C&D Constituição & Democracia Nº 3 (Março de 2006) PERIGO: CERCO AO DIREITO DO TRABALHO

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Nº 3 MARÇO DE 2006 VENDA AVULSA: R$ 4,00

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Constituição & Democracia TV Digital: Onde está o interesse do cidadão Página 3

Entrevista: Ministro do TST analisa direitos humanos no trabalho Página 12

Exclusivo: A agenda oculta da revisão constitucional Página 14

Perigo: cerco ao Direito do Trabalho

Boaventura de Sousa Santos: O choque desburocrático Página 24


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EDITORIAL

Observatório da Constituição e da Democracia ando continuidade à nossa proposta de fazer da observação um meio de interferência na realidade, a terceira edição do Observatório da Constituição e da Democracia volta sua atenção para o "mundo do trabalho". Seria trivial dizer que, nos dias de hoje, o trabalho possui uma enorme importância. Mais do que um meio de subsistência, o trabalho nos situa no tempo e no espaço, precisamente em um tempo ao qual chamamos de moderno, por não mais possuirmos fundamentos únicos ou mesmo necessários. A crescente complexidade social torna incontáveis as alternativas de agir do homem no mundo, formulando perguntas quanto aos limites e às possibilidades da utilização do trabalho. Surgem indagações sobre direitos fundamentais do trabalhador, liberdade sindical, terceirização, gestão democrática da empresa e precarização das relações de trabalho, entre outras. Neste número, nosso objetivo é observar alguns desses problemas. A Constituição de 1988 consagra diversos direitos trabalhistas, além de colocar os valores sociais do trabalho como um dos fundamentos da República. Entretanto, é necessário manifestar inquietude sobre o tema. Esta inquietude já emerge da constatação de que, ao lado da valorização social do trabalho, a Constituição também posiciona como fundamento da República, em verdadeira tensão, a livre iniciativa. A complexidade do universo de questões relativas ao mundo do trabalho é visível, ainda, nas desigualdades e nos contrastes brasileiros: um país que, por um lado, se debruça sobre os desafios trazidos pelas novas tecnologias utilizadas no trabalho, por outro, abriga formas degradantes de trabalho, como o escravo e o infantil. Portanto, se a inclusão no texto constitucional está longe de ser suficiente para garantir efetividade a tais direitos, é urgente que novos mecanismos sejam pensados, debatidos, implementados. Este número do Observatório da Constituição e da Democracia pretende contribuir para este debate, seja discutindo os limites da exploração do trabalho, em entrevista concedida pelo Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Lelio Bentes Corrêa, seja tematizando, de forma mais específica em seus artigos, a sujeição de trabalhadores a condição análoga à de escravo, a exploração do trabalho infantil e a chamada terceirização nas relações de trabalho, entre outros aspectos. Dentre os artigos livres, seguiremos abordando diversas questões, destacadas em nossos dois primeiros números, sobre a proposta de revisão constitucional que tramita na Câmara dos Deputados, a PEC 157. O tema segue com relevo: a revisão proposta poderia, por via indireta, reduzir os canais para o exercício da cidadania nas questões do trabalho, mediante a diminuição dos meios de apoio e de custeio de políticas na área social. Nesta edição, o objetivo é desvelar a agenda oculta da revisão, buscando mostrar alguns perigos - à Constituição, à democracia e aos próprios direitos sociais - que estão por trás da proposta de emenda constitucional. Mantemos, portanto, a intenção de observar as instituições e os poderes constituídos e atuar na realidade, sempre numa perspectiva crítica. É com esse espírito, com esse olhar de inquietude, que procuramos adentrar no mundo do trabalho.

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Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito Faculdade de Direito - Universidade de Brasília

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ÍNDICE TV DIGITAL E CIDADANIA NO BRASIL Márcio Iorio Aranha - Vice-Diretor da Faculdade de Direito da UnB, coordenador do Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações da UnB - GETEL/UnB e membro do Grupo Interdisciplinar de Políticas, Direito, Economia e Tecnologias das Comunicações da UnB - GCOM/UnB ERRADICAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO E A INSTITUIÇÃO DA DEMOCRACIA Pedro Diamantino - Mestrando em Direito na UnB, membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito e advogado FLEXIBILIZAÇÃO TRABALHISTA: SOLUÇÃO OU DISTORÇÃO DA REALIDADE? Ricardo Machado Lourenço Filho - Mestrando em Direito na UnB, membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito e assistente de ministro no Tribunal Superior do Trabalho TERCEIRIZAÇÃO: O TRABALHO COMO MERCADORIA Cristiano Paixão - Professor da Faculdade de Direito da UnB, Procurador do Ministério Público do Trabalho (Brasília-DF), coordenador do Programa de Pós-graduação - FD/UnB, Doutor em Direito pela UFMG e membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito A GESTÃO DA EMPRESA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS DOS TRABALHADORES Marthius Sávio Cavalcante Lobato - Professor Substituto da Faculdade de Direito da UnB, mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB, pós-graduado em Relações Internacionais pela UnB, especialista em Interpretação de Normas Internacionais pela OIT - Turim - Itália, membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito e advogado. ENTREVISTA COM O MINISTRO DO TST LELIO BENTES CORRÊA DIREITOS HUMANOS E OS LIMITES DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO Juliano Zaiden Benvindo - Doutorando em Direito na UnB e Ricardo M. Lourenço Filho - Mestrando em Direito na UnB

OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO O SERVIDOR PÚBLICO E A GREVE Daniel Augusto Vila-Nova Gomes - Mestrando em Direito na UnB, membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito e assessor jurídico de ministro do Supremo Tribunal Federal OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS TRABALHO NÃO É BRINCADEIRA - OS MOVIMENTOS SOCIAIS E A LUTA PELA DEFESA DOS DIREITOS DA INFÂNCIA Adriana Andrade Miranda - Mestranda em Direito na UnB, membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito e advogada TODOS TÊM DIREITO AO TRABALHO? O FIM DO MITO DA INCAPACIDADE PARA O TRABALHO Janaína L. Penalva da Silva - Mestranda em Direito na UnB e membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito PARTICIPAÇÃO SOCIAL NO DIREITO INTERNACIONAL AMBIENTAL GIovanna Maria Frisso - Professora substituta da Faculdade de Direito da UnB, doutoranda em Direito na UnB, mestra em Direito Internacional Público pela Universidade de Uppsala (Suécia) e membro do grupo Sociedade, Tempo e Direito. O CHOQUE DESBUROCRÁTICO Boaventura de Sousa Santos - Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

Caderno mensal concebido, preparado e elaborado pelo Grupo de Pesquisa Sociedade, Tempo e Direito (Faculdade de Direito da UnB - Plataforma Lattes do CNPq). Coordenação Alexandre Bernardino Costa Cristiano Paixão José Geraldo de Sousa Junior Menelick de Carvalho Netto Miroslav Milovic Comissão de redação Giovanna Maria Frisso Janaina Lima Penalva da Silva Leonardo Augusto Andrade Barbosa Marthius Sávio Cavalcante Lobato Paulo Henrique Blair de Oliveira Ricardo Machado Lourenço Filho Integrantes do Observatório Adriana Andrade Alexandre Araújo Costa Aline Lisboa Naves Guimarães Álvaro Luiz Ciarlini André Rufino do Vale Artur Coimbra de Oliveira

Augusto dos Santos de São Bernardo Carolina Pinheiro Damião Azevedo Daniel Augusto Vila-Nova Gomes Daniel Barcelos Vargas Fábio Comelli Dutra Fabio Costa Sá e Silva Francisco Schertel Ferreira Mendes Guilherme Cintra Guimarães Gustavo Costa Henrique Smidt Simon Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros Juliana Amorim de Souza Juliano Zaiden Benvindo Laura Schertel Ferreira Mendes Mariana Siqueira de Carvalho Oliveira Marina Cruz Vieira Villela Marcelo Casseb Continentino Maurício Azevedo Araújo Paulo Sávio Peixoto Maia Pedro Diamantino Ramiro Nóbrega Sant´anna Renato Bigliazzi Rochelle Pastana Ribeiro Vitor Pinto Chaves Projeto editorial R&R Consultoria e Comunicação Ltda Editor responsável Luiz Recena (MTb 3868/12/43v-RS)

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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO A AGENDA OCULTA DA REVISÃO CONSTITUCIONAL Janaína Lima Penalva da Silva, Jorge Luiz Ribeiro de Medeiros, Leonardo Augusto Andrade Barbosa, Paulo Sávio Peixoto Maia - Mestrandos e doutorandos em Direito na UnB e membros do grupo Sociedade, Tempo e Direito

EXPEDIENTE

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Editor assistente Rozane Oliveira Diagramação Gustavo Di Angellis Ilustrações Flávio Macedo Fernandes Contato observatorio@unb.br www.unb.br/fd

Sindicato dos Bancários de Brasília


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TV Digital e Cidadania MÁRCIO IORIO ARANHA

indivíduo tem o direito de ser ator de sua história. Tem, portanto, o direito de ser partícipe das opções políticas que firmam o caráter de sua existência institucional. O conceito, de Alain Touraine, se aplica ao processo instaurado no Brasil de discussão política sobre a escolha do modelo de TV Digital. Pode ser visto como a consolidação dessa consciência política nacional. O início da discussão vem normalmente referido ao ano de 2003, com a edição, pela Presidência da República, de de decreto, que instituiu GT Interministerial com a finalidade de avaliar propostas e propor diretrizes para o Sistema Brasileiro de TV Digital. A atuação governamental só ocorreu após longo processo no âmbito da Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL, que vinha disciplinando, desde 1998, a realização de experiências com sistemas de transmissão digital de televisão. Isto não significa que a digitalização de transmissões de programas de TV tenha iniciado com tais definições estatais, já que, como se costuma dizer: a TV por satélite já nasceu digital e a TV por assinatura, embora tivesse nascido analógica, hoje está digitalizada. A esperada definição do padrão de TV Digital, no Brasil, não diz respeito às transmissões da TV paga. Diz respeito à TV aberta, ou seja, à radiodifusão, que se destina à transmissão de programações televisivas de forma indiscriminada para qualquer pessoa que detenha um aparelho de TV independentemente do pagamento de mensalidades. É da TV aberta que se fala quando se discute o tema da TV Digital no Brasil. Fala-se da TV, cujos representantes mais notórios – TV Cultura, Globo, SBT, Bandeirantes, dentre outros – fazem parte de mais de 80 milhões de lares brasileiros, influenciando a consciência nacional, uniformizando expectativas sociais, construindo necessidades, mitos ... verdades. Fala-se da TV que interage diretamente com o pensamento político nacional. A importância da TV aberta para o ambiente político serviu de motivo para sua inserção na competência governamental de definição de políticas públicas para o setor, como determina a Lei 9.472/97. Talvez por esta im-

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portância da TV aberta, a questão da sua digitalização não tenha podido ser definida a partir de considerações de ordem estritamente tecnológica, como ocorreu com a digitalização da TV paga, com a escolha da faixa de freqüência do celular de terceira geração, ou mesmo, com a digitalização de outros serviços de telecomunicações. A digitalização da TV aberta foi diferente. Ela chamou mais atenção para si, e, ao chamar mais atenção para si, revelou o que havia de discussão política em uma questão antes estritamente tecnológica. Exatamente a questão tecnológica suscitou e continua suscitando reações sobre os rumos da discussão. A questão se resume a responder qual padrão de modulação dentre os três referidos no debate – ATSC ( coreano adotado pelos EUA); DVB (europeu); ISDB ( japonês) – detém o maior avanço frente a requisitos fixados a partir das demandas que se esperam sejam do cidadão. A carência de informações confiáveis sobre as características de cada padrão justificou movimento

A importância da TV Aberta serviu de motivo para a competência do governo na definição de políticas públicas para o setor

estatal no sentido de financiar estudos em âmbito nacional, a partir da instituição do Sistema Brasileiro de Televisão Digital pelo Decreto nº 4.901/2003. Estes estudos financiados pelo Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações – FUNTTEL e capitaneados pelo antigo centro de pesquisas do Sistema TELEBRÁS, o CPqD, buscaram definir o Modelo de Referência a ser adotado pela TV Digital terrestre no Brasil, mas foram acusados de estarem resumindo a uma questão tecnológica, a definição do padrão, que seria, ao ver de alguns, uma questão eminentemente política. O CPqD, entretanto, respondeu a tais demandas pela ampliação da análise para abranger, além da dimensão tecnológica, as dimensões chamadas de socioeconômica e político-reguladora. Assim, além de aspectos referentes à robustez, flexibilidade, portabilidade, multiprogramação, multisserviço, interatividade e formato de tela, foram definidas questões referentes ao mapeamento das demandas sociais e aos panoramas econômico, regulatório e de políticas industriais. Em meio às questões de ordem econômica, tecnológica, regulatória, da velada preferência das radiodifusoras pelo padrão japonês, e das análises realizadas por revistas especializadas – Tela Viva News e Teletime News –, foi o desenvolvimento industrial que passou a ocupar, nos últimos dias, posição central no discurso governamental, que

aguardaria a oferta mais vantajosa para instalação de um parque destinado à produção de semicondutores no Brasil. Esta posição confirma a tendência de se considerar a discussão como uma discussão de política industrial. Mas a definição do padrão de TV Digital com base nos benefícios declarados de melhor tecnologia, menor ônus de migração por parte dos usuários, e melhor contrapartida em termos de investimento industrial no país, não devem encobrir o suspiro de cidadania gerado pela discussão; não deve encobrir o crescimento de consciência política. Hoje, o Brasil é reconhecido como o país que desenvolveu os melhores estudos comparativos sobre os três padrões de TV Digital citados, tendo, inclusive, gerado reestruturação tecnológica por parte dos detentores dos padrões estudados. Apesar disto, há uma insatisfação no ar quanto à condução da discussão. Representantes do próprio Comitê Consultivo, criado em 2003 pelo Decreto nº 4.901, se ressentem da ausência de soluções para democratização do uso do espectro atribuído às radiodifusoras. A Ministra da Casa Civil exigiu propostas concretas de trabalho. e não apenas discurso. Em Conferência realizada pelo GCOM/UnB, em 17/03/2006, ficou patente a insatisfação das concessionárias de radiodifusão pelo atraso brasileiro em decidir sobre o padrão de TV Digital, temendo perder o bonde da história.

O Brasil é reconhecido como o país que desenvolveu os melhores estudos comparativos sobre os três padrões de TV Digital Costuma-se dizer que tomar uma decisão como esta antes de ocorrer a perfeita harmonização dos elementos em jogo, geraria prejuízos, mas atrasar a decisão também geraria prejuízos de nãoengajamento tecnológico, político, econômico, social e regulatório do país. Não há vencedor neste embate. Há somente uma decisão a ser tomada com base em um processo ímpar no setor de telecomunicações brasileiro. Portanto, ou se acredita que a solução por um padrão será melhor por que obediente a um conjunto de cálculos matemáticos em benefício do maior número de interessados, ou que a solução por um padrão reflete ato de autoridade comprometido com o dever de argumentação perante todos os atores sociais chamados à discussão. Em qualquer das hipóteses, a escolha em si é de menor importância frente à grandeza da experiência de participação cidadã pautada na idéia de que ao sermos chamados à discussão, melhoramos nossa condição de partícipes da decisão política.


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Erradicação do Trabalho Escravo e a Instituição da Democracia PEDRO DIAMANTINO

Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel em 1888 e, passados mais de 115 anos da abolição formal, a escravidão no Brasil não deixou de ser uma realidade presente. Arquivos de órgãos estatais e entidades da sociedade civil que acompanham de perto este problema dão conta de que não só práticas de servidão e trabalho compulsório ganharam impulso com a abolição legal da escravatura no século XIX, como se adequaram aos novos tempos. O problema do trabalho escravo, ao contrário do que muitos pensam, não deve ser encarado como nódoa do passado, apesar de ter relações estreitas com ele, mas sim como um problema atual, complexo e grave, que está intimamente ligado à pujança do capitalismo mundial. O regime escravista que perdurou até o final do império tinha características específicas que o diferenciam da escravidão contem-

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porânea. O trabalho escravo, então base da economia brasileira, era uma prática social adotada legalmente: a legislação vigente naquela época autorizava o tráfico e o uso de mão-de-obra escrava. Hoje a escravidão é proibida em todo o mundo, não havendo mais lugar institucional para ela nas atuais democracias. A escravidão indígena e negra no país teve como substrato ideológico o racismo, que supõe a superioridade de um grupo sobre outro. Hoje, em princípio, o fator étnico ou racial não é mais tão relevante para determinar se uma pessoa vai ou não ser escravizada: o que conta é a vulnerabilidade social do trabalhador. Finalmente, o custo da aquisição de mão-de-obra era bastante alto, sendo possível medir a riqueza dos senhores pelo número de escravos que este possuía. Atualmente o custo da mão-de-obra é baixo e os trabalhadores, preteridos de quaisquer direitos, são absolutamente descartáveis. O problema da escravidão

O que determina se uma pessoa vai ou não ser escravizada é a vulnerabilidade social do trabalhador contemporânea em nosso país está relacionado com a ausência de medidas necessárias de distribuição de renda, promoção e conquista da cidadania para a ampla parcela da população brasileira que suportou, durante séculos, o sistema escravista. Ao contrário, as elites nacionais providenciaram para que os recém-libertos da escravidão permanecessem sem acesso aos meios de produção, à terra, às políticas de crédito e incentivos fiscais, à educação, à saúde, formando uma massa de não-proprietários submetidos ao julgo do latifúndio e cada vez mais ao grande capital ligado ao agronegócio. As gerações que se

seguiram àquela parcela vulnerabilizada da população brasileira são alvo do trabalho escravo de hoje: um negócio criminoso, perverso e lucrativo, ligado a uma complexa trama socioeconômica que associa estratégias de maximização dos lucros ao aniquilamento da dignidade da pessoa humana. Ainda que o fim da escravidão esteja fortemente ligado a motivos econômicos, a abolição da escravatura representa uma das principais conquistas da cidadania e constitui um alicerce da democracia. No mundo contemporâneo não há democracia que legitime ou permita a prática da escravidão. A existência de formas sutis de escravidão representa um cancro na experiência democrática, pois atesta a negação da condição humana justamente numa comunidade política e jurídica que sugere o reconhecimento da cidadania para todos, sem distinção. Em nosso caso, a Constituição da República institui o Estado Democrático de Di-

reito, destinado a assegurar o exercício e gozo de direitos em liberdade, tendo como fundamentos, dentre outros, a cidadania, a dignidade humana e os valores sociais do trabalho. Portanto, a escravidão é uma prática absolutamente inadmissível para o nosso processo democrático. A liberdade, a igualdade, a cidadania estendida a todos, os valores sociais do trabalho e a dignidade da pessoa humana são aspectos básicos da nossa experiência constitucional, de modo que no processo de instituição do Estado Democrático de Direito está embutido o compromisso social, político e jurídico de todos os brasileiros para erradicar, de uma vez por todas, a escravidão sob todas as suas formas. Para se ter uma idéia da dimensão do problema, as Nações Unidas estimam que no mundo inteiro haja cerca de 27 milhões de pessoas em condições análogas à de escravo, e estes números incluem pessoas que trabalham nos Estados Unidos, Europa e Ásia.


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Escravos urbanos, a “novidade” No Brasil, os números estimados variam entre 25 mil e 40 mil pessoas submetidas à condição análoga à de escravo. Em nosso país, o maior número de casos encontra-se no meio rural, sob a modalidade de servidão por dívidas, quase sempre associada a condições degradantes e superexploratórias do trabalho, em especial, em áreas de expansão da fronteira agrícola. Mas a incidência maior de trabalho escravo em áreas rurais do Brasil não significa a inexistência de trabalho escravo no meio urbano, como no recente caso flagrado de bolivianos na indústria têxtil em São Paulo ou em casos extremos de exploração sexual e tráfico internacional de pessoas. Em termos gerais, no caso da servidão por dívidas no meio rural, trabalhadores são arregimentados em locais onde a pobreza e o desemprego são aviltantes, muitas vezes em zonas periféricas de pequenas e médias cidades do interior, e traficados por intermediários de mão-deobra – testas-de-ferro ou “laranjas” conhecidos como “gatos” – sob falsas promessas que incluem boas condições de trabalho, remuneração e não raras vezes um adiantamento em dinheiro. Aceitando as condições fictícias de trabalho, esses trabalhadores são geralmente levados para lugares distantes do local de recrutamento, por trechos onde a fiscalização é precária. Chegando ao desconhecido local de destino, os trabalhadores já estão endividados, no ciclo brutal da servidão por dívidas. Tais dívidas aumentam durante as atividades pesadas e sob jornadas exaustivas com a cobrança ilegal pelo uso de precários alojamentos, despesas com alimentação, bebidas, instrumentos de trabalho e outros itens, vendidos no próprio local de trabalho a preços superfaturados. Os “escravos” são compelidos a trabalhar para quitar dívida que só faz aumentar. Daí porque a escravidão contemporânea não pode ser confundida com a imagem de pessoas acorrentadas. Essa modalidade de coação pelo endividamento, que também se dá num nível moral e psicológico, é sustentada pelo próprio isolamento do local de trabalho, sendo freqüentes práticas de maus tratos. O Estado do Pará é recordista geral em denúncias e resgates de trabalhadores

submetidos à escravidão. Os flagrantes são constantes em zonas de atividade agroindustrial e expansão da fronteira agrícola, como na pecuária, plantio e corte de canade-açucar, desmatamento, carvoarias, ou em grandes plantações de soja, café, milho, algodão. Além do Pará, Mato-Grosso, Mato-Grosso do Sul, os dados são alarmantes no Tocantins, Goiás, Bahia e Maranhão. O Piauí é o estado que mais fornece mão-de-obra. Não seria leviano afirmar que a devastação da Amazônia e do Cerrado em forma de pasto, carvão e agricultura monocultora conta com significativa contribuição do trabalho escravo que, de outro lado, devasta a dignidade humana e ultraja a Constituição da República. Em quase todos os estados brasileiros já houve flagrante de trabalho escravo. Focos de trabalho escravo estão bem mais próximos do que imaginamos. Por exemplo, em setembro de 2005, fiscais do Grupo Móvel resgataram aproximadamente 150 trabalhadores numa grande plantação de tomate na Fazenda Buriti, de propriedade de Odilon Ferreira Garcia, localizada na bela e freqüentada Pirenópolis/GO (a 150 km de Brasília). Considerando o não atendimento de grande parte das denúncias que chegam, o Grupo Móvel de Fiscalização do Ministério do Trabalho e

Emprego realizou em 2005 o maior número de operações de combate ao trabalho escravo. Foram 81 operações e 183 fazendas fiscalizadas, resultando na libertação de 4.133 trabalhadores. Entre 2003 e 2005 a fiscalização aumentou cerca de 170% em relação aos anos de 2000 e 2002. Desde 1995, quando o Grupo Móvel foi criado, até 2005 foram resgatados 17.235 trabalhadores da condição análoga à de escravo. Não só o aumento das fiscalizações deve-se à tomada de consciência e à pressão cada vez mais crescente da sociedade brasileira como também um conjunto de medidas que vêm sendo formuladas e adotadas para tentar erradicar esse problema. De qualquer forma, se a reprovação de práticas escravistas atualmente atinge certo consenso no país, há grupos que lucram bastante com a escravidão contemporânea, entre os quais figuras importantes do mundo político - tais como os casos do deputado Inocêncio Oliveira (ex-PFL e atualmente no PL), com 53 trabalhadores libertados em fazenda de sua propriedade no Maranhão, e o caso do Senador João Ribeiro (PFL/TO) - e empresarial, da agroindústria e do setor siderúrgico. Esses casos, apenas enumerativos, mostram que a erradicação do trabalho escravo é um desafio político, social e constitucional cuja superação encontra resistên-

cia em todas as instâncias de formação da opinião e da vontade públicas, exigindo a conscientização e mobilização de um número cada vez maior de atores sociais que cumpram seu papel e pressionem as instituições para que funcionem no sentido de implementar um conjunto de políticas de erradicação do trabalho escravo no Brasil. Além da necessidade de enfrentarmos problemas estruturais do país como realizar a reforma agrária, estabelecer políticas de crédito adequadas à pequena e média agricultura, acabar com o analfabetismo, encontrar caminhos para uma concorrência mais ajustada no mercado mundial de produtos agrícolas, enfim, melhorar as condições de vida no campo e nas cidades, é necessário que haja mais e mais mobilização da sociedade, vontade e coragem política das instituições para a execução e aperfeiçoamento das medidas firmadas no Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em maio de 2003. Algumas medidas do Plano já foram adotadas, como o aumento do valor das multas por descumprimento da legislação trabalhista, extensão do seguro desemprego para os trabalhadores libertados, a inserção dos mesmos em programas sociais, o aumento da pena prevista para o crime de trabalho escravo, a melhora, ainda que

insuficiente, no aparelhamento de instituições e órgãos vinculados à erradicação do trabalho escravo. Mas pouco se tem feito em políticas de reinserção social que venham assegurar que os trabalhadores libertados não voltem ao ciclo da escravidão. A criação do Cadastro de Empregadores, a “lista suja”, de inquestionável constitucionalidade, foi um passo importante para coibir esta prática, pois além de tornar público o nome dos responsáveis por prática de trabalho escravo, não permite que eles tenham acesso a financiamentos públicos. O imóvel rural que utiliza mão-de-obra escrava, ao descumprir sua função social, fica suscetível à desapropriação para reforma agrária. Além da possibilidade de desapropriação, está posto o desafio para a sociedade brasileira de aprovar a PEC 438/2001, que prevê o confisco das terras – sem indenização - em que forem flagrados casos de trabalho escravo. Esta PEC, cuja aprovação encontra resistência da bancada ruralista no Congresso Nacional acrescenta ao artigo 243 da Constituição da República, que já prevê o confisco de terras onde forem encontradas culturas ilegais de plantas psicotrópicas, o confisco das terras onde haja trabalhadores escravizados. Uma ação importante da sociedade civil organizada foi o Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo. Através dele, empresas signatárias como Petrobrás, Carrefour, Pão de Açúcar, CocaCola e Bompreço se comprometeram a tomar medidas para manter fora de sua cadeia produtiva empresas flagradas com trabalho escravo. A atuação do Ministério Público do Trabalho e da Justiça do Trabalho têm sido fundamental no combate ao trabalho escravo, especialmente por meio da ação civil pública por danos morais coletivos, cujas indenizações atingem valores bem elevados, coibindo e tornando economicamente inviável os empreendimentos que usam mão-de-obra escrava. O mesmo não se pode dizer da atuação dos órgãos e instituições responsáveis pela criminalização desta prática: somente duas pessoas até hoje foram condenadas pelo crime do artigo 149 do Código Penal, colocando o problema da impunidade como um dos obstáculos para a abolição real da escravatura.


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Flexibilização trabalhista Solução ou distorção da realidade? RICARDO MACHADO LOURENÇO FILHO

s direitos trabalhistas vivem um momento de tensão. A ameaça, porém, não é nova; já tem lá os seus vinte e poucos anos. Em uma palavra: FLEXIBILIZAÇÃO. Mas o que se quer dizer quando se defende ou se ataca a flexibilização no direito do trabalho? A expressão “flexibilização” remete à possibilidade de mitigação (leia-se não-aplicação) de algumas normas trabalhistas, de modo que determinados direitos possam ser suprimidos, em geral (mas, nem sempre) mediante negociação entre empregados e empregadores, com ou sem a participação dos respectivos sindicatos. Justamente por envolver uma ampliação das alternativas de negociação das condições de trabalho, a flexibilização está associada a um incremento da atuação dos sindicatos. (Por esse motivo, o assunto toca as pautas da reforma sindical.) Em termos práticos, uma onda “flexibilizatória” pode significar, para o trabalhador, a perda, por exemplo, do direito ao décimo terceiro salário, ou, quem sabe, do adicional de horas extras. A pergunta é, então, inevitável: em troca de quê? O que ganha o trabalhador com a supressão de seus direitos? Aqui é necessária uma pausa explicativa. Tanto a Constituição Federal, quanto a legislação trabalhista como um todo, autorizam, não raramente, uma certa dose de maleabilidade dos direitos. Vamos pensar em um dos direitos mais caros para o trabalhador: o salário. A Constituição de 1988 expressamente prevê a possibilidade de redução do salário, mediante negociação coletiva. Entretanto, a negociação entre sindicatos de empregados e empregadores pressupõe (ou, ao menos, deveria pressupor) concessões mútuas; ou seja, a diminuição do salário será “compensada” com o recebimento de outras vantagens. Nesse caso, a soma final (perda do direito + vantagem compensatória) tende a zero. Todavia, quando falamos aqui de flexibilização de direitos trabalhistas tratamos de coisa diversa. No Brasil, como em grande parte da América

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Latina, as propostas flexibilizatórias não assumem o pressuposto de que a supressão do direito venha a ser compensada (pelo menos não diretamente) por algum benefício concedido ao empregado. Seus defensores bradam aos quatro ventos que a flexibilização constitui um remédio para combater os elevados índices de desemprego, bem como a tendência de crescimento da economia informal. Algumas propostas que circulam no Congresso Nacional são bastante ilustrativas. O Projeto de Lei nº 3374/2004, de autoria do Deputado Federal Paes Landim (PTB-PI), propõe a inclusão de dois parágrafos no artigo 1º da Consolidação das Leis do Trabalho. O primeiro visa a autorizar a adoção, mediante acordo, individual ou coletivo, de condições de trabalho diferentes das previstas na CLT. Já o segundo estabelece os direitos mínimos do trabalhador, a serem resguardados em qualquer hipótese (como salário mínimo, duração do trabalho não superior a quarenta e quatro horas semanais, fundo de garantia do tempo de serviço, etc). O que chama atenção, porém, é a justificação do

projeto de lei (que, aliás, foi arquivado): “resguardados os direitos básicos do trabalhador, é preciso dar às partes a possibilidade de, por opção, flexibilizar as relações de trabalho, para atender à modernidade e as (sic) mudanças econômico-sociais, como instrumento para combater o trabalho informal e a falta de emprego, ensejando-lhes contratar as próprias condições para prestação de serviços”. Por sua vez, o Projeto de Lei nº 927/2003 é um pouco mais ambicioso (e, infelizmente, até o momento, não foi arquivado). A proposição, formulada pelo Deputado Federal Almir Moura (PL-RJ), pretende estabelecer um tratamento diferenciado à microempresa e à empresa de pequeno porte no que tange aos direitos trabalhistas. Para tanto, o projeto dispensa essas empresas da observância de diversos direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho. Assim, por exemplo, propõe que as condições de trabalho ajustadas em Convenção Coletiva não serão estendidas às microempresas e empresas de pequeno porte, salvo se houver cláusula expressa dizendo o contrário. Ou, ainda, permi-

te que as verbas devidas ao empregado por ocasião da rescisão do contrato de trabalho sejam pagas parceladamente, em dinheiro ou cotas da empresa, conforme ajustado entre as partes. Propõe também a possibilidade de cumprimento do aviso prévio sem redução do horário, entre outras medidas. A justificação do projeto de lei é bem elaborada: parte da constatação de que a legislação em vigor sobre as microempresas ou empresas de pequeno porte estabelece benefícios ínfimos na área trabalhista; entende que tais empresas não conseguem criar um número maior de empregos devido ao tratamento dispensado, que pouco se diferencia do que recebem as grandes e médias empresas; arremata que, com a flexibilização proposta para os direitos dos trabalhadores das microempresas e empresas de pequeno porte, “estaremos contribuindo para a solidificação dos empreendimentos existentes, bem como incentivando o aumento da oferta de empregos neste segmento econômico, que tanto contribui para o desenvolvimento do País”. Além desses argumentos – combate ao desemprego e

à economia informal – os defensores da flexibilização afirmam que, no contexto sócio-econômico brasileiro, as normas trabalhistas engessam e/ou criam obstáculos à manutenção e ao desenvolvimento das empresas. A idéia, então, é reduzir os direitos a um rol mínimo, que possibilitaria, exatamente por ser mínimo e pressupor uma maior atuação das entidades sindicais, uma melhor adaptação do ordenamento jurídico à dinâmica das relações de trabalho. Em suma: diante desse conjunto de problemas, de acentuado viés econômico – é bom que se diga -, flexibilizar (isto é, suprimir) direitos trabalhistas aparece, para alguns, como uma solução promissora. Afinal, os trabalhadores brasileiros são privilegiados; seus inúmeros direitos são e sempre foram observados, permitindo-lhes uma condição sócio-econômica invejável. O “gordo” saláriomínimo (em breve, no alto de seus R$ 350,00, decorrente do aumento concedido pelo Governo, o maior dos últimos vinte e cinco anos) atende a todas as necessidades dos trabalhadores... Será?


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O contraste entre a lógica do mercado e a afirmação dos direitos sociais As propostas flexibilizatórias geram perplexidade. Pressupõem a dificuldade de harmonização da lógica econômica com os atuais direitos sociais, em especial, os trabalhistas (basta lembrar do argumento de que as normas de direito do trabalho dificultam o desenvolvimento das empresas). Partindo desse pressuposto, o que se vê na flexibilização é a tentativa de preponderância do setor econômico. À custa de quê? Dos direitos do trabalhador. Por esse motivo, a flexibilização é associada à precarização das relações de trabalho. O propósito da flexibilização, tal como vem sendo concebida entre nós, está equivocado. Ao invés de pretender suprimir direitos, é necessário efetivar os já existentes – a própria legislação fornece algumas alternativas “flexibilizatórias” nesse sentido. É claro que a preocupação com a economia deve estar presente, mas não de forma predatória; isto é, o objetivo de desenvolvimento econômico não precisa implicar prejuízo aos direitos trabalhistas. O caso das microempresas e empresas de pequeno porte é um bom exemplo. Quando a Constituição assegura a essas empresas tratamento diferenciado, esse tratamento, no campo do direito do trabalho, deve limitarse às obrigações do empregador que não refletem diretamente em contraprestação ao empregado. Assim, por exemplo, a Lei nº 9.841/99 dispensa aquelas empresas da exigência de quadro de horário, bem como da neces-

sidade de anotação das férias concedidas em livro ou fichas próprias. Entretanto, o que justifica retirar do empregado da microempresa o direito ao cumprimento do aviso prévio com redução do horário de trabalho (como previsto no PL nº 927/2003)? O tratamento diferenciado deve ser dado ao empregador – microempresa e empresa de pequeno porte –, sem conseqüências (prejudiciais) ao trabalhador. Este não se distingue daquele que presta serviços em uma empresa média ou de grande porte; já aquele (empregador), sim, diferencia-se do que contrata o trabalho em uma empresa de porte mais elevado. No Brasil, o movimento operário, no início do século XX, intensificou sua atuação em defesa de melhores condições de trabalho e dos próprios direitos sociais. À época, inúmeras manifestações foram deflagradas com esse intuito, tal como a Greve Geral de 1917, em São Paulo. Na Era Vargas, o movimento foi desarticulado, não obstante a institucionalização de diversas normas trabalhistas (como a própria Consolidação das Leis do Trabalho). A estrutura sindical então implantada, ainda subsistente, não privilegiou as organizações coletivas de trabalhadores. Não por acaso, nos dias de hoje, a flexibilização tem uma marca peculiar: a imposição unilateral, de cima para baixo, pelo Estado, que não procura meios de negociação com os sindicatos, nem se ocupa com eventuais compensações ao trabalhador pelos direitos suprimi-

dos. A precarização das condições de trabalho dá-se praticamente à margem da atuação sindical. A preocupação com o desenvolvimento econômico a qualquer custo distorce a observação da realidade. A flexibilização tem em vista uma finalidade aparentemente louvável – combate ao desemprego e à economia informal -, mas é desastrosa na escolha dos meios. Isso porque adota uma lógica econômica perigosa, mas

simples: o empregador despende, por exemplo, X reais por mês com um empregado, incluindo salário e demais encargos trabalhistas e previdenciários; todavia, se deixar de pagar-lhe alguns direitos, como adicional por serviço noturno ou extraordinário, entre outros, passará a ter um encargo mensal de X/2, podendo, então, contratar outro empregado e expandir o negócio... Por trás desse tipo de raciocínio, encontra-se a tentati-

va de redução drástica de custos (em relação a cada trabalhador) e de maximização de lucros em pouquíssimo espaço de tempo (de preferência “do dia para a noite”). Com essa pretensão, a busca desmedida pelo crescimento econômico, inerente às propostas flexibilizatórias, opõe-se à afirmação dos direitos sociais. Estes passam a ser reconhecidos apenas na medida em que não atrapalhem ou diminuam os ganhos do empregador.

A necessidade de uma mudança de perspectiva É preciso, então, mudar o enfoque. O problema não é a legislação trabalhista, pelo menos não na parte em que fixa os direitos do trabalhador. As investidas tendentes a possibilitar melhores condições de manutenção e de desenvolvimento das empresas devem voltar-se, por exemplo, à estrutura sindical brasileira ou aos pesados encargos tributários, inclusive em matéria trabalhista. Em palestra proferida no Fórum Internacional “Perspectivas do Direito do Trabalho e do Processo do

Trabalho”, realizado no Tribunal Superior do Trabalho, no início de fevereiro, o jurista Arnaldo Süssekind chamava atenção para o problema da quantidade de tributos que incidem sobre o salário do trabalhador e cujo pagamento incumbe ao empregador. Esse, sim, constitui um elemento que contribui para o crescimento da economia informal: quanto maior o número de empregados registrados, mais elevado será o ônus tributário a cargo do empregador (por exemplo, contribuição ao INSS). Além

disso, essa forma de tributação do salário gera uma situação no mínimo curiosa: uma empresa que disponha de poucos empregados, mas que tenha elevado faturamento, tem menos encargos tributários (de natureza trabalhista e previdenciária) do que a empresa que contrata mais empregados, embora com faturamento menor. A tendência do empregador é, naturalmente, contratar menos mão-deobra assalariada. Uma alternativa para esse tipo de distorção é modificar a incidên-

cia desses tributos para o faturamento da empresa. Esse tipo de opção parece, contudo, encoberta pelas “promissoras” propostas de flexibilização das normas trabalhistas. Assim, faz-se necessária, repita-se, uma mudança de perspectiva, para que se possa identificar o que efetivamente acarreta encargos exagerados às empresas e o que contribui para elevadas taxas de desemprego. Uma coisa, porém, é certa: o melhor caminho não é retirar direitos, mas se esforçar para efetivá-los.


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Terceirização O trabalho como mercadoria CRISTIANO PAIXÃO

mundo do trabalho vive um momento de crescente complexidade, fragmentação e redefinição. O fenômeno da terceirização é um aspecto dessa reconstrução. Sua principal característica é a desvinculação entre as figuras do trabalhador e do empregador. O direito do trabalho clássico nasceu com uma clara natureza bipolar: num dos lados da relação, está o trabalhador, aquele que empresta suas próprias habilidades (por meio da força física ou de alguma atividade intelectual) em troca de uma contraprestação pecuniária, normalmente chamada de salário. No outro lado, está o empregador, aquela pessoa (física ou jurídica) a quem o trabalhador se subordina e que é responsável pelo pagamento decorrente da concessão da sua força de trabalho. Essa bipartição esteve associada ao direito do trabalho desde o seu surgimento, quer pela origem contratual das primeiras relações de trabalho, quer pela rigidez da divisão entre papéis que se verificou na organização da sociedade industrial a partir do século XIX. Na verdade, uma expressiva parcela dessa estrutura de pensamento – que situa o trabalhador como pólo oposto ao empregador – continua presente nos tempos atuais. A hierarquização das relações de trabalho, o poder diretivo do empregador, as reivindicações trazidas pelos sindicatos e o aspecto contratual persistem como princípios informadores do direito do trabalho. No caso brasileiro, isso se manifesta com maior visibilidade na organização sindical vigente. Os sindicatos são divididos por categoria, tanto de trabalhadores como de empregadores (é vedada a sindicalização de trabalhadores por empresa) e são considerados como pertencentes a pólos opostos, tanto que a legislação contém vários dispositivos que estimulam a negociação coletiva, mantendo, contudo, salvaguardas para o caso de impasse (como o poder normativo da Justiça do Trabalho). Numa negociação de na-

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tureza coletiva, sindicatos representativos de trabalhadores e empregadores sentam-se à mesa, debatem propostas, apresentam contrapropostas, defendem suas respectivas posições e, caso não tenham sucesso na obtenção de uma norma coletiva (acordo ou convenção coletiva de trabalho), são compelidos a permitir a chegada de um terceiro apto a decidir o conflito – ele pode ser um árbitro ou um órgão judiciário. Esse modelo de organização sindical pressupõe a existência de sindicatos dotados de poder de barganha, especialmente de trabalhadores, uma rigidez na vigência da norma coletiva e, principalmente, um mundo do trabalho que opere segundo essas características binárias, ou seja, que reconheça como protagonistas da relação de trabalho vários indivíduos que sejam ligados, diretamente, a empresas que se beneficiem da sua força de trabalho. E aqui se iniciam os problemas – e a precária situação dos “terceirizados”. Quem são esses trabalhadores? Para quem eles emprestam sua força de trabalho? Para que essas perguntas possam ser respondidas, é fundamental descrever a mudança no próprio conceito de terceirização. Originalmente, “terceirização” era considerada uma prática que não envolvia o desprendimento do trabalhador da relação com o tomador de serviços: terceirização era simplesmente a contratação, por uma empresa, de uma outra pessoa jurídica para a consecução de um fim determinado. Por exemplo: uma montadora de automóveis poderia – como ocorre até hoje – contratar uma empresa do ramo de autopeças para o fornecimento de uma certa mercadoria a ser utilizada na fabricação de um carro. Esse tipo de contratação não abala o modelo binário descrito acima: ambas as empresas citadas em nosso exemplo pertencem ao ramo da indústria metalúrgica; assim, os trabalhadores das duas empresas seriam regidos pela mesma norma coletiva, estariam abrangidos pelo mesmo sindicato (já que vi-

gora, no Brasil, a unicidade sindical) e poderiam reportar-se, em suas demandas, diretamente àquela empresa tomadora de seus serviços. O mesmo raciocínio vale para empresas pertencentes a ramos de atividade diferentes: se, voltando ao nosso exemplo, a montadora de automóveis contratasse uma empresa especializada em computação gráfica, e os trabalhadores da empresa contratada fossem filiados a sindicato distinto (como o de trabalhadores em empresas de processamento de dados), não haveria quebra na estrutura que remete o trabalhador ao tomador dos seus serviços. O que há em comum nos dois exemplos é um fato: a contratação, nesses casos de terceirização “clássica”, tem por objeto um determinado serviço – que normalmente assume a forma de um produto –, mas nunca o trabalhador. A força de trabalho não entra na equação. A situação é totalmente diferente nos casos de terceirização “atípica” – que vem se multiplicando ultimamente. Nessa nova modalidade de terceirização, mantém-se a idéia de contratação entre duas empresas. O que muda é o objeto da contratação: o que é negociado, agora, é a força de trabalho de alguns indivíduos, ou seja: a mão-de-obra. Várias empresas surgiram, especialmente a partir da década de 1980, com especializa-

ção em locação de mão-deobra, o que significa dizer: são empresas que comercializam a força de trabalho das pessoas. O aumento na prática da terceirização “atípica” pode ser notado por meio da modificação na jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho acerca da locação de mão-de-obra. Até 1993, vigorou o entendimento contido no Enunciado no 256, que dizia claramente: “é ilegal a contratação de trabalhadores por empresa interposta, formando-se o vínculo empregatício diretamente com o tomador de serviços”. As únicas exceções contempladas no Enunciado 256 eram: trabalho temporário (regido por uma lei própria) e serviço de vigilância (por envolver porte de armas, trata-se de atividade regulada por legislação específica). Em todos os outros casos, valia a regra geral: o trabalhador vincula-se àquele que toma, diretamente, os seus serviços. Contudo, o entendimento do Enunciado 256 foi superado em 1993, com a edição do Enunciado (hoje súmula) no 331. A súmula – que é válida até os dias de hoje – estabeleceu uma orientação diferente. Foi permitida a contratação de serviços por intermédio de empresa interposta nos seguintes setores: conservação, limpeza e “serviços especializados ligados à atividade-meio do trabalhador”. Voltando ao exemplo da monta-

dora de automóveis: a empresa está hoje autorizada a contratar uma outra empresa que fornecerá mão-de-obra para executar todos os serviços de limpeza e conservação em suas dependências, além de outros serviços que não sejam ligados à atividade-fim da montadora. O resultado é que vários trabalhadores passarão a freqüentar as instalações da montadora, conviverão com os trabalhadores dela, terão de se reportar a supervisores e/ou gerentes da empresa contratante, mas não serão trabalhadores da montadora, pois seu registro (carteira de trabalho) será assinado pela empresa “prestadora de serviços”. O que se percebe, então, é a inclusão do trabalhador como mercadoria na cadeia produtiva da sociedade do trabalho. O lucro da empresa “prestadora de serviços” não estará na fabricação de um bem, no fornecimento de um serviço especializado ou na elaboração de trabalho intelectual qualificado. A empresa lucrará com a força de trabalho “alugada” a um tomador, o que implica concluir: o homem perde a perspectiva da centralidade do trabalho. Ao invés de figurar como protagonista da relação de trabalho – ocupando um dos seus pólos –, o homem passa a ser objeto de uma negociação de natureza comercial. E quais são as conseqüências disso para o trabalhador?


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A desqualificação profissional As empresas prestadoras de serviços lucram, como vimos, sobre a força de trabalho humana. Assim, para persistir em atividade e gerar dividendos, essas empresas precisam oferecer a seu contratante o menor preço. Num mercado de trabalho altamente competitivo, as empresas disputam a atenção de clientes (empresas “tomadoras” de serviço) e acenam, na maior parte dos casos, com o preço “mais competitivo”, que usualmente é o menor. Com isso, agrava-se a precarização do trabalhador terceirizado: além de pertencer aos quadros de uma empresa que toma sua força de trabalho como objeto de negociação, esse trabalhador ainda verá seu empregador barganhando o valor do seu salário, com a finalidade de obter um contrato de prestação de serviços. No Distrito Federal esse problema é ainda maior, na medida em que um dos maiores clientes dos serviços terceirizados tem sido a Administração Pública, que funciona, como se sabe, pela lógica do menor preço, por intermédio das formas legais de contratação de serviços de terceiros (usualmente licitação ou pregão). Isso gera uma competitividade entre as empresas para que se descubra, no resultado da licitação, aquela que pode oferecer o “melhor preço”, ou seja, aquela que paga menos a seus trabalhadores. Com isso, vem à tona uma das maiores desvantagens da situação de trabalhador terceirizado. Não há investimento em formação, qualificação e aperfeiçoamento profissional. Como a prestadora de serviços tem como

única fonte de lucro a força de trabalho humano (ou seja: o salário do trabalhador), qualquer tipo de treinamento importará em custo para a empresa (que não dispõe de nenhuma outra fonte de recursos). O resultado será um trabalhador desqualificado, sem formação, sem perspectiva, sem futuro. O tempo e o espaço subtraídos Um dos desdobramentos mais perversos da expansão da terceirização está na seguinte conclusão: o trabalhador terceirizado é um indivíduo sem referência de tempo e espaço – que são as dimensões constitutivas da experiência humana no mundo exterior. O deslocamento em relação ao tempo se dá pelo seguinte contexto. As empresas prestadoras de serviço sobrevivem a partir de contratos celebrados com terceiros. No âmbito da Administração Pública e da iniciativa privada, a forma de vinculação é a mesma: são contratos de presta-

ção de serviço que têm duração determinada, em sua grande maioria por um ano. Nada garante a renovação desse contrato: no ano seguinte ao da contratação de uma prestadora de serviços, uma outra empresa pode oferecer um “pacote” mais favorável (em regra, salários mais baixos para os terceirizados). Essa é uma situação muito comum no Distrito Federal. Ela chega a ser rotineira. Com isso, o trabalhador terceirizado vê o futuro como algo aterrorizante. É quase certa a perda do emprego com o final do contrato. Afinal de contas, sua permanência na “prestadora” está condicionada à existência de uma “tomadora”. A “tomadora” tem liberdade para contratar a empresa que oferecer o melhor “pacote”. O futuro equivale, para o trabalhador terceirizado, ao vazio, à ausência, ao incerto. Alguns poderiam dizer que essa angústia pertence a todos os trabalhadores no mundo atual. Isso é verdadeiro, mas apenas em parte. Para o trabalhador

terceirizado, a insegurança e o temor são maiores. Ele não tem perspectiva de ascensão funcional, pois as empresas prestadoras são especializadas no fornecimento de determinados serviços que não compõem a atividade-fim do tomador. Como já vimos, não há intenção de qualificar ninguém. Além disso, a crescente competitividade tem como conseqüência a busca, pelas empresas, de um trabalhador “barato”, sem experiência, sem treinamento, sem expectativas. A condição para permanecer no mercado não é a da qualidade do serviço. Numa empresa estruturada com quadro de pessoal organizado em funções e plano de carreira, há, ainda que de modo incerto e flutuante, a possibilidade de ascensão profissional. Trabalhadores interessados em determinadas atividades podem buscar a formação adequada, podem gradativamente aprender um novo ofício, enfim: podem planejar o seu futuro. Essa perspectiva é inteiramente sub-

traída do terceirizado. O trabalho em atividades terceirizáveis é também carente de referências no espaço. O mercado das empresas prestadoras de serviço é altamente volátil. O trabalhador não fica vinculado apenas a um “tomador”, o que chega a ser cruel: além de não pertencer aos quadros da empresa que utiliza a sua força de trabalho, o terceirizado sequer tem alguma garantia de que permanecerá – pelo reduzido período de duração do contrato – trabalhando para o mesmo “tomador”. Lembremos que a contratação de mão-de-obra não envolve um indivíduo determinado: o que é negociado é a força de trabalho. Para a tomadora, na maior parte dos casos, pouco importa se o trabalhador “A” ou o trabalhador “B” será responsável pelo serviço. O que interessa é o fornecimento do trabalho. É usual, na práxis das relações de trabalho no Distrito Federal, que um mesmo trabalhador, no período do contrato de prestação de serviços, trabalhe em duas ou mais “tomadoras”. Numa semana, ele poderá executar serviço de limpeza e conservação num condomínio residencial. Na semana seguinte, ele poderá estar nas dependências de um ministério. Na semana posterior, ele poderá ser deslocado para um shopping center, e assim sucessivamente. Comprimido entre a ausência de futuro (uma espécie de não-tempo) e a incerteza sobre a localidade (uma espécie de não-espaço), o trabalhador terceirizado vai se transformando nessa mercadoria dispensável, precária e sem referências.

Alternativas, riscos e possibilidades O balanço da terceirização, na forma em que vem sendo praticada, é o pior possível. Num contexto de desemprego estrutural e dificuldades na criação de novos postos de trabalho, a locação de mão-de-obra aparece como uma das modalidades mais agudas de precarização do trabalho. Mesmo assim, algumas alternativas podem ser encontradas na experiência do mundo do trabalho. No Distrito Federal, foi celebrada – e vem sendo renovada – uma convenção coletiva de trabalho entre o sindicato que representa os trabalhadores

em serviços terceirizáveis e as empresas prestadoras de serviço; essa convenção contém uma cláusula criativa, inovadora e relevante. Ficou estabelecido que a empresa prestadora, ao assumir um novo contrato, está obrigada a aproveitar os trabalhadores que estavam na empresa anterior (que não conseguiu renovar o contrato de prestação de serviços), concedendo-lhes, ainda, estabilidade no emprego por seis meses. Em contrapartida, a empresa “perdedora” pode demitir seus trabalhadores pela modalidade da culpa recíproca, que envolve encargos sociais

menores do que os incidentes na demissão sem justa causa. Com essa cláusula, diminuíram os casos – infelizmente, ainda existentes – de empresas que deixam de pagar todas as verbas trabalhistas (e também salários) a seus trabalhadores quando não conseguem a renovação do contrato de prestação de serviços. Além disso, na Resolução nº 7 do Conselho Nacional de Justiça, que veda o nepotismo nos tribunais, há um artigo impedindo que parentes de juízes possam ser empregados de empresas que celebrem contratos de prestação

de serviços com órgãos do Poder Judiciário. Esse preceito tem o valor de um diagnóstico: o de que a terceirização é uma forma de burlar o acesso dos indivíduos aos cargos públicos, ocupados por meio de concurso público. São reações, paliativos, movimentações de atores sociais que se deparam com o fenômeno da terceirização. Isso demonstra a capacidade que o direito tem de interferir na dinâmica das relações sociais, com resultados ambíguos: ao mesmo tempo em que permite a precarização das relações de trabalho com a ampliação das possi-

bilidades de terceirização, o direito vigente impõe limites à locação de mão-de-obra e estabelece modalidades de proteção para o trabalhador terceirizado. Mas é pouco. Se a sociedade brasileira pretende, de fato, constituir-se como uma coletividade de indivíduos que exerçam sua cidadania e dignidade por meio do trabalho, seus atores políticos precisarão enfrentar a perversa realidade da terceirização, que vem produzindo, cada vez mais, trabalhadores sem identidade, sem perspectiva, sem futuro, sem localização. Trabalhadores sem face.


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A gestão da empresa e os direitos fundamentais dos trabalhadores MARTHIUS SÁVIO CAVALCANTE LOBATO

s temas gestão da empresa e direitos fundamentais dos trabalhadores estão intimamente ligados. O ponto de ligação está na concepção de Poder. Nesta relação, o poder está na possibilidade de alguém impor determinadas condutas, na medida em que o poder existe para concretizar uma idéia. Por isso, os interesses estavam contrapostos. Por parte empresarial, através da velha concepção do direito de propriedade, ou seja, cabe ao dono o poder de decisão. Neste aspecto, não há espaço para ingerência dos trabalhadores. Os interesses são antagônicos e o conflito entre capital e trabalho é inerente à sociedade industrial. Não há possibilidade para a divisão de poder. Por parte dos trabalhadores, diante do poder absoluto do empregador na empresa, não resta outra alternativa senão a da prática de um ativismo de oposição. A luta da classe trabalhadora se conduz pela proteção de sua categoria e ao mesmo tempo na tentativa de melhores condições econômicas. Há, portanto, um inerente conflito, na medida em que, em face do poder autocrático que impera, não resta outra alternativa senão a prática da oposição, sob pena dos trabalhadores se tornarem submissos. Esta tensão – poder autocrático e concentrado na figura do empregador x sindicalismo de oposição – começa a diminuir na medida em que os atores envolvidos passam a perceber que a situação conflituosa entre o capital e trabalho poderia, sem deixar de lado seus postulados, diminuir através de uma efetiva participação. Em suma, trabalhadores e empresa podem atuar associando participação e conflito.

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A gestão da empresa e a OIT Desde sua criação a OIT atuou na proteção dos direitos humanos dos trabalhadores. Para ela, o melhor sistema de proteção destes direitos está na ampla liberdade de representação dos trabalhadores em conjunto com um amplo sistema de negociação coletiva. Estes sistemas foram devidamente concretizados através das Convenções n.º 87 e 98 ambas da OIT. A utilização

destes sistemas também não era suficiente se não se pudesse de fato garantir a democracia no âmbito da empresa. O poder de império empresarial deveria sofrer seus limites com a preservação da dignidade humana do trabalhador. Para tanto, haveria a necessidade de se permitir uma democracia interna com previsão de atuação dos trabalhadores na gestão da empresa. Nasce, assim, a Convenção n.º 135 da OIT, que tem como função permitir a participação dos trabalhadores na gestão da empresa através de suas representações no local de trabalho. Prevê garantias de não discriminação para o trabalhador que exerça a função de representação no âmbito da empresa; garante, independentemente da forma de sua condução à função, ou seja, indicado pelo sindicato ou eleito pelos trabalhadores, que gozem de proteção eficaz contra todo e qualquer ato que possa vir a prejudica-lo. É de se observar que, mesmo tendo sido adotada em 1971, na 56a Sessão da Conferência Internacional, a Convenção n.º 135 da OIT traz em seu conteúdo o princípio da igualdade nas relações entre capital e trabalho. O Brasil ratificou a Conven-

ção n.º 135 da OIT, em 1990. Esta ratificação foi fruto da abertura que a Constituição de 1988 trouxe para o direito interno ao consignar, como princípios constitucionais, a proteção dos direitos humanos dos trabalhadores que já existia na esfera internacional.

A Constituição de 1988 garantiu a participação dos trabalhadores na gestão da empresa O direito de cidadania No mundo contemporâneo não há mais espaço para posições absolutas, de império, de verdades únicas. O poder deve ser sempre pensado como uma forma de diminuições de tensões e como solução de conflito. A Constituição brasileira de 1988 trouxe este pensamento. A sua elaboração, com a participação ativa da sociedade civil, teve como conseqüência a existência concreta de atuação da sociedade nas estruturas de poder, demonstrando claramente sua intenção de garan-

tir um Estado democrático, e, portanto, participativo. Nas relações de trabalho, a Constituição de 1988 trouxe mecanismos eficazes de uma atuação participativa na gestão da empresa. Entre direitos sociais dos trabalhadores está prevista a “participação nos lucros, ou resultados, desvinculados da remuneração, e, excepcionalmente, participação na gestão da empresa, conforme definido em lei” (artigo 7.º , XI). Em uma leitura isolada, pode-se chegar à conclusão, falsa, de que a constituição não permite a utilização de participação dos trabalhadores na gestão da empresa, na medida em que consigna a expressão excepcionalmente quanto a participação na gestão da empresa. Esta posição, contudo, não pode ser aceita, frente aos diversos dispositivos constitucionais existentes. No preâmbulo da constituição, temos como princípio a garantia do “exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social [...]”. Como princípio funda-

mental, inseriu em seu artigo 1.º , inciso IV, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, além de estabelecer que constitui objetivo fundamental “construir uma sociedade livre, justa e solidária”(art. 3.º, inciso I). Estes princípios fundamentais já seriam suficientes para demonstrar que a participação dos trabalhadores na gestão da empresa não se limita às normas expressamente consignadas na constituição, ou seja, vão além da relação interna corporis empresarial. Na ordem econômica, temos como princípio a garantia de uma existência digna, conforme ditames da justiça social, fundada na valorização do trabalho humano e da livre iniciativa (artigo 170). E mais. O artigo 193 diz expressamente que “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. A Constituição inseriu, ainda, a gestão administrativa descentralizada e participativa dos atores sociais – trabalhadores e empresários no trato da seguridade social (artigo 194, parágrafo único, inciso VII). Este bloco de princípios constitucionais nos permite afirmar que a Constituição de 1988 possibilita a participação dos trabalhadores na gestão da empresa. A necessidade da participação dos trabalhadores na gestão da empresa se dá a partir do momento em que a atuação gerencial patronal acaba por atingir direitos dos trabalhadores. Uma decisão administrativa empresarial não poderá ser considerada isolada a ponto de impedir a manutenção das garantias constitucionais dos trabalhadores. De fato, a própria constituição permite a demissão sem justa causa. Para muitos, se o bem maior do trabalhador é o emprego, se a constituição permite a demissão por ato diretivo empresarial, sem justa causa, o poder diretivo patronal é ilimitado. No mundo em que vivemos, não há lugar para atos de gestão empresarial de império. As empresas, muito embora sejam propriedades privadas, deverão, sempre, atender à sua função social. Entre as diversas funções sociais existentes, encontramos a garantia e preservação da dignidade da pessoa humana do trabalhador.


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O poder do empregador tem limites A tensão que outrora existia entre poder de império empresarial e ativismo de oposição das representações dos trabalhadores deixa de ser o ponto fulcral da relação entre o capital e trabalho para dar lugar à preservação dos direitos fundamentais dos trabalhadores, através de mecanismos eficazes de proteção. Entre estes mecanismos de proteção encontramos a aplicação horizontal dos direitos fundamentais dos trabalhadores nas relações de trabalho. Percebe-se que, na maioria das vezes, os direitos fundamentais não são aplicados, sob o pretexto de que a empresa detém o poder discricionário, o poder de império. Esta posição, na realidade, afasta a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas, entendendo que a constituição vincula somente o Estado. As instituições democráticas A tensão existente entre o poder autocrático e concentrado na figura do empregador de um lado e um sindicalismo de oposição de outro nos remete a uma reflexão sobre Justiça. O amplo exercício do Estado Democrático de Direito exige que o Judiciário atue de forma a concretizar os direitos fundamentais dos trabalhadores. Para tanto, há a necessidade de buscar a aplicação das normas internacionais ou mesmo dos princípios constitucionais para garantir a diminuição da diferença entre o capital e o trabalho. De fato entre os princípios constitucionais encontramos a livre iniciativa. Este princípio não poderá ser aplicado isoladamente, sem que seja preservada a dignidade humana do trabalhador. O papel do Judiciário é fundamental para preservar a busca de um equilíbrio entre o capital e o trabalho. Não basta ter o emprego. É preciso que este lhe preserve a dignidade. As punições de trabalhos degradantes são fundamentais para a preservação de um ambiente de trabalho

O papel do Judiciário é fundamental para preservar a busca de um equilíbrio entre capital e trabalho

digno. Daí a necessidade de o Judiciário trabalhista voltarse para a contemporaneidade da sociedade e passar a garantir, através de princípios da preservação da dignidade humana do trabalhador , mecanismos de proteção e de atuação como a Convenção n.º 135 da OIT. Democracia e ação sindical Ainda que estejamos em pleno século XXI, encontramos, quer do lado patronal, quer do lado da representação dos trabalhadores, posições contrárias à plena existência de uma democracia participativa no interior da empresa. De um lado o setor patronal mais conservador e inseguro em perder sua autoridade enquanto proprietário; de outro, a representação sindical que, ao participar da gestão da empresa, também de forma conservadora e insegura, perder o seu norte, ou seja, ser contaminada com o poder patronal.

A aplicação horizontal dos direitos fundamentais é um dos mecanismos de proteção do trabalhador O exercício da democracia participativa no interior da empresa não retira do empregador o seu poder de comando. Mesmo com a participação do trabalhador na gestão da empresa a decisão final será sempre do empresário. Contudo, a participação dos trabalhadores na gestão da empresa gera o compromisso de atuar com responsabilidade, fundamentando as decisões administrativas. Da mesma forma o ativismo sindical não retira da representação dos trabalhadores o poder de

oposição. Pelo contrário. Sua oposição será mais fundamentada, na medida em que, terá, de fato, o conhecimento da gestão da empresa e poderá atuar realisticamente. A participação efetiva na gestão da empresa por parte dos trabalhadores não traz como conseqüência a exclusão dos conflitos entre capital e trabalho. Esta situação de conflito, que é inerente na relação entre capital e trabalho, irá sempre existir. A existência de uma relação democrática interna na empresa garantirá, para os conflitos existentes, maior facilidade de solução, na medida em que terá a participação efetiva dos trabalhadores, logo, o comprometimento do resultado a ser obtido. A aplicação dos direitos fundamentais dos trabalhadores não vincula somente o Estado. A vinculação se dá, principalmente, nas relações privadas. É nesta relação que mais se necessita de meca-

nismos de proteção. Assim como o Estado, nas relações privadas há a necessidade de se estabelecer limites de atuação para garantir ao cidadão trabalhador o trabalho decente, preservando sua dignidade . Em suma, a participação dos trabalhadores na gestão da empresa certamente garantirá a preservação dos direitos fundamentais, bem como uma gestão com lucratividade, dentro de uma responsabilidade social.

A participação dos trabalhadores preserva os direitos fundamentais e propicia a lucratividade da empresa


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ENTREVISTA

Direitos humanos e os limites da exploração do trabalho Juliano Zaiden Benvindo, doutorando em Direito pela UnB, e Ricardo M. Lourenço Filho, mestrando em Direito pela UnB, entrevistaram o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho Lelio Bentes Corrêa, que falou sobre direitos humanos, OIT e exploração do trabalho infantil e escravo 1. Existe um movimento global pela erradicação do trabalho infantil, destacando-se importantes convenções da Organização Internacional do Trabalho. Como o senhor observa o papel da OIT no combate ao trabalho infantil? Nós temos as Convenções 138, que é de 1973, e a 182, que é de 1999. Essas duas convenções se complementam na medida em que a Convenção 138, de uma forma muito abrangente, fixa que os países devem observar uma idade mínima das crianças para o ingresso no mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, vincula essa idade ao término do ensino compulsório. Eu acho que essa é a grande conquista da Convenção 138: estabelecer a vinculação entre idade mínima para o trabalho e término da educação compulsória, deixando muito claro que deve prevalecer sempre a educação. Mas como era uma convenção muito genérica, muito pouco específica em determinados aspectos, a Convenção 138 não só tinha pouca efetividade, como também despertava um certo temor nos países quanto ao ato de ratificação, porque havia a preocupação de que o não-conformismo com a convenção pudesse ser tomado como fundamento para uma acusação de prática desleal. Surgiu a preocupação de que os países não se sentissem em condições ou à altura das exigências da Convenção 138. Daí resolveram adotar a Convenção 182, que tem por escopo a imediata eliminação das piores formas de trabalho infantil. Basicamente a Convenção 182 se

coloca, nesse contexto, como um detalhamento da 138, e como um plano concreto de ação, propondo que nenhum país tolere exploração de formas degradantes de trabalho da criança, tais como trabalho em regime de escravidão, exploração sexual e trabalho em pornografia e atividades que gerem risco à saúde física ou psíquica dessas crianças. Essa Convenção foi aprovada à unanimidade pelo Plenário da OIT. O processo de ratificação dela é a coisa mais espantosa que já se viu na OIT. O curioso é que se detectou que essas piores formas de trabalho infantil correspondem a quase 80% de todo o trabalho infantil encontrado no mundo. Quer dizer, se se alcançar esse objetivo a que se propõe, teremos reduzido o problema a 20%. Temos lei, temos o arcabouço filosófico e legal para combater o trabalho infantil? Sim, temos, e na prática, como é que isso funciona? A OIT, e esse é o grande questionamento, tem meios de dar efetividade a esses dispositivos? Essa é a grande crítica que se faz, não só à OIT, mas a todo o sistema das Nações Unidas. É claro que as normas internacionais dependem de uma manifestação de soberania para sua ratificação, mas mais importante do que o ato de ratificação é a capacidade dos estados nacionais de tornarem realidade aqueles objetivos, aquelas intenções declaradas nas normas internacionais.

uma maneira muito criativa em relação ao sistema das Nações Unidas. Ela tem mecanismos de controle, como a ONU também tem. No que diz respeito, por exemplo, à liberdade sindical, há até um comitê específico para analisar casos de grave violação às normas relativas a direito sindical; há, quanto às demais normas, um Comitê de Normas, que se reúne, anualmente, no bojo da Conferência da OIT, também para examinar casos de violação das normas ratificadas pelos países. Em última análise, todo esse trabalho de exame de violação do trabalho, quase judicial, tem sua eficácia limitada, exatamente pelo elemento da soberania. O constrangimento que essas decisões criam é moral: o país percebe que vai ficar mal perante a comunidade internacional. Mas, em última análise, se ele resolver desafiar o sistema, como é o caso de Niamar, antiga Birmânia, em que o trabalho escravo é patrocinado pelo Estado, é dificílimo encontrar uma forma de compelir o país a atender aos cânones internacionais, a não ser por meio da sensibilização da comunidade internacional e pressão econômica. Agora, quando as razões econômicas se contrapõem aos interesses maiores, por mais elevados que sejam os interesses de proteção dos direitos fundamentais ... a lógica da economia, às vezes, não liga muito para isso.

2. Como, então, dar efetividade a essas normas internacionais? A OIT vem tentando dar efetividade a essas normas de

3. No plano internacional, como o senhor avalia as perspectivas universalizantes das convenções da OIT em confronto com particula-

rismos regionais? Hoje nós temos, no âmbito dos direitos humanos, as chamadas normas consuetudiárias, que definem valores universais: liberdade de expressão, direito de não ser torturado, direito à livre negociação – já é considerado um valor universal -, direito à condição de cidadão livre, o repúdio à escravidão. Eu tenho sustentado que essas normas fundamentais, que a OIT propugna, estão intimamente relacionadas com esse núcleo de normas definidoras das garantias universais e que, por isso, merecem uma posição de destaque no cenário dos direitos humanos. Aí, surgem os alertas, já passando a analisar nossa situação local. Eu disse ainda agora que a OIT sempre tem um carinho muito especial pelas normas definidoras da liberdade sindical, pelo princípio da proteção à liberdade sindical, porque esse é o meio pelo o qual se espera alcançar o avanço em outros segmentos das re-

lações de trabalho. E é justamente aí que o Brasil falhou, ao não ratificar simplesmente a Convenção mais importante da OIT, que é a Convenção 87, que assegura a liberdade sindical. Insistimos, por interesses estritamente políticos, na manutenção de um modelo sindical que já se provou atrasado, defasado, prejudicial aos trabalhadores e à cidadania, que é esse modelo hierarquizado, verticalizado, em que o topo da liderança sindical perde o contato com a realidade. Isso é a pior coisa que pode acontecer para um sindicalista, que não houve as bases, não vê as bases, não sabe o que se passa nas bases. E, muitas vezes, há sindicatos sobrevivendo de impostos repassados pelo governo, levando a um atrelamento absurdo, em pleno século XXI, e até sindicatos com alergia ao trabalhador. Certos sindicatos não querem associados, porque o associado cria problema, o associado questiona, o associado quer votar!


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Por conta desse modelo retrógrado e nocivo de estruturação sindical, nós deixamos de ratificar a Convenção 87 da OIT, que é pressuposto, como eu já disse, para a nossa condição de membro daquela comunidade tão relevante. Isso é uma vergonha perante a comunidade internacional e, mais do que isso, é um risco. A partir do momento que essa visão da necessidade de comprometimento dos países com os preceitos fundamentais da OIT vai se alastrando, o risco de conseqüências se torna mais concreto. O Brasil é um dos dez membros permanentes da OIT; é membro desde a fundação e é membro permanente. O Brasil busca, como a imprensa divulga, uma posição de liderança, uma posição vanguardista, no seu bloco econômico. Mas como nós vamos poder reivindicar isso se nós não ratificamos nem a Convenção 87? E aí vale à pena uma explicação. O que a Convenção 87 determina não é que cada trabalhador vai poder fazer um sindicato; o que ela determina é que o trabalhador é quem vai decidir sobre quantos sindicatos quer ter, quais sindicatos quer ter e como eles vão funcionar. Como conseqüência disso, adviriam outros desdobramentos importantes. Hoje, o Supremo Tribunal Federal e, nós mesmos, aqui no TST, por força dessa jurisprudência do Supremo, entendemos que o preceito da CLT que fixa o número máximo de dirigentes sindicais foi recepcionado pela Constituição de 1988, o que seria completamente incompatível com esse preceito da liberdade sindical, consagrado pela Convenção 87. Até porque não é razoável admitir que um sindicato que tenha trezentos associados tenha sete membros na diretoria, e outro, com dezoito mil associados, tenha sete membros na diretoria. E chegamos a um grau de sofisticação em que temos de decidir aqui, numa diretoria com 58 ou 60 integrantes, quem serão os sete que vão receber o grande prêmio da garantia contra a demissão desmotivada. É a categoria que tem que dizer, é o estatuto da entidade sindical que tem que dizer isso. De sorte que essa mudança precisa ser introduzida urgentemente. O Brasil tem sua imagem desgastada perante a comunidade internacional, por um compromisso que não se justifica, que é um compromisso com as elites do movimento sindical. E nós temos um Presidente da República que veio da base do movimento sindical. Isso precisar ser revisto urgentemente.

4. Como o senhor vê o Brasil em relação às demais convenções da OIT, como o trabalho escravo e infantil? No combate ao trabalho escravo, o esforço do Brasil é devido em parte a estratégias governamentais: a criação dos grupos móveis foi muito importante, porque ajudou a superar uma barreira que muitas vezes se oferecia em face dos cargos de delegados regionais do trabalho serem providos por indicação política. Criou-se, então, esse grupo móvel de fiscalização, que é vinculado diretamente à Secretária Nacional de Fiscalização do Trabalho, atuando em todo território nacional com apoio da Polícia Federal, do Ministério Público e, em algumas vezes, acompanhada pelo próprio Juiz do Trabalho, que vai a campo e constata a situação do trabalho escravo, já tomando as medidas necessárias para reparação civil e trabalhista. A atuação do grupo móvel tem sido muito eficiente e tem ajudado a trazer à luz do dia essa realidade que estava meio escondida em determinadas regiões do País.

Certos sindicatos não querem associados, porque eles criam problema, questionam, querem votar! A atuação do Poder Judiciário tem sido também muito relevante. As indenizações por danos morais em causas que envolvam exploração do trabalho escravo foram objeto de citação no Relatório Geral do Diretor da OIT, primeiramente, por seu caráter pioneiro e, depois, porque elas potencializam as multas administrativas que, muitas vezes, por força da defasagem da lei, tornam-se até irrisórias. Então, quem explora o trabalho escravo, via de regra, o faz seguindo uma lógica perversa econômica. A conseqüência tem de ser econômica. Em outras palavras, para aquela pessoa que demonstra avidez pelo lucro fácil, o órgão sensível a ser atingido é o bolso. É aí que se busca uma reparação. As varas itinerantes, como disse, são importantíssimas. E eu diria por dois aspectos. São importantes porque estendem a presença do Estado à localidade de difícil acesso e combatem aquela sensação de impunidade da qual se alimenta esse tipo de infração. O sentimento de

impunidade, sem dúvida, é fortíssimo em algumas regiões do país. Na medida em que o juiz chega, comparece e verifica a situação, essa idéia de que tudo vai ficar impune vai se diluindo e vai mudando o conceito daquele grupo social. Mas ela é importante também, na medida em que humaniza a atividade jurisdicional e permite ao juiz uma experiência que, com certeza, ele vai levar para o resto da vida, porque nós não podemos ver a sociedade de dentro de gabinetes, com vista para o mar e um aparelho de ar condicionado. Muitas vezes, estar ali no terreno, em contato com aquela realidade, conhecendo a dificuldade e o sofrimento daquelas pessoas, esse choque de realidade tempera o caráter do julgador de uma maneira diferente. Com relação ao trabalho infantil, o Brasil também tem tido experiências muito positivas, a partir, historicamente, do projeto de bolsaescola, que é um programa que funcionou e funciona baseado na seguinte premissa: primeiro, essas crianças precisam ter sua auto-estima resgatada; segundo, temos de combater o falso dilema de que a criança que não trabalha vai se perder na rua, no tráfico de drogas. Na verdade, o que se coloca em oposição é escola, rua ou trabalho. De forma que o investimento na educação dessas crianças tem sido também uma marca desses programas de combate ao trabalho infantil que, inclusive, tentam consertar uma deficiência de nosso sistema educacional, que é a escola de meio período. Esse projeto trabalha o conceito da criança como sujeito de direito e o aspecto de sua vulnerabilidade. Ele tenta diminuir sua vulnerabilidade pelo acesso à educação. E tudo isso complementado, obviamente, pela substituição temporária do ingresso econômico resultante do traba-

lho da criança. Mas fundamental ter em mente que essa substituição tem de ser temporária. Não se pode criar um estado de dependência por força do assistencialismo entre o cidadão e o Estado, senão não se estará dando cidadania a ninguém. 5. Quais as principais dificuldades no combate ao trabalho infantil. Há uma aceitação passiva da comunidade, principalmente da classe média, em aceitar o trabalho infantil? Primeiro, o entrave é este: é a questão cultural e muitas vezes nós somos traídos por nossa comodidade. Seguramente, você já deve ter tido a oportunidade de conversar com alguém que tenha dito o seguinte: “eu estou ajudando uma criança que veio do interior. Ela estava lá passando fome, coitada, e veio para minha casa agora e virou da família... uma criança da família”. Eu costumo brincar que é uma história de cinderela ao contrário, porque a vida de cinderela dessa criança termina no momento em que ela limpa o banheiro, arruma a cama e come o resto da comida dos donos da casa. Então, ela é da família, mas não vai para escola. As pessoas acreditam até de boa-fé que estão fazendo um bem. Agora, essa leniência, esse conformismo com a miséria dos outros é muito prejudicial, a ponto de nós chegarmos a acreditar, a certa altura, que, para certas pessoas, há quase um sentimento de casta. Há um sentimento de que, ao pobre, deve-se dar uma educação pobre para que permaneça pobre, tenha filhos pobres. Ficamos preso em um círculo vicioso da pobreza. Tudo isso agravado pela falta de iniciativas governamentais que permitam uma alternativa viável para essa situação, o que vem sendo suprido por esses programas de largo espectro visando às

populações mais vulneráveis. Quando se coloca em um lugar público uma situação de trabalho escravo, as pessoas reagem com muita indignação. Já, dependendo da situação do trabalho infantil, a indignação é menos entusiástica, porque até algumas pessoas, em casa, fazem pior. Quando se fala em trabalho infantil doméstico, o Distrito Federal é o campeão brasileiro. De sorte que essa desativação dos núcleos de combate ao trabalho infantil, no Ministério do Trabalho, pra mim, é uma sinalização muito perigosa de que o Ministério estaria elegendo outras prioridades e cortando o espaço de combate ao trabalho infantil. E não há dúvida: em um país com a desigualdade social que nós temos, essa vigilância tem de ser constante e nós temos de nos preocupar em salvar gerações futuras.

O Brasil tem imagem desgastada perante a comunidade internacional pelo compromisso com as elites do movimento sindical O fatalismo desses grupos é uma coisa impressionante. Uma vez em Rondônia, no garimpo, eu verifiquei um senhor de uns sessenta e poucos anos descendo um poço para exploração de minério, cavado por eles próprios, com uma netinha de quatro anos de idade no colo. Eu perguntei: “Por que você está fazendo isso?”. Ele disse: “ela tem de ir se acostumando, porque lá embaixo é úmido, é quente e é isso que ela vai fazer na vida dela”. Estamos condenando gerações a desperdiçarem sua saúde, sua vida, presas nesse círculo vicioso.


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OBSERVATÓRIO DO LEGISLATIVO

A agenda oculta da revisão constitucional JANAÍNA LIMA PENALVA DA SILVA, JORGE LUIZ RIBEIRO DE MEDEIROS, LEONARDO AUGUSTO ANDRADE BARBOSA, PAULO SÁVIO PEIXOTO MAIA

s dois primeiros números de Constituição & Democracia chamaram a atenção para a ilegitimidade da proposta de revisão constitucional em curso no Congresso Nacional, a chamada PEC 157/2003. Durante o mês de março, a Comissão Especial constituída na Câmara dos Deputados para oferecer parecer de mérito à matéria esteve em compasso de espera. O relatório do Deputado Roberto Magalhães (PFL-PE), recomendando a aprovação da proposta com pequenas alterações, foi apresentado no dia 20 de fevereiro e já estava pronto para deliberação três dias depois. De lá para cá, foram realizadas apenas duas audiências públicas. A primeira previa a participação do Presidente da Associação dos Magistrados Brasileiro – AMB, Rodrigo Collaço (ausente à reunião) e do membro honorário vitalício do Conselho Federal da OAB, Reginaldo Oscar de Castro, que se manifestou favoravelmente à aprovação do projeto, sublinhando que tal posição refletia suas convicções pessoais e não uma posição da instituição. A situação inusitada gerou certo constrangimento na Comissão, que resolveu instar a OAB a se manifestar oficialmente, por escrito. A reunião deliberativa ordinária marcada para 8/03 foi cancelada, enquanto a prevista para 14/03 acabou não se realizando por falta de quorum. Dois fatos importantes, entretanto, tiveram lugar durante o dia 14, nos poucos momentos em que alguns membros da Comissão Especial estiveram reunidos informalmente. O primeiro diz respeito à apresentação de um Voto em Separado (posição divergente da sustentada pelo Relator) pelo Partido dos Trabalhadores - PT, mais especificamente pelos deputados Luiz Eduardo Greenhalgh, Antônio Carlos Biscaia e Odair Cunha. O voto do PT foi a primeira manifestação partidária diretamente contrária à realização do pro-

O

cesso de revisão constitucional. Também o PDT, por meio do Deputado Alceu Collares, manifestou-se, mesmo que informalmente, contrário ao parecer do Relator. O segundo fato relevante decorre do surgimento dessa primeira dissidência. A Presidência e a Relatoria da Comissão decidiram, diante da posição divergente externada no voto do PT, envolver no debate diretamente os partidos políticos. Aparentemente a intenção era desmobilizar as resistências internas na Comissão e garantir a aprovação do Relatório do Deputado Roberto Magalhães. Dessa forma, na segunda audiência pública, realizada em 21/03, manifestaram-se favoráveis à PEC, pelo PDT, o deputado Miro Teixeira e pelo PL, o Deputado Inaldo Leitão. Já os presidentes de PC do B e PT, respectivamente Renato Rebelo e Ricardo Berzoini, posicionaram-se contrariamente à revisão constitucional, em virtude da ausência de base constitucional, social e política para sua realização. No dia 28, seriam ouvidos os presidentes do PSDB, PV e PSB e no dia 29, representantes dos seguintes partidos: PPS, PP, PTB e PSOL. Existe a previsão de que, terminada as audiências com os partidos políticos, algumas organizações da sociedade civil possam ser consultadas. O INESC – Instituto de Estudos Socioeconômicos entregou ao relator uma proposta sugerindo os nomes de seis organizações: CNBB, CONTAG, CONAMP, ABONG e representantes de servidores públicos e movimento negro. O envolvimento institucional dos partidos políticos traz o debate eleitoral para o centro da discussão na Comissão. Começa a se delinear um quadro em que a posição dos principais pré-candidatos à Presidência da República interfere diretamente no juízo de conveniência política acerca do momento adequado para aprovação da Emenda. Em outras palavras: como a revisão tende a favorecer o próximo governo (pretendemos aprofundar esse argumento adiante), os partidos com desempenho mais fraco nas pesquisas eleitorais preocupam-se em não apenas per-

der a eleição, mas oferecer de bandeja ao adversário um potente “instrumento de governabilidade”. Essa variável pode adiar a decisão sobre a revisão para após as eleições. Assim, levados em consideração tais desenvolvimentos, acreditamos ser relevante: (1) comentar alguns aspectos do Voto em Separado (VTS) apresentado pelo PT; (2) procurar identificar a “agenda oculta” da revisão constitucional, ou seja, analisar quais propostas poderiam ser eventualmente votadas durante o funcionamento da Assembléia Revisora prevista para 2007. Uma reação à revisão às escondidas O VTS apresentado é, de fato, muito bem confeccionado. Primeiro, porque mostra de forma clara o autoritarismo constitucional que informa a proposta de revisão; segundo, porque, ao criticar essa postura, promove um interessante resgate do projeto do constitucionalismo moderno. Por tal razão, alguns dos pontos levantados merecem ser destacados e debatidos. 1. A impossibilidade de uma revisão constitucional. O artigo 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) disciplina que o procedimento de revisão constitucional seria levado a efeito após cinco anos de promulgação da Constituição. A Revisão de 1993 aconteceu e, com ela, a possibilidade de mudança constitucional por meio de revisão simplesmente se extinguiu. Como o art. 3º do ADCT não fala em revisão constitucional periódica, só resta ao poder constituinte derivado a alteração da Constituição pela via da emenda, que requer um procedimento diferenciado e mais exigente. Dessa forma, tem razão o Prof. Fábio Konder Comparato, que afirmou, na audiência pública de discussão da revisão, que instaurar uma assembléia revisora por emenda constitucional é violar completamente as disposições do poder constituinte originário, o que torna a PEC 157 profundamente inconstitucional. 2. “Lipoaspiração” na Constituição? Durante sua exposição na

audiência pública de discussão da PEC 157, o Min. do Supremo Tribunal Federal Nelson Jobim afirmou que a Constituição necessita de uma “lipoaspiração”. Muito embora a expressão seja de gosto duvidoso, devemos assumir que ela ilustra a crença ingênua que pretende culpar o texto constitucional pelos problemas enfrentados pelo país. Seria necessário, então, que os excessos cometidos pelo constituinte fossem cortados, conferindo ao governo maior flexibilidade para a condução de sua política, livrando-o das amarras excessivas impostas pela Constituição. Nas palavras de um deputado partidário da revisão constitucional, foi exatamente a grande pressão popular sobre a Assembléia Constituinte que impediu a produção do texto “de que o país necessitava”. O desejo de reduzir o texto constitucional é identificado, em geral, com setores da sociedade que vêem com reservas os avanços promovidos pela Constituição, em especial no que se refere aos direitos sociais, econômicos e culturais. É claro que um texto constitucional por si só não dá moradia,

educação e saúde pública de qualidade, mas a previsão de tais direitos na Constituição fornece um ponto de referência para as lutas sociais envolvidas com a efetivação de condições de vida mais dignas para a população brasileira. É isso que incomoda alguns parlamentares, e pelo visto também o Min. Jobim: o texto constitucional é um limite ao Estado, porque se posiciona ao lado do cidadão. O Estado não é mais o oráculo exclusivo do interesse público. É justamente o sucesso da Constituição de 1988 no desempenho de tal função que mobiliza o discurso conservador da “governabilidade”. Se radicalizássemos essa lógica, teríamos uma equação do tipo “quanto menor a Constituição, maior a governabilidade”. Seguindo o raciocínio, é fácil perceber que, sob o manto da “governabilidade”, se abrigam não apenas as legítimas exigências de condução adequada das políticas de governo, mas também a redução das garantias dos cidadãos em face do Estado, sob a questionável premissa: “ou é desse jeito, ou não há jeito algum”.


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3. O fetiche da governabilidade. Qualquer pessoa iniciada em direito constitucional já ouviu falar das teses que tentam desqualificar o constitucionalismo no Brasil, ao argumento de que nossa especificidade cultural exigiria outra solução. É a teoria da Constituição “jaboticaba”: a busca de algo que só dá aqui no país. O parecer do Dep. Roberto Magalhães e as afirmações constantes das exposições do Min. Nelson Jobim e do advogado Reginaldo de Castro podem ser classificadas nessa modalidade. A estratégia dos partidários da PEC 157 é negar a universalidade do constitucionalismo afirmando que ele não se aplica ao Brasil. Daí o Min. Jobim ter dito que conceitos como “poder constituinte originário” e “poder constituinte derivado” são “alienígenas”, pois nossa tradição é de continuidade, e não de ruptura. Na verdade, é óbvio que tivemos uma ruptura institucional em 1985: era o fim da ditadura militar. O fato de a Assembléia Constituinte ter sido convocada por emenda não representa um óbice indelével para sua legitimidade. Não foi necessária uma revolução, uma sublevação. O próprio regime militar se viu derrotado, pois a sede de democracia era imensa. A sociedade civil brasileira não conheceu momento igual de mobilização. Houve emendas populares em todo o processo de feitura da Constituição,

algumas com milhões de assinaturas. Isso é ilegítimo? Certamente não. Se a Constituição de 88 possui legitimidade é, inclusive, em razão desse procedimento, que assegurou a participação popular ampliada no processo constituinte. De forma geral, as democracias do mundo ocidental possuem Constituição, e ela é um limite para o exercício do poder estatal. Mas aqui, no Brasil, isso é curiosamente posto como um problema. A Constituição é a culpada pela ingovernabilidade. Ela tem direitos demais. Ela tem um quorum exagerado de 3/5 para aprovação de emenda, o que obrigaria o Executivo a captar deputados oferecendo vantagens para a formação de uma maioria. Segundo o Relator da PEC, a Constituição é a culpada até mesmo pelas favelas do Grande Recife. Entendemos o contrário: a Constituição é um eficaz instrumento de imunização de maiorias efêmeras, que poderiam esmagar a minoria a qualquer tempo. Ela não é um fator de ingovernabilidade, pois um governo só é legítimo se observa as disposições e limites impostos pelo titular da soberania, vale lembrar, o povo e não o Congresso Nacional, por mais que isso doa a muitos. Governo e Constituição não são opostos inconciliáveis: são, na verdade, complementares. 4. A PEC 157 não é inédita na história. A PEC 157 nada mais é do que o ressuscitar de uma ten-

tativa anterior, e fracassada, de derrubar a Constituição de 1988. Em 1997, o Dep. Miro Teixeira (PDT-RJ) e outros, por meio da PEC 554-A, tentaram convocar uma assembléia nacional constituinte para o início de 1999, para reformar ou até mesmo promulgar outra Constituição. O interessante é observar o quanto a política é “dinâmica”. Naquela época, o dep. Michel Temer (PMDBSP) publicou brilhante artigo na Folha de S. Paulo em que mostrava de forma contundente a inconstitucionalidade da PEC 554-A. Segundo Temer, uma no-

va revisão seria inconstitucional, uma vez que a competência conferida para tal, no art. 3º do ADCT, já fora exercida. Uma norma que consta em um Ato das Disposições Constitucionais Transitórias só pode ser, evidentemente, transitória e, portanto, aplicada uma única vez. Assim, uma assembléia revisora seria, para Temer, o estabelecimento de um “quarto poder”, o que é vedado pela Constituição, um “empecilho absoluto”. Dessa forma, Temer julgava a proposta do Dep. Miro Teixeira de modo fulminante: “juridicamente é invi-

ável. É ato político que rompe com a ordem jurídica, deliberadamente”. Temer é, hoje, presidente da Comissão Especial destinada a dar parecer à PEC 157 e ardente defensor da revisão. Aquela revisão, proposta pela PEC 554-A, era um golpe, mas, para o mesmo deputado Temer, esta PEC 157 não o é. O que existe por de trás de tudo isso? Qual a razão para adotar em uma questão tão delicada dois pesos e duas medidas? O que há por trás da Revisão Constitucional que se quer aprovar na Câmara dos Deputados?

Os riscos embutidos no processo de reforma Recentemente, o INESC divulgou nota técnica (disponível em www.inesc.org.br) na qual elenca os riscos embutidos no processo de revisão constitucional proposto pela PEC 157. Entre as possibilidades mais delicadas, delineia-se a desvinculação das aposentadorias, pensões e benefícios pagos pela Previdência Social do salário mínimo. Os técnicos da área econômica do governo, representados pelo Secretário do Tesouro Joaquim Levy, apontam o aumento do salário mínimo como o principal responsável pela elevação dos gastos públicos em 2005. A análise se baseia em estudo divulgado no sítio da Secretaria do Tesouro e disponível no endereço: www.tesouro.fazen-

da.gov.br. O aumento do mínimo repercute diretamente no déficit da Previdência Social, orçado em janeiro de 2006 em 4,8 bilhões de reais. Dentro do próprio governo a idéia é muito polêmica. Em entrevista concedida ao Jornal “O Estado de São Paulo” (19/03, Economia, p. B4), Guido Mantega, à época Presidente do BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e recentemente nomeado Ministro da Fazenda, contestou o Secretário do Tesouro, afirmando que sua visão é burocrática e conservadora. Mantega afirmou: “este governo tem por objetivo elevar o valor do salário mínimo e executar os programas sociais.

Qual a razão para adotar em uma questão tão delicada dois pesos e duas medidas? O que há por trás da Revisão Constitucional que se quer aprovar na Câmara dos Deputados?

Isso é o que diferencia este governo. Nenhum burocrata pode impedir que o presidente o faça. Quem for contra, está em outro governo”. Mantega atribuiu a elevação dos gastos públicos com o RGPS – Regime Geral da Previdência Social aos “esqueletos” produzidos no governo FHC quando da conversão dos benefícios previdenciários para o Real. De fato, não estaria descartada também a realização de uma nova reforma previdenciária (inclusive com a revisão do conceito de “seguridade social”) e, ainda, a flexibilização do orçamento da União, em especial pela supressão ou redução de limites constitucionais mínimos para os gastos com saúde e educação. Ainda no que se refere às contas públicas, a revisão pode ser um instrumento eficaz para resolver dois problemas que afligirão o próximo governo: a prorrogação da CPMF (a contribuição “provisória permanente” sobre movimenta-

O desejo de reduzir o texto constitucional é identificado, em geral, com setores da sociedade que vêem com reservas os avanços promovidos pela Constituição, em especial no que se refere aos direitos sociais, econômicos e culturais ção financeira, que vale até dezembro de 2007 com alíquota de 0,38%) e a prorrogação da chamada DRU (Desvinculação de Receitas da União), mecanismo que permite ao governo dispor livremente, entre 2003 e 2007, de 20% de suas receitas, independente de órgão, fundo ou despesa, ressalvadas as transferências constitucionais obrigatórias para outras entidades da federação. Há uma série de outras possibilidades, mas essas parecem representativas dos riscos oferecidos pelo processo de revisão. Atente-se para o fato de que nenhuma das propostas acima altera

diretamente direitos sociais, entretanto, todas elas têm repercussão profunda nas condições de investimento público nas políticas que asseguram tais direitos. São questões que estão, é claro, a merecer discussão. Não há quem seja ingênuo a ponto de acreditar que o perfil do gasto público brasileiro é adequado ou, ainda, que se trata de um problema “meramente técnico”. Refutar a revisão é, na realidade, afirmar a necessidade de uma discussão mais profunda, séria e, principalmente, comprometida com os limites constitucionais estabelecidos para esse tipo de deliberação.


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OBSERVATÓRIO DO JUDICIÁRIO

O servidor público e a greve O direito de greve dos servidores civis na jurisprudência do STF DANIEL AUGUSTO VILA-NOVA GOMES

o início... a greve era proibida (Código Penal/1890). Para resguardar a segurança nacional, a Lei nº 38/1932 definiu-a como delito. A populista “Polaca” (1937, art. 139) caracterizou a atividade grevista como medida anti-social, nociva ao trabalho e ao capital e incompatível com “os superiores interesses da produção nacional.” Após algumas relativizações legislativas, o exercício desse recurso começou a ser tolerável apenas em situações excepcionais, sem prejuízo/ou com muitos prejuízos aos direitos trabalhistas dos empregados. O art. 158 do texto constitucional de 1946 passou a condicionar o exercício de greve à edição de lei posterior... Uma leitura desavisada certamente até aguardaria “e viveram felizes para sempre!”. Mas, 60 anos depois, o mal-acabado romance da efetividade constitucional do direito de greve ainda aguarda seus próximos capítulos. Para além dessa apressada descrição das evoluções legislativas quanto ao tema, este artigo propõe uma abordagem específica: as possibilidades e limites de reconhecimento do direito de greve dos servidores públicos civis na jurisprudência do STF. Nos termos do art. 9º da atual Constituição Federal (CF/1988), há lei que regulamenta o tema para os trabalhadores da iniciativa privada (Lei n° 7.783/1989). Essa legislação específica não pode ser assumida como ponto final. A constituição deve ser interpretada de modo coerente com a vivência institucional das conquistas do direito de greve. Num país caracterizado pelos prefixos do sub- e do des- “emprego”, sugere-se uma mudança de perspectiva para que lidemos com os limites e possibilidades constitucionais do direito a greve, a partir de uma pré-compreensão da efetividade dos serviços públicos em geral. A tentativa de abordar o tema como uma prerrogativa extensível aos servidores públicos civis – os quais podem ser considerados uma parcela minoritária da minoria que possui “emprego formal” –

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corresponde a retratar o problema da aplicação de normas em contextos de inclusão/exclusão. Essa perspectiva apresenta variantes interessantes – embora e inclusive – porque busca articular alternativas emancipatórias de interpretação constitucional também para essa “minoria”, relativamente bem-remunerada em comparação à média salarial dos demais trabalhadores. Problematiza-se, por conseguinte, a própria mentalidade que identifica as manifestações grevistas em geral com uma pauta de reivindicações eminentemente econômicas. Tal pré-compreensão, se assumida de modo ingênuo, pode perder a dimensão de que, antes de tudo, a efetividade do exercício do direito de greve dos servidores públicos civis incorpora, simultaneamente, o “realizar” histórico de direitos fundamentais em tensão com o desenvolvimento de políticas públicas voltadas à discussão sobre a ampliação da qualidade e eficiência dos

serviços públicos prestados. Antes de trabalhar com o momento presente, contudo, vale ainda referir dois ou três capítulos de nosso breve histórico legislativo, agora sumariamente apresentado em tópicos: i) o art. 158, XXI, e o art. 157, § 7º da Constituição de 1967, asseguraram o direito de greve aos trabalhadores do setor privado; ii) proibiram-no, entretanto, em relação ao setor público e às atividades essenciais; iii) uma vez promulgada a CF/1988, houve previsão de edição de lei específica tanto para os trabalhadores da iniciativa privada, ainda que sob o regime de atividade essencial (CF, art. 9º), quanto para os servidores públicos (CF, art. 37, VII); iv) com a publicação da “Lei da Greve” (Lei n° 7.783/1989), o protagonismo do setor privado (inclusive nas atividades essenciais) foi, de certa forma, reconhecido; v) nesses quase dezoito anos da nova Constituição democrática, o furor das incansáveis emendas conseguiu afetar um aspecto quase-signifi-

cativo – a Emenda Constitucional nº 19/1998 modificou o quorum de aprovação da lei; vi) desde então, em vez de lei complementar, bastaria a simples edição de lei ordinária e ponto final. É aqui que começa o exercício constitucional proposto. Tendo em vista que, desde a promulgação da CF/1988, o direito de greve dos servidores públicos é garantia constitucional expressamente prevista (mas jamais implementada ou fundamentada pelo poder constituinte derivado), como poderiam ser harmonizados os limites e as possibilidades de reconhecimento e aplicação dessa prerrogativa pelo Poder Judiciário? Principalmente a partir de impetrações de mandados de injunção (CF, art. 5º, LXXI: MI nº 20, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 22.11.1996; MI n° 485, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 23.08.2002; MI n° 585, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 02.08.2002), a jurisprudência do STF tentou, diversas ve-

zes, lidar com o problema. Em todas essas ocasiões, o Tribunal utilizou-se do seguinte raciocínio: o mandado de injunção é garantia constitucional que tem por objetivo observar, tão-somente, se há mora, ou não, da autoridade ou do Poder competente para a elaboração de lei regulamentadora do texto constitucional, cuja lacuna torne inviável o exercício dos direitos, liberdades e prerrogativas asseguradas pela Constituição Federal. Em outras – poucas – palavras, a invocação de ausência de lei que regulamente o direito de greve dos servidores públicos civis foi “respondida” com o mero reconhecimento dessa ausência. Nesse ponto, entra em cena o argumento de uma concepção estanque da separação de poderes (CF, art. 2°) aliada à idéia de que a norma constitucional que garante o direito de greve dos servidores públicos civis (CF, art. 37, VI) teria eficácia limitada. Assim, esses julgados assumem como pressuposto que.


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Um provável roteiro de silêncios... O Poder Judiciário, nos limites estreitos do mandado de injunção, não poderia reconhecer a efetividade do exercício do direito de greve para outros trabalhadores ainda não regidos por legislação específica. Isto é, o direito de greve apenas teria eficácia com a edição da lei respectiva. Se assim procedesse, o Tribunal substituiria o legislador ordinário, o que extrapolaria o âmbito das competências previstas na Constituição, que demanda lei ordinária. Tampouco lhe seria permitido indicar prazo para que o Congresso Nacional aprovasse tal proposição legislativa. O enredo dessa estória começa a assumir um roteiro de silêncios. Em termos meramente caricaturais, no desfecho dessa fábula, o administrador deveria ficar atado diante da inexistência de meios lícitos, seguros e efetivos para a negociação da greve com os sindicatos de servidores públicos. O legislador, por sua vez, seguiria omisso, conforme a conveniência e oportunidade que lhe aprouver, quanto à aprovação de meios mais eficazes de garantia das pretensões grevistas (cf. tramitação do Projeto de Lei nº 6032/2002, que “disciplina o exercício do direito de greve dos servidores públicos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e a dos Municípios, previsto no art. 37, inciso VII da Constituição Federal e dá outras providências”). O juiz, por fim, limitar-se-ia a declarar aquilo que é pressuposto do próprio ajuizamento do mandado de injunção: a existência de uma omissão, da qual, nos ditames do pomposo devido processo legal constitucional, a respectiva autoridade legislativa deve ser notificada. Talvez seja bom imaginar outro fim para essa estória... O tema do ativismo judiciário, em primeiro lugar, pode envolver contornos bem peculiares conforme a matéria sob (des)apreciação. Nesse sentido, em outros debates não menos expressivos, é curioso observar que, sem assumir abertamente o exercício de função legislativa típica, a jurisprudência do STF reconheceu outras possibilidades para a questão da omissão constitucional. Daí a ocorrência de inúmeros casos em que o Tribunal fixou prazo para que o Congresso Nacional preenchesse a lacuna legislativa respectiva. Assim, a partir de eventual expiração desse período, o impetrante do mandado de injunção poderia exercer o direito invocado, observadas deter-

minadas limitações (cf. MI n° 107, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 21.09.1990; MI nº 283, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 14.11.1991; MI n° 232, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 27.03.1992; e MI n° 284, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 26.06.1991). Em vez de analisar o tema como uma espécie de tautologia silenciosa (quase um lugar-comum nessa matéria), vale chamar a atenção, ainda, para algumas vozes que já se levantaram no Plenário do Tribunal. Carlos Velloso (hoje, ministro aposentado), por exemplo, aventou a possibilidade de aplicação, provisória, da lei de greve relativa aos trabalhadores em geral (Lei n° 7.783/1989) ao caso dos servidores públicos (cf. MI n° 631, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 02.08.2002). Não se pode conceber, porém, que esse canto de sereia seja declarado, por si só, como solução definitiva. Desde há muito, as clássicas teorias sobre os impasses da indeterminação estrutural do direito já nos alertavam sobre os indícios de que simples texto não resolve a vida! O texto, se existente e quando muito, apenas inaugura o problema jurídico fundamental: a interpretação dos fatos e das normas que se pretende aplicar. Em retomada às reflexões iniciais deste ensaio, após ses-

senta anos de silêncio institucional sobre, talvez, uma das trajetórias mais significativas em termos de conquistas coletivas de direitos, a questão da greve (seja a dos servidores públicos civis ou a de todas e cada uma das demais categorias trabalhistas) não pode ser entendida apenas como singela confrontação entre interesses econômicos (ou corporativos do “funcionalismo público”) e os alegados riscos para a “governabilidade” acarretados por eventual reconhecimento das condições mínimas para o exercício legítimo desse direito constitucional. A manutenção dessa paralisia institucional inviabiliza o

Talvez seja interessante imaginar outro final para nossa estória desenvolvimento de um espaço constitucional apto a abarcar questões indispensáveis para o exercício da cidadania e da democracia (tais como, entre outros: a manutenção de graus mínimos de qualidade dos serviços públicos prestados nos períodos de greve; o controle e a fiscalização pública da política salarial dos re-

cursos humanos afetados à prestação dessas atividades; a definição de limites e a identificação de abusos decorrentes do próprio exercício eventualmente indevido dessa prerrogativa constitucional). Para além dessa fábula, a discussão do assunto deve levar a sério a necessidade de desenvolvimento de perspectivas jurídicas aptas a lidarem com políticas públicas legítimas de gestão do serviço público, sem perder-se a perspectiva de que se trata de um debate público sobre a efetivação de direitos constitucionais – não apenas dos servidores públicos, ou dos preocupados governantes do país, mas, sobretudo, de todos os cidadãos que são diretamente afetados nos casos em que há paralisação desses serviços de interesse geral de toda a coletividade. A apatia quanto ao reconhecimento desse direito, entretanto, não deve ser mantida sob o pretexto de que faltam instrumentos para sua construção coletiva. Trata-se, portanto, de um silêncio que produz significados comprometedores para a democracia. Esse problema existe e demanda procedimentos públicos para a discussão de sua administração e fiscalização. Como já sugeria o conhecido “conto dos três porquinhos”, a palha, a madeira e os tijolos estão aí – o importante é o que

podemos fazer com eles. Em síntese, assumir, abstratamente, a premissa de que se trataria de uma norma de eficácia limitada, é fechar os olhos para o presente constitucional. É adiar a vivência da Constituição. É aniquilar, aos poucos, a eficácia das conquistas de ontem, de hoje, do amanhã... Assim, para uma tentativa de defesa efetiva do direito de greve dos servidores públicos civis, num mundo não menos perigoso que aquele do sempre ameaçador Lobo Mau, continuar parado é, no mínimo, arriscado... Seria este o nosso fim? Talvez, sim. Talvez, não. Uma vez esquecidas, de um lado, as necessidades da obscura pauta da governabilidade e, de outro, o minimalismo econômico dos interesses corporativos, apenas não deixemos de lado a possibilidade de articular algumas das demais alternativas que o texto constitucional nos oferece. Assim como as fábulas e os contos, a Constituição é, antes de tudo, um exercício de imaginação! Além disso, cuida-se da vivência e construção da memória institucional do nosso aprendizado coletivo sobre a liberdade e a igualdade – um conjunto de experiências que não pode ser simplesmente ignorado pelo discurso judicial


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OBSERVATÓRIO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

Trabalho não é brincadeira Os movimentos sociais e a luta pela defesa dos direitos da infância ADRIANA ANDRADE MIRANDA

trabalho dignifica o homem”. “Melhor trabalhar do que ficar na rua vadiando”. Frases como estas são usadas corriqueiramente para justificar a utilização da força de trabalho infantil no Brasil e no mundo. Elas ocultam, contudo, as condições de trabalho degradantes e perigosas enfrentadas por milhões de crianças e adolescentes, escondem a grave violação dos direitos fundamentais dos jovens e justificam a exploração do trabalhador na busca por maiores lucros. A pobreza, desigualdade social, carência de políticas para infância e juventude e a precária fiscalização das condições de trabalho no Brasil tornam a utilização da mão-de-obra infantil atraente, lucrativa e acessível. A legislação brasileira, contudo, impõe restrições à contratação de crianças e adolescentes. Embora seja expressamente proibida a contratação de crianças, o trabalho para adolescentes é autorizado, mas com limitações. A partir dos 14 anos o jovem já pode trabalhar como aprendiz, desenvolvendo atividades acompanhadas por profissional qualificado e com carga horária compatível com as atividades escolares. Aos 16 anos o adolescente trabalhador tem assegurado os mesmos direitos e deveres de um adulto. Todavia, as atividades perigosas, insalubres e noturnas, só podem ser desenvolvidas por jovens com mais de 18 anos. É importante frisar que essas normas proibitivas têm como destinatário o empregador. Ou seja, o empregador é proibido de contratar e não a criança que é proibida de trabalhar. Isto significa que uma vez contratada a criança e o adolescente possuem os mesmo direitos que um adulto, sendo expressamente proibida diferenciação salarial em virtude da idade. As restrições legais ao acesso de crianças e adolescentes ao mundo do trabalho são motivadas pelo principio constitucional da integral proteção da infância. Os jovens, por serem pessoas em formação, devem ter asseguradas todas as condições ne-

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cessárias para o pleno desenvolvimento físico, mental, espiritual e psíquico. A saúde, educação, lazer, liberdade, dignidade, igualdade são direitos fundamentais da criança e o seu pleno exercício é essencial para a formação do indivíduo. O Estado e a sociedade juntamente com a família são responsáveis por garantir e assegurar essas condições ideais. O princípio da proteção integral garante aos jovens a condição de sujeitos, detentores de direitos e deveres, e rompe com a visão da criança enquanto objeto de ações judiciais, assistenciais e tute-

Crianças e o adolescentes contatados possuem os mesmos direitos dos adultos, sendo proibida qualquer diferença salariral

lares. Ou seja, os jovens brasileiros merecem atenção irrestrita e não apenas quando se encontram em situação de abandono ou negligência. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança estimulou o Brasil a incorporar o princípio da proteção integral na legislação. A elaboração da Convenção é fruto de um amplo debate internacional que contou com a participação ativa de crianças e adolescentes de todo o mundo. Ela estabelece em seu artigo 9º que “a criança gozará de proteção integral contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração”. Para a grande maioria dos jovens, trabalho é sinônimo de exploração, crueldade e não exercício dos direitos fundamentais. Trabalhar significa trocar lápis, cadernos e brinquedos por ferramentas de trabalho, na luta incessante pela sobrevivência. A escola e o convívio social com outras crianças em momentos de lazer e diversão são essenciais para a for-

mação e o desenvolvimento da autonomia do sujeito. O abandono da escola condena os jovens à permanência no ciclo de exclusão, privandoos de qualquer possibilidade de superação da realidade em que vivem e do direito de serem protagonistas de sua própria história. Entretanto, existe quem defenda o direito ao trabalho de crianças e adolescentes. As potencialidades e limites do trabalho é tema antigo e controverso entre as entidades de defesa dos direitos da infância. Na Conferência Internacional sobre Direitos da Infância, organizada pela ONU em 1989, alguns grupos reivindicaram o reconhecimento do direito ao trabalho de crianças e adolescentes. Além disso, no mundo inteiro existem grupos formados por crianças trabalhadoras que lutam pelo respeito e garantia do seu direito ao trabalho. Este problema nos remete a uma instigante reflexão: todo tipo de trabalho é ruim e prejudicial à criança e adolescente ou existem modali-

dades de trabalho que contribuem para o seu desenvolvimento e formação? De modo geral o trabalho pode contribuir para o aperfeiçoamento de habilidades específicas e por outro, impossibilitar o desenvolvimento da autonomia do sujeito. A apropriação da força de trabalho, a obrigatoriedade e a subordinação, por exemplo, geram exploração e impedem o pleno exercício dos direitos fundamentais da criança. E o manuseio de produtos químicos, inflamáveis e instrumentos letais oferecem risco à integridade física do jovem.

O abandono da escola condena os jovens à permanência no ciclo de exclusão, privando-os de serem protagonistas da própria história


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Ocupação para adolescentes nem sempre é trabalho ruim ou fora da lei Quando o ato de trabalhar é motivado pelo desejo, livre de qualquer tipo de exploração, obrigatoriedade ou risco à saúde do jovem e não impede o acesso à escola e lazer, pode ser um meio de desenvolvimento da personalidade da criança e do adolescente. Desafiados por esta questão, ativistas dos direitos da infância propõem uma diferenciação conceitual entre trabalho infantil e exploração do trabalho infantil. A categoria trabalho infantil refere-se a trabalhos de natureza leve, compatíveis com a idade e habilidades específicas do jovem e que não oferecem riscos a integridade física e mental das crianças e adolescentes. Além disso, não impossibilitam a freqüência escolar, o lazer e o descanso. A exploração do trabalho infantil compreende os tipos de trabalho considerados perigosos, insalubres e degradantes. A violação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente é o traço mais marcante desta categoria. O trabalho infantil no Brasil é caracterizado predominantemente pela exploração. Recente pesquisa do IBGE identificou a existência de 5,5 milhões de crianças e adolescentes com idades entre cinco e 17 anos trabalhando no Brasil. Deste total 2,4 milhões têm menos de 14 anos, faixa etária na qual é expressamente proibido o trabalho pela legislação. Do total de jovens trabalhadores, 43,5% desenvolvem atividades agrícolas e 45,2% estão em trabalhos domésticos. A maioria provém de famílias pobres e numerosas, precisam trabalhar para ajudar no sustento da família e recebem até meio salário mínimo como remuneração. Estes dados retratam apenas uma pequena, porém considerável parcela da realidade, pois não contabilizam o grande contingente de crian-

Segundo o IBGE, no Brasil existem 2,4 milhões de crianças com menos de 14 anos trabalhando, o que é proibido pela legislação do País

ças e adolescentes que são vítimas de exploração sexual ou estão envolvidas em atividades ilícitas, como tráfico de drogas e crime organizado. A exploração econômica do trabalho infantil é cruel e causa danos - muitas vezes irreversíveis — ao desenvolvimento da criança. Refiro-me a exploração do trabalho infantil por grandes empresas ou empresários da agroindústria que, ao fazerem uso do trabalho de crianças e adolescentes, visam apenas reduzir custos e aumentar a produtividade, submetendo os jovens trabalhadores a situações perigosas, degradantes, insalubres e humilhantes. A exploração econômica do trabalho infantil é expressão perversa do capitalismo, que se utiliza do indivíduo em formação e das desigualdades sociais e econômicas para aumentar os lucros. Segundo o Ministério do Trabalho, entre as atividades desenvolvidas por brasileiros entre cinco e 17 anos estão os trabalhos em fornos de carvão, extração de pedras, beneficiamento de sisal, plantação e colheita de cana-deaçúcar e fumo, extração de sal, madeireiras. Em suma, trabalhos que exigem muita força física e pouca qualificação. De acordo com as definições da Convenção 182 da Organização Mundial do Trabalho — OIT, estas atividades são consideradas as piores formas de trabalho infantil O trabalho doméstico, por sua vez, é exercido, predominantemente, por jovens afrodescendentes do sexo feminino. Esta atividade é considerada por muitas pessoas como não prejudicial à criança e ao adolescente por ser desenvolvida em ambiente familiar e oferecer melhores condições de vida para os jovens oriundos de famílias pobres. Entretanto, é justamente o ambiente residencial que dificulta a fiscalização sistemática das condições de trabalho. Por isso, o jovem trabalhador fica mais vulnerável a uma série de violações a seus direitos, como longas jornadas de trabalho, baixas remunerações, maus tratos e abuso sexual. Existe ainda uma terceira modalidade de trabalho infantil que, a depender das circunstâncias em que é desenvolvida, pode se tornar uma típica situação de exploração.

Trata-se do trabalho infantil familiar. Nesta situação, o jovem exerce atividades no âmbito residencial, juntamente com seus pais e irmãos. Eles geralmente trabalham em casa, na agricultura, pecuária e pesca de subsistência, pequenos comércios familiares, artesanatos, etc. Esta modalidade de trabalho não se restringe às famílias pobres; pode ser observada também entre famílias de classe média. Não existe proibição legal expressa a este tipo de atividade, mas o jovem deve exercer atividades leves, seguras e em horários compatíveis com a escola e o lazer. O combate à exploração do trabalho infantil, em todas as suas modalidades, é o alvo das ações governamentais e nãogovernamentais por se tratar de notório desrespeito aos direitos fundamentais da criança e do adolescente. Afinal, toda criança tem o direito a uma vida livre, sem exploração. Muitos setores da sociedade brasileira estão mobilizados nessa luta.Todas as unidades da federação possuem um Fórum Estadual de composição quadripartite, ou seja, com participação de órgãos dos poderes legislativo, executivo e judiciário e da sociedade civil. Em 1994 foi criado o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil – FNPETI, também com composição quadripartíte. O Fórum Nacional se reúne quatro vezes por ano e é responsável pela proposição, acompanhamento e monito-

ramento das políticas de combate a exploração do trabalho infantil do governo federal e estaduais. A ação do FNPETI tem sido determinante não só para a redução da exploração de crianças como também para a proteção dos direitos do adolescente trabalhador. Criado em 1996, o PETI, Programa de Erradicação doTrabalho Infantil visa acabar com as piores formas de trabalho infantil, através de transferência direta de renda para famílias com jovens entre cinco e 15 anos exercendo atividades remuneradas perigosas.

A luta dos movimentos sociais foi fundamental para que o tema fosse assumido como um problema de Estado e não apenas de governo Com a criação do PETI, o Governo Federal assumiu a erradicação da exploração do trabalho infantil como prioridade. Com isso, este tema entrou na pauta da imprensa nacional e nas agendas dos governos municipais e estaduais. A partir de então surgem em todo país programas municipais e estaduais de erradicação do trabalho infan-

til, monitorados e acompanhados por entidades locais de defesa da infância e de proteção dos trabalhadores. A luta dos movimentos sociais foi fundamental para que este tema fosse assumido como um problema de Estado e não apenas de governo. Além disso, fortaleceu a compreensão de que apenas uma ampla articulação entre as três esferas de governo, e entre o poder público e a sociedade civil pode consolidar políticas eficazes de combate à exploração do trabalho infantil. Ao se oferecer o trabalho como alternativa para afastar crianças e adolescentes das drogas e criminalidade automaticamente privamos o jovem de seus direitos fundamentais como educação, saúde, dignidade, lazer. E invertemos a lógica, pois é justamente a escola, um direito básico de todo cidadão, que deve ser o caminho contra a criminalidade e para o pleno exercício da cidadania. Para combater a exploração do trabalho infantil no Brasil e garantir a todos os jovens brasileiros o direito à infância é preciso acabar com as grandes desigualdades sociais e econômicas que assolam o nosso país e assegurar, por meio de políticas públicas eficazes e concretas, o acesso integral à saúde, alimentação, educação e lazer de qualidade. E é justamente esta a meta que as organizações da sociedade civil de todo país lutam para alcançar.


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Todos têm direito ao trabalho? O fim do mito da incapacidade para o trabalho JANAÍNA L. PENALVA DA SILVA

nimpregáveis, inúteis no mundo, supranumerários, ociosos, marginalizados, excluídos das relações de emprego, etc. são expressões utilizadas em referência àqueles sujeitos considerados fora do mundo do trabalho, àqueles indivíduos com sérias dificuldades de inserção nas relações de emprego, seja por alguma característica individual, seja pela ausência de interesse do setor produtivo que os considera dispensáveis. Não há qualquer novidade na constatação de que as enfermidades, a idade (muito jovens ou idosos), as deficiências físicas, a pouca qualificação, a raça, o gênero, a condição de imigrante e a de egresso do sistema penitenciário, entre outros, impossibilitam inúmeras pessoas de trabalharem. As mulheres já são aceitas como trabalhadoras na maioria dos lugares, mas permanecem ainda distantes dos altos cargos e ainda têm salários menores que os homens. Os imigrantes são impossibilitados de trabalhar em alguns países, apesar de parcialmente aceitos em outros. Já os pouco qualificados, os deficientes, doentes, expresidiários e idosos muito dificilmente conseguem um emprego hoje em dia. Quando o assunto é emprego, as preocupações com as formas e condições de trabalho, com o crescimento de empregos precários e sub-empregos e com o próprio desemprego são muito comuns. A desconstrução da idéia de que o trabalho é essencial para o homem, a valorização do ócio como veículo potencializador da criatividade, a avaliação de que a centralidade do trabalho perdeu sentido, a constatação de que o desemprego é parte indissociável do processo de inovação tecnológica, etc. são algumas das teses que surgem para se explicar e se superar os problemas que a falta de emprego impõe ao mundo contemporâneo. Essas reflexões sobre o desemprego, tão comuns nos vários cantos do mundo, toma maiores proporções quando a perspectiva do problema deixa de ser somente a dos economistas, sociólogos e burocratas e se torna também uma questão de direito. O ponto que aqui pretendemos enfrentar refere-se a esses indivíduos excluídos do mercado de trabalho por só te-

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rem a oferecer uma força de trabalho limitada ou muito pouco valorizada. O desafio é saber se a exclusão de determinados grupos das relações de trabalho resulta de limitações insuperáveis do sistema contra as quais não há remédio ou se trata, ao contrário, de violações do direito ao trabalho. Qualquer proposta de se resolver no plano sócio-econômico a questão dos ditos inimpregáveis, desses indivíduos rejeitados pelo setor produtivo, tem que partir da definição do que é o direito ao trabalho e de qual é seu alcance no momento histórico em que nos encontramos. No Brasil, a Constituição assegura a todos o direito ao trabalho. Essa não é uma garantia meramente formal, não se trata de um comando ou uma sugestão para o futuro. Há uma determinação constitucional que deve ser materia-

lizada, afinal só faz sentido falar de direitos, em um estado verdadeiramente democrático, se esses direitos forem efetivados. Mas como materializar o direito ao trabalho para aqueles sujeitos considerados inúteis pelo setor produtivo? Uma vez que enunciar somente que todos têm direito ao trabalho pouco significa, se na vida determinados grupos de pessoas nunca conseguem um emprego, como solucionar o impasse entre o direito ao trabalho assegurado a todos e as limitações que alguns grupos de pessoas têm de trabalhar? O trabalho, além de ser uma atividade produtiva, é uma forma de inserção social, contribui para formação da identidade do indivíduo, incluindo-o em novas relações sociais, culturais. O trabalho é resultado de nossa potencialidade criativa e é parte da nossa história. Além da idéia de pro-

dução, de retribuição financeira, além das vantagens propriamente econômicas que o emprego traz, há uma significação social extremamente cara na idéia de trabalho. Há pessoas menos ou mais aptas ao trabalho, nossas habilidades não são iguais, a capacidade laborativa que possuímos também se diferencia e sofre alterações com o tempo, há mudanças internas ou externas que podem ser transitórias ou não, enfim, o potencial produtivo de cada indivíduo pode ser reduzido ou até mesmo perdido a qualquer tempo, mas pode também ser constantemente reconstruído, revisto ou recuperado. É por isso que a perspectiva do direito transforma qualquer análise sobre o trabalho. Considerar que todos têm direito a uma expressão produtiva faz com que não existam inúteis no mundo.

É preciso, no entanto, ser cauteloso nesse processo de inclusão no trabalho, principalmente em face de uma valorização excessiva da perspectiva social do trabalho. Propostas como a da criação de qualquer tipo de ocupação para os ditos inimpregáveis, mesmo sem retribuição ou salário, pensada como uma vantagem em termos de integração nas relações sociais são soluções assistencialistas que camuflam o problema, além de oprimirem ainda mais seus "beneficiários". Aliás - é bom que se esclareça logo - a própria criação dessas categorias de sujeitos tratados como imprestáveis ao setor produtivo não passa de uma armadilha da qual temos que escapar. A condição de deficiente, doente, imigrante, pouco qualificado não é sinônimo de incapacidade.


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Os riscos da assistência social Não se trata, é claro, de negar as diferenças, elas se mostram no campo do trabalho, como em qualquer outro. A questão, no entanto, é a percepção de uma ação de efeitos duplos que ao mesmo tempo em que exclui esses sujeitos do mundo do trabalho, os inclui no mundo da assistência, fortalecendo no mercado de trabalho e no imaginário social uma falsa noção de incapacidade. Essa idéia de incapacidade, essa posição de precariedade que vai se tornando cada dia mais consolidada apresenta-se como um obstáculo ao exercício do direito ao trabalho muito maior que qualquer deficiência, baixa qualificação ou idade. O mais grave nesse processo, todavia, é a diferenciação entre as questões. A angustia planetária sobre como lidar com os índices crescentes de desemprego tenta ser resolvida por economistas, sociólogos, burocratas - com sugestões de flexibilização das relações de emprego, propostas de redução das jornadas de trabalho, valorização do ócio, entre outras saídas - mas as questões dos ditos inimpregáveis são consideradas outro assunto, temas menores, questões para a assistência social. Nesse sentido, mais uma vez fica claro como é necessário responder a pergunta que inicialmente nos propomos: todos têm direito ao trabalho? O direito ao trabalho e o direito à assistência social não são excludentes. O primeiro é garantido a todos, pela Constituição, o segundo só aos que necessitarem. Essa diferença não cria, entretanto, duas categorias de cidadãos: trabalhadores e assistidos e também não restringe direitos. Em outras palavras, quem precisa de assistência estatal continua tendo direito ao trabalho, políticas de inserção social não substituem políticas de emprego. A proliferação de grupos alvos de assistência social como forma de desvio da questão do desemprego viola o direito ao trabalho constitucionalmente garantido a todos. O estigma da incapacidade que em maior ou menor grau atinge mulheres, idosos, doentes, analfabetos viola o direitos desses sujeitos a um trabalho digno e remunerado. Programas estatais que garantam renda mínima e apoio institucional são muito bem-vindos, ou melhor, são essenciais. Não substituem, todavia, o direito ao trabalho. É possível observar que as políticas públicas de emprego, em geral, não têm como alvo os

excluídos do mercado de trabalho, ao contrário, direcionam-se sempre a um segmento restrito de desempregados: aquele formado pelos indivíduos que precisam incrementar sua qualificação, desenvolver novas habilidades, para aqueles que necessitam de um conhecimento formalizado etc., ou seja, o alvo dessas políticas é outro.

Os excluídos das relações de trabalho, ainda que passem por cursos de qualificação, permanecerão à margem do sistema Da mesma forma, iniciativas como SESC, SENAI e outros, apesar de muito úteis, não são hábeis para lidar com a questão dos inimpregáveis. Um egresso do sistema penitenciário ou um portador de HIV/SIDA, mesmo que tenham acesso a um desses cursos, permanecerão sem emprego. Mesmo qualificados, esses indivíduos, muito provavelmente, não serão aceitos em lugares nos quais a condição de ex-presidiário ou portador de HIV torne-se pública. Já um portador de sofrimento mental ou um deficiente físico não são sequer afetados por cursos de qualificação. Esses cursos são programados pensando-se em um padrão de sujeito que desconsidera essas diferenças, o que exclui completamente a possibilidade de participação dessas pessoas. Políticas públicas voltadas

para qualificação do trabalho não são suficientes para resolver o problema do emprego no Brasil. Os excluídos das relações de trabalho, ainda que passem por esses processos clássicos de qualificação, permanecerão à margem do sistema. O mito da incapacidade laboral se construiu sobre alicerces que não são atingidos por ações restritas a aumentar o nível técnico ou de escolaridade desses sujeitos. Mesmo os considerados inimpregáveis por ausência total de qualificação não são atingidos por esses programas, é preciso uma outra abordagem, uma intervenção mais ampla para transformar sua condição. É por isso que, mais uma vez, é preciso reafirmar a questão como um problema de direitos. O trabalho é um direito de todos e não uma política que pode se realizar em maiores ou menores quantidades. Essas pessoas consideradas hoje inimpregáveis o são em graus diferentes. A raça traz muitas restrições, o gênero outras, a doença em alguns casos restringe quase por completo a capacidade de trabalho, o ponto é tratar as especificidades como tais, sem negar sua existência ou maximizar as dificuldades. Nesse sentido, é bom destacar a importância da intervenção dos movimentos sociais na modificação do próprio conceito de trabalho, acompanhada da criação de novas atividades e principalmente da inclusão dos ditos inimpregáveis no processo individual de realização pelo trabalho. Os vários movimentos sociais que atuam na afirmação de identidades têm sido atores imprescindíveis na derrubada do estigma da incapacidade

laboral, na medida em que somada a suas reivindicações específicas há sempre uma atuação relativa às questões do emprego. Todos os grupos, sejam mulheres, negros, imigrantes, enfermos, desqualificados etc., que lutam pela inclusão, por estarem de uma maneira ou de outra à margem da sociedade, invariavelmente, têm que se debruçar sobre a questão do emprego. O fortalecimento dessas identidades, a aceitação de suas características e diferenças implica, sempre, uma inclusão nas relações de trabalho.

Todos os grupos que lutam por inclusão têm que se debruçar sobre a questão do emprego O crescimento das cooperativas de trabalho, no Brasil, ilustra bem essa busca por novos caminhos. A partir da década de 80, com a acentuação da crise econômica, há uma expansão da economia solidária efetuada em grande parte pelos movimentos sociais. Os grupos marginalizados começam a se organizar e se associar em torno de sua própria força de trabalho, de seus próprios recursos, terminam por estabelecer uma alternativa às formas tradicionais de trabalho. Nas cooperativas, os meios de produção são de propriedade de todos, há participação direta na gestão (ou uma participação representativa, nas

cooperativas maiores), a receita é repartida entre os cooperados e todas as regras e critérios definidores do funcionamento da cooperativa são previamente definidos pelos participantes. Enquanto formas coletivas de produção e distribuição, as cooperativas conjugam o aspecto empresarial com a perspectiva solidária, de uma maneira democrática. Nesse processo, há inclusive a parceria com Universidades, sindicatos, órgãos públicos que, por meio das incubadoras, orientam e auxiliam os cooperados na formação e desenvolvimento da cooperativa, contribuindo para o sucesso do empreendimento. Observa-se assim como o cooperativismo pode ser um caminho nesse processo de busca por alternativas às formas tradicionais de emprego que tão pouco oferecem a quem apresenta diferenças ou deficiências, usualmente consideradas incapacidades. Os sujeitos que possuem limitações pessoais - doença, baixa qualificação, deficiência ou limitações impostas socialmente - gênero, nacionalidade, raça - têm dificuldades em exercer o trabalho e, em alguns casos, representam também obstáculos para os empregadores. Esse é um fato do qual não pretendemos fugir. A questão, entretanto, deixa de ser somente sociológica e econômica e passa a ser uma questão de direitos quando esses grupos passam a ser vistos como imprestáveis ao trabalho, inúteis no mundo, incapazes e, com isso, suas dificuldades de inserção no mundo do trabalho se naturalizam como intransponíveis e eles perdem a possibilidade de serem cidadãos.


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Participação Social no Direito Internacional Ambiental GIOVANNA MARIA FRISSO

impacto dos danos ambientais nas gerações atuais e seus reflexos para as futuras fazem da questão um tema político prioritário. Em 1972, na conferência da ONU sobre Meio Ambiente, realizada em Estocolmo, um meio ambiente sadio e equilibrado foi reconhecido como um direito humano essencial à efetividade de numerosos outros direitos. Esse reconhecimento, aliado à percepção do planeta como um sistema finito de recursos submetido a pressões de crescimento populacional e produção econômica, indicou o esgotamento de um estilo de desenvolvimento ecologicamente predatório. Como resultado dos compromissos assumidos em Estocolmo, muitos países começaram a adotar legislação doméstica sobre o meio ambiente. Para os países em desenvolvimento, tornaram-se claras a necessidade de conciliar a proteção ambiental aos ideais desenvolvimentistas e as dificuldades do processo. O Brasil adotou a Lei 6.938/81, que estabeleceu “a compatibilização do desenvolvimento econômico e social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico” como objetivo da política nacional de meio ambiente. Ponderando as considerações de países menos desenvolvidos e as análises do Relatório Brundlandt - Nosso Futuro Comum-, a comunidade internacional, reunida no Rio de Janeiro em 1992, reafirmou o imperativo da manutenção dos recursos ambientais essenciais à continuidade histórica dos padrões de produção e consumo desejados (sustentabilidade) e introduziu a necessidade de estender esses padrões ao conjunto da humanidade (desenvolvimento). O princípio 1 da Declaração do Rio sobre Ambiente e Desenvolvimento estabeleceu que “os seres humanos constituem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável. Têm o direito a uma vida saudável e produtiva em harmonia com o meio ambiente”. O princípio da participação pública , que salienta a participação de todos os cidadãos interessados na questão

O

ambiental, sublinhando o papel fundamental da mulher, dos jovens, das comunidades indígenas e outras comunidades locais, foi considerado elemento necessário à implementação de modelos de desenvolvimento sustentável. Atualmente, a Convenção de Aarhus, de 1998, ratificada pela União Européia, é a mais abrangente e detalhada convenção sobre participação popular em questões ambientais. A Convenção obriga suas partes a implementar e efetivar os direitos de informação-participação-litigação dos indivíduos e das associações de defesa do ambiente. Até o momento, a União Européia adotou diretivas que implementaram os dois primeiros pilares da Convenção: o acesso à informação e a participação do público nos processos de decisão. Público e direitos humanos A ampliação do espaço de participação pública em nível internacional decorre do reconhecimento do indivíduo como sujeito de direito internacional. É como sujeito de direito, tanto na esfera do-

É como sujeito de direito que o indivíduo participa do processo de elaboração e execução de política ambientais méstica como internacional, que o indivíduo, titular do direito à informação, à participação e ao devido processo, participa do processo de elaboração e execução de políticas ambientais e protege o meio ambiente por intermédio do Poder Judiciário. O direito internacional ambiental exige que o Estado reúna e divulgue informações concernentes ao estado de conservação do meio ambiente, às políticas públicas adotadas e aos riscos à saúde humana decorrentes da degradação ambiental. De acordo com a obrigação de facilitar e estimular a conscientização e a participação pública em matéria ambiental, nossa Constituição Federal

estabelece como dever do Estado “promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”. Informada, a sociedade civil organizada tem maiores chances de integrar processos decisórios locais ou internacionais.O direito de participação vai além da formulação de políticas públicas, abordando também a execução e o monitoramento de projetos. O acesso à informação e o direito à participação são essenciais para assegurar um meio ambiente ecologicamente equilibrado, em si um direito humano, reconhecido no artigo 225 da nossa Constituição Federal. Todavia, apesar de há muito ser obrigatório proporcionar o envolvimento de cidadãos e organizações em discussões sobre projetos ambientais, ainda hoje autoridades públicas confrontam-se com a necessidade de reconhecer os espaços de atuação pública. Na esfera internacional, particulares e organizações não-governamentais (ONGs) têm, nos últimos anos, participado nos travaux preparatoires de diversos tratados. Apesar de o artigo 71 da Carta das Nações Unidas servir

de base ao status consultivo das ONGs atuantes no âmbito da ONU, muitos atores da sociedade civil, sobretudo os dos países em desenvolvimento, permanecem à margem de negociações e decisões multilaterais. No plano regional, a Convenção Européia sobre o Reconhecimento da Personalidade Jurídica das Organizações Não-Governamentais, de 1986, dispõe sobre os elementos constitutivos das ONGs e sobre sua personalidade e capacidade jurídicas. Relacionado à capacidade dos sujeitos de direito, verifica-se que a ampliação do rol dos legitimados a recorrer à justiça, inclusive a cortes internacionais, em matérias ambientais tem influenciado a qualidade das decisões finais sob aspectos ecológicos, econômicos e democráticos. No Brasil, a Lei 7.347/85, ao considerar os bens da natureza como pertencentes a toda a coletividade, indica a ação civil pública como um mecanismo judicial para a proteção ambiental. Para ampliar a participação do público em questões ambientais transfronteiriças, vários tratados internacionais adotaram o princípio da não discriminação: as regras que regem a

participação de cidadãos de um Estado devem ser ampliadas para a participação de estrangeiros. No caso da Convenção de Aarhus, o acesso à justiça tem sido construído como a possibilidade de se recorrer à justiça para discutir inclusive decisões públicas que não tenham respeitado o direito à informação e à participação em matéria ambiental. A adoção de medidas capazes de assegurar o exercício desses direitos é obrigação do Estado. Essas medidas, quando efetivadas, conferem maior transparência e legitimidade às decisões públicas, ampliando o espaço e as condições para se pensar novas alternativas aos modelos de desenvolvimento e urbanização que comprometem o meio ambiente e a qualidade de vida. Internacionalmente, a crescente atuação da sociedade civil tem tido um enorme impacto na teoria dos sujeitos do direito internacional, contribuindo a tornar os indivíduos beneficiários diretos das normas internacionais, tal como as normas ambientais aqui referidas demonstram, e a por um fim à anacrônica dimensão puramente interestatal do direito internacional.


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Atores individuais e organizações agem para mudar e assegurar a justiça Vários atores não-estatais, tais como os indivíduos, as ONGs, as empresas multinacionais e as comunidades epistêmicas, têm contribuído para o desenvolvimento do direito ambiental internacional, bem como para a proteção do meio ambiente em áreas específicas. A participação de ONGs em Estados que não possuam recursos humanos, materiais ou organizacionais para formular, implementar e monitorar projetos ambientais ou realizar estudos de impactos ambientais pode ser significativa. ONGs, bem como a comunidade epistêmica, podem realizar e tornar públicas pesquisas sobre o meio ambiente e legislações ambientais, que poderão ser utilizadas por autoridades públicas em seus diversos processos decisórios locais, assim como fundamentar suas demandas em nível internacional. Deve ser ressaltado que a atuação das ONGs não suplanta, mas complementa a atuação do governo na proteção do meio ambiente, já que a sustentabilidade do desenvolvimento requer um mercado regulado e uma visão de longo prazo. A influência das ONGs, aliada à força dos consumidores, também pode ser constatada nas campanhas que construíram a definição de deveres para empresas privadas. Dentre essas campanhas, ressaltam-se as promovidas contra a Shell, acusada de danificar o ambiente na Nigéria; a Gap e a Nike, acusadas de trabalho escravo; bem como os testes realizados com produtos geneticamente modificados no continente africano. Diante das críticas da sociedade civil, o setor privado começou a adotar programas de gestão do meio ambiente. Como agentes do desenvolvimento, muitas empresas tomaram consciência da imensa responsabilidade que lhes cabe na questão da preservação ambiental. No entanto, cabe destacar que se trata também de uma estratégia de negócios. Reduzir custos e riscos com a racionalização do consumo de matérias-primas; a diminuição do consumo de energia e água e a redução de riscos de multas e responsabilidade por danos ambientais podem representar uma significativa vantagem comparati-

va para a empresa. Além disto, o impacto comercial desta postura empresarial está bastante relacionado à imagem que as empresas projetam junto a uma clientela jovem. Pesquisa realizada pela Confederação Nacional da Indústria indica algumas razões apontadas pelas empresas para a adoção de medidas gerenciais associadas à gestão ambiental.

A ampliação do rol de legitimados a recorrer à Justiça tem influenciado na qualidade das decisões Conforme Sondagem Especial da Confederação Nacional da Indústria – Ano 2, N.1 – Maio de 2004. A pesquisa contou com a participação de 1.007 pequenas e médias empresas e 211 grandes de todo o

território brasileiro. 16% dessas empresas nunca precisaram requerer licença ambiental. Maiores informações sobre a metodologia da sondagem ver http://www.cni.org.br/fos-sondind.htm. É necessário lembrar que, por vezes, a proteção empresarial para com o ambiente externo tem comprometido o ambiente de trabalho: ameaçando as condições de emprego, bem como a própria oferta de empregos. Neste contexto, é representativa a realização, no início deste ano, em Nairóbi – Quênia -, da primeira Assembléia de Sindicatos sobre Trabalho e Meio Ambiente. Além de reunir entidades internacionais relacionadas às causas trabalhista e ambiental, a Assembléia contou com a participação de membros da Organização Mundial da Saúde, da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Para integrar as dimensões ambientais e sociais do desenvolvimento, a Assembléia adotou um en-

foque pautado em direitos, indicando a necessidade de reconhecer o acesso ambientalmente racional a recursos básicos como direito humano. A Declaração adotada na Assembléia reclama o direito de participação dos trabalhadores dentro das próprias empresas, para que possam contribuir, inclusive, com a formulação de programas que estreitem os vínculos entre a redução da pobreza, a proteção ao meio ambiente e o trabalho decente. A ampliação dos atores legitimados a participar da formulação de políticas ambientais, sociais e econômicas e de processos decisórios, tanto nacionais como internacionais, é um dos fatores que tem permitido a construção de uma compreensão cada vez mais ampla e significativa das relações entre meio-ambiente e desenvolvimento. Espera-se que ela permita pensar agendas ambientais capazes de elevar os padrões de vida da grande maioria da população, cujas

necessidades básicas – moradia, saneamento básico, alimentação, vestimentas – não são atendidas e proporcionar oportunidades de concretização de vidas melhores, sem prejudicar as condições ambientais de um futuro comum para as próximas gerações. De qualquer maneira, é certo que a participação do público confere maior transparência e legitimidade às decisões concernentes à exploração de recursos, à direção dos investimentos, à orientação do desenvolvimento tecnológico e à mudança institucional e isto, por si, já é uma grande conquista dos movimentos sociais, tanto nacionais como internacionais.

As ONGs complementam a atuação do Governo na proteção do meio ambiente


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O choque desburocrático BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

relação do Estado com os cidadãos é complexa porque o Estado não reconhece apenas cidadãos, reconhece também os grupos e classes sociais a que eles pertencem. Como estes grupos e classes têm uma capacidade muito diferenciada de influenciar o Estado, a igualdade dos cidadãos perante o direito e o Estado é meramente formal e esconde desigualdades gritantes. É por isso que os empregados por conta de outrem pagam proporcionalmente mais impostos que os seus patrões, que o pequeno empresário é mais controlado pela fiscalização do Estado que o grande empresário, que a prática de crimes é socialmente mais diversa do que a população prisional, que as empresas têm mais acesso à justiça que os cidadãos e que os grandes negócios quase sempre recorrem à cumplicidade ilegal do Estado sem que tal configure o crime de corrupção. No século passado, o Estado democrático soube ganhar a confiança e a lealdade de vastas camadas da população através das medidas de redistribuição social que protagonizou. Foi um período histórico curto e em Portugal ainda mais curto porque o seu momento alto ocorreu em 1974. Nas últimas décadas, acumularam-se os argumentos contra a sustentabilidade deste modelo de Estado e, portanto, das políticas sociais que ele funda. Estes argumentos traduziram-se em mudanças nas políticas públicas que, em geral, contribuíram para quebrar o vínculo de confiança e lealdade que se criara entre o Estado e os cidadãos. Esta quebra foi ainda agravada por dois outros factores. Por um lado, o discurso dos neoconservadores, com forte presença nos media, demonizou o Estado ao ponto de o transformar em fonte de todos os males da sociedade. Nos termos desse discurso, o Estado seria inerentemente ineficiente, predador e parasita e, portanto, o seu dano só se poderia reduzir reduzindo o seu tamanho, idealmente ao de um Estado mínimo. Por outro lado, a erosão que este discurso causou nos valores republicanos e no espírito de serviço público contribuiu para o aumento exponencial da corrupção com o consequente descrédito do Estado e da classe política. Tudo leva a crer que esta-

A

mos a entrar numa nova fase. Os neoconservadores chegaram à conclusão de que tinham levado longe demais a sua crítica ao Estado. É que a desmoralização do Estado teve, em muitos países, o efeito perverso de incapacitar o Estado para realizar as próprias tarefas da agenda neoconservadora (garantir a segurança jurídica dos contratos, manter a ordem pública, defender a propriedade privada). Perante isto, foi necessário reclamar um certo regresso do Estado, mas de um Estado diferente: moderno, eficiente, tecnocrático, hi-tech, com espírito gerencial. Os governos de centro ou de centro-esquerda têm-se revelado mais bem equipados para levar a cabo este regresso. Ao fazê-lo, porém, correm sempre o risco de, ao acentuarem a eficiência tecnocrática, não cuidarem do reforço da cidadania sem o qual a confiança no Estado nunca será recuperada. Ao contrário de outros choques anunciados nos últimos anos, mas de que pouco ou nada resultou (choque fiscal, tecnológico, etc.), está em curso uma transformação profunda da administração pública (AP) e, ao que se anuncia, do próprio Estado. Pelas medidas já tomadas, pela lógica global que lhe subjaz e pela vontade política que as anima é de crer que, desta vez, os resultados sejam palpáveis

e nada fique como dantes. Daí a ideia do choque desburocrático. E é tanto mais de crer quanto é certo que, ao contrário dos choques anteriormente anunciados, o choque desburocrático depende exclusivamente do Estado. O Estado tem actuado em muitos momentos da nossa história como uma "imaginação do centro", um agente catalizador de energias modernizadoras que simultaneamente nos aproximam das realidades sociais e políticas dos países mais desenvolvidos (agora, União Europeia) e escondem a real medida (sempre menor que a anunciada) dessa aproximação. Este protagonismo do Estado é o outro lado da falta de hegemonia burguesa ou, como se diz agora, da fraqueza da sociedade civil. Dado que este choque está no começo, um começo vigoroso, é adequado definir os critérios que permitam aos cidadãos avaliar os seus resultados e apoiá-los ou resistir-lhes. Mas, para isso, é preciso definir o âmbito das transformações em curso ou planeadas. Identifico três tipos de medidas. O primeiro consiste no vasto programa de simplificação da AP (empresa na hora, marca na hora, cartão do cidadão, etc.), assente no funcionamento em rede e transversalizado dos serviços, tornado possível pelas novas tec-

nologias de informação e de comunicação, e numa nova filosofia de relacionamento com os cidadãos. As siglas falam por si: UCMA (Unidade de Coordenação da Modernização Administrativa); PSAL (Plano de Simplificação Administrativa e Legislativa); PRACE (Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado). O segundo consiste na eliminação ou reestruturação de serviços públicos em função das transformações territoriais por que está a passar o país, nomeadamente, a desertificação do interior e a densificação do litoral. Está em curso nos serviços desconcentrados da AP central, no Serviço Nacional de Saúde, no sistema educativo e é previsível que venha a ocorrer também no sistema judicial. O terceiro consiste na privatização dos serviços públicos, a qual pode ocorrer de múltiplas formas: privatização total, privatização parcial, privatização da gestão, formas mistas de provisão directa e subcontratação. Está em curso, sobretudo, na área da saúde e da segurança social. Numa sociedade democrática, o critério fundamental para avaliar a eficiência e a racionalidade da reforma da AP e do Estado é o seu impacto na cidadania e, especialmente, nos direitos sociais dos cidadãos. A reforma será

progressista se promover esses direitos. Para isso, terá de ser uma reforma de soma positiva: com ela, tanto ganham os cidadãos como o Estado. Ao contrário, será uma reforma conservadora se puser em causa os direitos dos cidadãos. E assim sucederá se for de soma-zero, se os ganhos do Estado se traduzirem em perdas para os cidadãos. A eficiência assentará sempre num cálculo de custo e benefício, mas tudo depende de como se define o custo e o benefício. O empresário privado define um e outro a pensar em si. Se o Estado agir assim, os benefícios que obtiver tenderão a ser custos para os cidadãos. Por sua vez, a racionalização de serviços pode ser de dois tipos: ou toma em conta as condições vigentes, que considera justas e, por isso, procura intensificá-las racionalmente; ou, pelo contrário, considera injustas as condições vigentes e tenta invertêlas racionalmente. É à luz destes critérios que devemos analisar os três tipos de reforma em curso. Uma análise atenta deles mostra que eles convergem no uso dos conceitos-chave de eficiência e racionalização e no recurso à lógica empresarial e gerencial própria do sector privado, mas que diferem em tudo o mais. O primeiro é uma reforma de soma positiva e, por isso, tem todas as condições para ser considerada progressista. O reordenamento territorial só será progressista em condições muito exigentes. Em termos de eficiência, os benefícios para o orçamento de Estado no curto prazo devem ser contrapostos aos custos para as famílias afectadas pelo encerramento dos serviços e aos custos para o país decorrentes da concentração da população no litoral e da desertificação do interior (incluindo o aumento dos incêndios florestais). Em termos de racionalidade, é preciso partir da ideia de que as assimetrias regionais são injustas. Aliás, não reconhecêlo é uma hipocrisia, já que é para as eliminar que o Estado continua a reclamar os fundos de coesão da Europa. O segundo só será progressista se serviços e acessibilidades de tipo novo garantirem os direitos dos cidadãos. As reformas do terceiro tendem a ser conservadoras, sobretudo numa sociedade tão desigual quanto a nossa: a transformação de cidadãos em consumidores tenderá a ser um factor de exclusão.


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