sobre as nossas proprias crences, sentimentos e experiencias perceptivas. Temoem concede que se podem conhecer as verdades /ogicas. Mas nega que se possa progredir por raciocinio /Ogico, partindo da experiencia perceptive, ate qua/quer conhecimento genuino de um mundo exiemo, se e que he a/gum mundo."

Ora, este tipo de ceticismo humane nao atinge todo 0 conheci­ mento, mas apenas 0 conhecimento do mundo externo; porque nao

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exclui a possibilidade do conhecimento estabelecido a partir de fundamentos 16gicos. Entretanto, esta uma vlsao cetica da 6tica dos principios empiristas colocada pelos fil6sofos modernos. A grande discussao sobre a legitimidade da induc;ao como clencia da 16gica, situa-se no aspecto da racionalidade do seu principio basico - a causalidade. Para MILL (03:183) existe um principio de universalidade de que hci uma lei para todas as coisas, ou seja, toda causa fisica de um fenOmeno ela mesma um fenOmeno, constituindo足 se no fundamento da retacao entre fatos, exceto as causas primeiras ou ontol6gicas. Porem, como provar que uma concepcao mental acrescida aos fatos nas interenclas que levam a uma descoberta?

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0 principia de casualidade

Na tentativa de proporcionar alguns esclarecimentos a essa questao, selecionou-se tres argumentos humeanos para servir de base na estruturacac do raciocinio deste trabalho: um primeiro argumento, considera 0 posicionamento de HUME (02:08) sobre a forma de efetivac;ao da apreensAo na relac;aode causa e efeito entre dois objetos. Ora, sAo tres as circunstanclas que predispOem 0 espirito para que se conclua sobre a repetlcao de um evento no futuro: sernelhanca. contigOidade e conjuncao constante. Analise-se 0 aspecto da apreensao da estrutura da lnferencia causal, a partir de uma situac;ao limite pro posta por HUME: (i) um espectador sem qualquer experlencla acerca do mundo, porern, dotado de completa capacidade intelectual; (ii) dois eventos na relacao de causa e efeito sao considerados de per si, como do is objetos separados; (iii) 0 espectador nao consegue desvendar a relacao de causalidade apenas pela razao, mas somente, ap6s a averiguac;ao de varias repencoes: e, (iv) mesmo ciente da relacao causal, 0 espectador sera incapaz de demonstra-la como falsa ou verdadeira, porque cabival que se conceba a rnudanca no curso da natureza. Esta situacao limite proposta por HUME, estabelece uma argu足 mentacao que se fundamenta na apresentacao de irracionalidade no estabelecimento da relacao causal, baseando-se na lei da contradlcao. Entretanto, conforme COSTA, N. C. A. da (01 :47) "hoje, sabe-se que se podem construir teorias paraconsistentes, as quais derrogam, em parte, a lei da contradicao". Toda essa explicac;ao humeana sobre a forma de apreensao da relacao causal, tem 0 objetivo de descartar a

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possibilidade de alguma racionalidade na descoberta da relacao causal, e fundamenta-la apenas na experiencia adquirida atraves do habito ou repencao de eventos. Observe-se a valorizacao humeana dada ao principio do habito como fonte da ac;ao humana e desta para a especulacao, Eis urn segundo argumento afirmado por HUME (02:14): os animais inferm de causas semelhantes resultados ou efeitos semelhantes, isso porque sao capazes de agir conforme 0 que Ihes apresenta 0 hablto: tal 0 caso do cao que teme 0 chicote, e do cavalo, que nao salta obstaculos superiores as suas forcas; porque ambos, inferem com base na experiencia passada. Dai, se a inferencia causal pertinente tarnbern aos seres irracionais, torna-se dificil supor que ela se fundamente em algum processo de arqumentacao, 0 que implicaria no uso de raciocinios abstratos. Aqui, HUME pretende mais uma vez, apresentar a inferencia causal como independente da racionalidade, colocando a capacidade de efetuar inferencias causais pelos animais irracionais, como fundamentadas no principio natural de semelhanc;a. Observe足 se entretanto, que existe intencionalidade de HUME para descaracterizar qualquer aspecto de racionalidade na apreensao da inferencia causal, visando tornar lnaceitavet a induc;ao. Porern, que tipo de raciocinio esse? "Se os animais fazem inferencias causais sem usar a razao, entao os homens temoem estabelecem a causayao sam usar a razao (embora a possuam)". Ora, responder-se-a, este argumento uma inferencia indutiva. E, se HUME nao ace ita a inducao, i16gico utiliza-Ia como argumento aceltavel. Urn terceiro argumento, trata da cornprovacao demonstrativa da necessidade de que todo objeto que comeca a existir deva sua existencla a uma causa. HUME (02:51) usa uma prova por reducao ao absurdo, para negar este principio, ou seja, busca demonstrar a necessidade da causa para todo efeito, eo faz intencionalmente, para, nao conseguindo chegar a essa demonstracao, admitir 0 seu oposto como verdadeiro, tal seja, - a inexlstencia da necessidade de uma causa para tudo que corneca a existir.Entretanto, nao pode ser afirmado que 0 principio da necessidade de uma causa para todo efeito lndemonstravet, apenas se pode dizer que ele ainda nao foi demonstrado, 0 que bern diferente. Retome-se entao, para efeito de sintese, a analise da tese ate agora apresentada: (i) admita-se que a estrutura, da inferencia causal humeana contra a racionalidade da sua apreensao, colocada no primeiro argumento, seja estabelecida como verdadeira; isto significa dizer que a apreensao

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do principio causal desenvolve-se a partir da experiencia; porem, a existencia da causalidade na relacao entre fatos nao fica negada; apenas, tenta mostrar que independe da 16gica a definicao de interenclas causais; entretanto, nao fica demonstrado que, para estabelecer uma relayao causal baseada em expenencta passada, haja urn impedimento da aplicayao nesta inferencia, de raciocinios abstratos fundados na razao que passam determinar verdades l6gicas. Ate porque, para se chegar a estabelecer a relacao causal, a preciso urn nivel de interpretacao da ocorrencia da repeticao para a cornpeensao do surgimento de uma classe de objetos, Iigados a uma outra dasse de objetos. E todo nivel de interpretacao constitui-se numa atividade racional; (ii) quanta ao segundo argumento humeano em discussao, percebe-se a intencao de fortalecer a ideia sobre a capacidade de que seres irracionais podem estabelecer inferencias de causalidade; 0 que nao descarta a possibilidade de que os seres humanos, sendo dotados de razao, facarn uso de seus poderes de raciocinio usando arqumentacao 16gica para comprovar novas verdades partindo dos pr6prios fatos. Isto porque, toda relacao causal pressupoe urn sujeito cognoscente 0 tempo todo, que faz a Iigac;ao entre "causa e efeito". Alem do mats, a idaia de causa nao contern em si a idaia do efeito. E, mesmo admitindo-se a recorrencia ao habito para a efetivacao da conexao causal, como define a teoria humeana, 0 sUjeito cognoscente nao encontra uma lrnpressao que revele a produeac do efeito pela causa. Portanto, como se pode conceber que uma articulacao entre causa e efeito a realizada sem a partldpacao de uma mente pensante? Se para a realizacao de qualquer operacao causal, a necessario conservar uma certa unidade e continuidade no periodo de tempo em que realizam as observacoes para tirar as conclusoes, A critica de HUME considera que a unidade e continuidade da mente sao tieticias, ou seja: nao existe uma substancla espiritual que articule as expertenctas, 0 que redus 0 ser humano, a urn mero feixe de irnpressoes. Entretanto, como a possivel uma colecao de impressoes, sem urn eu racional capaz de efetuar 0 exercicio da mem6ria, interpretar a relacao de causa e efeito? (iii) e final mente, 0 ultimo argumento aqui analisado, apresenta mais uma tentativa de negar a causacao como envolvendo uma 16gica; no entanto, trabalha essa arqumsntacao a partir da busca de uma causa que negue a necessidade de uma causa para todo efeito, 0 que representa urn raciocinio circular. Portanto, tarnbem esse argumento a falacioso pois, mostra i10gicidade na arqurnentacao.

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Conduindo, afinna-sequeemboranaose tenhaaindaconseguido provar a racionalidade causal, 0 seu contrario nao e urn fato: HUME nao provou que a causalidade e irracional, por todos os motivos aqui apresentados, apenas demonstrou que a causalidade e estabelecida a partirda experiencia, pelarepencao. Portanto, permanece a questao. No entanto, jtt comecam a surgir outros trabalhos como 0 de MONTEIRO (04:82) que retomaa olscussao sobrea "causacao visivel" no sentido de concordar com STRAWSON,ou seja, que inicialmente, se precisa de urn sistema conceitual que destaque da massa amorfa das conjuncoes detectaveis no mundo natural, quais delas sao exemplos de producao causal, no que depende da repencao para selecionar essas conluncees, Entretanto, seria il6gico atribui-Ias ao acaso; uma vez que, somente depois de constituidas as categorias amplas de objetos e que seria possivel destacar quais as conjuncoes que se encaixam na regularidade bifurcada, a partir de uma s6 experiencia, quandose e possuidorde poderescausais em proporcao ao que e evidenciado por essas observacoes interpretativas. Ocorre como se a observacao direta bruta fosse a base do esquema de interpretacao causal. A causacao nao se da atraves de nenhum misterioso poder de apreensac imediata, ela faz parte de urn amplo sistemade interpretaySo, construido mediante a buscade boasrazoes, a partirda experiencla repetida e regular. Urnoutrotrabalho, 0 de PINTO (07:54)trata 0 problema da aplicacaodo principio de causalidade aos fenOmenos da percepcao sensivel, apresentado por HUME, como uma posiyao empirista extremada que nao parece ter solucao satisfat6ria, ou seja, como uma tentativa de resposta a uma questao equivocada ou mal formulada pelos fil6sofos modernos.

REFER~NCIA~L10GRAFICAS

01. COSTA, N. C. A. da. L6gica indutiva e probabilidade. 2 ed. sao Paulo: HUCITEC, 1993. 02. HUME, D. Sumario do tratado da natureza humana. Trad. e notas de Anoar Aiex. SAo Paulo: CEN, 1975. 03. MILL, J. S. Sistema de 16gica dedutiva e indutiva: exposi~o dos principi足 os da prova e dos metodos de investiga~o cientifica. Sele~o e trad. de Joao Marcos Coelho. 3 ed. Sao Paulo: Abril Cultural, 1984. (Os pensadores)

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04. MONTEIRO, J. P. Strawson e a causacao visivel. In: CARVALHO, Maria Cecilia M. de (org.) A filosofia analitica no Brasil.Campinas: Papirus, 1995. 05. NOLT, & ROHATYN, D. L6gica. Trad. de Leila Zardo Puga e Mineko Yamashita. Sao Paulo: McGraw-HILL, 1991. (COLECAo SCHAUM) 06. PEIRCE, C. S. Escritos coligados. Trad. de Armando Mora D'Oliveira e Sergio Pomerangblum. 3 ed. Sao Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os pen足 sadores) 07. PINTO, P. R. M. Aspectos da crltica de HUME ao principio da causalida足 de. Kriterion. Belo Horizonte, v. XXXV, n. 90, p.42-55, Agost./dez. 1994. 08. WATKINS, J. W. N. Ciencia e cepticismo. Trad. de Maria Joao Ceboleiro. Lisboa: Fundayao Calouste Gulbenkian, 1990.

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problema do mal na Teodlcela de Leibniz Maria de Lourdes Borges Departamento de Filo.ofia da UFSC

Leibniz ocupou-se do problema do mal, em que pese ser urn tema recorrente em toda sua obra, nos "Ensaios de teodlcela, sabre a bondade de Deus, a Iiberdade do homem e a origem do mal" (1710). Leibniz, neste tratado, dedica-se a responder a duas questoes que sao de fundamental importancia para tada tentativa de construir uma teodiceia, 0 primeiro problema consistiria em (I)como justificar a mal no mundo frente a infinita bondade e onipotencia divinas? Se Deus e born e, tudo a que existe, existe segundo sua vontade, como pode existir a mal no mundo? A segunda questao de Leibniz versa sabre (II) uma possivel conciuacao entre a Iiberdade e a provldencia divina: au bern a homem livre, pade ser julgado responsavel pelas suas acoes, mas isso seria incompativel. com a ideia de que toda realidade prod uta da vontade divina, au bern admite-se que tudo a que existe, existe em virtude dos decretos da vontade divina (com excecao das verdades etemas, como as da maternatlca, determinadas pelo do seu entendimento), a homem sendo assim torcado a fazer a bern e a mal, nao podendo ser julgado par suas acoes, Nosso artigo tratara do primeiro problema. Paul Ricoeur, no livro "0 mal"( p. 21) nos apresenta a primeiro problema (I) como urn esforco, feito par todas as tentativas de construir uma teodlcela, em que pesem suas diferenc;as, de conciliar, dentro de uma filosofia sistematica e sem ferir a principia de nao-contradicao, tres proposlcoes:

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(1) Deus e onipatente; (2) Deus e infinitamente born; (3) 0 mal existe. Elas deveriam, pais, dar conta do mal, conciliando-o com as duas proposlcoes anteriores. A teodlceia seria sempre uma resposta a

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possivel objec;ao que, das tres proposicoes apresentadas, duas apenas poderiam ser verdadeiras, e uma talsa. Essa objecao poderia ser enunciada de tres tormas diterentes.

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As proposlcoes 1 e 2 sao verdadeiras, logo a terceira necessariamente talsa. Demonstra~ao: Considere-se que Deus e onipotente, isto e, que tudo 0 que existe, existe segundo sua vontade e que nada existe contrariamente vontade divina. Considere-se tarnbern que ele e a suma bondade e, sendo totalmente born, nao poderia querer 0 mal. Se tudo 0 que existe, existe segundo a vontade divina e se Deus nao pode querer 0 mal, entao 0 mal nao poderia existir no mundo. A proposicao "0 mal existe" talsa. Em suma, aceitando-se que 1 e 2 sao verdadeiras, 3 seria necessariamente talsa. A segunda e terceira versees da obiecao surgiriam no momenta em que conslderassemos 0 mal no mundo como urn tato indiscutivel e, portanto, nao pudessernos atribuir talsidade proposicao "0 mal existe". Se a proposicao "0 mal existe" e verdadeira, temos entao:

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1 .1 . As proposicoes (2) e (3) sao verdadeiras, logo a proposlcao

(1) (Deus

e onipotente) e talsa.

Demonstra~ao:

Admita-se que 0 mal exista, admita-se tam bern que Deus seja born e nao queira 0 mal; consequentemente, 0 mal s6 poderia existir contrariamente sua vontade. Se algo escapa vontade divina, logo Deus nao onipotente. A proposicao (1) "Deus e onipotente" talsa.

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1.2. As proposicoes (1) e (3) sao verdadeiras, logo a segunda proposicao (Deus e intinitamente born) e talsa. Demonstrsctio: Admita-se que Deus todo-poderoso e que nada no mundo existe contrariamente sua vontade, admita-se tarnbem que 0 mal exista. Se nada no mundo existe contrariamente sua vontade e se 0 mal existe, logo Deus quer 0 mal, nao sendo intinitamente born. A proposicao (2) "Deus e absolutamente born" e talsa.

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Visto que a nossa pretensao e compreender porque Hegel pre足 tende "corrigir" a teodlceia leibniziana, torna-se necessarto compre足 ender como Leibniz concilia as tres proposicoes apresentadas. A so足 IUyaoque eu apresentarei e tentarei demonstrar e que Leibniz concilia estas tres proposicees, desde que com as devidas restriy6es:

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2

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Deus onipotente, desde que se compreenda que sua vontade esta subordinada as regras do seu entendimento, logo 0 mal metafisico, isto e, a imperfeiyAo das criaturas euma necessidade do entendimento divino;

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2.1. Deus born, mas ele quer ou permite 0 mal, desde que este tenha como consequencia urn maior bern no todo: ou seja, Deus born porque ele escolhe 0 melhor dos mundos possiveis permitidos pelo seu entendimento;

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2.2. 0 mal existe, mas deve ser compreendido como urn mal particular ( isto e, 0 mal numa poryAo espaco-ternporal do mundo) que acarreta urn maior bern na totalidade do mundo.

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Comecemos pela primeira propostcao: Deus onipotente. Para iniciarmos nossa analise, convem examinar 0 & 2 do Discurso de Metafisica, onde Leibniz distingue 0 que provem do entendimento divino e 0 que provern de sua vontade: "Eis porque, acho ainda muito estranha a expres­ sao de alguns fi/6sofos que dizem que as verda­ des etemas da metafisica e da geometria e, por conseguinte, tembem as regras da bon dade, da justit;a e da perfeit;iio siio apenas os efeitos da vontade de Deus, enquanto a mim parecem ape­ nas resultados do seu entendimento que, segu­ ramente, niio depende de sua vontade, tal como a sua essencia".

Quando Leibniz refere-se a "alguns fiI6sofos", seu alvo mais pro­ ximo Descartes, confirmado pela primeira versao do Discurso, onde seu nome explicitamente indicado. Leibniz diria que, segundo Des­ cartes, a criayAo das verdades eternas, incluindo ai as verdades da maternatlca, sao produtos da vontade divina, independente das regras impostas pelo entendimento divino. Se Deus nao pudesse criar estas verdades como bern Ihe aprouvesse, segundo Descartes, isto acarre­ taria prejuizo sua onipotencia. 0 Deus cartesiano poderia, entao, ter querido que a soma dos Angulos internos de urn triangulo nao fosse igual a dois retos, ou que a soma de dois mais tres nao fosse igual a cinco; se assim e, foi porque Deus assim 0 quis, grayas apropria vontade divina e nao a urn principio outro, ao qual ela estaria subordinada. Leibniz contesta esta opiniao: na cria<tao das verdades eternas da metafisica e da geometria, das regras da bondade, da justica e da

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perfelcao, a vontade divina estaria subordinada a regras do entendimento divino, nao podendo criar as verdades eternas, nem as regras do bom, do justa e do perfe ito , de forma arbitraria. Todavia, pode-se perguntar se isto nao significaria uma negayao da cnlpotencia divina: 0 querer subordinado as regras do entendimento nao implicaria uma limitayao a sua vontade? Tomemos, como exemplo, a regra do bom; Leibniz afirma que. se a excelencia da criacao residisse apenas no fate de que foi Deus quem 0 quls daquela forma (na sua vontade) e nao numa regra do born (proveniente do seu entendimento), nao teriamos um Deus onipotente. mas no seu lugar, um Deus arbitrario. 'Dlzer-se que as coisas sao boas devido unicamente a vontade de Deus, a nao a alguma regra de bondade, destr6i-se, parece-me (...) todo 0 amor de Deus e toda sua gl6ria" -afirma 0 fil6sofo no &2 do Discurso de Metafisica. Leibniz indica como prova a biblia. onde ,ap6s criado 0 mundo, Deus contemplaria a bondade intrinseca da sua cnacao, referindo-se certamente ao genesis: "Deus criou os monstros marinhos e toda a rnultidao de seres vivos que enchem as aguas, segundo a sua especie, e todas as aves segundo sua especie, E Deus viu que isto era bom" (Gen, 1,21). A subordinacao da vontade divina a regra da bondade antes, signa da excelencia da criacao do que da Iimitayao da onipotencia divina. Leibniz esclarece: a onipotencia divina nao euma vontade tirana que quer sem razao de querer, a vontade de Deus subordina-se, pois, corretamente a razao, "a rezao e naturalmente anterior a vontade". Se a vontade divina subordina-se razao, aquela nao pede querer impossivel para esta; nao pode querer, por exemplo criar o que verdades maternatlcas nao subordinadas ao principio de nao足 contradlcao, pois isto seria um interdito proveniente do entendimento divino. 0 mesmo se passaria com as regras do bom, do justo e do perfeito. Devemos introduzir neste momento, entao, 0 que denominaremos de uma tipologia do mal. Leibniz divide 0 mal em tres tipos: 0 mal metafisico (a lmpertelcao do ser criado): 0 mal fisico (0 sofrimento); 0 mal moral (0 pecado). A existencia do mal metafisico, i.e., da lmperteicao das criaturas independe da vontade divina (cf. Theo, 10 Parte). Os seres criados sao, por essencla, Iimitados e imperfeitos, podem, portanto, enganar-se e cometer erros. 0 mal proveniente do erro e do engano, i.e., 0 mal advindo da imperfelcao, faz parte de todo ser criado. Ele reside. nao na vontade de Deus, mas no entendimento

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divino; nao esta ao alcance daquela escolher um mundo sem mal metafisico, este e uma necessidade imposta pelo entendimento divino. Resta,m-nos, todavia, outros dois tipos de mal: 0 mal flsico, l.e., 0 sofrimento e 0 mal moral, Le., 0 pecado. Se estes nao sao determina足 dos pelo entendimento divino (tal como 0 mal metafisico, constituinte necessario da imperfeicao de todo ser criado), por que eles existem? Subordinado as regras da razao, Leibniz afirma que Deus criou 0 mundo da forma mais perfeita possivel, reprovando a opiniao daqueles que dizem que Deus poderia ter feito melhor, ou "que nada e ato perfeito que nao exista algo de mais perfeito". Deus nao poderia ter criado um mundo com um maior grau de pertelcao do que 0 fez. 0 fil6sofo sustenta, com convlccao, a tese de que "vivemos no melhor dos mundos possiveis". Por que, entao, 0 mal fisico e 0 mal moral? Nao poderia Deus ter criado um mundo onde este mal inexistisse? Nao poderia ter criado um mundo sem pecado, ou sem sofrimento? Devemos levar em conta que, sendo a vontade do Deus leibniziano subordinada as possibilidades permitidas pelo seu entendimento, a criacao do mundo deve ser vista, nao como uma decisao arbltrena, mas como a escolha, segundo 0 principio do melhor, entre os varies mundos possiveis. Cada mundo possivel corresponde a um conjunto de compossiveis. 0 que sao compossiveis? Sao os possiveis que nao sao entre eles contradit6rios. Na infinidade de ideias permitidas pelo entendimento divino, todas com pretensao a existencia, algumas se combinam num conjunto de possiveis que excluem aquelas que nao sao compossiveis com este conjunto. Uma primeira, e talvez ingenua solucao do problema do mal seria dizer que um mundo onde 0 mal fisico e moral inexistissem total mente seria impossivel, isto e, entre os varies compossiveis (conjunto de possiveis nao contradit6rios entre si), nao haveria nenhum onde 0 mal nao estivesse presente. Deus escolheria, entao, segundo 0 principio do melhor, entre os varies mundos possiveis. A partir de um calcuto da razao, seria escolhido, entre os mundos permitidos pelo entendimento divino, aquele que contivesse 0 maximo de perfeitos e um minimo de imperfelcoes. Alguns objetores argumentariam, todavia, que podemos pensar um mundo sem mal, seja ele fisico (0 sofrimento), seja moral (0 pecado). Se podemos pensa-lo, ele possivel; se ele e possivel, poderia ter sido escolhido. Ora, por que 0 que se apresenta para 0 nosso entendimento sem nenhuma contradicao, tarnbern assim se apresentaria para 0 entendimento divino?

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Belaval aponta a diferenc;:a na nocao de possivel entre Leibniz e Descartes. Ambos partilhariam da definic;:ao tradicional do possivel: aquilo que nao implica contradicao: todavia, enquanto Descartes rela­ ciona sua concepcao de contradleao a uma 16gicacriada, Leibniz 0 faz a uma 16gicanao-criada. Nao ha, portanto, para Descartes, uma iden­ tificacao entre 0 possivel 16gico e 0 possivel real, aquele pode ser mais ou menos extenso do que este. No primeiro caso (0 possivel16­ gico e mais extenso do que 0 possivel real), Descartes antecipa Kant ao mostrar que "pode acontecer que nao se conceba nada na coisa que a impeca de poder existir e que, no entanto, se conceba algo da parte de sua causa que impeca que ela seja produzida". Neste caso, 0 que pode ser pensado pelo nosso entendimento sem contradic;:ao pode nao existir, a possibilidade 16gica e mais extensa do que a possibilidade real. No segundo caso, podem ser criados seres cuja existencia impli­ que contradicao para 0 nosso entendimento. Para Descartes - afirma Belaval- "esta contradicao relaciona-se ao nosso entendimento; trata­ se do possivel - ou do impossivel - no nosso pensamento, nao no ser. As leis de urn entendimento finito e criado nao poderiam ser a medida do Ser infinito, criador, nem limitar a sua onlpotencia". Leibniz admite uma 16gicanao criada por Deus; uma 16gicaque, ao contrario, 0 submete. 0 Deus leibniziano nao e criador de essenclas, estas sao determinadas pelo seu entendimento. De onde decorre que os possiveis reais sao os possiveis 16gicos, ou que aquilo que 0 en­ tendimento divino permite possivel: "em Deus, a infinidade dos pos­ siveis determina a infinidade dos mundos possiveis". Se adicionar­ mos a isto que 0 nosso entendimento e regido pelas mesmas leis 16gicasque 0 entendimento divino, temos que 0 que pode ser pensado por n6s sem contradlcao (ex.: urn mundo sem mal, uma utopia) nao implica contradlcao tam bern para 0 entendimento divino. Se urn mundo sem mal pode ser pensado por n6s, ele se insere como uma possibi­ lidade 16gicano entendimento divino; se ele e uma possibilidade 16gica para Deus, ele e uma possibilidade real; logo, Deus poderia ter esco­ Ihido urn mundo sem mal fisico e moral. Esta objec;:ao radicaliza 0 problema, nao se trataria mais da nao possibilidade da escolha de urn mundo sem mal (em Leibniz, se ele e uma possibilidade 16gica, ele uma possibilidade real), mas da escolha de urn mundo onde 0 mal fisico e moral existam, em detrimento de outro, possivel, onde 0 mal fisico e moral inexistissem. Vejamos a resposta de Leibniz (Theodlcee, Parte I, & 10):

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"{J' verdade que se pode imaginar mundos pos­ siveis sem pecado e sem infelicidade, que se

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poderia fazer como nos romances, nas utopias, ..., mas estes mesmos mundos seriam, por ou­ tro lado, bastante inferiores, em rela~ao ao nos­ so, quanto ao bem".

Parece-nos que Leibiniz admite que as utopias de urn mundo sem pecado e sem sofrimento sao possiveis, que nao apenas podemos pensa-la sem contradlcao, mas igualmente, elas nao apresentam contradicao para 0 entendimento divino. Como a vontade divina, por ser sumamente boa, escolhe 0 melhor dos mundos possiveis, e este determinado univocamente por uma regra do entendimento divino, urn mundo sem mal, entao, 0 melhor dos mundos possiveis nao ainda que urn mundo sem mal fosse possivel. 0 fato, pois, de Deus ter escolhido este mundo e nao outro, nao se deve impossibilidade real de urn mundo sem mal, mas ao fato de que 0 mal no mundo escolhido concorra para urn maior bern no todo. Leibniz continua sua arqumentacao: "Nos sabemos, alias, que frequenternente urn mal causa urn bern, 0 qual nao teria acontecido de forma alguma sem aquele mal" (Theo, 1° Parte, & 10). Este ponto parece-nos importante, pois sera reatualizado na teodiceia hegeliana: 0 mal causado por uma ayao particular pode contribuir para 0 bern da totalidade do mundo. Aqueles que analisam 0 mal de forma superficial, poderiam chegar mesma conclusao, inaceltavel para Leibniz, do Cardeal Sfondrate (ibid. & 11) que preferiria 0 estado das criancas mortas sem batismo , ao dos adultos que, batizados, pudessem ter acesso ao reino dos ceus, mas ja tivessem cometido pecado. Tal cardeal julgava que 0 pecado seria 0 pior dos males e que estas criancas morreriam livres dele. A resposta Leibniziana que Deus, na sua onlpotencla infinita, tira da perrnissao do mal, bens maiores do que 0 proprio estado de inocencia anterior qualquer pecado, e ampara-se na Biblia: "Sobreveio a lei para que abundasse 0 pecado. Mas onde abundou 0 pecado, superabundou a graya." (Rom, V, ) Retomando 0 argumento: existem tres tipos de mal, 0 mal metafisico (irnperfeicao), 0 mal fisico (0 sofrimento) e 0 mal moral (0 pecado). 0 primeiro uma necessidade de todo ser criado, sua exlstencia nao implica a falsidade da proposlcao "Deus onipotente", a vontade divina que determina a exlstencta da pols (1) nao trnpertetcao das criaturas, mas seu entendimento; (2) a subordinacao da vontade divina ao seu entendimento nao acarreta prejuizo sua onipotencia. A existencia dos dois outros tipos de mal deve-se a uma escolha feita pela vontade divina entre os varlos mundos posslveis, a fim de

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selecionar 0 melhor deles. 0 mundo onde 0 mal exista melhor do que 0 mundo onde 0 mal inexistisse, visto ser esta uma possibilidade para 0 entendimento divino. A razao pela qual urn mundo onde 0 mal exista melhor do que urn mundo sem mal que urn mal pode ter como consequencia urn bern maior do que 0 mal que nele se originou, assim 0 mundo originado sera na sua totalidade melhor do que se nele nao houvesse mal algum. Temos ainda uma ultima questao: pode-se dizer que Deus quer o mal? Isto nao tomaria falsa a 2属 proposicao: Deus infinitamente born? Pode urn Deus absolutamente born querer 0 sofrimento das criaturas ou induzi-Ias ao pecado para que deste mal resulte urn maior bern na totalidade do mundo? Se Deus nao quer 0 mal flsico, nem 0 mal moral, por ser absolutamente born e, apesar disso, eles existem, onde esta a fonte do mal? A exlstencia do mal fisico e do mal moral parece tornar falsa, ou bern a primeira proposicao (se Deus permite algo contra rio a sua vontade, ele nao e todo poderoso), ou bern a segunda (se 0 mal porque Deus 0 quer, ele nao born). Leibniz da conta deste problema a partir de uma dlterenca entre vontade antecedente e vontade consequente: " Deus quer de forma antecedente 0 bern e consequentemente 0 rnelhor" (ibid. & 23). A von足 tade antecedente exam ina cada parte por vez e quer 0 bern em cada uma delas, tendo uma inclinacao a salvar e santificar cada homem em particular. Se nao houvesse nenhuma razao que 0 impedisse, esta vontade acabaria por se realizar no mundo; no entanto, 0 sucesso pleno da realizacao desta depende da vontade conseqOente, que re足 sulta de todas as vontades antecedentes, tanto das que tendem para o bern, quanta das que querem 0 mal. Em suma, Deus quer sempre 0 bern de forma antecedente, mas no concurso de outras vontades par足 ticulares, inclusive aquelas que querem 0 mal, Deus quer 0 melhor. Deus pode querer, as vezes, 0 mal flsico, ou como uma pena para expiar a culpa, ou como urn aperfeiyoamento do individuo que sofre; entretanto, jamais quer 0 mal moral. Se ele 0 permite, porque nao 0 fazendo, "nao estaria fazendo 0 que deve". Leibniz compara 0 impedimento do mal moral a rainha que, temendo pela seguranya de seu Estado, cometesse ou permitisse urn crime: "0 crime certo, eo mal do Estado duvidoso" (ibid. & 25). 0 que Deus perderia caso impedisse 0 mal moral, ou seja, qual "0 crime certo" que estaria sendo cometido? Agindo desta forma, Deus impediria a Iiberdade humana. Esta 0 bern maior que pode provir da permissao do mal moral; 0 mal e permitido, consequentemente, para resguardar a Iiberdade.

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Deus confere uma espontaneidade as substanclas, nas subs足 tancias inteligentes, como 0 homem, esta espontaneidade e a pr6pria Iiberdade: Deus cria, portanto, os homens como livres, como capazes de autodetermlnacao. 0 mundo criado 0 melhor dos mundos possi足 veis, pois, ainda que permitindo 0 mal moral, ele resguardaria a Iiber足 dade como um bem maior no todo. A vontade divina inclina as vonta足 des particulares ao bem, mas nao as coage, do contrario, a Iiberdade, como um bem maior, seria perdida.

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Anotacoes a margem das duas .mtroducoes a critica da faculdade de julgar, com vistas a ldentlflcacao dos pressupostos da arte nao figurativa Maria Marta Guerra Husseini Departamento de Filosofia da UFRN

REi8W;MO

o presente artigo busca identificar na Critica da faculdade de julgar os pressupostos de que se serviram os artistas plasticos nao figurativos para suas concepc;:6es artisticas, atraves do rnetodo de uma analise de conteudo das duas introduc;:6es escritas por Kant para sua terceira critica.

As.IIll

\CT

Getting through a contents analysis of the two introductions wrote by Kant to his "Kritik der urteilskaft vernunft" , this article looks for a possible nexus between this Critic and the Abstract Art.

KANT(2:509) escreveu duas introducoes para a sua Critica da faculdade de julgar, publicada pela primeira vez em 1790. A Primeira lntroducao e mencionada em carta de 09 de marco de 1790 a seu editor frances Theodore de la Garde, junto com uma preocupacao pela sua extensao e a rnarntestacao de sua vontade em reduzi-Ia, mesmo a contra gosto. Assim e que a publlcacao da Kritik der

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Urteilskaft und Schriften (KUS) deu-se ja com a segunda lntroducao, sendo esta em consequencia geralmente considerada como a versao aprovada por KANT, interpretacao esta reforcada pelo longo periodo (mais de urn seculo) em que permaneceu desconhecido do publico 0 manuscrito da Primeira tntroducao, somente publicado ja no nosso seculo. (ALQUIE apud KANT, 2:510). A observacao atenta das duas lntroducees, entretanto, nos leva natural mente a concluir que 0 fil6sofo nao se limitou apenas a reduzir os doze itens da Primeira lntroducao aos nove da segunda, tendo seu espirito rigorosamente cientifico feito modiflcacoes que com toda a certeza tern sua importancia, ainda que Kant nao tenha renunciado em bloco 8 sua primeira lntroducao em beneficio da segunda, como se pode deduzir da carta enviada em 09 de dezembro de 1792 a urn seu ex-aluno de nome Beck , professor em Halle, que (he pediu permlssao para publicar extratos da Primeira tntroducao junto com algumas outras obras criticas do Mestre. Nesta carta, Kant(2:510) explica a Beck que rejeitou a primeira introducao por consldera-la "demasiado extensa, desproporcional ao pr6prio texto da Critica", mas que ainda assim a considerava como contendo uma importante contribuicao "8 compreensBo mais completa de uma finalidade da natureza." Realmente, em muitos pontos a segunda lntrodueao mais hermencaque a primeira ; em muitos pontos a primeira mais didatica que a segunda, mas de uma certa forma, uma complementa a outra, o que nos obriga a uma leitura das duas se quisermos tentar entender as idelas do Mestre, "recriando" seus raciocinios. A proposta aqul portanto a de analisar pontos da Primeira e da segunda introducoes, buscando na recriaeao dos raciocinios do fil6sofo a confirrnacao da hip6tese de uma possivel abertura, na Critica da Faculdade de Julgar, das condicoes de possibilidade do surgimento da arte nBo figurativa. Na Primeira lntroducao KANT(2:73-4) faz uma interessante observacao sobre as lntroducoes de uma maneira geral. Ele as divide em tntroaucbes Propedfwticas e tntroaucoee Enciclopedicas, explicando que as primeiras SBO as mais comuns e tern 0 objetivo de preparar 0 leitor ao conhecimento da doutrina a ser exposta, relacionando entre si os conhecimentos prevlos tirados de outras doutrinas ou ciencias pre-existentes, para tornar possivel a translcao para a nova doutrina que se pretende expor. Ensina que este tipo de lntroducao tern a finalidade de delimitar 0 campo das ciencias, procedimento necessarlo para que se possa esperar solidez e profundidade nos conhecimentos filos6ficos. Quanto as Introdu~{jes

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Enciclopedicas, KANT(2:72-5) explica que elas pressupoern a ideia de urn sistema preexistente no qual ira se inserir a nova doutrina com a finalidade de compteta-lo. Nesse contexto, informa que a lntroducao a Critica da Faculdade de Julgar e do segundo tipo, pois esta Critica vai se inserir no sistema do poder pure de conhecimento por conceitos, ainda que seu principio pr6prio, a Faculdade de Julgar, seja de uma especle tao particular que nao produza qualquer conhecimento (nem te6rico nem prance) nem se constitua em qualquer acrescimo filosofia transcendental enquanto doutrina objetiva, servindo apenas como elemento de ligacao entre os outros dois poderes superiores de conhecer, quais sejam 0 Entendimento e a Razao, Enfatiza que deseja fazer preceder sua Critica de uma curta introducao enciclopedica, a qual nao visa a introduzir 0 leitor no sistema das ciencias da razao pura, mas apenas na critica de todos os poderes do espirito suscetiveis de determlnacao a priori, na medida em que eles pr6prios se constituem entre si em urn sistema no espirito; e assim sendo, que Ihe seja permitido unir deste modo a lntrodueao propedeutica introducao enctciopedlca. Esta util expiicacao, ornltida na segunda lntroducao, vai facilitar a compreensao dos raciocinios de Kant ao escrever a Critica da Faculdade de Julgar. Quanto a esta, ALQUIE apud KANT(2:11) cre poder afirmar partir do estudo da correspondencia particular do fil6sofo que ela nao estava prevista no plano inicial do seu projeto critico; e que s6mente teria side pensada ap6s a CRITICA DA RAZAo pRATICA (Kritik der Praktischen Vemuntt (KPV) - 1788), nascida da preocupacao de Kant em estabelecer uma plena coerencia em seu sistema filos6fico. Essa coerencia estaria arneacada pelo "abismo intransponivel" surgido entre as leis da natureza conceituadas na CRITICA DA RAZAo PURA (Kritik derreinen Vemuntt (KRV) -1787 (1781, 1a. Ed.) e as leis da Liberdade expostas na segunda critica, ada Razao Pratica, Com efeito, esclarece KANT(2:24) que

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"Ia possibilite des choses d'apres des lois de la nature aittere essentiellement Quant a ses principes de la possibilite des choses d'apres les lois de la Iiberte"l

explicando que os primeiros sao principios "pratiques足 techniquement" e como tais pertencentes filosofia teorica, enquanto que os ultirnos sao principios "pratiques moralement" , pertencentes filosofia pratica (como doutrina dos costumes) (KANT (2:96-7). Em

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decorrencia, os primeiros regem-se por conceitos de pura causalidade natural (de possibilidade ou de necessidade fisica de um efeito) e os ultimos regem-se per conceitos da Liberdade, que dao sua regra a causalidade da vontade. (KANT, 2:96-7). Assim sendo, evidentemente, a liberdade moral, sobretudo sob a forma incondicionada do imperativo categ6rico kantiano, nao tem qualquer dominio (ditio)2 no campo do sistema da natureza, cuja causalidade natural, por si s6, ja excluiria todo e qualquer ato livre. Da mesma forma, a causalidade da natureza nao pode legislar no campo da Liberdade moral, onde 0 homem dita a sl pr6prio 0 "tu deves". Concebida como vimos per KANT (2:102) como uma "passagem", um mere elemento de liga<;ao entre um sistema e outro, a Faculdade de Julgarteria entao a mtssao de, na familia das faculdades superiores do conhecimento, funcionar como um intermedlario entre 0 entendimento e a razao, tornando pelo menos possivel a "passagem do modo de pensar de acordo com os principios de um ao modo de pensar segundo os principios da outra''KANT(2:1 01), sem entretanto formar conceitos, como 0 entendimento, nem ideias, como a razao, por ser um poder de conhecimento tao particular que pode apenas subsumir suas percepcoes em conceitos preexistentes. (KANT, 2:28). Esta "passagem" seria operacionalizada, segundo KANT (2: 107), pelo principio pr6prio da Faculdade de Julgar, qual seja a Finalidade da Natureza 8, principio este que "mesmo que nao tenha nenhum campo onde possa exercer seu dominio, pode ter entretanto algum terreno, e neste uma tal constltulcao que s6mente esse principio possa ter valor."(KANT, 2:103). Nessa altura, vale observar que tendo dividido na Primeira Introdu<;eo a Faculdade de Julgar em determinante e rettexionente? e esclarecendo melhor esses conceitos na segunda tntroducao.' KANT(2: 105) faz uma dlstincao entre as "modalidades" do sentimento de prazer e de desprazer, colocando de um lade 0 sentimento prevtarneote determinado pela faculdade de desejar superior, produzido pelo conceito de Liberdade e desta forma Iigado Razao Pura e Faculdade de Julgar determinante, KANT(2: 119) ( prazer ou dor moral, correspondente ao Bem no campo da faculdade de julgar ) e do outro lade aquele sentimento meramente subjetivo que nao gera nem faz parte de qualquer conhecimento (embora ate possa ser causado por algum conhecimento) KANT(2: 117), e ligado apenas a facultas dijudicandi, ou seja, a Faculdade de Julgar reflexionante. (Prazer ou desprazer estetlco, correspondente ao Belo, ao Sublime e ao feio no campo da faculdade de julgar). De qualquer modo, independentemente

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da relacao, a realizacao das intenyees humanas esta para KANT(2: 115) ligada a esse sentimento. Outro importante divisor de aguas e usado pelo fil6sofo para aclarar 0 seu usa do termo ESTETICA. Demonstrando que nao pode existir uma estetica do sentimento como ciencia ( como pretendia Baumgarten) do mesmo modo que existe uma estetica do poder de conhecer, (a Estetica Transcendental), ja que todas as determinacoes do sentimento tern unicamente uma significacao sublenva, KANT(2:50) observa que h8 uma certa confusao no emprego do termo estetice porque " on a depuis longtemps pris I'habitude d'appeler esthetique, c'est dire sensible, un mode de representation en voulant dire egalement que I'on entend par la Ie rapport d'une representation non pas au pouvoir de connaitre, mais au sentiment de plaisir et de deplaisir. ''5

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Quanto a expressao do modo estetlco de representac;ao, esta Ihe parece inequivoca, .na medida em que seja entendida por ela a relacao da representacao de urn objeto como fenOmeno, tendo em vista 0 seu conhecimento, porque ".....Ie tenne d'esthetique signifie alors que la for足 me de la sensibi/ite (Ia maniere dont Ie sujet est ettecte) adhere necesseirement a une telle representation, et que par consequent cette for足 me est inevitablement transferee a I'objet (mais simplement comme phenomene)." (KANT, 2:49足 50)6.

KANT(2:50) considera que usa-se 0 termo Estetica indistinta e indevidamente num e noutro caso par falta de uma outra expressao mais adequada, e propoe que se tente resolver esta contusao reservando-se este termo unicarnente para qualificar os atos da faculdade de julgar, sem ernpreqa-lo nem a prop6sito da lntuicao, nem a prop6sito das representacoes do entendimento. Isto porque "as tntulcoes podem muito bern serem sensiveis, mas julgar e tarefa exclusiva do entendimento (tornado no seu sentido mais amplo)" e assim, "julgar esteticamente ou de maneira sensivel, na medida em que isto deve ser conhecimento de urn objeto e (ate) mesmo uma contradicao", na medida em que, em tais casos, "a sensibilidade se iminscui no trabalho do entendimento e ( por urn vitium subreptionis) da ao entendimento uma falsa direcao."

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Ja "0 julgamento objetivo, pelo contrano, e sempre dirigido uni­ camente pelo entendimento, e nesta medida nao pode ser qualificado de estetico".(KANT, 2:51). Continuando suas distincoes, KANT(2:52) ensina que "todo jul­ gamento determinante e 16gico, porque 0 predicado desse julgamento e urn conceito objetivo dado", enquanto que 0 julgamento estetico po­ de ser definido "como urn julgamento cujo predicado nao pode jamais ser urn conhecimento (0 conceito de urn objeto), se bern que possa conter as condlcoes subjetivas para urn conhecimento em geral." Fi­ nalmente, conclui esse grupo de distincoes definindo 0 fundamento de deterrninacao do julgamento estetico: "Done un jugement estMtique est eelui dont Ie fondement de determination se trouve dans une sensation qui est reMe de fa~on immediate au sentiment de plaisir et de deplaisir." (KANT, 2:52­

3Y. Na segunda lntroducao, KANT(2:115) afirma ainda que "0 senti­ mento de prazer e tam bern determinado por urn fundamento a priori valido para todo e qualquer urn" (sujeito) , naquilo que concerne a relacao do objeto com a faculdade de conhecer. E faz uma importante distincao nesses modos de relacionamento do objeto com a faculdade de conhecer. Entretanto, antes de apreciarmos essa dlstlncao, e utiI voltar ell Primeira tntroducao na parte em que ele explica quais sao a seu ver os tres atos do poder espontaneo de conhecer que sao "mobilizados' para a formacao de todo conceito empirico. Esses atos sao ao ver de KANT(2:48)

1. a Auffassung (apprehensio),

isto e, a apreensao do diverso da intuiyao;

2. a Zusammenfassung (apperceptio comprehensiva), ou seja: a reallzacao da unidade sinteti­ ca da consciencia desse diver­ so no conceito de urn objeto;

3. a Darstellung, ou seja, a apresentacao do objeto correspon­

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dente a esse conceito da intui­ yao.

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E importante termos estes tres momentos na memoria ao passarmos dlstincao que Kant faz na segunda lntroducao entre 0 julgamento estetico e 0 julgamento de gosto, partir das retacoes do objeto que os suscita com a faculdade de conhecer. Muito embora no texto da Critica essa dlstincao nao perrnaneca e Kant se refira apenas ao julgamento de gosto, classificando-o de estetico, mesmo assim interessante termos em mente que em algum momento ele os distinguiu, e os distinguiu certamente porque intuiu que 0 julgamento de gosto e 0 julgamento estetico ocorrem em "momentos" diferentes igualmente importante do poder espontaneo de conhecer. Ainda, atualidade da memoria 0 conceito kantiano de forma, trazermos definido na Critica da Razao Pura: (KANT, 3:62)

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"...ao que, porem, possibilita que 0 diverso do tenomeno possa ser ordenado segundo deter­ minadas rela~oes, dou 0 nome de forma do fe­ nomeno."

Isto posto, vejamos entao a distincao feita por Kant entre os julgamentos "estetico" e julgamento "de gosto", partir das relacoes daquilo que os suscita com a faculdade de conhecer. Ou seja, partir dos seus fundamentos a priori. Para facilitar 0 entendimento dessa dlstincao, talvez pudessernos nos referir a " julgamento meramente estetico" e julgamento "esietkx: de gosto":

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"Si Ie plaisir est lie avec la simple apprehension (apprehensio) de la forme d'un objet de I'intuition, sans relation de celle-ci 8 un concept en vue d'une connaissance detenninee, a/ors la representation est par 18 rapportee non pas 8 I'objet, mais uniquement au sujet; et Ie plaisir ne peut exprimer rien d'autre que la confonnite de cet objet aux facultes de connaitre qui sont en jeu dans la faculte de juger reflechissante et, dans la mesure ou elles y sont, donc seulement une finalite subjective formelle de I'objet. Car cette apprehension des formes dans I'imagination ne peut jamais a voir lieu, sans que la tecuite de juger retlechissante, meme inintentionellement, ne les compare, au moins, avec son pouvoir de rapporter des intuitions 8 des concepts. Or si, dans cette comparaison, I'imagination (comme faculte des intuitions a priori) s'accorde inintentionellement par une representation aonneÂŤ avec I'entendement

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(comme faculte des concepts) , et si par la un sentiment de plaisir est suscite, alors I'objet doit par suite etre considere comme final pour la faculte de juger reflechissante. Un tel jugement est un jugement estMtique sur la finalite de I'objet, qui ne se fonde suraucun concept existant de I'objet, et ne toumit aucun concept de I'objet. "(KANT, 2:118)8.

Neste caso, KANT(3:313) nos mostra a relacao do prazer com a apreensao da forma de um objeto dado na intui~ao empirica, apreen­ sao esta do diverse da intui~ao. 0 fundamento de deterrninacao des­ se julqamento esta numa sensa~ao (sensatio)9 , que esta Iigada de forma imediata ao sentimento de prazer e desprazer, sentimento este fruto do livre jogo entre a imaginac;ao e 0 entendimento, os quais, inintencionalmente, apreciam da conformidade do objeto com a facul­ dade de conhecer. Uma vez que para Kant, mesmo independente­ mente de qualquer intencao e sem a formacao de conceitos a faculda­ de de julgar reflexionante, partir dessa apreensao, vai subsumi-Ia em conceitos preexistentes, isto e, vai fazer a Zusammenfassung, en­ trando em jogo para relacionar, ainda sem qualquer intencao, essa forma apenas apreendida intuitivamente com conceitos (de torrnas) preexistentes, (deixando indeterminada a questao de saber qual es­ se concelto): e esses "arquivos de conceitos de formas" preexistentes fazem parte da mente de cada individuo isoladamente, entao a representa¢ao vai, nesse caso, atraves da sensatio se relacionar uni­ camente com 0 sujeito, nao com 0 objeto • e 0 prazer dai ocorrido 0 da identiflcacao (nao intencional) da conformidade do objeto com a faculdade de conhecer individual. Ou seja: do reconhecimento inin­ tencional daquela forma apenas intuitivamente apreendida como di­ versa, como semelhante a uma outra forma preexistente no "arquivo de conceitos de form as" daquele determinado individuo que vive a experiencia, realizando assim a unidade sintetica da consciencia desse diverse no conceito de um objeto que faz parte do "arquivo individual" de um determinado sujeito. Desta forma, este e um julgamento cuja finalidade e subjetiva formal, e cujo objeto e considerado final para a faculdade de julgar reflexionante. Igualmente, se partir de uma dada representacao a imaginac;ao (enquanto faculdade das intui~Oes a priori) vai se por de acordo, ainda sem lntencao, com 0 entendimento ( como faculdade formadora de conceitos) realizando assim a Zusammenfassung; e esse acordo reciproco da imagina~ao com 0 entendimento ocorre na simples

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reflexao, sem a formacao de conceito, e dai surge um sentimento de prazer, (cujo fundamento de deterrninacao e ainda a sensatio); entao o objeto deve ser considerado como final para a faculdade de julgar reflexionante, e esse julgamento do qual se origina 0 sentimento de prazer um julgamento meramente estetico sobre a finalidade do objeto, julgamento este que nao se funda em nenhum conceito do objeto, nem forma qualquer conceito. Desta forma, 0 julgamento meramente estetico, embora tenha seu fundamento de determinacao na sensatio, tem sua ~nfase no segundo momento (Zusammenfassung) doc tr~s atos do poder espontaneo de conhecer apresentados por Kant. Pois embora atraves da sensatio seu motor seja a apprehensio, (e seu desdobramento a Darstel/ung ,) e no momento da Zusammenfassungque ele se realiza, isto e: e atraves da reanzacao da unidade slntetica desse diverso no conceito de um objeto, (mesmo deixando indeterminada a questao de saber qual esse conceito) que ele tem seu momento maior. Entretanto,

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"Si I'on estime que la raison du plaisir pris la representation d'un objet est la forme de celui-ci (et non la part materielle de sa representation en tant que sensation) , dans la simple reflexion sur cette forme (sans viser obtenir un concept de cet objet), ce plaisir est egalement juge comme necessairement lie a la representation de cet objet, non seulement pour Ie sujet qui apprehende cette forme, mais aussi en general pour tout sujet jugeant. Ainsi I'objet est appele beau; et Ie pouvoir de juger grace un tel plaisir (et donc de tecon universel/ement valable) s'appelle Ie goOt."(KANT, 2:118-9)'0.

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Colocando 0 fundamento de determinacao desse julgamento no sentimento de prazer derivado da forma do objeto. Kant vai colocar a enfase desse julgamento no terceiro momento, na Darstel/ung, ou seja: no momento da apresentacao do objeto correspondente ao conceito da intuicao, Embora esse prazer nao derive da parte material dessa forma, mas da reflexao sobre ela,( nao mais relacionado com a sensatio) e mesmo que essa reflexao nao vise formacao de qualquer conceito, e necessario que 0 objeto se apresente para que ele ocorra. E claro que necessariamente acontecem 0 primeiro e 0 segundo momento, mas estes, por assim dizer, "preparam" 0 terceiro momento. Kant chama de gosto 0 poder de julgar gral;as a um tal prazer, e

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considera 0 gosto, desse ponto de vista, universal: este a um poder universalmente possivel e valido para todo e qualquer suieito, Vale enfatizar que ele considera 0 julgamento de gosto universal, mas nao universalizBvel. Isto porque ele tem plena consciencia de que 0 gosto, embora universal no sentido de que todo ser humane possui tal tipo de faculdade de julgamento, a entretanto suficientemente subjetivo para nao poder ser ensinado nem aprendido, mas apenas desenvolvido como capacidade individual.(KANT,2:98-3)ll. Assim, nao Ihe reconhecendo qualquer territ6rio nem nenhum dominio no campo do conhecimento transcendental, ele nao pretende criar nenhuma teoria nem qualquer doutrina do gosto. Reconhecendo-Ihe apenas um domicilio na faculdade de julgar estetica, Kant deseja tao sornente fazer a critica do gosto. Intuindo neste uma possibilidade de acesso ao supra-sensivel, 0 fil6sofo va na sua critica a lnteqralizacao do seu sistema, que passa a abordar assim todas as possibilidades da nossa faculdade de conhecer. Mas atencao: esse possivel caminho de acesso ao supra-sensivel significa real e tao somente um caminho de acesso ao supra-sensivel, sem jamais poder trazer qualquer conceito fundamentado num conhecimento sobre aquilo que por um limite imposto pela pr6pria natureza humana nao nos a dado conhecer. Ejustamente aqul, no julgamento de gosto, que Kant vai criar a condicao de possibilidade da existencia da arte nao objetiva. senao vejamos: KANT(2:77) afirma que "...Ia critique du goOt, qui sans cela ne sert qu'a emeuorer ou affermir Ie goOt lui-meme, ouvre, si on la traite dans une intention transcendentale, en tant qu'elle comble une lacune dans Ie systeme de nos pouvoirs de connettre, ouvre, dis-je, une perspective treÂŤ remarquable, et, ce qu'i1 me semble, tres prometteuse sur un systeme integral de toutes les facultes de I'esprit, en tant que, dans leur destination, elles ne sont pas seulement repoorteeÂŤ au sensible, mais aussi au suprasensible, sans que t'on deplace pourtant les Iimites qu'une critique inflexible a assignees ce demier usage. "12

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Ainda, na parte IX da segunda lntroducao, pretendendo talvez tornar mais claras as Iigac;:oes das legislac;:oes do entendimento e da razao realizadas pela Faculdade de Julgar, KANT(2: 124-5) vai definir novamente os dominios da natureza e da liberdade, explicando que

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no que diz respeito

a natureza, e 0 entendimento que e legislador a e

priori, enquanto que para a liberdade e sua causalidade pr6pria, a razao que e legisladora a priori. Vai reafirmar 0 grande abismo que

existe em consequencia entre esses dois dominios, abismo este que separa 0 supra-sensivel dos fenOmenos. Vai reconhecer outra vez a impossibilidade de qualquer conexao entre eles, ja que 0 conceito de liberdade nao pode determinar nada a respeito do conhecimento te6rico da natureza, nem tao pouco 0 conceito da natureza pode determinar nada a respeito das leis praticas da liberdade. Com tudo isto, entretanto,vai argumentar que "Mais si les fondements de determination selon Ie concept de liberle ( et de la regie pratique qU'iI contient) ne sont meme pas ettestes dans la nature, et si Ie sensible ne peut pas determiner Ie suprasensible dans Ie sujet, I'inverse est cependant possible (cerles pas eu egard la connaissance de la nature, mais neenmoins eu egard aux consequences du premier sur cette demiere) et est deja contenu dans Ie concept d'une ceusetitÂť par libettÂť, dont I'effet doit avoir lieu dans Ie monde contormement ses lois formelles, bien que Ie mot cause, utilise a propos du suprasensible, signifie seulement Ie fondement qui doit determiner la causalite des choses de la nature en vue d'un effet, contormement a leurs propres lois naturelles, mais en harmonie toutefois avec Ie principe formel des lois de la raison, ce dont on ne peut cerles apercevoir la possibilite, bien que ron puisse suffisamment refuter I'objection d'une preteruiue contradiction qui s'y trouverait." (KANT, 2:125)13

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E continua KANT(2:125-6) L'effet selon Ie concept de liberle est Ie but final qui a Ie devoir d'exister (ou bien dont Ie pnenomene a Ie devoir d'exister dans Ie monde sensible) , et pour ce faire la condition de possibilite en est presupposee dans la nature ( du sujet comme etre sensible, sevoir" en tant

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qu'nommei." Por fim, KANT(2:125-7) vai concluir este raciocinio reafirmando o conceito de uma finalidade da natureza apontada pela faculdade de

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julgar, e termina por dar a este conceito (pertencente a faculdade de julgar) 0 papel de principio regulador da faculdade de conhecer ; ainda que 0 julgamento estetico sobre certos objetos ( da natureza ou da arte) que vao dar lugar a esse conceito em relacao ao sentimento de prazer ou de desprazer, seja urn principio constitutivo. A nosso ver, data venia, por este caminho Kant termina por nao ter outra 0P9ao senao a de encontrar uma finalidade objetiva da natureza, e a Critica da Faculdade de Julgartinha mesmo portanto que ser dirigida para 0 fundamento teleol6gico. Queremos levantar aqui a hip6tese de que alguns artistas do final do seculo passado e outros do inicio deste seculo, sobretudo aqueles artistas-fil6sofos, tenham buscado na Critica da Faculdade de Julgar uma dirnensao sequer sonhada por Kant. Vimos como na Primeira lntroducao KANT(2:77) defendeu que a critica do gosto, "se tratada com uma lntencao transcendental", vai abrir uma perspectiva "muito importante e muito promissora" em direcao ao supra-sensivel. KANT reafirma isto na segunda lntroducao, inclusive apontando 0 caminho: "II Y a done pour I'ensemble de notre faculte de connettre un champ iIIimite, mais egalement inacessible, a savoir Ie champ du suprasensible, dans lequel nous ne trouvons pour nous aucun terrain, et done sur lequel nous ne pouvons avoir un domaine en vue de la connaissance tneonaue ni pour les concepts de I'entendement ni pour ceux de la raison; c'est un champ qui nous devons occuper avec des Idees 15 aussi bien pour I'usage theorique que pour I'usage pratique de la raison, Idees auxquelles nous ne pouvons procurer, par rappori aux lois issues du concept de la liberie, qu'une realite pratique, par laquelle notre connaissance tneonaue n'est pas etenoue Ie moins du monde au suprasensible" 18

Nesse momento, mesmo sem qualquer intencao, Kant ofereceu aos artistas aos quais me referi a condicao de possibilidade de, no exercicio de sua liberdade e atraves das ldeias esteticas, criar urn tipo de arte que fugisse totalmente do referencial da natureza. senao ve足 jamos: Lembremos que mesmo reconhecendo que 0 conceito de liber足 dade nao pode determinar nada a respeito do conhecimento te6rico da natureza, e que tao pouco 0 conceito da natureza nao pode deter-

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minar nada a respeito das leis praticas da liberdade, KANT(2: 125) sustenta contudo que "se 0 sensivel nao pode determinar 0 supra­ sensivel no sujelto, 0 inverso entretanto possivel". Vimos como KANT(2: 125) considera ainda que 0 supra-sensivel ja esta contido no conceito de uma causalidade por liberdade, esclarecendo no seu rigor que usa aqui a palavra causa referindo-se ao supra-sensivel significando apenas um fundamento que deve de­ terminar a causalidade das coisas da natureza com vistas a um efeito, conforme suas proprias leis naturais, mas tarnbern em "harmonia com o principio formal das leis da razao", sem que isto se constitua numa contradicao. Isto porque

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"La resistance ou la promotion n'est pas entre la nature ou la liberte, mais entre la premiere comme phenomene et les effets de la seconde comme phenomeme dans Ie monde sensible; et meme la csuselit« de la Iiberte (de la raison pure et pratique) est la causalite d'une cause naturelle soboraonnee la Iiberte (celie du sujet considere en tant qu'homme et par suite en tant que phenomene), " (KANT, 2:126j17

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Esclarece que "0 efeito, segundo 0 conceito de liberdade, e 0 objetivo final que tem 0 dever de existir (ou entao cujo fenorneno tem o dever de existir no mundo sensivel)", explicando que para isto possa acontecer, e necessario que a sua condicao de possibilidade possa ser pressuposta na natureza ( "do sujeito como ser sensivel, a saber enquanto homem )" (KANT, 2:125-6). Nesse ponto, KANT apud SCHERRINGHAM(6: 159) aborda 0 pa­ radoxo existencial do ser humano, que e "eo mesmo tempo absolu­ tamente livre ( do ponto de vista da coisa em sf ) e completamente determinado (do ponto de vista do tenomeno)" , paradoxo este que Kant tenta resolver pelo imperativo cateqorico do "tu deves" da lei mo­ ral. Ensina-nos ainda KANT(3:313) que "0 conceito empirico ou pure e ao conceito puro, na medida em que tem origem no simples entendimento ( nao numa imagem pura da sensibilidade) chama-se nor;ao (notio)" Conclui explicando que "Um conceito extraido de nocees e que transcende a possibilidade da expertencla a ideie, ou conceito da razao." E justamente aqui, no ponto de intersecao das ldeias estetlcas com a possibilidade do sujeito de, no exercicio de sua liberdade, poder trazer de algum modo 0 supra-sensivel (enquanto ldeia da coisa-em-

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sl) tornando-o sensivel de algum modo como fen6meno ; mesmo sabendo que essa realidade expressa no fen6meno e apenas a sua possibilidade limitada e particular de tentar exprimir uma ideia inexprimivel, mas pretendendo que eta possa ser universalmente aceita; que Kant inintencionalmente criou a condicao de possibilidade de um Malevich conceber por exemplo 0 seu "Quadrado branco sobre fundo branco". Mas isto ja e assunto para um outro desenvolvimento. Por agora, contentemo-nos em tentar demonstrar como essa "segunda via" dos artistas, sequer sonhada por Kant, deu-se pelos caminhos da Razao. KANT(3:307) ensinou-nos que "os conceitos da razao servem para conceber, assim como os do entendimento servem para entender (as percepcoes). E explica que "Se os primeiros contern 0 incondicio­ nado, referem-se a alqo em que toda a experiencia se integra, mas que, em 51 mesmo, nao e nunca objeto da experiencia." ( Como a arte figurativa 0 e, por exemplo, e a arte nao figurativa nao 0 e). Igualmente, KANT(3:308) diz que "assim como demos 0 nome de categorias aos conceitos puros do entendimento, aplicaremos um novo nome aos conceitos da razao pura e desiqna-los-ernos por idelas transcendentais, ..." E depois de uma longa explanacao na qual nos informa sobre seus conceitos das ldeias em geral, endossando ate certo ponto 0 conceito plat6nico das ldeias-arquetipo, KANT(3:308-9) tenta ir mais alern de Platao dizendo: "Platao observou muito bem que a nossa facul­ dade de conhecer sente uma necessidade mui­ to mais alta que 0 soletrar de simples tenome­ nos pela unidade sintetica para os poderler como experiencie, e que a nossa razao se eleva natu­ ralmente a conhecimentos demasiado altos para que qualquer objeto dado pela expetienci« Ihes possa cotresponder. mas que, nao obstante, tem a sua realidade e nao sao simples quimeras".

Da como exemplo disso a ideia de Viriude, explicando que "quem quisesse extrair da experiencla os conceitos de virtude ou quisesse converter em modelo de fonte de conhecimento (como muitos realmente 0 fizeram) 0 que apenas pode servir de exemplo para um esclarecimento imperfeito, teria convertido a virtude num fantasma equivoco, varlavel consoante 0 tempo e as circunstancias e inutillzavel como regra."(KANT,3:310) Observe-se que se quisermos substituir a ideia de Viriude pela ideia de Arie, 0 racioclnio permanece igualmente vahdo, perfeito e aplicavel.

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Qualquer pessoa que conheca realmente a arte nao figurativa vai concordar com isto: toda a Arte nao figurativa origina-se numa Ideia II qual nada da realidade Ihe corresponde, sendo essa ideia um conceitos da razao. De uma certa forma, e como se os artistas obedecessem ao imperativo kantiano de que "0 conceito de liberdade tem 0 dever de tornar efetivo no mundo sensivel 0 fim imposto por suas leis."(KANT, 2:101) E complementassem 0 raciocinio kantiano que originalmente e"... e a natureza deve em consequencia poder ser pensada de sorte que a legalidade de sua forma se ponha de acordo ao menos com a possibilidade dos fins, que devem ser efetuados nela segundo as leis da Iiberdade.", substituindo apenas a palavra "natureza" pela palavra "arte". Eo adotasse como principio: "A Arte deve ser pensada de sorte que a legali­ dade de sua forma se ponha de acordo ao me­ nos com a possibilidade dos fins, que devem ser efetuados nela segundo as leis da liberdade".

Foi este 0 modo de pensar a arte de fil6sofos-artistas como Schiller e Nietzsche, por exemplo. 0 foi tambern de artistas- fil6sofos como Kandinsky:

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'A genese de uma obra de cereter cosmico. 0 criador da obra e, portanto, 0 espirito. A obra existe abstratamente antes da sua materializa9ao, que a torna acessivel aos senti­ dos humanos. Por conseguinte, todos os meios sao bons para essa materializa9ao necessaria, tanto a logica quanto a intui9ao. 0 espirito cria­ dor examina esses dois fatores e rejeita 0 que falso num e noutro. De sorte que a logica nao deve ser rejeitada, porque de natureza estre­ nha intui9ao. Pela mesma razao, tampouco a intui9ao deve ser rejeitada. Ambos os fatores sao em si estereis e desprovidos de vida sem 0 con­ trole do espirito. Nem a logica nem a intui9ao podem crier, na eusencie do espirito, obras per­ feitamente boas"KANDINSKI, 1:162-3Jl8

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ou Mondrian(5:321) 'Art will become the product of another duality in man: the product of a cultivated externality and of an inwardness deepened and more conscious. As a pure representation of human mind, art will express itself in an aesthetically purified, that is

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to say; abstract form. The truly modem arlist is aware of abstraction in an emotion of beauty; he is conscious of the fact that the emotion of beauty is cosmic, universal. This conscious recognition has for its corollary an abstract plasticism, for man adheres only to what is universal." 19

ou ainda Malevich(4:49) "Quand disparaitra I'habitude de la conscience de voir dans les tableaux la representation de petits coins de la nature, de madones ou de Venus impudiques, alors seulement nous verrons I'oeuvre picturale. Je me suis transfigure en zero des formes et me suis reoecnÂŤ du trou d'eau des detritus de I'Arl Aceaermaue. J tJioetrutt I'anneau de I'horizon et suis sorli du cercle des choses, parlir de I'anneau de I'horizon dans lequel sont inclus Ie peintre et les formes de la nature. Ce maudit anneau, en decouvrent des choses toujours nouvelles, emmene Ie peintre loin du but de sa perle. Et seules la conscience couarde et /'indigence des formes creetices chez Ie peintre se laissent aller /'illusion et etablissent leur arl sur les formes de la nature, en craignant a'etre privees des fondations sur lesquelles ont base leur arlle sauvage et I'academie. Reproduire les objets et les petits coins de nature sur lesquels on a jete son devotu. c'est comme un voleur qui admirerait ses pieds enchetnes. Seuls les peintres obtus et impuissants dissimulent leur arl sur la stncetite. En arl on a besoin de Verite et non de sincerite. Les objets ont disparu comme de la iumee: pour une nouvelle culture de I'arl celui-ci va aussi vers I'autonomie de la creation, vers la domination des formes de la nature. ''20

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Essa autonomia da criacao postulada por Malevich, Mondrian e Kandinsky ja se encontra na Critica da Faculdade de Julgar. Apenas, nao sendo Kant urn artista, nao podia dar-Ihe forma como 0 fizeram esses artistas. Tao pouco, vivendo no momenta hist6rico em que viveu, podia sequer imaginar a possibilidade de uma arte nao figurativa. Este assunto e entretanto objeto de uma outra pesquisa, ja em andamento. Neste artigo, esperamos tao somente ter demonstrado de modo

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suficiente a condicao de possiblidade do nexo entre Kant e os artistas abstracionistas, e queremos conclui-Io reforcando os seguintes pontos: 1. Kant demonstrou que atraves da liberdade moral que 0 homem dita a si pr6prio 0 "tu deves". Foi por este caminho, 0 da Liberdade, que os artistas nao figurativos puderam empreender a tarefa de ditarem a si pr6prios 0 que a arte deveria exprimir. ( Inclusive as tdelas-arquetipos e as ldeias estetlcas, ainda que supra-sensiveis). 2. Para eles, mesmo que nao tenham tido essa intencao, a Faculdade de Julgar permaneceu como a "ponte"possivel entre 0 entendimento e a razao, ponte esta capaz de realizar a "passagem" pelo menos do modo de pensar de acordo com os principios do entendimento, ao modo de pensar segundo os principios da razao. 3. Esta passagem continuou a ser operacionalizada por urn principio pr6prio da Faculdade de Julgar, paralelo ao principio da finalidade da natureza. Este principio paralelo seria 0 principio da finalidade da erie. Deste modo, a Faculdade de Julgar poderia ter dois principios pr6prios: a ) - 0 da finalidade da natureza, b ) - e 0 da finalidade da erie; sendo entretanto a ) - 0 da finalidade da natureza Iigado faculdade de julgar reflexionante; b ) - enquanto que 0 da finalidade da erie seria Iigado faculdade de julgar determinante . 4. Isto seria possivel porque Kant reconhece a exlstencia do sentimento de prazer e desprazer previemente determinado pela faculdade de desejar superior, produzido pelo conceito de Liberdade (Iigado Razao Pura e Faculdade de julgar determinante) . A partir dai e mesmo sem lntencao, os artistas abstracionistas vao abrir a perspectiva da validade de ser colocado ao lade do prazerl desprazer (dor) moralligado ao Bem no campo da Faculdade de Julgar, o prazer/desprazer (dor) moralligado Verdade, igualmente no campo da Faculdede de julgar; previemente determinado pela Faculdade de desejar superior e igualmente produzido pelo conceito de Liberdade ( ligado Razao Pura e Faculdade de Julgar determinante ) . 5. Este seria tambern urn julgamento ainda estetlco, na medida em que seu fundamento de deterrnlnacao encontra-se na Darstellung. Isto porque Kant coloca como fundamento de deterrnlnacao do julgamento estetico uma "sensetio", mas tamMm urn fundamento a priori de validade universal, que e encontrado na relacao do objeto

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com a faculdade de conhecer . Ora, 0 prazer estetico da arte abstrata s6 pode serencontrado na Darstellung (nao ha qualquer possibilidade de realizacao na Zusammenfassung pois nao se pede realizar uma apperceptio comprehensiva da arte nao figurativa); Enquanto que a Darstellung justamente 0 momenta que permite sair do meramente subjetivo da "senseiio" para 0 universal do gosto; 6. Os artistas abstracionistas fazem justamente por al a "passagem" para 0 supra - sensivel, que a Liberdade do homem vai trazer de algum modo, na forma de fenOmeno, para 0 mundo sensivel. E isto pela condicao de possibilidade da sua dualidade natural: coisa足 em-si/fenOmeno ; absolutamente livre/absolutamente determinado. Essa sua dualidade natural faz do homem, digamos assim, urn "cidadao dos dois mundos", 0 unico ser portanto capaz de, pela faculdade de julgare atraves do gosto , unir os dominios da natureza e da liberdade pelo principio da finalidade da erie. 7. Este principio da finalidade da erie "mesmo que n80 tenha nenhum campo onde possa exercer seu dominio, pode entretanto ter algum terreno, e neste uma tal constituicao que somente esse principio possa ter valor", da mesma forma que 0 principio da finalidade da natureza. 8. Por fim, nossa conclusao e de que na esteira de Kant ( por sua influencia direta, indireta ou reflexa) e mesmo sem possivelmente terem tido esta lntencao, os artistas abstracionistas possibilitaram 0 reconhecimento do principio da finalidade da erie. que vai se colocar ao lade do principio da finalidade da natureza, como este apontado pela faculdade de julgar, principio este que tarnbern nao produz qualquer conhecimento ( nem te6rico nem pratico) nem se constitui em qualquer acrescirno a filosofia transcendental enquanto doutrina objetiva, servindo apenas de elemento de ligay80 entre as outras duas faculdades de conhecer (Entendimento e Raz30); e que vai desempenhar identico papel: 0 de principio regulador da faculdade de conhecer, tendo por instrumento a Liberdade.

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N;OTAS

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, Premiere Introduction, I, XX, 197, "a possibilidade das coisas partir das leis da natureza difere essencialmente quanto a seus principios da possibilidade das coisas partir das leis da Iiberda足 de". 2

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Introduction, II, V 174, "Os concenos, na medida em Que silo relacionados com os objetos. sem

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considerar se um conhecimento a possivel ou nao, tem seu campo, que apenas a determinado de acordo com a rela<;iio que seu objeto tem com a nossa faculdade de conhecer em geral. A parte deste campo no qual a para nos possivel um conhecimento a um territorio (territorium) para esses conceitos e para a faculdade de conhecer necessaria a esse efeno. A parte do territono sobre a qual esses conceitos sao legisladores a 0 dominic (ditio) desses conceitos e das faculdades de conhecimento que Ihes convern. Os conceitos da experiencia tern tarnoern seu terrnario na natu­ reza, como conjunto de todos os objetos dos sentidos, mas nao tem um dominio (eles tllm somen­ te uma morada (dorniciliurn): isto porque se eles sao certamente produzidos de uma forma legal, nao sao em decorrencia legisladores, e as regras sobre eles fundadas sao empiricas, portanto contingentes." (esta passagem nao constava da primeira Introdul;iio). 3

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Premiere Introduction,V, XX, 211, "Podemos encarar a faculdade de julgar seja como um simples poder de refletir, a partir de um certo principio, sobre uma dada representa<;iio, com vistas a ootencao de um conceito possivel, seja como um poder de determinar um concejto que esteja no fundamento por meio de uma dada representacaoempfrica. No primeiro caso, trata-se da faculda­ de de julgar reflexionante, e no segundo caso da faculdade de julgar determinate." Introduction, IV, V 179, "Se 0 universal (a regra, 0 principio, a lei) a dado, entao a faculdade de julgar que subsume 0 particular sob 0 universal, a determinante. (a a mesma coisa quando, como faculdade de julgar transcendental, ela indica a priori as condtcoesem conformidade com as quais apenas podemos subsumir sob este universal). Mas se apenas 0 particular a dado, para 0 qual a faculdade de julgar deve encontrar 0 universal, entao a faculdade de julgar a simplesmente reflexionante". Premiere Introduction, VIII, XX, 222. "....Desde multo tempo temos 0 habito de chamar estetlco, isto a, sensivel, um modo de representacaoque quer dizer igualmente que entendemos por ele a relacao de uma representacao nao ao poder de conhecer, mas ao sentimento de prazer e de desprazer'.

• XX, 221, "porque 0 termo estetica significa entao que a forma da sensibilidade (a maneira pela qualo sUjenoa afetado) adere necessarlamentea uma tal representacao,e que em conseqiiAncia esta forma a lnevitavelmente transferida ao objeto (mas simplesmente como fen6meno". 7

"Portanto um julgamento estetico a aquele cujo fundamento de determina<;iio encontra-se em uma sensacao que esta ligada de forma imediata ao sentimento de prazer e de desprazer."

• Introduction,VII, V, 190. "Se 0 prazer esta Iigado a simples apreensao (apprehensio) da forma de um objeto da intui<;iio, sem rela<;iio desta com um conceito em vista de um determinado conheci­ mento, entao a representacao por este meio nao se relaciona com 0 objeto, mas apenas com 0 sujeito: e 0 prazer nao pode exprimir nada mais que a conformidade desse objeto com as faculda­ des de conhecer que estao em jogo na faculdade de julgar reflexionante, e nessa mesma medida, existe portanto apenas uma finalidade subjetiva formal do objeto. Porque esta apreensao das formas na imagina<;ao nao pode jamais acontecer sem que a faculdade de julgar reflexionante, mesmo sem mtencao, nao as compare ao menos com seu poder de relacionar as intui<;6es aos conceitos. Ou se, nesta cornparacao, a imagina<;ao (como faculdade das intui<;6es a prion) atra­ vas de uma dada representacao se pOe de acordo nao intencionalmente com 0 entendimento, e se por este meio a suscltado um sentimento de prazer, entao 0 objeto deve ser a seguir conside­ rado como final para a faculdade de julgar reflexionante. Um tal julgamento a um julgamento estetlco sobre a finalidade do objeto, que nao se fundamenta em nenhum concelto existente do objeto, e nao fornece nenhum concejto do objeto." 9

A 320, "Uma percepr;§o que se refere simplesmente ao sujeito, como modifica<;lio do seu estado, sensar;§o (sensatio)."

a

a

Se consideramos que a razao do prazer ligado representacao do objeto a a forma deste ( e nao a parte material de sua representacao enquanto sensacao) na simples reflexao sobre esta forma (sem visar a obter um conceito deste objeto) , este prazer a igualmente julgado como necessariamente ligado a representacao desse objeto, nao apenas pelo sujejto que apreende esta forma, mas tarnbem em geral para todo sujeito que julga. Assim, 0 objeto a chamado belo: e o poder de julgar gra<;as a um tal prazer (e portanto de modo universalmente valido) chama-se gosto."

10 "

t

Preface, V, 170.

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Premiere Introduction,XI, XX, 244. "...a critica do gosto, que sem isto apenas serve para melhorar

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ou firmar 0 pr6prio gosto, abre, se a tratarmos numa inten~o transcendental, na medida em que ela preenche uma lacuna no sistema dos nossos poderes de conhecer, abre, digo, uma perspec­ tiva muilo importante, e ao que me parece multo promissora. sobre um sistema integral de todas as faculdades do espirito, na medida em que, na sua oesnnacao. elas nao sao apenas relaciona­ das com 0 sensivel, mas tarnbern com 0 suprasensivel, sem que desloquemos por este motivo os lim~es que uma critica inflexivel assinalou para este ultimo uso." Mas se OS fundamentos de deterrninacao segundo 0 conceito de liberdade ( e da regra pratica que ele ccntem) nao sao mesmo comprovados na natureza, e se 0 sensivel nao pode determinar o suprasensivel no suje~o, 0 inverso e entretanto posslvel (certamente que nlio no que diz respei­ to ao conhecimento da natureza, mas enlretanto no que diz respeito as consequenclas do primei­ ro sobre esta linima) e jli esta contido no conceao de uma causalidade por liberdade, cujo efe~o deve ocorrer no mundo de acordo com suas leis formals, se bem que a palavra causa, utilizada a proposito do suprasensivel, significa somsnte 0 fundamento que deve determinar a causalidade das coisas da natureza com vistas a um efe~o, de acordo com suas pr6prias leis naturais, mas em harmonia contudo com 0 principio formal das leis da razao, do que nao podernos certamente percebera possibilidade,se bem que possamos refutarsuficientementea obje~o de uma pretensa contradicao que at se encontraria."

'3 "

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"0 efeito segundo 0 conceito de Iiberdade e 0 objetivo final que tem 0 dever de existir ( ou cu]o renomsno tem 0 dever de existir no mundo sensivel), e para que se fa98 a condh,ao de possibili­ dade e pressuposta na natureza (do sujeito como ser sensivel, isto e. enquanto homem). ver KANT (3:A312-B377) Introduction, II, V, 175. "Existe portanto para 0 conjunto da nossa faculdade de conhecer um cam­ po i1imitado, mas igualmente inacessivel, que e 0 campo do supra-sensivel, no qual nlio encontra­ mos para n6s nenhum terreno, e portantosobre 0 qual nao podemos ter um dominio com vistas ao conhecimento te6rico, nem para os conceitos do entendimento, nem para aqueles da razao: e um campo que devemos ocupar com Ideias tanto para 0 usa teonco quanta para 0 usa pratlco da razao, Idelas as quais nao podernosencontrar,em rela~o as leis saidas do conceito da Iiberdade, outra realidade que nlio seja pranca, pela qual nosso conhecimento te6rico nlio se eslende minimamente ao supra-sensivel". V, 196 (nota de rodape). "A reslstsncia ou a prornocao nlio e entre a natureza ou a Iiberdade, mas entre a primelra como fenomeno e os efeitos da segunda como fenomeno no mundo sensivel; e mesmo a causalidade da liberdade ( da razao pura e pratica ) e a causalidade de uma causa natural subordinada Iiberdade ( aquela do sujeito considerado enquanto homem e em seguida enquanto fenomeno)."

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1B

Texto escrito em 1914, para urna conrerenctaem Colonia, naAlemanha, mas nao pronunciada, e publicado por EICHENER, J., in Wassily Kandinsky una Gabrielle Manter, Bruckmann, Munique, 1957; publicado em portuques in Do espiritual na Arte.

" (publicado originalmente como "de nieuwe beelding in de schilderkunst", na revista De 5tijl (Amsterdam) I, 1919)traducao para 0 ingllis de Michel Seuphor.in HERSCHEL B. Chipp, Theories of Modern Art. "Aarte tomar-se-a 0 produlo de uma outra dualidade no homem: 0 produto de uma exteriorldade cultivada e uma interioridade profunda e mais consciente. Como uma pura repre­ sentacao da mente humana, a arte expresser-se-a ela propria esteucarnente pUrificada, 0 que significa dizer, de forma abstrata.O artista verdadeiramente moderno sabe que a abstracao e uma ernecaoda beleza; ele e consciente do fato de que a ernocaoda beleza e algo c6smico, universal. Este reconhecimento consciente tem como seu corol8rio um plasticismo abstrato, pelo qual 0 homem adere s6mente ao que universal."

e

REFER~NCIASf1i3il~L10GRAFICAS 01. KANDINSKI, Wassily, Do espiritual na Arte. Sao Paulo: Martins Fontes, 1990.

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02. KANT, I. Critique de la Faculte de Juger. Paris: Editions Gallimard, 1985. 03.

Critica da Razao Pura (KRV). Lisboa: Fundacao Calouste Gulbenkian, 1989.

04 MALEVICH, K. De Cezanne au suprematisme. Lousanne: Editions I'age d'homme, sId. 05. MONDRIAN, Piet. Natural Reality and Abstract Reality. California: University of California Press, 1968. 06. SCHERRINGHAM, Marc. Introduction Ii la Philosophie Esthetique. Paris: Payot, 1992.

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Epicuro e a morte como perda da subjetividade Markus Figueira da Silva Departamento de Filosofia da UFRN

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"A morte nso jamais uma experienciÂŤ que se oferece a um particular, mas somente um acontecimento ao qual nos podemos essistir (Pesce, 1974, p.61)

As renexoes epicureas sobre 0 'modo de ser' do soph6s indicam urn conjunto de preceitos a serem seguidos por todos 05 que buscam uma existencla serena, livre dos tormentos que cornu mente assolam as almas dos homens, isto e, daqueles que acatam, sem mais, opinioes vazias de sentido propagadas nas crencas populares e se deixam afetar profundamente por elas. Epicuro se insurge sobretudo contra 0 sentido de certas crencas que projetam para alern da vida 0 sentido de viver, ou contra aqueles que constroem "causas imaqinarias'", que sustentam a hlpotese de realizacao de uma 'outra vida' apos a morte. Estas crenc;as ja existiam M muito antes do aparecimento de Epicuro e continua ram a vigorar ate hoje como fundamento de muitas religioes. Entretanto, paralelamente aos cultos da "morte" e da "reencarnacao", outros pensadores tentaram esvaziar 0 sentido de toda e qualquer proposta que tivesse por meta erguer a partir da morte urn "projeto de outra vida". Talvez tenha sido Epicuro 0 primeiro a formular em proposicoes, que a morte nao deva ser urn problema para 0 homem, enquanto ete vive e tern uma clara cornpreensao do limite desta vida. Dito de outro modo, a morte nao suficientemente consistente para ser pensada exaustivamente pela Filosofia. 0 motivo de tais reflexoes e que 05 homens em geral tern com a morte uma relacao de temor; este temor e fonte de tormentos que adoecem a alma e impedem-na de obter 0 equilibrio necessario a uma vida feliz. Portanto, se a filosofia tern por finalidade alcanc;ar a ataraxia, isto e, a

e

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imperturbabilidade da alma, e a preocupacao com a morte gera perturbacao.loqc tal preocupacao nao deve ser objeto da filosofia. Mas 0 que pode calar a voz desse "demonic" e livrar de uma vez os homens do temor da morte? Toda a arqurnentacao epicurea e extremamente coerente com os principios da sua phisiologia e suficiente para demonstrar que nao M necessidade de se temer a morte, nem tampouco de se conjecturar acerca de uma vida ap6s a morte. A leitura da Carta a Meneceu revela que "nao ha nada a temer na morte". Algumas rnaxlmas epicuristas preservadas tarnbern por Di6genes de Laertios no livro X da obra Vida e Doutrina dos Fil6sofos lIustres, revelam 0 esforco de Epicuro em esclarecer que nao ha sentido em temer a morte. E, finalmente, Di6genes de Oenoanda imprimiu no muro de sua cidade 0 famoso tetrapharmakon, composto de quatro ensinamentos dos quais 0 segundo nos comunica que nao M nada a temer quanto morte. De algum modo deve-se reconhecer 0 empenho de Epicuro em querer curar a alma daquilo que considerava em sua epoca uma das principais molestias - a crenca segundo a qual a morte deva ser temida. Para ele, 0 decisivo era pirificar a alma de temores

a

vaos. Procederemos a seguir a analise dos panos 124-127 da Carta a Meneceu, nos quais torna-se evidente a partir de uma arqumentacao consistente que 0 te.nor da morte sem sentido, e que portanto a morte nao um problema. 0 encaminhamento dado por Epicuro nos sugere que a filosofia deve se ater vida; ou melhor: realizacao da vida. No passe 124, esta escrito:

e

e

a

a

"Acostuma-te a pensar que a morte nada e em rela(}so a nos. Efetivamente, todos os bens e males estso na sensa(}so, e a morte e priva(}so das sensa(}oes. Logo, 0 conhecimento correto de que a morte nada e para nos toma fluivel a mortalidade da vida, nso por atribuir a esta uma dura(}so ilimitada, mas por eliminar 0 desejo de imortalidade". (D.L., X, 124 - 125)

Para uma melhor cornpreensao do teor desta proposlcao decidiu足 se por dividi-Ia em quatro partes, segundo a ordem do texto, que apresenta em primeiro lugar a setenca: "Habitua-te a pensar que morte nada (}SO a nos".

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e em rela足

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"Synethize de en toi nomizein meden pros hemas einai ton tneneton".

Ha entre os comentadores e tradutores dos textos de Epicuro uma longa discussao sobre a melhor traducao e sentido dessa atlrmacao", entretanto, considera-se aqui mais conveniente a de Marcel Conche", que assinala: "habitua-te a pensar que a morte nada e em relacao a n6s (Ia mort n'est rien par rapport a nous), por enfatizar 0 sentido que a morte pode ter em relacao a nos, ou ainda, que a morte nao nos concerne em nada. Epicuro fundamenta sua afirmacao na identificacao entre viver e sentir; ou seja: se morrer significa nao rnais sentir, entao nenhuma vida sobrevern morte. Com relacao a isto, as proposlcoes acerca da physis, contidas na Carta de Herodoto dao conslstencia a esta anrmacao por explicitarem que: a alma (psyche), ou aquilo que movimenta 0 corpo e permite que ele tenha sensacoes, e corporea; que com 0 desfalecimento deixa de existir como (somaros) e tem os seus atornos desagregados. Epicuro desenvolve nas partes subsequentes a arqurnentacao que sustenta sua proposicao. Na primeira delas ele sintetiza 0 que seria a natureza da sensibilidade:

a

"... Efetivamente, todos os bens e males estao na sensayao, e a motte privayao das sensa足 yoes ... "

e

"... Epei pan agathon kai kakon en aisthesei, steresis de estin aistheseos 10thanatos ..."

A sensibilidade existe na interdependencia entre corpo e alma. Pode-se dizer que a sensibilidade so e possivel num movimento que envolve um pathos e um efeito psiquico, ou seja, as sensacoes podem ser fisicas mas tern repercussoes na alma, que atraves de irnpressoes (prolepsis) produzem uma memoria afetiva. 0 que resulta deste processo de constituicao das sensacoes sao dois estados antaqonicos: o prazer (hedone) e a dor (algos e IYpe). Assim, expoe-se 0 senti do de ldentitlcacao do prazer com todo bem e da dor com todo 0 mal. 0 sentido da vida so pode ser expresso a partir das afeccoes geradoras das sensacoes (aisthesis). A busca do prazer e ao mesmo tempo 'sentido para a vida' e 'medida de ser', ou de physis. A compreensao lucida da relacao entre corpo (Sarkos) e alma (psyche), na medida em que eles produzem sensacoes que dao sentido ou nocao (para/de) vida, evidencia um todo que e 0 homem - e a natureza de sua realizacao, Toda e qualquer relacao entre homem e mundo so pode ser sensitiva, porque se parte do presuposto segundo 0 qual 0 homem

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so e na medida em que sente. A ausencia de qualquer sensacao significa morte. Nao M nada a dizer sobre ela. Nada se expressa com sentido fora da sensacao, Nao se pode projetar a vida para alem dos limites da sensibilidade. Tudo isso se complementa perfeitamente segundo um raciocinio (Iogism6s) que identifica a realizacao da vida ao exercicio fisico e animico da sensibilidade. A morte e, portanto, privacao das sensacoes: o que vale dizer que a morte nao e nem bem nem mal, porque bem e mal so podem ser pensados com relacao aquele que sente e traduz para si 0 efeito que tal sensacao produz: praze, ou dor, isto e, bem ou mal. "...Logo, 0 conhecimento cotreto de que a motte nada em relar;ao a nos toma f1uivel a morlali足 dade da vida ..."

e

"... H6then gnosis orthe tou methen einai pros hemas ton thanaton apolauston poiei to tes zoes thnet6n ... II

o

e

modo pelo qual se pensa a vida sob todos os aspectos busca de realizacao. Todo 0 sentido da vida e posta na vida e nao ha sentido em pensar em alga mais "fora da vida". 0 limite nao temido, ao contrario, e compreendido do mesmo modo como e compreendida a pensa-la como um finitude. Pensar a morte como limite da vida acontecimento natural e necessarto. E preciso que se pense na morte com tranquilidade. Neste sentido, nao tornar a morte em algo que deva ser temido projetar todos os "anseios" para a pr6pria vida, isto e, viver intensamente e de modo sereno. Alimentar a vida de modo a realiza-la livre de qualquer construcao irnaqinaria que possa ou venha a nega-Ia. Aqui,viver de acordo com a natureza, quer significar cornpreende-Ia na medida em que se busque reallza-Ia, Pensar a vida e vive-la torna-se uma so coisa, fluivel e tranquila, porque suficiente, isto e, independente de fabulayoes e, sobretudo, das crencas em tais fabulacoes. Curiosamente, rnantem-se aqui,num sentido diverso, a maxima socratica, reeditada por Montaigne, segundo a qual "filosofar apren足 der a morrer". 0 sentido e outro, bem diferente das projecoes de uma outra vida para alern desta vida. 0 sentido exato e 0 de uma vida bem vivida; isto e, intensamente vivida, segundo 0 enteric de boa reahzacao desta vida e do criterio do bem ou do prazer associado a phr6nesis. Mais uma vez, a base "physio/6gica" sobre a qual se ergue toda a arqurnentacao que ora se expoe e a cornpreensao de psyche como um corpo (composto de atornos qualitativamente diferentes dos atornos

e

e

e

e

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que constituem 0 sark6s). A cornpreensao de que a alma se desagrega com a morte do individuo causa no homem urn certo desprendimento, ou seja, leva a uma valorizacao maxima da vida. A vida e plenitude sob todos os aspectos. A filosofia e urn exercicio que torna a vida a todo momenta carregada de sentido e de vigor. 0 apagar da chama e tao inevitavel quanta 0 calor que dela emana. E por isso mesmo nao precisa ser motivo de lnquietacao ou temor. A morte e 0 ultimo acontecimento da vida, so que dele nao chegamos a tomar conhecimento. Ela acontece como ausencia de sentidos. Ela pode ser pensada como 0 vazio pode ser pensado, mas em si mesma e para nos, ela nada pode significar. "... Nao por atribuir a esta uma dura9ao ilimitada, mas por eliminar 0 desejo de imorlalidade ..." "Ouk eoeiron prostitheisa chor6non, alia ton tes athanasias aphelomtme p6thon".

A questao ensejada por Epicuro sobre a finalidade do conhecimento acerca da morte expoe uma medida para 0 conhecer. Aqui conhecer e compreender 0 limite do que pode ser dito e do que pode ser imaginado. 0 sabio busca 0 conhecimento daquilo que se Ihe apresenta como passivel de ser pensado a partir dos elementos da sensibilidade. As sensacoes (aisthesis) inalguram 0 processo de conhecimento que e complementado pelas projecoes do pensamento (epibole tes dianoias) porern interessa sobretudo compreender os limites de tais projecoes, para que nao ultrapassem as raias da coe足 rencla, cujo referencial e a morte enquanto fato, acontecimento,cujo conteudo nao existe, e lnsondavel. Assim, pensar a morte pode significar estabelecer uma medida de poder para este pensar. 0 pensamento e narrativo (descricao do fato) ou imaqinario: em ambos os casos ele se da sem qualquer expe足 riencla do acontecimento-morte. Logo, 0 conteudo do pensamento narrativo limita-se a constatacao do fate e da sua necessidade. A morte esta subsumida num processo maior - e este sim experimentado - que e a vida, como perda de sensibilidade, sem qualquer possibilidade de consciencla do que ja nao e. 0 pensamento imaginante quase sempre ultrapassa os limites da expertencia, configurando urn 'novo universo', podendo ate cornpreende-lo como a continuacao imaqinaria que se expoe a partir do ocaso da vida. Este tipo de "conforto" traz por vezes urn desconforto e uma intranquilidade, que seriam 0 temivel desejo de imortalidade. Mas 0 que seria este desejo, aos olhos de Epicuro? Temor.

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A excecao do vazio (kenon) tudo 0 que exlste, alem de verdadei­ ro, e sensivel. A morte e perda de sensibilidade, portanto, ela nao existe substancialmente enquanto objeto de pensamento. Entao por­ que torna-la (dota-la) de uma substancia incerta e lrnaqinaria, que es­ tranhamente se reveste de cunho religioso, onde 0 crer esta associ­ ado ao sentir? E ainda, par que sofrer por antecipacao? Epicuro diz que 0 sofrimento com a perspectiva da morte uma antecipacao, ou seja, ele reside na espera do fato. Le-se no pane 125:

e

"~ insensato, portanto, quem diz que teme a morte nao porque sua presem;a pode causar sofrimento, mas porque sua perspectiva faz so­ frer. Aquilo que nao pertuba quando esta pre­ sente causa somente um sofrimento infundado quando esperado".

a

"Hoste meteios ho lagon dedianai ton ttieneton ouch h6ti Iypasei par6n, all'hOtiIypei mellon. Ho gar paron ouk enochlei, prosdok6menon kenos Iypei".

E na perspectiva da morte que se projeta 0 irnaqlnario sob a forma de crencas ou como chamava Epicuro 'opinloes vazias' (ken6n d6xat) 0 sofrer por antecipacao quer dizer exatamente negar a possi­ bilidade de tornar a vida em algo prazeroso. Isto nao coerente com a natureza das coisas, pois 0 sabio "nao renuncia vida nem teme a cessacao da vida". Ele parece ter a nitida cornpreensao de que a rnorte para muitos apenas um nome, mas um nome temivel. Por que? Se para 0 sable, ou aquele que medita sobre a bela vida, a na­ turalidade da morte implica numa cornpreensao fisica deste aconte­ cimento? Esta cornpreensao engendra tranquilidade e nao temor ou fantasia. Ao fil6sofo basta a imagem da rnorte enquanto momento/ acontecimento final da vida. Esta imagem s6 e possivel mediante uma certa "projecao do pensamento" (epibole tes dianoias), mas nao pode ser caracterizada em momenta algum como objeto. Serve como nustracao para as proposlcoes eplcureas 0 comen­ tano de Feuerbach (Sammtliche Werke, X, p. 84):

a

e

e

"A morte nao a nada (nela mesma), ela nao a nem absoluta, nem positiva e nao tem realidade seneo na imagina~ao do homem".

Na perspectiva do pensamento de Epicuro a morte permanece uma questao aberta e insondavel, porque de alguma maneira ele

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entende que quem busca tecer uma sabedoria de vida, nao se deixa seduzir por verdades imaqinarias.

REFER~NCIA3:'AlliLIOGRAFICAS 01. PESCE, D. Saggio Su Epicuro, Sari, Laterza, 1974, p. 61 02. NIETZSCHE, F. Crepusculo do idolos. Sao Paulo, Hermus, 1982, p.23 03. Para um estudo completo sobre as questc5es filos6ficas implicadas nesta traducao, ver Jean Salem - Comentaire de la lettre d'Epicure Mimecee, in Revue Philosophique, n 3,1993, pp. 513-549.

a

04. CONCHE, M. Epicure: Lettres et Maximes, Editions de Megare, Villers足 sur-mer, 1977.

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Ontologia e estetlca: uma filosofia do tempo poetico Mirian de Carvalho Departamento de Filosofia da UFRJ

A tessitura do instante poetico outro nada.

e um cosmos entre 0 nada e

1 lntroducao No desenvolvimento do nosso projeto anterior, cujo objetivo era estudar, na Poesia, a transitividade da imagem a linguagem no plano ontol6gico, recorremos a leitura de Gaston Bachelard com 0 fito de caracterizar as artlculacoes fundantes das imagens do tempo na arte poetica. Concluimos, da leitura de tais obras, que 0 tempo e uma questao baslca no contexto da filosofia desse autor, vindo a constituir uma questao estetica em aberto. Em aberto, em virtude das categorias esteticas criadas por Bachelard e de uma metodologia que suscita "Ieituras"filos6ficas novas e inusitadas das vartas expressoes artisticas. Tais "Ieituras" trazem novas questoes ao campo da estetica conternporanea. Nessa dinamlca, a partir do processo de fruic;:ao, a Poesia e a Arte nos conduzem a descoberta de instanclas estetlco-fllosoflcas renovadoras da pr6pria metodologia em curso. Ao trazer ao campo da Estetica novas categorias advindas desse rnetodo, suas ideias nos dao subsldios para "pensar' filosoficamente a arte, no plano ontol6gico, atraves da perpectiva de constituicao temporal do objeto estetico, segundo nossas pesquisas.

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A categoria basica da estetica bachelardiana - 0 instante poetlco no ensaio "Instante poetlco e Instante Metafisico" (1938).0 surgimento de tal categoria decorre do desdobramento de questoes concernentes ao tempo incluidas em obras anteriores como: A intui~ao do Instante ( 1932) e A dialetica da dura~ao ( 1936 ), nas quais Bachelard desenvolve suas teses relativas instantaneidade e descontinuidade temporais. Nessas duas obras, alern de fundamentar suas teses relativas instantaneidade e descontinuidade temporals, ele estabelece a partir dal uma polernlca relativa ao pensamento de Henri Bergson. A duree bergsoniana Bachelard contra poe a nocao de descon­ tinuidade temporal. Para Bachelard 0 tempo e instanteneidade, te­ rnatica e problematica estudadas primeiramente na obra. A intui~ao do instante, na qual Bachelard afirma:

- e estudada

a

a

a

a

e

...0 tempo uma realidade fechada sobre 0 ins­ tante e interrompida entre dois nadas. 0 tempo podera renascer, mas necesseno primeiramen­ te que ele motte. Ele nao podera transportar seu ser de um instante para outro instante para dai fazer uma duracao. 1

e

A questao da instantaneidade temporal foi pouco depois traba­ Ihada, sob outro aspecto, na obra A dialetica da dura~ao. Nessa obra Bachelard estuda os ritmos temporais. Mostra que a continuidade ilus6ria e que nos dada atraves de retomadas pertinentes percepcao, ao pensamento, e aos atos de atencao, Para Bachelard, nossas experiencias do tempo do pensar e do tempo do mundo ocorrem num tecido temporal. Esse tecido temporal possui uma espessura que percebemos como continua em virtude de ser ela - a espessura temporal- composta pela aglutinac;aode sistemas de instantes. Bachelard mostra entao de que modo esses sistemas se agrupam em retomadas, em recorrencias fundantes dos diversos sistemas ritmicos que compoern os varies tempos superpostos. Cada tempo se define, assim, em meio as superposlcoes temporais, por uma dialenca:

e

e

a

Determinamos 0 principio temporal fundamen­ tal da ritmica generalizada: e a instituil}80 de uma forma. Um cereter rttmico se ele se restitui. Ele dura entao atraves de uma dialetica essecial. 2

e

Em A dlaletica da duracao, Bachelard analisa,com base no ritmo concebido como sistema de instantes, questoes pertinentes Musica

a

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e a Poesia. Dois anos depois incluira no plano da Estetica a nocao de instante poetico. Definidas em sua filosofia as categorias temporais baslcas: a instantaneidade, a descontinuidade e 0 ritmo, 0 fil6sofo as direciona, como mencionamos, ao plano da Poesia. No ensaio "Instante Poetlco e Instante Metafisico" elabora a noyllo de instante poetico, nocao que integra outra categoria temporal ­ categoria fundamentalmente estetlca - aquelas anteriormente elaboradas no contexte de seu pensamento filos6fico: trata-se da verticalidade.

20 tempo na poesia

o instante poettco integra 0 tempo vertical.

0 tempo da poesia, "0 poeta destr6i a

diz Bachelard, e vertical. Para construi-Io continuidade simples do tempo encadeado".' No instante poetico as sonoridades vazias sao abandonadas. 0 poeta fixa no tempo uma imagistica detectada pelo seu estado de animo. Faz altear ou descer uma imagem na verticalidade temporal ­ no tempo da poesia. Nesse momento 0 poeta capta simultaneidades imaglsticas, simultaneidades ordenadas no instante poetlco. Diz Bachelard: Em todo poema e possivel entao encontrar os elementos de um tempo detido, de um tempo que nao segue a medida, de um tempo que cha­ maremos de vertical para distingui-Io do tempo comum, que (age horizontalmente com a agua do rio, com 0 vento que pesse:'

No tempo vertical, observamos, as imagens poetlcas se deslocam em movimentos descencionais e ascencionais dando uma nova ordem temporal linguagem e ao mundo. As imagens poeticas tern, segundo Bachelard, uma dlaletlca pr6pria - dialetica das correspondencias, dialenca da ambiguidade ­ que se caracteriza pelo rom pimento dos quadros sociais, fenomenais e vitais da duracao. Para Bachelard, 0 tempo e uma ordem. No plano da Poesia, e uma ordenacao de simultaneidades - simultaneidades imagisticas ­ ordenacao inusitada, no trabalho de cada poeta e na singularidade de cada obra de per si. Assim sendo, a estenca bachelardiana nao constitui uma cateqorlzacao clonclusiva. Ela se formula a partir da experiencla

a

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estetica, por isso a "invencao" metodol6gica e vital no contexte de tal Estetica. Seu metoda toi estudado exautivamente por Vicent Therrien na obra A revolucao de Gaston Bachelard em critica literaria. Therrien aponta nessa metodologia oito fases que se aglutinam e constituem urn corpo te6rico, 0 que torna sobretudo instigante a possibilidade de uma "cornpreensao" da Poesia e da Arte atraves de tal abordagem. Esse enfoque requer uma "critica onirica'", uma descoberta que renova a Estetica retirando-a de qualquer perspectiva de estaqnacao quanta objetividade e subjetividade implicitas aos formalismos esteticos, Bachelard nos aponta os caminha de uma estetica ontol6gica; "ontoqenetica'": de acordo com Therrien. Em A poetiCB do espBfJo, ao definir 0 seu objeto, Bachelard refere­ se ao estudo da imagem na sua ontologia direta - ontologia direta da imagem - segundo Bachelard, e ontologia direta do tempo poetico, de acordo com nossas observacoes.

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3 A imagem e 0 tempo na poesia A nocao bachelardiana de instante poetlco compreende 0 tempo na poesia, tal como foi mencionado na introducao, como sistema de

simultaneidades ordenadas. Fundada na expertencla estetlca, a nocao de instante poetlco traz ao campo da Estetica uma questao de grande complexidade - a questao do metodo. metodo bachelardiano, de acordo com a nossa leitura, consiste numa apreesao do sentido da imagem - e, pois, como observamos, uma questao em aberto no plano da Estetica, Tal rnetodo, ao retirar a obra do contexte hist6rico, inscreve 0 "fruidor" nos movimentos ima­ gisticos da obra, e tern como meta 0 acolhimento da imagem poetica por parte do "leiter". A imagem, acrescentara mais tarde Bachelard, em A poetica do espa~o ( 1957 ), tern repercussao. Desperta, no leitor, novas ima­ gens: "trata-se, com efeito, de determinar, pela repercussao de uma s6 imagem poetica, urn verdadeiro despertar da criacao poetlca na alma do leiter" Essa imsgetlca, observamos, em ascese ou em descese na ver­ ticalidade temporal, soltdarla, Atinge 0 outro atraves de uma causa­ lidade formal: "val direto, vertical mente, no tempo das formas e das pessoas"."

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Na mesma obra, A poetica do

espa~o,

Bachelard dira entao:

t= preciso estar presente, presente aimagem no minuto da imagem: se houver uma fi/osofia da poesia, essa fi/osofia deve nascer e renascer no momento em que surgir um verso dominante, na adesao total a ume imgem iso/ada, no extase da novidade da imagem. 9 Com base no fil6sofo, podemos afirmar que a imagem eo fulcro de ernerqencia poetlca de qualquer expressao arUstica, ela surge no tempo poetlco ao ser a obra acolhida esteticamente. instante poetico realiza-se enquanto simultaneidade, enquanto multiplicidade de eventos imagisticos. Trata-se de urn "pluralismo de eventos contradit6rios"10 reunidos numa causalidade formal da qual emerge a imagem poetica. Esse tempo tern direyaes e sentidos pr6prios, nao segue 0 curso do tempo encadeado. Nele integra-se a arnbivalencia das imagens poeticas. tempo poetico, segundo Bachelard, e vertical. Seus movi­ mentos seguem os movimentos do sonho. Concretiza-se na surpresa do devaneio - do sonhar acordado. Os movimentos as­ cendentes e descendentes que integram a causalidade poetica de­ terminam-se na obra formatada. 0 instante poetico segue 0 curso do devaneio. Para Bachelard, 0 devaneio, assim como 0 sonho, desarticula 0 tempo transitivo - 0 tempo do mundo e das coisas. A temporalidade, segundo Bachelard, constitui urn tecido - urn tecido temporal. Nela entrelacam-se varies tempos que cornpoern sistemas de instantes; de instantes desconUnuos. A duracao e ilus6ria, e uma rnetafora, Os tempos que cornpoern a duracao sao repletos de hachuras. Nao as percebemos porque cada urn deles, cada urn desses tempos, encobre as lacunas deixadas pelos demais tempos que compOem a espessura temporal. A atividade poetica advinda do devaneio, e concretizada na obra de arte, tern movimentos semelhantes aos do sonho. A atividade poe­ tica e as expressoes estetico-artlstlcas desarticulam os demais tem­ pos; determinam outra instancla temporal. 0 instante poetlco e 0 tempo de emerg6ncia da imagem poetica. "A poesia e uma metafisica instantanea'" . Nesta aflrrnacao Bachelard situa a seguinte idela: a poesia fixa, no seu instante unico, a visao c6smica das coisas e a inquietude de cada coisa - 0 universo e a alma. Funde-os imagisticamente:

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4 Concluaao Momento unico, momenta de uma simultaneidade fundamental, a Poesia explicita uma dialetica singular. Trata-se de uma dialetica da ambiguidade, dialenca das simultaneidades, das correspondencias. As equivalencias temporais na Poesia situam a infinitude e a finitude, a eternidade e a instantaneidade na mesma realidade temporal: 0 instante poetico. Nele 0 tempo detern-se em fuga, constumamos dizer. instante poetico elide a linearidade horizontal da prosa, do mun­ do e do discurso, e, atraves da dialetica das correspondenclas, ins­ taura semias novas - semias descursivas e nao discursivas - instaura siignificados e sentidos. A instantaneidade poetica cria uma Iingua­ gem nova, desvela imagens inusitadas inscritas, em altura e em pro­ fundidade, na sua tessitura vertical - na tessitura do instante poetico. Nesse sentido, segundo Bachelard, a pros6dia reune todas as formas do tempo encadeado, tais como 0 pensamento, as experiencias efetivas, os acontecimentos sociais. Observa 0 fil6sofo: "Mas todas as regras pros6dicas sao somente meios, velhos meios"", e completa:

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A meta e a verticalidade, a profundeza ou a altu­ ra; e 0 instante estabilizado no qual as simulta­ neidades, ordenando-se, provam que 0 instante poetico possui perpectiva meteiisice."

Perspectivas metaflsica esclarecemos, porque as simultaneida­ des ordenadassao urn instante do ser, do ser que se realiza, que emerge, e se detem na instantaneidade; por isso repetimos: 0 instante poetico detem-se em fuga. No instante poetico ha razao e paixao, Razao e paixao instanta­ neas. Razao e patxao dialetizadas. A poesia acolhe antlteses, antlteses dinamizadas a negar 0 tempo do mundo, a modificar 0 tempo da ma­ teria. A estenca bachelardiana, assim nos mostra Therrien, e uma "ontoqenese"!', lembramos. Ontoqenese lrnaqeuca e ontoqenese linguistica, observamos. "0 instante poetico" e uma relacao harmonica entre dois contraries?". De tal relacao, nos e dado inferir, emergem novos seres de imagem. Os seres de imagem advindos da instantaneidade poetlca resultam de uma simultaneidade excludente do tempo do mundo. Assim sendo, 0 instante poetlco e urn fulcro de experiencias Imaqeticas entrelayadas, localizadas verticalmente no tempo - no tempo singular da poesia.

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o tempo vertical, ao acolher imagens em ascese ou em descese, nega nao so os quadros fenomenais, sociais e vitais da curacao: ele desconhece, recusa tarnbern os nexos implicitos causalidade linear, horizontal. Na temporalidade vertical, a amblvalencia irredutivel antitese, o sirnultaneo irredutivel ao sucessivo:

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Pode-se verificar facilmente essa rela9則0 de antitese e de ambivalencia quando se deseja comungar com 0 poeta que, evidentemente, vive num unico instante os dois termos de suas anti足

teses." Afirma Bachelard que sejam eles termos opostos ou termos diferentes 0 segundo nao requisitado pelo primeiro. Nesse processo nao ha causalidade eficiente: "Os dois termos nascem juntos"." Temos observado, ao longo de nossas pesquisas, que a simultaneidade poetica no seu sentido mais amplo um fen6meno comum Poesia e Arte. Nesse contexto, observamos ainda que uma leitura das expressees artisticas fundada no pensamento de Bachelard inclui a analise da imagistica do espaco, do espaco apreendido na qualidade de topos poetlco. instante poetlco e 0 espaco poetlco, nessa linha de pesqui足 sa, demandam por sua vez uma analise da questao da imagem nos escritos de Bachelard. estudo dos principios de uma estetica bachelardiana funda-se numa abordagem conjunta do tempo, do espaco e da imagem en足 quanto categorias poeticas, mas 0 instante poetico a categoria basilar dessa estetica, por ser, na obra de arte, 0 momenta de ernerqencia do espaco elaborado pela imaginal;ao poetlca.

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NOTAS E REFER~Nf88S BIBLIOGRAFICAS , BACHELARD, Gaston. L'intuition de /'instant. 1.ed. Paris: Gonthier, 1932,p.13.

_ _ _ A dialetica da durac;lIo. Trad. Marcelo Coelho. t.ed., SAo Paulo: Atica, 1988. p.l17. =::-,..---:-:~O direito

de sonhar. Trad. Jose America Motta Pessanha e outros. 1.ed., SAo Paulo:

Difel, 1986, p.184. 4

Id. lb. p. 184.

5

Cf THERRIEN, Vicen!. La revolution de Gaston Bache/ard en critique litteraire. 1.ed., Paris: Klincksieck, 1970, p. 349.

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6

Cf. Id. lb. p. 134.

7

BACHE LARD. Gaston. A poeticÂŤ do especo. Trad. Antonio da Costa Leal e Lidia do Valle Santos Leal. t.ed., Rio de Janeiro: Eldorado. s.d, p.9.

_ _ _ 0 direito de sonner. Op. cit. p. 189. _ _ _ A poetica do espar;o. Op. cit. p. 5.

0 direito de sonhar. Op. cit. p. 185.

10 11

Id. lb. p. 183.

12

Id. lb. p. 184.

13

Id. lb. p. 184.

,. Ct. Ret. n 6. " BACHELARD, Gaston. 0 direito de sonhar. Op. cit. p. 184. 16

Id. lb. p. 184.

" Id. lb. p. 184.

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livro r da Metafisica de Arist6teles: ontologia*- a ciencla do Ser enquanto Ser Susana Amaral Vieira Departamento de Filosofia da UFRJ

R~MO

o objetivo do presente artigo e 0 de apontar para 0 modo em que se realiza a ciencia aristotelica do ser enquanto ser. Para isso e necessario esclarecer as nocees de "analogia" e "substancia", A autora nega a concepcao realista da substancia e pretende situar a questao dentro do universo semantlco e interpretativo da linguagem.

AB~CT The aim of the present article is to point out the way in which the science of being qua being is to be realize. For that it is necessary to explain the notions of "analogy"and "substance". The author refuses the realistic concept of the substance and intends to localize the question in the semantic and interpretative universe of language.

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A filosofia definida como 0 estudo do "ser enquanto ser". 0 que tal f6rmula significa 0 que trataremos neste texto. Ja de inlcio, a mera reflexao despreocupada acerca do seu significado nos fornece algumas pistas. A presence do termo 'enquanto' na f6rmula faz com que ela nao aponte para algo de determinado, senao para uma relacao:

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. Tal termo nao aparece na obra de Arist6teles. Segundo 0 Die. Tecnico de Filosofia de A. Lalande (Sao Paulo: Martins Fontes. 1993), este termo teria sido utilizado pela primeira vez em 1646 por J. Clauberg, Metaphysica, cap. I, 1-2. No Historisches WOrterbuch der Philosophie, no entanto, indi足 cado R. GIOckel (1547-1628), como tendo sido 0 autor, no seu Index philosophicum, da expressao,

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a filosofia uma ciencia que estuda os seres nao enquanto sao algo de determinado, entes maternatlcos, esteticos, etc., mas sim enquanto sao seres, l.e., enquanto existem. 0 'existir' que aqui est areferido nao a 0 existir corp6reo, l.e., material e determinado, como dizemos cor­ riqueiramente que algo existe porque tem vida e morre; 0 existir que est a em jogo aqui representa tudo aquilo do qual podemos fornecer predicados: de tudo 0 que podemos dizer que algo, podemos dizer que existe. E s6 podemos dizer que algo algo se podemos defini-Io. A c1asse dos nac-existentes pertence aquilo que nao a passivel de deflnicao. Nesse sentido existencla e realidade fisica parecem se con­ fundir, porque em ultima mstancla s6 podemos definir aquilo ao qual podemos atribuir qualidades, e s6 podemos atribuir qualidades a aquilo que vemos. Mas e no caso dos nurneros rnaternaticos e dos conceitos morais, por exemplo, como posso dizer que existem se nao podemos ve-los? A realidade cientifica, considerada mais real do que a sensivel, sera 0 objeto da preocupacao principal de Arist6teles. Porque 0 real sujeito a rnudancas constantes parece que toda a predicacao fica prejudicada: como podemos definir algo, e com isso determinar sua existencia, se ele sujeito as alteracoes temporais ou 6ticas? Uma arvore pode ser definida como algo que possui folhas verdes e amarelas, tudo depende da estacao de ana em que a obser­ vemos. E de acordo com a posicao do sujeito com relacao a luz, a cor de um objeto pode variar. Diante de tais impasses, Arist6teles, seguin­ do a tradic;;ao socratlco-platonlca, determinou que 0 universe da exis­ tencia e da definiyao esta melhor determinado no campo do saber cientifico; mais provavel uma definic;;ao ser verdadeira quando trata­ mos do predicado de uma classe de objeto, do que quando tratamos de um objeto particular. Deve-se salientar, no entanto, que Arist6teles nao partilhava da posicao cetica de Platao com relac;;ao ao papel da percepcao no conhecimento. Nos Analiticos Posteriores 11 , Arist6teles afirma que todo conhecimento intelectivo esta baseado em duas con­ dic;;oes previas: 1- a anrmacao de exlstencla e 11- 0 significado do termo utilizado. Todos os procedimentos podem ser indutivos ou dedutivos. No caso do argumento dlaletico dedutivo, 0 conhecimento previa exi­ gido e a aceltacao de uma premissa pelo interlocutor, ou no caso do argumento dlaletico indutivo, 0 conhecimento previo exigido e 0 parti­ cular ja conhecido. No primeiro caso 0 conhecimento previa e a acei­ tacao de um significado, e no segundo a aflrrnacao de exlstencia da coisa questionada. No caso do conhecimento cientifico a induc;;ao e a deducao ocorrem ao mesmo tempo. Pois nao basta saber 0 significado do

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axioma fundamental, previo conclusao, para saber se a premissa que afirma 0 axioma universal no particular e verdadeira. Neste caso e ainda preciso afirmar a exisiencie do particular, outro conhecimento previo (previo aqui tem 0 sentido nao de anterioridade, mas sim de condicao de inteligibilidade da conclusao), Esta segunda condicao do conhecimento demonstrativo ocorre simultaneamente afirmacao da conclusao: ela e a conflrmacao no particular do axioma previa universal. Ao se afirmar 0 universal no particular se esta atualizando 0 conhecimento universal e esta atualizacao e uma eXigencia irrevogavel para 0 seu conhecimento total. 0 conhecimento do universal s6 e conhecimento total na medida em que e atualizado no particular. Por exemplo, a conclusao "este trlanqulo que esta num semicirculo tem angulos iguais a dois retos", pressupoe a premissa universal "todo triangulo tem os angulos iguais a dois retos", e tambem pressupoe 0 conhecimento da figura que esta em questao "esta figura e um trial1gulo". Esta ultima premissa ocorre ao mesmo tempo que a conclusao: a conclusao opera a sintese da premissa universal geral com a premissa particular, cujo conhecimento se da no momenta da sintese, e nao e previamente, aqui entendido como 'anterioridade', ao conhecimento. Nessa ayao de sintese temos a conversao de um conhecimento universal em saber atualizado. Tal ayso que pressupoe tanto a deoucao quanta a inducao e fundamental para a garantia do processo do conhecimento. 0 elemento particular, "esta figura", fundamental para a cornpreensao da conclusao, nao pode advir de um conhecimento previo. No Menon de Platao encontramos 0 seguinte paradoxo. Como podemos chegar a conhecer algo que antes nao conheciamos. Se antes nao conheciamos 0 que procuramos, neo podemos saber, na verdade, 0 que procuramos, mas se, ao contrarlo, conhecemos 0 que procuramos, entao nao e necessario procurar conhecer. Todavia, se alquem tem como certa uma definiyso, por exemplo "toda diade e par", e for surpreendido por uma dlade que nao conhece, isso nao significa que a definicao que tinha como certa na realidade estava errada. Um sofista poderia refutar dizendo que, na verdade, estamos afirmando 0 conhecimento daquilo que nao conhecemos. Mas, na realidade, nao estamos na definiyao afirmando ainda a particularidade do objeto, para isso e preciso que 0 objeto particular seja apresentado. Um sofista poderia tentar responder 0 dilema respondendo que a definiyao da diade e verdadeira apenas para os casos em que ele conhece. Mas tal urrutacao transforma 0 conhecimento em conheci足 mento particular, e no conhecimento demonstrativo cientifico 0 que

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esta em jogo a corroboracao no particular de um conhecimento uni足 versal, valido para todos os casos. A solucao que Arist6teles apresen足 ta para a aporia de Menon e a de que, de fato, por um lado, n6s nao conhecemos 0 que procuramos conhecer, no caso do conhecimento demonstrativo cientifico, nao conhecemos todos os casos particulares aos quais se aplicam a premissa universal, mas, tambem, por outro lado, n6s nAo desconhecemos completamente isto que procuramos conhecer, porque partimos de sua defini9Ao universal. Por isso, nao absurdo afirmar que, isto que aprendemos, p. ex. "os angulos de tal triangulo inscrito num semicirculo sao iguais a dois retos", n6s de alguma forma ja sabiamos [por meio da defini980 geral "todo triangulo tem a soma dos angulos iguais a dois retosj, e que, por outro lado, isto que aprendemos nao conheciamos [nao sabiamos que a figura em questao era uma triangulo]. Conhecer em senti do absoluto, e saber aplicar 0 universal ao caso particular. Esta deterrninacao do conhecimento contraria por um lado a poslcao cetica plat6nica, segundo a qual nAo ha conhecimento atraves da percepcao, e, por outro lado, contra ria a poslcao relativista sofistica, segundo a qual s6 possivel haver conhecimento dos particulares. Assim como Arist6teles, por um lado, nao questiona a validade da percepcao, ele, por outro lado, nao questiona 0 principio plat6nico de que 0 conhecimento cientifico deve ser um conhecimento universal. Na base do conhecimento universal estao a defini9ao e 0 ser particular. Ambos estao reunidos na f6rmula 'ser enquanto ser', que significa substancia." A tarefa da filosofia elucidar esses dois principios elementares de todo conhecimento cientifico atraves do conceito de substancia. Dentro da questao ha, portanto, uma duplicidade essencial; por um lado, 0 principio em questao e cognitivo e IingOistico, enquanto, por outro lado, 0 principio e ontol6gico. Como pode se reaJizaruma investiqacao do ser enquanto ser? 0 primeiro problema que essa ciencia enfrenta esta no fato de 0 ser nao ser um genero. Toda ciencia incide, segundo Arist6teles, sobre um genero e analisa os atributos principais desse genero. No caso do ser isso parece, no entanto, nao ocorrer, ja que as varias coisas que cham amos de ser nao sao necessariamente especies de um mesmo genero. 0 fato e que a ciencia do ser enquanto ser uma ciencia diferente, que possui sua unidade garantida nao por um genero, mas por uma relacao de analogia. ser se diz de diversos modos e esses modos nAo sao generos de uma mesma especie. Por isso, nao se entende como ele possa ser objeto de uma ciencia. A condicao conhecida de toda ciencla que os

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diversosmodosde sedizeralgo sejam sinonimos, istoe, digam respeito a uma nocao, definic;:ao, identica, Os diversos sentidos do ser nao sao slnonimos. mas tampouco sao homonirnos, isto e, equivocos. A unidade dos diversos sentidos do ser e preservada porque, ainda que nao tenhamos aqui uma relacaode generoe especie, todos se referm, ou bern direta ou bern indiretamente, a uma natureza comum: a substancia. Ou gar monon ton kath 'him legomenon epistemes este theoresai mias alia kai ton pros mian legomenon physin, kai gar taOta tr6pon tina legontai kath'hen. Perlence, com efeito, a uma s6 ciencl conside­ rar nao apenas 0 que se diz segundo uma s6 coisa, mas temoem 0 que se diz com respeito a uma s6 natureza; pois tembem isto, de certo modo, se diz segundo uma s6 coisa.

o que se diz do ser?Primeiro, queele e uma substancia; segundo, que e uma qualidade da substancia, que e urn caminho em direc;:ao a substancla, que conserva a substancta, etc. 0 primeiro sentido e 0 sentido principal porquetodo 0 resto dependedeste. Assim, 0 primeiro sentido do ser e a substancia, e os outros sao tambern sentidos do ser, mas sao chamados, devido a sua relacao de subordinacao a substancia, de acidentes do ser.A definic;:ao mais usual da substancia e a que diz que ela e aquilo do que tudo se diz, mas que nao e ela mesma predicado de nada.Arist6teles chamaa relacaoexistente entre os diversos sentidos do ser com uma natureza comum de relacao anal6gica (pro;" e]n); e, como foi dito acima, tal relacao se caracteriza como sendo urn mtermedlario entre a sinonlrnia" ou univocidade, e a homonimia ou equivocidade. As varias coisas a que chamamos ser, sao assim chamadas de modo nao arbltrano. mas tampouco elas tern uma unidade de nocao(sinonimia). Os diversos sentidosdo ser derivam sua unidade de uma natureza comum, a substancia. A cienciatern semprepar objeto 0 que e primeiro. Se a Substancia e 0 ser no sentido mais eminente, entao cabe a filosofia investiqa-la. Cabera a filosofia tarnbern mostrar como se da a relacao dos seres menos eminentes com 0 ser rnais eminente, a substancia. E preciso que se explique, portanto, em que consiste a relacao de analogia. Nao a estamos usando no sentido de relacao de proporcionalidade", como Arist6teles a definiu na EN, mas, sim, para indicar urn outro tipo de relacao estrutural que os diversos sentidos do ser possuem com a

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substancia. 0 que ha de comum entre eles, as diversos sentidos do ser, e a fato de todos estabelecerem uma ligayao com a substancla. Portanto, sempre que a termo analogia for empregado, estaremos re足 ferindo-nos apenas analogia de referencia a urn unico termo, au principia (pro;" mivan archvn). Cumpre, ainda, dizer que a analogia par referencia a urn mesmo principia nao a mesma analogia do ser da teologia tomista. ~ certo que, como a primeira, esta se define como urn intermedto entre a equivocidade e a univocidade, mas enquanto Arist6teles se interessa pela relacao horizontal entre as seres finitos entre si, Sto. Tomas esta interessado na relacao vertical entre as seres finitos e a criatura divina: aquila que se fala dos seres finitos fala-se da criatura divina, mas nao com a mesma intensidade. Os seres finitos se assemelham ao ser divino medida que participam dele e devem sua exlsteneia a ele, mas se distanciam medida que procuram conhece-lo como se conhece uma essencla, enquanto a criatura divina a pr6prio ser. A f6rmula "ser enquanto ser' sao fornecidos tres significados: (i) substancia: (ii) todos as seres, todos as significados do ser, e (iii) a substancla mais alta, a divino. Isso porque a termo "enquanto" pode estabelecer uma relac;ao extensiva entre as termos da frase, e, nesse caso, temos a multiplicidade de sentidos da segunda definiyAo, au pode estabelecer uma relacao intensiva, e, nesse caso, temos a sentido principal do ser, a substancia. au seu sentido mais alto, a substancla divina. A interpretacao que vale a da suostancla: a sentido primeiro do ser e a condlcao para as outros sentidos. conceito de substancia aquele que deve servir de ponto de partida da nossa indagayAo. A substancla representa a pr6pria estrutura da realidade, composta de entes, coisas, individuos, ... A realidade composta de unidades, e a unidade a fundamento de verdade do discurso que quer dizer a mundo, suas causas, seu funcionamento, etc. Mas, a que esta em joga na teoria da substancia a projeto filos6fico de universalidade maxima. Tal projeto se realiza na elucidayao da estrutura ontol6gica da realidade. Estrutura esta que serve de fundamento toda linguagem e pensamento. A inteligibilidade do 16gos depende da sua composicao que par natureza substancial. Isto quer dizer que todo discurso, seja ele corriqueiro au cientifico, possui urn ti para onde se convergem todas as 'partes' do discurso, chamadas acidentes au categorias da substancia. Isso tudo quer dizer que a condlcao de inteligibilidade do discurso, au melhor, a modo mesmo em que a discurso pode dizer a ser e de onde ele tira sua razao de ser explicativa, a modo predicativo. 0 objeto ontol6gico ganha realidade

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lingOistica e passa a ser mais real, pois so na discursividade, na busca reflexiva de elucidar 0 fundamento que a coisa ganha sentido e deixa de ser aparencia. E nesse imbricamento entre realidade e discurso que se encontra a teoria artstotellca da substancia, estrutura relacional do ser. Na teoria da substancia esta incutida a busca da unidade na diferenc;:a e nao, como parece ser 0 projeto platonico, a eliminac;:ao da diferenc;:a em nome da unidade. A pergunta que se coloca sobre 0 objeto da filosofia de Arist6teles nao exclui a pergunta mais ampla sobre 0 objeto da filosofia em geral. Arist6teles, como todos outros filosofos, deu a sua 'interpretacao' da filosofia, e construiu urn sistema proprio de conceitos. 0 sistema aristotelico nao a nem pretende ser 0 unico, Por isso, na verdade, a pergunta pelo objeto da Metafisica, a apenas urn pretexto para se investigar esta questao geral acerca do objeto da filosofia em geral. Qual 0 signo que identifica 0 tratamento fllosofico de uma questao? Qual 0 objeto da filosofia? A filosofia tern objeto? Na verdade, devemos, antes de mais nada, explicitar 0 que entendemos por 'objeto'. Se substituissemos a palavra 'objeto' pela palavra 'genero', estariamos dizendo que a filosofia, como as outras ciencias, trata de urn tipo de genero do ser, sob 0 qual se reunern especies que Ihe pertencem, fazendo uso de uma linguagem ontol6gica. Esta concepcao leva, ao nosso ver, urn interpretacao materialista da filosofia aristotelica. Partimos de uma outra concepcao da substancia; a substancla deve ser entendida apenas como uma unidade de concentracao para onde se direciona 0 nosso falar; 0 nosso falar esta estruturado como "dizer algo de alguma coisa para alquern (mesmo que esse alquern seja 0 proprio sujeito da fala)". 1550 significa que 0 que motiva e impulsiona 0 nosso falar, expressao da sua razao de ser, 0 caracterizar algo. Apenas atraves da caracterizacao de urn objeto, pode, na ausencia do objeto, 0 interlocutor reconhece-Io na fala do narrador. Na presence do objeto a fala simb61ica nao se faz necessaria, pois para comunicar basta a linguagem deltica. Na au足 sencia do objeto a linguagem simb61ica usada tanto corriqueiramente quanta cientificamente. 0 que autoriza a fala cientifica 0 mesmo que autoriza a fala corriqueira, a saber, 0 "querer dizer algo acerca de algo", porern, como estamos aqui falando de 'cornunlcacao' devemos levar em conta que 0 porta-voz da cornunlcacao a 0 sujeito, e tal fato acarretara a dlstincao entre isso que chamamos de "discurso corriqueiro" e de "discurso cientifico". A semelhanc;:a nos ja vimos, ambos discursam na ausencia mesma do objeto, no entanto, quando se leva em conta 0 elernento 'sujeito' na discussao, devemos concluir

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que no discurso corriqueiro a palavra esta diretamente relacionada com 0 individuo que a pronuncia e, por isso, a palavra e eivada das paix6es do individuo, enquanto que no discurso cientifico, a palavra so indiretamente e relacionada ao individuo, pois, na verdade, ela estaria a service do pensamento, que pretende ser universal ao tratar das leis que regem 0 mundo. Mas, sera de fato possivel distinguir entre categorias do pensamento, que regem a teoria da ciencta ­ ciencia aqui sen do entendida, em sentido largo, como os gregos a usavam, a saber qualquer conhecimento capaz de fornecer raz6es­ , e categorias da Iinguagem, que regem 0 discurso cientifico e 0 discurso corriqueiro. Se aceitarmos tal distincao, teremos que tam bern a admi­ tir que 0 criterlo de verdade para julgar urn e outro tam bern sera dife­ rente. No primeiro caso, 0 criterlo seria algo como a capacidade demonstrativa. No segundo caso, como 0 objetivo da linguagem e comunicar, i.e., fazer 0 outro entender 0 que se esta dizendo, 0 que importa em primeiro lugar eo poder de convencimento do falante e, somente em segundo plano, a veracidade do discurso. Benveniste afirma que as categorias do pensamento de Arist6teles, na verdade, sao categorias da lingua grega. Vemos que a localizacao da totalidade do real almejada esta na linguagem: quais sao as condicoes a partir das quais 0 discurso acerca de qualquer ser particular torna-se possivel? A busca de criterios de verdade para 0 discurso em geral esbarra, no entanto, com a questao mais fundamental do significado. A palavra escrita ou falada carrega consigo uma polifonia de sentidos, a qual a 16gica bivalente, subsumida aos principios acima referidos, nao da conta. 0 universo da Iingua­ gem esta Iigado ao universo interpretativo. A palavra e signo. A pergunta que se coloca, entao, e pelos critenos a partir dos quais se pode avaliar a qualidade de uma mterpretacao, a sua veracidade, se podemos chamar assim. Achamos que a substancia, entendida como unidade de concentracao de caracteristicas, continua sendo urn enteric valido de interpreta<;:ao, mesmo que se considere a linguagem por ela mesma, separada de qualquer referencia real. A busca do fundamento do real e a busca do fundamento do 'conhecimento' do real se reunem sob a egide da Iinguagem. A ciencia nao transforma a realidade em discurso, mas, sim, a Iinguagem transforma a ciencia em algo, algo de real. Indubitavelmente, pertence a Metafisica ao rol dos sistemas filos6ficos de fundamentacao. Tal fato se depreende inclusive do seu pr6prio nome. "0 que esta para alern do sensivel eo fundamento, l.e., condicao de inteligibilidade do real". Contemporaneamente, no entanto,

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o projeto metafisico de fundarnentacao e considerado falido, uma vez que pressupoe sempre um principio dogmatico. A via intermedia e erigida como 0 lugar do acontecimento do conhecer. a conhecimento fica desta forma caracterizado como 'falivel', 'relativo', 'aporetico', etc. Estas caracteristicas eram irnpensaveis nos sistemas metafisicos. Se nao e possivel determinar 0 fundamento do conhecimento do real, entao, a tarefa da filosofia de determinar os principios gerais a partir dos quais todo discurso depende, e fadada ao fracasso? Acreditamos que nao. A tarefa da filosofia permanece sendo a de determinar crlterios, no entanto tais criterios nao poderao ser doqrnaticos, mas sim devem acompanhar a natureza plural da fala e do ser. Concordamos que a Metafisica de Arlstoteles e um projeto de fundacao. Tal situacao esta claramente expressa no primeiro livro com a formula "primeiros principios' -formula esta que se repenra ao lange da obra - mas acreditamos tarnbern que a ciencla analoqica da substancia escapa ao dogmatismo [Poder-se-ia aqui acreditar, com Jaeger, que os livros que tratam da substancia datam de um periodo tardio.] Juntos, os axiomas comuns e a substancia, nao compOem como nos Analiticos, principios auto-fundantes e evidentes por si, condicao da VERDADE da premissa demonstrativa, pois na exigencia de significaerao nao esta em jogo UMA verdade absoluta, mas uma verdade relativa. A palavra carrega uma pluralidade de sentidos. Contra o nao ser exposto nesta sltuacao esta 0 fato natural que a cornpreensao, ser, depende de uma unidade, verdade, mas que a verdade relativa, uma vez que, dependendo da sltuacao, a palavra pode ter sentido diversos. A substancia e os axiomas sao criterios intrinsecos fala. Eles nao conduzem a uma 'essencia', mas apenas apontam para a necessidade de um ti. A necessidade de um ti e a condlcao de todo discurso, pois todo discurso para ser discurso, ou todo ser para ser ser, deve ser articulado numa relacao de analogia, portanto, uma relacao de referimento um unico termo. Concluindo, devemos dizer ainda, que a situacao plural da fala nao implica no relativismo absoluto, isto quer dizer que, mesma na pluralidade de significaerao da fala e do discurso, ha nesta pluralidade um limite interpretativo, que chamamos, na falta de termo melhor, de plausibilidade. Todo discurso pode ser interpretado de diversas maneiras segunda a vontade do leitor ou do ouvinte, mas ha aquelas interpretacoes que podem ser consideradas mais corretas do que outras, porque sao mais plausiveis.

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An. Po. I, 1. Ao longo do nosso trabalho usaremos 0 termo "substAncia" para traduzir ous/a. Algumas vezes apenas, aparecera 0 termo na sua grafia original. 0 emprego dessa traducaso deve ser justifica­ do, uma vez que nao e acelta por todos. 0 que autoriza seu usc, nos parece, e que 0 termo em portuques guarda as possibilidades que seu correspondente grego quer indicar; nao apenas 0 sentido material de hupokeimenos, a partir do qual a versao latina foi construida, mas tamt>em 0 sentido de forma e defini~o. Usamos na nossa lingua 0 termo substAncia para indicar tanto a materia, "tal rernedio e composto por tais suostencies; quanto para indicar 0 nucieo principal, "em substsncie a discussao se reduz ao seguinte". Tal emprego comum as Iinguas neolatinas, nao ocorrendo 0 mesmo com as Iinguas anglo-germanicas. Por isso, Heidegger renega a traducao "substancla" e coloca em seu lugar 0 termo Anwesenheit, que corresponde mais plenamente ao termo grego parous/a. A vantagem desse emprego heideggeriano e a sua participa~o glotol6gica com 0 termo ser (participio wesen). 0 termo ous/a e derivado do participio presente feminino ousa do verba ser, eim/. Em portuguElsa tradu~o de Heidegger poderia ser traduzida como "presen~", e tambern guarda, como na alerna, os tacos glotol6gicos com 0 verba ser (ela e derivada do latim praesentia, em cujo sufixo, nota-se, esta presente 0 participio presente sum). Se fossemos obede­ cer mais a cnterios glotologicos do que a crtterios de significa~o, ous/a deveria ser traduzida em portugulls por "entidade", mas preferimos, no nosso trabalho, obedecer a criterios de significa~o. o termo "entidade" nao tem em portugulls a mesma rorca significativa que "substAncia", da mes­ ma forma que "ente" nso tem a mesma for~ significativa que "ser". Enfim, justifica-se 0 emprego da tradu~o latina no nosso trabalho porque, como se vera, privilegiamos a rela~o linguistica que subsUlncia guarda, isto e, enquanto sujeito da predica~o. Sobre este tema ver J. F. Courtine. "Note complementalre pour I'histoire do vocabulaire de I'Eltre". In: Concepts et categories dams la pens6e antique; G. Reale. Hist6ria da Fil050fia Antlga V (Iexico, indices e bibliografia).

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Met. G 2, 1003b10-15.

• 0 que Arist6teles entendia por sunwvnumon, nao e 0 mesmo que, hoje em dia, entendemos n6s; entendia por esta palavra a rela~o entre palavras que possuem comunidade de nome e de nocao (defini~o); assim, homem e boi seriam sinOnimos porque de ambos se diz que sao animais, e ambos podem ser definidos a partir do fato de serem animais. Entendemos como sinOnimas as palavras que, diferentes quanta a grafia, guardam em si a mesma defini~o, apesar de algumas nuances de diferen~s. Cf. Cat. 1. 5

EN V, 6, 113a30.

BIBL• •R.AFIA 01. ARISTOTELES. Metafisica. Edicion trilingue por Valentin Garcia Yebra. Editorial Gredos. Madrid, 1970 ( 2a. ed. 1987).

02.

La Metaphysique. Tradution par J. Tricot. Paris: J. Vrin, 1966.

03.

La Metafisica. Traduzione, introduzione e commento di Giovanni Reale. Napoli: Luigi Loffredo Editore, 1978.

04.

Aristotle's Metaphysics. Revised text with introdution and commentary by W. D. Ross. Oxford: Claredon Preess, 1958 (3a. ed.).

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05. 06.

The Nicomachean Ethics. Translated by J. A. K. Thomson. London: Penguin Books, 1976 (revised edition). Analytica Priora et Posteriora - The Complete Worl<'s ofAristotle (vol. 1). Org. Jonathan Barnes. Princeton: Princeton University Press, 1985.

07.

08.

Les Seconds Analytiques. Trad. J. Tricot. Paris: J. Vrin, 1947. AUBENQUE, Pierre. Le Problem« de /'~tre chez Aristote. 2.ed. Paris: Quadriage/Presses Universitaires de France, 1994. Sens et Structure de la Metaphysique Aristotelicienne (art.), in Bull. de la Soc. de Philosophie. Paris, 1963.

09. BENVENISTE, E. "Categorias de pensamento e categorias de lingua". In: Problemas da IingUistica gera/. Campinas: Pontes, 1991. 10. Cassin, Barbara, NARCY, Michel. La Decision du Sens. Paris: J. Vrin, 1989. 11. DUMONT, Jean-Paul. Introdution 1986.

a la Methode d' Aristote. Paris: J. Vrin,

12. DORING, I. Arist6teles: exposicion e Interpretacion de su Pensamiento. Mexico: Universidad Nacional Aut6noma do Mexico, 1990. 13. LLOYD, G. E. R. Aristotle: The Growth & Structure of his thought. 7th • reimpression. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. 14. LYNCH, John Patrik. Aristotle's School. Berkley: University of California Press, 1972. 15. JAEGER W. Aristoteles: bases para la historia de su desarrollo intelectu­ a/. Madrid: Fondo de Cultura Econornica, 1984. 16. NATORP, PAUL. Thema und Disposition der aristotelischen Metaphysik. In: Philosophische Monatshefte, n. XXIV, Heidelberg, 1888. 17. PATZIG, G. Theology and Ontology in Aristotle's Metaphysics. In: Articles on Aristotle. Org. Jonathan Barnes e outros. London: Duckworth, 1979. 18. ROSSITO, Cristina. La Possibilita di un'indagine scientifica suglioggetti della dialettica nella Metafisica di Aristotele. Atti dell'lnstituto Veneto di Scienze, Lettere ed Arti, anno ace. 1977-78, tomo cxxxvi.

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Reflexaes sabre a arnlzade'

Epicuro de Samos (423-351 a.C.)

KYPIAI t;OEAI ~Qv n OO~La rrapaOKEua~ETaL TnV TaU OAou ~LOU ~aKapLOTnTa rroAu ~EYLOTOV rOTLV n Tn~ ~LALa~ KTnOL~.

XXVII -

ETIIKOYPOY

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TIPO~¢QNH~I~

XXIII - TIaoa ~LALa OL' raUTnvaLpETn' apxnv or ELAn~EV arro Tn~ W~EAELa~. XXXIV - OUX

XPE

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rrLOTEW~

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OUTW~ XPElav EXO~EV Tn~ rrap& TWV ~ LAWV W~ Tn~ rrEpi Tn~ XPELa~.

XXXIX - oue'

a TnV XPELav rrrL~nTWV OL& rraVTO~ ~LAO~, oue' a ~nOErrOTE ouvarrTwv' 6 ~rv y&p KarrnAEUEL Tn xapLTL TnV a~oL~nV, 6 or arroKorrTEL TnV rrEpi TaU ~EAAOVTO~ EUEArrLOTLav.

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MAxIMAS ESCOLHIDAS 27 - De todos os bens que a sabedoria busca para a completa felicidade [plenitude]2 da vida, 0 maior de todos a aqulsicao da amizade.

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EXORTACAO DE EPICURO

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23 - Toda amizade por si mesma desejavel, ainda que tenha sua origem na [necessidade de uma] ajuda. 34 - Nao temos tanta necessidade da ajuda dos amigos quanto da confianc;a nessa ajuda. 39 - Nao e amigo aquele que sempre busca 0 util [0 que e de seu interesse], nem aquele que nunca associa 0 interesse amizade: 0 primeiro faz trafico de favores para obter reconhecimento, 0 segundo priva-se da esperance no futuro.

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Traducao de Markus Figueira

'0 texto original (em grego) foi retirado da obra EPICUREA. de H. Usener - Stuttgart: E. G. Teubner.

1966. Tanto a maxima 27 (Kyriai D6xai). quanta as sentences 23. 34 e 39 (Gnomologium Vaticanum) fazem parte dos textos encontrados acerca da Etica de Epicuro. 2 Os termos que se encontram entre colchetes. na traducao, silo pequenos ajustes fenos pelo tradutor para melhor explicnar 0 sentido do texto.

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