a ma nhe ce! PATRIMÔNIO, MEMÓRIA E HISTÓRIA DO
FanDanGO caIÇaRa em cananeIa
ORaÇãO caIÇaRa a SãO GOnÇalO Hoje vai ter mutirão, fandango e folia Depois da lida já feita e a roça tendo valia Agradeço a São Gonçalo por nos dar essa alegria Na batida do tamanco do dandão e na chamarrita O povo pede ajuda porque no Santo acredita São Gonçalo, ó meu Santo, meu querido padroeiro A vós pedimos que proteja a todos os violeiros Com a viola nos braços nossos passos são ouvidos Vamos estreitando os laços Dançando o vosso batido O nosso povo agradece a proteção a todo instante Consagrado padroeiro São Gonçalo do Amarante Abençoe este chão Depois de feita a coivara Do fundo do coração Peço a vossa benção Nesta oração caiçara
Poeta Rubens Paiva (2021)
Santuário para São Gonçalo, santo padroeiro do Fandango5 Caiçara
Caiçaras apresentam o batido 7 na Festa do Fandango de Cananeia
Típicos tamancos artesanais usados no fandango batido
a ma nhe ce! PATRIMÔNIO, MEMÓRIA E HISTÓRIA DO
FanDanGO caIÇaRa em cananeIa
CATHARINA APOLINÁRIO DE SOUZA CLEBER ROCHA CHIQUINHO FERNANDO OLIVEIR A SILVA
1ª edição CANANEIA (SP), BRASIL 2022
produção
parceria
realização
Estandarte criado para 1ª Festa do Fandango de Cananeia (2016)
4 14 16 18
OraçãO Caiçara a SãO GOnçalO Bem-vindos ao Baile apreSentaçãO prefáCiO onde o FandanGo vive
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História contada no boca a boca a Cananeia do fandango nosso lugar, nossas vidas: o território cultural O mapa do fandango caiçara de Cananeia a salvaguarda do saber tradicional Um universo de músicas, danças e instrumentos QUem FaZ o FandanGo
52 54 58 62 66 70 74 78 84 86 88 90 92 94 96 98 100 102 108 114 116 118
em grupos eles são mais fortes Grupo de Fandango e Dança Vida Feliz Grupo ImPures no Fandango Grupo de Fandango Esperança Grupo de Fandango Família Neves Grupo de Fandango Família Pereira Grupo Jovens Fandangueiros do Itacuruçá Fandangueiros do Mandira Mestres, Mestras e herdeiros do legado Zé Pereira Cleuza da Silva dos Reis André Pires João Firmino Márcia Luzia da Silva Pontes Rodolfo Vidal Juliana Maria Cordeiro Eliel Alves a força da mulher fandangueira Juventude aprendiz expediente e aGradecimentos aUtOreS créditos das Fotos
Vista frontal da Avenida Beira-mar de Cananeia, primeira vila13do Brasil
bem-vindos ao baile AQUI, O FANDANGO CAIÇARA DE CANANEIA É MAIS QUE TRADIÇÃO: É UMA CULTURA VIVA
a bençãO, SãO GOnçalO. pedimos licença ao santo padroeiro dos violeiros, como fazem os mestres e mestras fandangueiros ao iniciar seus festejos musicais, para abrir os trabalhos de apresentação do fandango caiçara de Cananeia que vocês desfrutarão a seguir. Tocado por um grupo de apaixonados pela cultura popular caiçara que se dedica há décadas a valorizar a autêntica arte regional brasileira, o livro digital Amanhece! Patrimônio, Memória e História do Fandango Caiçara em Cananeia tem por missão compartilhar com o maior número de pessoas possível a beleza e o valor de uma manifestação do povo local que tem sido vital para moldar a identidade da população cananeense. O palco em que o tema do nosso livro tem origem é uma das mais belas vilas litorâneas do Brasil. Município mais meridional do estado de São Paulo, Cananeia fica a cerca de 250 quilômetros da capital paulista, na divisa com o estado do Paraná. Documentos históricos nos contam que esta foi a primeira vila criada pelos portugueses colonizadores no Brasil, em 1531, antes mesmo da fundação de São Vicente, no ano seguinte. Já a tradição oral dos moradores antigos dessa região de natureza exuberante do Lagamar repassa os relatos de que há séculos o povo que vive entre a roça e a praia se reúne para tocar e bailar nas festas de fandango. Como será possível entender, pelos relatos de dezenas de representantes da cena cultural espalhados ao longo das próximas páginas, ao longo dessa trajetória o fandango local quase morreu, abafado pelos desafios da sociedade moderna. Lembro do incômodo de ouvir, ao 14
visitar a Cananeia dos anos 1990, os relatos tristes de moradores que foram tirados de suas terras de origem nas áreas naturais por exigência de leis ambientais arbitrárias e inflexíveis. Deslocadas de suas raízes e de suas comunidades nas novas moradas urbanas que lhes foram impostas, as populações caiçaras deixaram de se reunir para os mutirões de trabalho que sempre terminavam em fandango. Há quem diga que o fandango morreu ali. Nós acreditamos que não. Por esforços dos próprios mestres, de seus descendentes e de integrantes da sociedade civil que reconhecem o valor da cultura popular, o fandango caiçara continua vivo. Diferente do que foi, é claro, e em permanente transformação, como mostram os grupos contemporâneos de fandango e os tocadores independentes que se apresentam a seguir e que resistem por amor à cultura — trazendo música e alegria a cada nova festa. Antes de dar por despedida, um lembrete: este livro digital está permeado por ícones, ao final de algumas páginas, onde pode-se clicar para acessar um precioso acervo de canções, vídeos, sites e documentos que permitem que cada um aprofunde – onde, quando e como quiser – a sua imersão no universo do fandango caiçara de Cananeia. Curtam as fotos, leiam os textos, explorem os links — e fiquem à vontade para bailar à vontade, como cantam os fandangueiros, até o dia amanhecer.
Daniel nunes Gonçalves O editOr
Grupo Família Pereira toca durante a 2ª Festa do Fandango (2017)
apReSentaÇãO PARA QUE A MÚSICA DAS VIOLAS E RABECAS DO FANDANGO JAMAIS PARE DE ECOAR POr FernandO Oliveira Silva
a primeira veZ QUe oUvi Falar do FandanGo caiçara Foi em 1998, antes mesmo de escolher Cananeia como lar, em 2002. Tudo que me diziam a respeito carregava certa nostalgia, como se nada mais daquela manifestação cultural tão valiosa para a história da cidade existisse — muito embora o fandango ainda permanecesse vivo na memória das pessoas. Impressionado com a riqueza poética das canções caiçaras, propus aos fandangueiros uma série de apresentações ao vivo, promovidas pelo projeto Vivendo Arte e Cultura, durante os cursos ofertados entre 1998 e 2010 pela organização social Instituto de Pesquisas Cananeia (IPeC). O sucesso foi tão imediato que aquela iniciativa colaborou para que a praça que ocupávamos, em comunhão com outras organizações, se transformasse em um importante espaço cultural da cidade. A Praça Theodolina Gomes (Tiduca) passaria a receber não só a Festa do Fandango Caiçara como também outros eventos de cultura popular. Inspirados por este movimento, em 2009 implementamos o projeto-piloto Puxirão – Apoio ao fandango caiçara no município de Cananeia, iniciativa do Ponto de Cultura Caiçaras que seria financiada, entre os anos de 2010 e 2012, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Para isso, botamos os pés na estrada a fim de documentar o fandango caiçara de forma criativa e sob diferentes olhares. O resultado foi a produção de um disco com canções caiçaras gravadas ao vivo, de um curta-metragem de ficção e aventura com participação de moradores de Cananeia, de uma revista de histórias em quadrinhos com histórias reais e fictícias, e ainda de um portal digital que abriga todos os passos e realizações 16
dessa experiência libertária. A partir deste rico aprendizado, decidimos então oficializar a criação do Programa Puxirão, que busca apoiar, fortalecer, disseminar e registrar o universo dessas manifestações populares nos municípios do chamado Território do Fandango Caiçara. O lançamento do livro digital Amanhece! Patrimônio, Memória e História do Fandango Caiçara em Cananeia é mais uma linda ação neste sentido. Idealizada pelo educador Cleber Rocha Chiquinho e realizada pelo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica – como foi rebatizado o antigo Ponto de Cultura Caiçaras, uma vez que nosso trabalho passou a abarcar mais populações tradicionais da região –, o livro traz ao mesmo tempo uma abordagem histórica e contemporânea do fandango caiçara em Cananeia. Nosso objetivo é colaborar com a salvaguarda desse patrimônio cultural do município, utilizando a memória e a história oral como bases para os relatos aqui contidos. Esta empreitada coletiva celebra a nossa parceria com os jornalistas Catharina Apolinário de Souza, também autora dos textos, e Daniel Nunes Gonçalves, editor do livro, assim como com o diretor de arte Ricardo Godeguez, com o fotógrafo Maurício Velloso e com o ilustrador Bruno Romão. E representa uma conquista não só para nós, apaixonados pelo fandango, mas para todas e todos que acreditam na valorização do patrimônio cultural brasileiro.
ouçA
Programa Puxirão
lEiA
Portal digital Fandango em Cananeia
Fandangueiros da Comunidade Quilombola do Mandira17em 2005
pReFácIO A EDUCAÇÃO É IMPRESCINDíVEL PARA A VALORIZAÇÃO DA CULTURA POPULAR
COMentar SObre eSte trabalHO, AmAnhece! PAtrimônio, memóriA e históriA do FAndAngo cAiçArA em cAnAneiA, me causa uma alegria muito grande. Essa valorização dos bens culturais, em especial no que tange às práticas das comunidades tradicionais, como a dos caiçaras com a qual convivo há 33 anos, me dá a certeza de que há uma preocupação legítima em pesquisar, registrar e divulgar esta manifestação popular tão especial — e que sobrevive apesar de todas as mudanças ocorridas nessas populações através dos tempos. E falar da cultura caiçara é falar do fandango, e de tudo o que se refere a esta expressão do povo: sua origem, a história, o modo de vida e o quanto essa tradição está associada à natureza, às leis de preservação, às políticas públicas e ao reconhecimento deste patrimônio tão importante. Quando cheguei a Cananeia, fui conhecendo e entendendo melhor seus costumes e me encantei com o que vi e ouvi. Neste processo de encantamento, deparei-me com o professor Cleber Rocha Chiquinho e com o biólogo e pesquisador Fernando Oliveira Silva. Logo percebi um brilho especial no olhar de cada um deles
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sobre a cultura do lugar. Ambos tinham uma necessidade imensa de absorver e fruir toda essa riqueza local, transformando-a em ações coletivas de valorização, de formação educativa e de multiplicação do conhecimento. Eles buscaram não apenas se apropriar desse conhecimento popular por meio de pesquisas, leituras e entrevistas, mas realizaram também um processo de imersão. Aprenderam a amar esta cultura, o que os motivou a difundir a valorização desse patrimônio tão rico. Assim, produziram materiais e ações importantes para a salvaguarda do fandango, como livros, encontros, palestras, festivais e oficinas, entre outros. Este mergulho na realidade das comunidades caiçaras e grupos fandangueiros abriu um espaço de confiança e troca valioso, onde os artistas se sentem à vontade para contarem suas histórias e causos, além de apresentarem suas músicas, instrumentos, cantos e danças. A Cleber Chiquinho e Fernando Oliveira se juntou Catharina Apolinário de Souza, outra apaixonada pelo universo caiçara cujo trabalho passo a conhecer graças a este livro. Estes grandes pesquisadores e incentivadores da arte popular nos mostram nesta obra um universo sensível, mas também de resistência; de aprendizado e ao mesmo tempo de inspiração; do tradicional e do novo numa simbiose perfeita. Percorrer as imagens e os relatos aqui apresentados é visitar os povoados e a natureza ainda preservada e exuberante da Mata Atlântica no Estado de São Paulo, é ver os rostos alegres e singelos do povo caiçara. Nunca é demais lembrar que a cultura tradicional, em especial a dos caiçaras, está intima-
mente ligada ao meio natural em que vivem. Tão logo é de suma importância a preservação ambiental e também histórica dessas comunidades. Outra questão importante é a continuidade desses saberes: como fazer um instrumento musical, como tocar, cantar ou dançar... Precisamos trabalhar pela sobrevivência dessa manifestação que, apesar das várias interferências e desafios, tem se mostrado resiliente e inovadora. Um exemplo feliz são os jovens munícipes aprendendo a arte da construção dos instrumentos musicais, de tocar e compor fandango caiçara e também da apresentação do bailado. Neste livro podemos observar e conhecer grupos mais tradicionais, seus mestres e mestras, tão queridos por todos, assim como jovens agremiações, cuja paixão pela cultura fandangueira os tocou e os motivou a levar adiante esta tradição. Os autores se preocuparam também com algo imprescindível para a preservação e valorização do patrimônio, seja ele material ou imaterial: a educação. Vivo isso no meu dia a dia, lecionando há 32 anos em escola pública, a E. E. Prof.ª Yolanda Araújo Silva Paiva. Ali percebo o quanto é importante esta relação entre aluno e cultura, escola e comunidade, currículo e realidade. Quando começamos a desenvolver uma aula sobre identidade caiçara em Cananeia, é muito bonito presenciar os alunos contribuindo com suas vivências, como: “ah professora, meu avô toca”, ou “o meu tio faz rabeca”, ou até “estou participando de um grupo!” Esta escola em que leciono, em especial, tem muitos alunos de famílias que ainda praticam a pesca artesanal, produzem a farinha de mandioca
nos sítios, são artesãos, participam dos bailes de fandango ou até fazem parte de grupos fandangueiros. Eles se reconhecem e se identificam com esse traço cultural, sentem-se valorizados e felizes por poderem compartilhar essas vivências. Com certeza o livro atingirá um espectro muito amplo, tanto de artistas, professores e grupos fandangueiros como de outros leitores com vivências diversas. Todos poderão ter a oportunidade de perceber a importância da preservação do meio ambiente e sua relação com o saber tradicional, principalmente a valorização das raízes identitárias - e, quem sabe, refletirão sobre as suas próprias referências sociais. Fica aqui o convite a conhecerem esse patrimônio que os autores traduziram tão bem neste livro. Estamos diante de um trabalho dinâmico, de leitura agradável e instigante, que traz uma narrativa prazerosa e ao mesmo tempo convida à reflexão. A cultura se reinventa, se adapta aos novos tempos. As tradições passadas de geração em geração podem se transformar muito, mas a essência, aquela chama que não nos deixa esquecer quem somos, está lá, viva. Viva o Fandango Caiçara de Cananeia!
maRIa RIta BaSSO Professora de educação básica e arte na escola estadual Prof.ª Yolanda araújo Silva Paiva, de Cananeia, foi diretora de cultura do município de 2013 a 2016. desde 1988 atua como educadora de ensino fundamental, médio e educação de jovens e adultos (eJa) 19
Mestre leonildo Pereira baila na Festa do Fandango
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ONDE O FANDANGO VIVE
HISTÓRIA CONTADA NO BOCA A BOCA A orAlidAde tem sido essenciAl pArA preservAr A memóriA do fAndAngo cAiçArA
Trazido ao conTinenTe americano pelos colonizadores europeus de Portugal e Espanha séculos atrás, o conjunto de músicas e danças tradicionais que conhecemos como fandango tem uma história pouco documentada. Alguns raros relatos de viajantes e naturalistas estrangeiros que vieram ao Brasil entre os séculos 18 e 19, como o francês Auguste de Saint-Hilaire, mencionam costumes brasileiros que aludem a bailes com batidos ou sapateados no caminho de São Paulo para Curitiba, mas de forma superficial. Só no século 20 é que pesquisadores brasileiros como Mário de Andrade e Câmara Cascudo fazem os primeiros estudos das diferentes modalidades de fandango encontradas especialmente no Sudeste e Sul do Brasil, como menciona o antropólogo e etnomusicólogo Edmundo Pereira no livro Museu Vivo do Fandango, lançado pela Associação Cultural Caburé em 2006 e mais completo projeto de pesquisa feito sobre o fandango das regiões de Morretes, Paranaguá, Guaraqueçaba, Cananeia e Iguape. Igualmente difusa é a origem do termo “fandango”, que não encontra uma definição histórica unânime, mas que é definido simplesmente como “baile” em seus usos mais antigos. Segundo o inventário Dossiê de Registro do Fandango Caiçara, redigido sob coordenação da mesma organização social Associação Cultural Caburé, para alguns o termo fandango tem origem árabe e para outros nasceu na Península Ibérica, antes mesmo de Espanha e Portugal terem definido as fronteiras de seus reinos. Este documento cha24
ma a atenção para referências a bailes e a um conjunto de danças chamados de fandango ao longo de Portugal, Espanha e França, no conjunto das músicas e danças tradicionais mediterrâneas. Especificamente para Portugal, menciona o fandango do Arquipélago dos Açores, um dos lugares de onde ele teria partido para o Brasil, com as levas migratórias que chegaram aos atuais estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina em meados do século 18. Afirma também que em terras portuguesas, ainda hoje, encontra-se um sem número de gêneros e funções musicais, com um repertório de cantigas de trabalho e de divertimento, que devem também ter alimentado o que é hoje a música dos fandangos encontrados no litoral do Sudeste e Sul do Brasil. A busca por publicações que colaborassem para contar a história do fandango caiçara particularmente em Cananeia nos levou a importante obra de Antônio Paulino de Almeida. Nascido em Cananeia, durante décadas ele foi chefe da Seção de História do Arquivo do Estado de São Paulo, tendo publicado estudos valiosos sobre o Vale do Ribeira e o Litoral Paulista. Mesmo em sua obra, porém, nada encontramos sobre fandango caiçara. despresTÍGio social Um fato que talvez explique esta ausência de registro histórico pode ser entendido a partir de um trecho contido no próprio Dossiê de Registro do Fandango Caiçara: “Uma forte alteração neste padrão de ocorrência do fandango foi observada a partir do século XIX, onde a manifestação
será alvo de sistemática perseguição. Os padrões de civilidade adotados pelas elites locais se contrapunham às práticas populares. Para Roselys Roderjan, “o desprestígio social do fandango foi acelerado com as proibições das Ordenanças Reais e as censuras eclesiásticas, que o consideravam licencioso e herege”. Uma citação no estudo realizado pela pesquisadora Daniella da Cunha Gramani sobre o aprendizado e a prática da rabeca no fandango entre os integrantes da Família Pereira corrobora esta afirmação: “Os escravos, seus descendentes e os brancos de poucas posses formavam um grupo social culturalmente semelhante que se divertia nos fandangos e batuques, enquanto as famílias da alta classe promoviam bailes onde eram dançadas valsas, xotes e quadrilhas. Ressalta-se o fato de que o fandango, pelas descrições da época, possuía um forte caráter libidinoso e lascivo, que ia contra a nova moral burguesa adotada”. Diante do vácuo de registros históricos sobre a origem secular do fandango, a fonte de informação mais rica e acessível para resgatarmos a me-
mória desse patrimônio regional é a oralidade, o boca a boca. Pensando nisto, neste livro, buscamos outras narrativas para compor uma possível nova história baseada nas memórias das fandangueiras e dos fandangueiros que ainda vivem. São eles que, por consequência, salvaguardam a história oral do fandango caiçara na cidade de Cananeia. Boa parte destas falas envolvem antepassados e mestres que viraram referências históricas desse universo, como Agostinho Gomes e Ângelo Ramos, entre tantos que partiram. muTirÕes, o inÍcio de Tudo Independentemente de suas raízes europeias, em Cananeia a identidade do fandango caiçara está intimamente ligada aos mutirões comunitários, chamados por moradores da comunidade em épocas de preparo, plantio ou colheita de roças — ou outros trabalhos colaborativos. A retribuição para as pessoas que colaboravam Mestre Ângelo Ramos toca sua rabeca: memória dos mestres que já partiram precisa ser preservada
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nos também chamados puxirões era feita por meio da oferta de uma festa regada a boa comida típica e de um baile de fandango caiçara à noite, tudo custeado pelos anfitriões do ajuntamento de vizinhos. Num trecho do livro Saberes Caiçaras – A cultura caiçara na história de Cananeia, organizado por Cleber Rocha Chiquinho, podemos notar a importância dos mutirões para as comunidades da Ilha do Cardoso: “...nenhum dos moradores entrevistados deixou passar em branco os comentários sobre as festas de fandango da Praia da Lage (...), contam que era muito divertido poder dançar e brincar depois de um dia de muito esforço e trabalho. Além, é claro, de toda a integração e união das famílias que ajudavam umas às outras nos trabalhos na roça, sinal de respeito e harmonia entre estes caiçaras”. No livro Museu Vivo do Fandango Caiçara, histórias relacionadas aos mutirões, aos modos de vida e aos festejos tradicionais locais estão presentes em relatos de cerca de 300 fandangueiras e fandangueiros da região — mais de 20 deles, de Cananeia. O principal desdobramento desse pro26
jeto inspirador foi a constituição do museu comunitário a céu aberto, sob a forma de um circuito de visitação e troca de experiências em cinco municípios da região do Lagamar. Localmente, outra obra de referência é o livro Saberes Caiçaras, que descreve aspectos específicos da história do fandango caiçara contada por detentores do saber a partir do olhar de adolescentes e jovens habitantes da cidade. Redigido e produzido em 2007 pelo Coletivo Jovem Caiçara com apoio do atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica, o livro relata a história de formação de alguns bairros do município de Cananeia com destaque para representações da cultura caiçara presentes em áreas como agricultura, pesca e religião. Antes, nem mesmo as obras do ilustre cananeense Antônio Paulino de Almeida haviam registrado informações sobre o fandango caiçara, dada a invisibilidade das comunidades naqueles tempos. Fim da inVisiBilidade Talvez consequência disto, a invisibilidade do fandango caiçara também se fez no cotidiano
local – e acentuou-se na medida em que os encontros comunitários foram sendo reduzidos a partir dos anos 1960. Foi a partir dessa década que a criação das unidades de conservação de proteção integral para zelar pela natureza impactou diretamente os modos de vida das comunidades tradicionais. As restrições ligadas à legislação ambiental foram aumentando e muitos caiçaras tiveram que deixar seus territórios de origem – algo que foi acentuado com a especulação imobiliária nos anos seguintes. Somente a partir da década de 1990, com algumas ações específicas, é que o fandango caiçara começa a voltar a cena local. Essenciais para esta retomada foram as domingueiras promovidas pela Associação Rede Cananeia de 2004 a 2010, as apresentações culturais
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Dossiê de Registro do Fandango Caiçara
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Referência histórica, o falecido Mestre Agostinho Gomes teve sua casa – com retratos, ferramentas e utensílios – incluída no roteiro do Museu Vivo do Fandango
promovidas pelo projeto Vivendo Arte e Cultura durante os cursos ofertados pelo Instituto de Pesquisas Cananeia (IPeC), entre 1998 e 2010, e o encontro presencial entre fandangueiros do litoral paulista e paranaense realizado no Parque Estadual da Ilha do Cardoso em 2003. A partir disto, muitos estudantes universitários passaram a se interessar pelo tema, aumentando consideravelmente o número de pesquisas acadêmicas sobre o fandango caiçara – e colaborando para que a memória e a história transmitidas oralmente sejam repassadas às próximas gerações. F.O.S.
Antônio Paulino de Almeida, • O historiador do Vale do Ribeira e litoral Paulista
O aprendizado e a prática da rabeca no Fandango Caiçara
Saberes Caiçaras • A cultura caiçara na história de Cananéia/SP
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Os pescadores artesanais, o tradicional cerco de pesca, o casario colonial da Avenida Beira-mar e a garça branca no manguezal: cenas das belas paisagens de Cananeia
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Grupo Vida Feliz se apresenta na 2ª Festa do Fandango, em 2017
A CANANEIA DO FANDANGO UmA mAnifestAçÃo popUlAr tem sido essenciAl pArA moldAr A identidAde cUltUrAl dA cidAde POr Cleber rOCha ChiquinhO
são os relaTos dos mesTres e mesTras detentores do saber caiçara de Cananeia que melhor contam a história do fandango no município. Sua realização, segundo eles, acontecia prioritariamente na zona rural. “Lugares como Varadouro, Araçaúba, Rio Itapanhapima, Retiro: em todas essas comunidades tinha fandango”, lembra Cleuza da Silva dos Reis, coordenadora do Grupo de Fandango e Dança Vida Feliz. Nesses sítios, os caiçaras organizavam mutirões, também chamados de “ajuntórios”, “puxirões” ou “sapos”, para preparar as roças para o plantio, fazer as colheitas, construir benfeitorias ou “puxar a canoa” da floresta para a propriedade. No final do dia, esse trabalho comunitário era “pago” pelo anfitrião com o oferecimento de um baile de fandango que reunia danças e músicas executadas com instrumentos artesanais como a viola, a rabeca, o adufo e o machete. Essa forma de solidariedade não tinha somente uma função produtiva. Ela facilitava as relações entre os vizinhos, estreitava os laços sociais, permitia a troca de informações e criava condições até mesmo para namoros e casamentos. Além destes momentos ligados às atividades de trabalho coletivo, o fandango também estava presente em festas religiosas, batizados, casamentos e, especialmente, no carnaval — quando os quatro dias de festa eram realizados ao som dos instrumentos musicais dessa manifestação popular marcada pela alegria. Mesmo nos fandangos dos sítios, que ocorriam geralmente aos sábados e domingos, quando a comunidade interrompia a rotina dos afazeres cotidianos, a única exigência para que as festas acontecessem na casa dos moradores era que a residência possuísse uma sala com chão de madeira para ressoar os batidos de tamanco do fandango. Joaquim Pires, integrante do Grupo Esperança, recorda bem dos tempos em que morava na área rural e participava das festas: “No Itapanhapima tinha dois violeiros famosos,
João Borges e Juvenal Borges, os dois irmãos. Eles tocavam a noite toda e a gente ajudava eles. Eu tocava machete, tocava caixinha. Esse era o lugar que mais tinha fandango, quase todos os sábados tinha, e eu gostava muito”. Nesses bailes animados, os cantadores populares apresentavam músicas tradicionais com letras que traziam suas histórias, lendas, causos, tradições e crenças. Para caiçaras como Joaquim Pires, o fandango não era somente uma apresentação musical com dança, mas sim um universo social onde as pessoas podiam viver alegre e tranquilamente. cHoQue de realidade Foi assim até que uma série de transformações começou a reconfigurar a realidade dos caiçaras. “Desde o final do século XIX toda a região litorânea passou por um processo de crise econômica, o que causou certo isolamento das comunidades caiçaras em relação aos grandes centros econômicos da região”, destaca o professor e pesquisador Antônio Carlos Diegues em sua obra Enciclopédia Caiçara. “A partir dos anos 1950, os caiçaras foram vítimas de um processo por vezes violento de expropriação de suas terras, o que afetou profundamente seu modo de vida. Habitando uma faixa da Mata Atlântica bastante conservada, justamente pelas atividades tradicionais que desenvolvem, foram presenciando seus territórios serem transformados em áreas protegidas, cuja legislação proibiu os cultivos de subsistência, a caça e o extrativismo vegetal, tornando os caiçaras estrangeiros em suas próprias terras.” A redução da prática dos mutirões, das atividades agrícolas, da pesca, da caça e do extrativismo vegetal significou mudanças também na sociabilidade destas comunidades, em seu lazer e em suas esferas de solidariedade. Com isso, muitos moradores dos inúmeros sítios que existiam em Cananeia começaram a migrar da zona rural para a área urbana da cidade e foram vendendo suas terras. Ao chegarem à 31
centro urbano, adaptaram as práticas de seus territórios originais a uma nova realidade, menos coletiva. Já as poucas pessoas que permaneceram na terra não tinham como fazer os mutirões. Essa tradição foi desaparecendo. E com ela, o fandango. Assim como outros mestres, Cleuza lembra com tristeza desse período em que a principal expressão cultural de Cananeia deixou de acontecer. “O fandango ficou vinte anos dormindo”, estima. Ela destaca que outros ritmos populares, como forró e lambada, ficaram mais proeminentes à época. Alguns poucos bailes esporádicos, porém, passaram a ocorrer eventualmente, como lembra Joaquim Pires: “Tinha nos bairros do Morro 32
Mutirão de cavação de rama no sítio do Mestre Zé Pereira, em 2010: experiência coletiva comunitária como as que deram origem ao fandango
São João, Carijo, Rocio e no São Paulo Bagre, este último com mais frequência que nos outros lugares”. Mestre André Pires é outro que recorda-se de algumas famílias e responsáveis por esses encontros: “No Carijo tinha a família Atanásio, do João, do Silvio e do Quirino Atanásio, e no Morro São João era na casa do Antenor.” Durante esses anos em que o fandango ficou “adormecido”, os fandangueiros foram buscando novas formas de vivenciá-lo,
fosse pela organização de clubes de baile, de festas comunitárias, de formação de grupos artísticos ou de recriações por grupos mirins. A retomada da realização dos bailes ganhou relevância à medida que o turismo passou a ganhar importância no sustento e na sobrevivência das famílias que decidiram permanecer na região apesar dos contratempos. Destacouse, nesse contexto, João Cassiano Martins, conhecido como João da Toca. Proprietário durante trinta anos do bar Toca da Onça, localizado no centro de Cananeia, ele foi uma das figuras centrais na reorganização do fandango local, sendo até hoje lembrado pelos fandangueiros da cidade. FandanGo ou represenTaÇão do passado? Para Mestre André, que viveu intensamente o velho fandango dos mutirões na zona rural, o fandango fora dos sítios se tornou apenas uma representação daquilo que existiu um dia, e que agora só permanece na memória das pessoas de antigamente. Ainda que possa ser compreendido como mera representação do fandango autêntico, este outro, revisitado, foi ficando mais comum. Cleuza destaca lugares privados e públicos onde os bailes passaram a acontecer, como “o Clube União, o Maratayama, a associação do Acaraú dos amigos do bairro, a praça da Tiduca e também a Rua do Artesão”. Um marco na história dessa manifestação da cultura caiçara de Cananeia ocorreu em fevereiro de 2003, ano em que aconteceu o I Encontro de Grupos de Fandango no Parque Estadual da Ilha do Cardoso. O evento teve como principais objetivos a promoção do intercâmbio cultural entre comunidades tradicionais do Vale do Ribeira, o estímulo ao pertencimento e à corresponsabilidade dessas comunidades diante das questões culturais e ambientais na região. As atividades que aconteceram durante o encontro foram fundamentais para estimular novas iniciativas. Houve então o en-
tendimento de que os laços que garantiam a sobrevivência do fandango não estavam mais diretamente ligados à rotina da comunidade, mas sim à necessidade da valorização da cultura. Esta missão passou a estar tanto nas mãos das pessoas mais velhas, que têm o domínio da arte, quanto nas prioridades dos mais jovens, essenciais na garantia da transmissão de conhecimento para as futuras gerações. Esse encontro histórico proporcionou um “despertar” do fandango em Cananeia. Houve um fortalecimento dos movimentos dos grupos de fandango e das comunidades para a valorização dessa arte em um caminho de conexão entre todos. Além de estimular a formação de novos grupos, a reunião serviu ainda para aumentar a afirmação cultural das práticas caiçaras locais, por meio da criação de associações de fandangueiros e estímulo a registros educativos em projetos como as histórias em quadrinhos do Programa Puxirão. Os esforços locais ganharam um importante reforço regional em 2005, quando foi criado o Museu Vivo do Fandango nas cidades de Morretes, Paranaguá e Guaraqueçaba, no Paraná, e também Cananeia e Iguape, no Estado de São Paulo. O museu não tem sede, mas é formado por um circuito de visitação que inclui casas de fandangueiros e construtores de instrumentos, associações ligadas à cultura caiçara, casas de fandango, pontos de cultura, museus e centros culturais, com o objetivo de preservar esse universo material e imaterial da cultura caiçara. Todas essas iniciativas contribuíram imensamente para o reconhecimento desta manifestação regional como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil em 2012 e para a retomada do fandango caiçara como elemento essencial na formação da identidade de Cananeia.
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Histórias em Quadrinhos • Programa Puxirão
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NOSSO luGAR, NOSSAS VIDAS AFINAL, O QUE é O TERRITóRIO CULTURAL DO FANDANGO CAIçARA?
ainda Que os dicionários deFinam a palaVra “TerriTório” como parte da superfície terrestre pertencente a uma cidade, a um estado ou a um país, falar de território no âmbito cultural significa expandir a compreensão para além das fronteiras geográficas estabelecidas juridicamente. “Cultura” é um termo bastante plural que ao lado da palavra território sugere a incorporação de elementos como os costumes, as crenças, os conhecimentos transmitidos socialmente. O “território cultural”, como mostramos a seguir, dá margem a distintas interpretações. Todos os pontos de vista concordam: existe um território cultural do fandango caiçara, e ele não cabe nos limites físicos de Cananeia, de Iguape ou das cidades do vizinho Paraná onde comunidades fandangueiras compartilham das mesmas práticas e da mesma paixão por essa manifestação cultural. Aos olhos das populações tradicionais, território cultural é algo simples: a moradia com rede de pesca na varanda, a casa de farinha, a beira-mar onde se canta e dança o fandango com os vizinhos. Incorpora o universo dos modos de viver, dos saberes e fazeres da lida cotidiana que unem as pessoas em espaços de constante interação com a natureza. Sob a perspectiva acadêmica, a expressão território cultural pode tomar contornos complexos, a depender da área de estudo e do foco de quem pesquisa. Por fim, falar de território cultural pode ser desafiador para os responsáveis por implementar políticas
Rancho típico de pesca na Comunidade Caiçara do Marujá, na ilha do Cardoso: espaço de moradia e trabalho em interação com a natureza
públicas: pressupõe aliar as visões dos moradores e da academia com o entendimento global e a necessidade de ações no território físico que esses gestores públicos administram. sociedade GloBal, idenTidade local Para entender um território cultural é preciso falar sobre globalização. A noção de distância entre os lugares, assim como as relações humanas, foi imensamente modificada pelo processo da globalização, que alterou e eliminou fronteiras especialmente em função das novas tecnologias. Além disso, a recente pandemia fez com que nos apropriássemos ainda mais das ferramentas de comunicação digital, ampliando as possibilidades de contato interativo em tempo real com qualquer pessoa do planeta. Tempo e espaço foram comprimidos na velocidade da transmissão de dados online. Por tudo isso, os conceitos de territorialidade mudaram. Estamos em um momento de novas formas de entender os espaços, geográficos ou não. Existem novas possibilidades de articulações dentro dos territórios e também entre territórios distintos. Há uma visão contemporânea de que espaços locais possam se transformar em ambientes globais, de modo a se inserir em novos fluxos e redes mundiais – e consequentemente produzir novas relações e manifestações de poder nesses territórios. Ou seja, esses territórios culturais estariam se transformando em lugares globais por pressão das forças que emergem do processo de globalização, o que provoca a articulação entre atores locais e globais. Mas esta sociedade global precisa coexistir com a manutenção de iden35
tidades locais. Daí a importância de as comunidades tradicionais compreenderem que sempre fizeram parte de determinado território e reconhecerem ter uma identidade cultural única, que só elas têm, específica daquele ponto de origem. o leGado do museu ViVo Em relação ao fandango caiçara, talvez possamos afirmar que a primeira noção concreta de território cultural se deu a partir da realização do projeto Museu Vivo do Fandango Caiçara, de responsabilidade da organização social Associação Cultural Caburé. Realizado entre 2004 e 2005, o projeto envolveu comunidades caiçaras do litoral das regiões Sul e Sudeste do Brasil com a participação direta de cerca de 300 fandangueiras e fandangueiros. A ação teve como principal desdobramento a constituição do museu comu36
nitário a céu aberto, que não se tratava de uma construção física de um museu convencional, com objetos em exposição. O Museu Vivo existiu sob a forma de um circuito de visitação e troca de experiências em cinco municípios da região, a saber: Morretes (PR), Paranaguá (PR), Guaraqueçaba (PR), Cananeia (SP) e Iguape (SP). O circuito incluiu casas de fandangueiros e artesãos de instrumentos musicais, centros culturais e de pesquisa, espaços de comercialização de artesanato caiçara, além de locais de disponibilização de acervos bibliográficos e audiovisuais. Além de se tornar a base para o início de todo o processo de registro do fandango caiçara como Patrimônio Cultural Brasileiro, em 2012, o Museu Vivo do Fandango foi incluído na Lista de Melhores Práticas de Salvaguarda do Patrimônio Imaterial da Humanidade, segundo a Organiza-
ção das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). A confirmação do acervo imaterial identificado no Museu Vivo do Fandango veio com a elaboração do Dossiê de Registro do Fandango Caiçara, sob demanda do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Naquele documento, entendeu-se que o termo “Território do Fandango Caiçara” é o que melhor delimita a região onde o fandango é a principal forma de expressão cultural das populações caiçaras. A expressão permite uma melhor compreensão das ações empreendidas pelos diversos sujeitos envolvidos (fandangueiros, artesãos, pesquisadores, associações culturais, alguns representantes do poder público local) e seus esforços de pesquisa, articulação e divulgação. Atinge, ainda, o objetivo de valorização, reconhecimento e continuidade das
Residência da família do tocador de fandango eliel Alves e casa de farinha na Comunidade Caiçara do Varadouro: cenários do território cultural retratam o modo de vida caiçara
práticas associadas ao fandango, mesmo em novos e diferentes contextos e espaços. TerriTório em eXpansão A expressão Território do Fandango Caiçara permite uma escala de análise que transcende os limites estaduais (São Paulo, Paraná) e regionais (Sul, Sudeste). Ela supera também os recortes restritos de termos que não dão conta da dinâmica e da complexidade do universo fandangueiro – como por exemplo as variações no número de cordas de determinados instrumentos musicais e as nomenclaturas e coreografias de marcações e danças. A diversidade das características singu37
lares não desqualifica a percepção e a construção de uma identidade comum, partilhada por práticas, vivências, celebrações e conhecimentos específicos. A denominação adotada, afinal, é fruto de uma construção coletiva entre esses diferentes sujeitos envolvidos, onde os representantes do patrimônio imaterial em questão têm tido um papel de protagonismo. Independentemente de quaisquer que sejam os olhares, o fato é que, apesar da mercantilização de parte das iniciativas no segmento da cultura, o potente fortalecimento de territórios culturais pelas próprias comunidades tradicionais tem gerado reconhecimento e legitimação de suas práticas em um contexto global e especialmente no local em que estão enraizadas. Com isso, desencadeiam-se novas possibilidades de relações e práticas de interesses compartilhados, todos baseados nas heranças ancestrais e históricas presentes no território cultural - mesmo que incorporados de tendências e práticas globais. No caso do fandango caiçara, um exemplo bastante original é o surgimento de grupos musicais formados por antigos e jovens tocadores, alguns com instrumentos não-convencionais, que antes apenas se apresentavam em atividades comunitárias festivas – e que passaram a atuar como parte das agendas de cada cidade e também em eventos fora dos seus locais de origem. O chamado Território do Fandango Caiçara encontra-se em contínua atividade pelas mãos dos antigos e novos atores sociais a ele ligados, expressando a diversidade cultural do povo. Nota-se a sua expansão para além das cidades inicialmente abrangidas pelo Museu Vivo do Fandango, principalmente devido a criação das diversas festas do fandango, iniciadas em Paranaguá (PR) e cada vez mais presentes em outros territórios. Se em momentos passados esse patrimônio parecia pouco conhecido e restrito a lugares isolados, as fronteiras dos territórios culturais abriram-se para mostrar a potência da identidade do fandango caiçara para o mundo. F.O.S. 38
O MAPA DO FANDANGO não ilusTrar, deiXar CAIÇARA DE área liVre pra enTrar com a TipoGraFia do liVro CANANEIA O CENáRIO RICO EM NATUREzA E HISTóRIA ONDE GRUPOS DE CULTURA POPULAR MANTêM VIVO O GRANDE PATRIMôNIO IMATERIAL DO LAGAMAR
TerriTório do FandanGo caiÇara
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Criatividade caiçara: instrumentos do fandango costumam ser feitos pelos próprios tocadores
A SAlVAGuARDA DO SABER TRADICIONAl DESDE 2012 O FANDANgO CAIçARA é RECONhECIDO COMO PATRIMôNIO CULTURAL BRASILEIRO
a palaVra “salVaGuarda” significa aquilo que “serve de defesa, de amparo, de garantia”. Quer dizer, também, algum tipo de “proteção” concedida por uma autoridade qualquer. Neste sentido, podemos dizer que salvaguardar um patrimônio nada mais é do que buscar formas eficazes de proteger determinado bem cultural. Estas ações de promoção e valorização da cultura podem contribuir também para o desenvolvimento sustentável. A Agenda 2030, plano de ação global de países membros da Organização das Nações Unidas (ONU) para transformar positivamente o planeta, agrupa uma série de Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) em torno de pilares econômicos, sociais e ambientais. A cultura e a criatividade contribuem transversalmente para cada um desses pilares. Por outro lado, as dimensões econômica, social e ambiental do desenvolvimento sustentável contribuem para a salvaguarda do patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial. o Que é paTrimônio culTural imaTerial Trazendo estes conceitos para o universo que envolve o fandango caiçara, torna-se necessário contextualizar o histórico do reconhecimento do patrimônio cultural imaterial como importante elemento do desenvolvimento humano.
Em 2003, na cidade de Paris, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) aprovou a criação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. Define-se por patrimônio cultural imaterial “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural”. Este patrimônio cultural imaterial transmitido de geração em geração é constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade e contribuindo assim para promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana. Considera-se que as comunidades, em especial as indígenas, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos desempenham um importante papel na produção, salvaguarda, manutenção e recriação desse patrimônio. A convenção determina que os países signatários devem “identificar e definir os diversos elementos do patrimônio cultural imaterial presentes em seu território, com a participação das comunidades, grupos e orga41
nizações não governamentais pertinentes” e “adotar as medidas necessárias para garantir a salvaguarda do patrimônio imaterial presente em seu território”. HisTórico do reconHecimenTo no Brasil O Brasil ratificou a convenção em 2006. Bem antes disso, no ano 2000, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) já coordenava os estudos que resultaram na legislação que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e criou o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), justamente para atender determinações legais e criar instrumentos adequados ao reconhecimento e à preservação desses bens. Em 2004, uma política de salvaguarda mais estruturada e sistemática começou a ser implementada pelo IPHAN a partir da criação do Departamento do Patrimônio Imaterial (DPI). Conscientes de todos os mecanismos relacionados a esses instrumentos legais e de toda a vitalidade e a abrangência sociocultural do fandango caiçara, em julho de 2008, por ocasião do II Encontro de Fandango e Cultura Caiçara, realizado no município de Guaraqueçaba (PR), um coletivo de instituições entregou oficialmente ao IPhAN, com a anuência e concordância do coletivo de fandangueiros e fandangueiras e suas organizações representativas, o pedido de registro do fandango como um bem cultural de natureza imaterial de acordo com o previsto na lei brasileira. A declaração de anuência e interesse foi assinada por mais de 400 pessoas entre fandangueiras e fandangueiros, pesquisadoras e pesquisadores e gestoras e gestores públicos presentes no encontro. Na ocasião, também foi entregue um dossiê preliminar sobre a importância cultural do fandango caiçara como um todo. As entidades que pleitearam o pedido de registro foram: Associação de Cultura Popular Mandicuera, Associação dos Fandangueiros de Cananeia, Associação dos Fandangueiros do Município de Guaraqueçaba, Associação dos 42
Jovens da Jureia, Associação Rede Cananeia, Associação Cultural Caburé, Instituto de Pesquisas Cananeia, Instituto Silo Cultural José Kleber e Núcleo de Apoio à Pesquisa sobre Populações Humanas em áreas Úmidas Brasileiras da Universidade de São Paulo. Em novembro de 2008, o IPhAN emitiu a nota técnica informando o aceite do pedido de registro pela Comissão do Patrimônio. Em 2009, o Departamento de Patrimônio Imaterial reservou recursos financeiros direcionados à instrução para registro do fandango caiçara. No início de 2010, foi formalizada a contratação da Associação Cultural Caburé para coordenar a elaboração de projeto básico de conteúdo reunido de forma colaborativa, tendo como base os registros fotográficos e audiovisuais produzidos durante a pesquisa do projeto Museu Vivo do Fandango e dos Encontros de Fandango e Cultura Caiçara. Em 2010, o encontro na sede do Ponto de Cultura Caiçaras (atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica), em Cananeia, foi o último evento formal ocorrido para discutir questões relativas ao registro, onde avançou-se na discussão da salvaguarda. aFirmaÇão da idenTidade culTural Em 2012 o fandango caiçara foi oficialmente reconhecido como patrimônio cultural brasileiro com as seguintes justificativas: “por ser uma referência cultural dinâmica e de longa continuidade histórica; por sua relevância nacional, na medida em que traz elementos essenciais para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira; por ser esta forma de expressão representativa da diversidade cultural brasileira; por ser o fandango um elemento fundamental para a construção e afirmação da identidade cultural das comunidades caiçaras; por ser a comunidade fandangueira um exemplo de articulação e resistência em prol de sua identidade e da manutenção de suas práticas culturais”. De forma geral, o dossiê de registro do fandango caiçara afirma que o processo de salvaguarda do fandango já se encontra em anda-
mento desde pelo menos a década de 1960. Foi quando as próprias comunidades começaram a criar estratégias de continuidade desse bem cultural frente ao progressivo declínio da importância econômica dos mutirões e às restrições de acesso aos recursos naturais. Também tem sido relevante para o registro da memória e o fomento do fandango na região a atuação de mediadores, como gestores, pesquisadores, poder público e associações – como foi o caso da reunião das comunidades fandangueiras em agosto de 2010 em Cananeia. Nos anos seguintes, ocorreram em todo o território diversas ações relacionadas a salvaguarda destacando-se o projeto ô de casa – mobilização, articulação e salvaguarda do fandango caiçara, desenvolvido pela Associação Cultura Popular Mandicuera e parceiros. Financiada pelo IPHAN, a iniciativa teve como objetivo mobilizar mestres, fandangueiros, fandangueiras e aprendizes para a construção do Plano de Salvaguarda do Fandango Caiçara. Embora os resultados tenham sido bastante promissores, a descontinuidade das políticas públicas culturais iniciada em 2018 impossibilitou o avanço das propostas criadas durante a execução deste projeto que envolveu fandangueiras e fandangueiros das cidades de Paranaguá (PR), Guaraqueçaba (PR), Cananeia (SP), Iguape (SP), Peruíbe (SP) e Ubatuba (SP). Em Cananeia, destacaram-se os projetos realizados pelos próprios grupos de fandango caiçara, alguns com apoio direto da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, e pela organização social Ponto de Cultura Caiçaras (atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica). O projeto Programa Puxirão - Apoio ao Fandango Caiçara no Município de Cananeia, em especial, que foi financiado pelo Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI), teve resultados importantes: oferta de 120 bolsas de auxílio financeiro para que mestres e grupos mantivessem seus trabalhos e projetos; gravação de dois discos com canções dos grupos de fandango; um curta-metragem de ficção e aven-
tura contando histórias do fandango na cidade; um livro de histórias em quadrinhos com histórias reais e fictícias da cultura caiçara; e um portal web que abriga parte dos passos e resultados do programa e também serve de guia digital sobre o fandango caiçara na cidade de Cananeia. FesTas para FomenTar o FandanGo Destacou-se, também, a exposição Lembranças de um fandango caiçara, ação do programa Ponto de Memória Povos da Mata Atlântica em parceria com o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Vale registrar a realização de cinco edições da Festa do Fandango Caiçara de Cananeia, que basicamente apoiam, incentivam e difundem o fandango no município, e de festas semelhantes em outras cidades do território. O coletivo fandangueiro de Paranaguá (PR) havia sido o primeiro a promover uma festa assim em 2002. A luta da comunidade fandangueira por políticas públicas que reconhecessem o valor do fandango caiçara como patrimônio cultural imaterial foi longa, como este capítulo tentou resumir. O trabalho de salvaguarda, no entanto, é constante, o que talvez nos leve a ainda fazer uma pergunta básica: o que e como fazer para que o fandango caiçara permaneça como uma cultura viva? Na sua sabedoria, Mestre André Pires talvez tenha uma resposta mais simples e eficaz do que é necessário para tal fim: “...às vezes falta de recurso também, né? Falta de recurso. Por exemplo, os mestres, eu falar que eu sou folião da Romaria do Divino. A gente às vezes quer sair em alguns lugares mas não tem condição, porque vai de carro pagando condução, barco, essas coisa. Pra gente é difícil a gente conseguir ir em tal parte que pode haver uma função de fandango, né? Então isso é um desafio, falta a nível de dinheiro.” F.O.S.
leiA
Reconhecimento como patrimônio no Portal iPHAN
VejA
Prosas, causos e aventuras: o retorno da cantoria caiçara
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Mestres artesãos utilizam tradicionalmente a caixeta (Tabebuia cassinoides) para fazer 44 os instrumentos de madeira
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Violas, caixa de folia, rabeca, cavaquinho e pandeiro: os instrumentos utilizados por grupos de fandango caiçara como o esperança - e sempre 46 sob as bênçãos de São Gonçalo
uM uNIVERSO DE MÚSICAS, DANÇAS E INSTRuMENTOS TRADICIONAL MAS EM EVOLUçÃO, O FANDANGO CAIçARA TEM CANçÕES, TOQUES, PASSOS E OBJETOS MUSICAIS CRIADOS PELOS PRóPRIOS CAIçARAS
por se TraTar de uma maniFesTaÇão culTural ViVa, o fandango caiçara consiste em uma estrutura complexa de apresentações musicais que têm se transformado ao longo do tempo a partir de uma matriz passada adiante ao longo de várias gerações. Suas formas variam conforme a localidade tanto com relação às formas de execução dos instrumentos quanto à diversidade de melodias, versos e coreografias das danças. Sempre alegre e realizado coletivamente em situações festivas, o fandango caiçara envolve os participantes a partir do encontro harmônico de tocadores e cantadores com pessoas que dançam — sejam elas do grupo ou da plateia que assiste. insTrumenTos arTesanais De forma geral, a composição instrumental básica de um grupo de fandango conta com: um ou dois tocadores de viola caiçara, que geralmente entoam as canções; um tocador de rabeca, popularmente chamado de rabequista ou rabequeiro; um tocador de adufo ou adufe, instrumento parecido com o padeiro moderno; um tocador de machete, artefato de cordas bastante utilizado no passado e semelhante ao cavaquinho; e um tocador de bumbo ou semelhante percussivo, como a caixa de folia. Boa parte desses apetrechos são construídos por mestres artesãos que têm na caixeta (Ta-
bebuia cassinoides) a madeira mais utilizada. O violão, o cavaquinho, o bandolim e o pandeiro também podem ser usados. Recentemente, instrumentos novos têm sido incorporados nas apresentações, como o contrabaixo, o xequerê e o cajón, entre outros. marcas, modas e danÇas Cada canção é também chamada de “moda” ou “marca”, e possui toques e danças específicas, em geral divididas em duas categorias. Os valsados ou bailados são performados em pares por homens e mulheres, com ou sem coreografias ensaiadas. Já os batidos ou rufados são caracterizados pelos homens que usam tamancos de madeira para sapatear no assoalho, em um ritmo intercalado com as palmas. As mulheres os acompanham em coreografias circulares. Em geral, os grupos possuem um mestre marcador responsável por guiar os demais dançadores. Grande parte das canções antigas não possui autores conhecidos, sendo incorporadas e adaptadas livremente pelos fandangueiros. Outras são criadas pelos chamados “modistas” ou “tiradores de moda”, como os falecidos Ângelo Ramos e Armando Teixeira e seus seguidores na ativa Paulinho Pereira, Vadico Cordeiro, do grupo Jovens Fandangueiros do Itacuruçá, e Rodolfo Vidal, do grupo ImPures no Fandango. F.O.S. 47
HOMENAGEM A CANANEIA Este é meu primeiro verso Que agora vou cantar Ah este é meu primeiro verso Que agora vou cantar Em nome de Deus conhece Pai e Filho Espírito Santo Em nome de Deus conhece Pai e Filho Espírito Santo Este é meu segundo verso Que nesta sala eu canto Este é meu segundo verso Que nesta sala eu canto Cananeia é pequenina Do litoral sul paulista É uma cidade praiana Rodeada de turista Na praia de Ilha Comprida É que tem moça bonita Cidade de Cananeia De que me orgulho bastante Por ser um porto de mar Aonde porta os viajantes Porque todos os pescadores Fazem lá a sua vida importante Senhora dos navegantes A ti viemos implorar Proteger os pescadores Que vieram em alto mar Que não caia a tempestade Pra seu barco navegar Paulinho Pereira Adaptação Beto Pereira
Detalhe de tocador de fandango em ação: amor à arte
Quem faz o fandango
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em gRuPoS eLeS SÃo maIS foRTeS A orgAnizAção em formA de coletivos tem sido essenciAl pArA A sobrevivênciA do fAndAngo
ViVer em uma das regiões litorâneas do Brasil com natureza mais preservada fez com que os caiçaras desenvolvessem soluções tanto para as tarefas de subsistência, como a roça e a pesca, quanto para o lazer e as tradições, como nos encontros de fandango. Nesses lugares isolados, o núcleo social da família nem sempre dava conta de trabalhos mais pesados. Ao preparar o terreno para plantios e colheitas maiores, convocava-se os vizinhos para cooperar na forma de mutirões. Em troca pela mão-de-obra colaborativa, o anfitrião celebrava o fim do trabalho convidando o grupo para um fandango tocado por indivíduos e mestres do bairro. A auto-organização desses sujeitos independentes na forma de coletivos de fandango também obedece a uma lógica solidária. Assim nasceram grupos lendários da cidade, como Caiçara Cananeia, Caiçaras do Acaraú e Violas de Ouro de São Paulo Bagre. Especialmente depois de terem enfrentado desafios como a expulsão de suas terras originais, os habitantes do Lagamar se fortaleceram ao se estruturar em grupos de fandangueiros. Muitos se formalizaram a partir de núcleos familiares, como os Pereira e os Neves, destacados nas próximas páginas entre os grupos contemporâneos ativos de Cananeia. Outras turmas atuantes criaram conexões a partir dos lugares que vivem, como Itacuruçá ou Mandira. E há os novos coletivos que chegam com gente jovem, instrumentos diferentes e abertura para maior participação feminina. Dessa forma, os grupos fandangueiros atuais deixaram de se expressar restritos a raros encontros comunitários e se reinventaram. Ao se reconhecerem como patrimônio e produto cultural, encontraram nos palcos uma maneira de se adaptar às mudanças e de manter vivo o interesse pelo fandango. F.O.S. e D.N.G.
Grupos Caiçaras do Acaraú, Violas de Ouro de São Paulo Bagre, Caiçara Cananeia e Vida Feliz 53
Grupo de Fandango e Dança Vida Feliz 54
Da esquerda para a direita: Lurdes Franco de Campos, Pedro Costa, Maria Aparecida Dias Sérgio, João Firmino, Isaltino de Campos (Quico), Elvaristo Paiva da Silva, Cleuza da Silva dos Reis, Odinir Barreto, Amir Oliveira e Francisco Adelar Xavier (Chiquinho)
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Grupo de Fandango e Dança Vida Feliz
a alegria do fandango “batido” DESDE 2005 O GRUPO VIDA FELIz CANTA E BAILA MODAS TRADICIONAIS
Foi no Bairro urBano do acaraú que nasceu, em 2005, o Grupo de Fandango e Dança Vida Feliz. A iniciativa foi de alguns tocadores que faziam parte do Grupo Caiçaras do Acaraú e de tradicionais fandangueiros da vizinhança. O nome foi dado por uma das integrantes, Dona Nilza Teixeira, conforme lembra a coordenadora do grupo Cleuza da Silva dos Reis: “O nosso grupo é muito feliz, brincalhão. A gente brinca, a gente se diverte, a gente ri. Então a gente tava vendo o nome pro grupo e a Nilza disse: “Que tal Vida Feliz? O nosso grupo é tão divertido”. Falei: “Tá aí. Vamos batizar de Vida Feliz”. Um dos diferenciais do Vida Feliz é ter em sua estrutura, além dos tocadores, um time de dançarinos que realiza o chamado fandango batido (ou rufado), mantendo viva essa tradição em Cananeia. O violeiro e cantador do grupo, Isaltino de Campos, mais conhecido como Quico, fala sobre a diferença entre o fandango batido e o fandango bailado (ou valseado): “O batido tem modas diferentes. Cê tem que ensaiar a turma do batido pra também pegar aquele ritmo, porque 56
nem todo ritmo é igual. Em cada música muda o modo de tocar, o modo de cantar e o modo de bater o pé”, conta Quico. Ele explica que o fandango bailado, por outro lado, usa sempre o mesmo toque. “Só muda a música. Mas o jeito de tocar é sempre o mesmo.” Cleuza lembra do começo do grupo de dança: “No início a gente tocava ao som de CDs e ensaiava em frente ao fórum, numa casinha que a Prefeitura cedia. Só que, sem música ao vivo, não era tão bom”. A coisa melhorou quando o espaço de ensaios mudou para a Associação de Moradores do Bairro Acaraú. “Seu Dito veio um dia pra dançar com a gente, e foi tão bom que gente perguntou: ‘O senhor aceita vinte reais de cada pessoa pra vir uma vez por semana pra ensinar, né?’. Mas logo na segunda vez ele não quis mais receber. Entrou no grupo e continuamos dançando.” O Vida Feliz não possui composições próprias. Toca modas tradicionais, principalmente batidos e bailados. “Tem os sapateados: queromana, anu corrido, anu paraguai e bailados como o dandão e a chamarrita”, detalha Cleuza. Outras marcas e
modas tradicionais não são mais apresentadas porque os tocadores não lembram dos ritmos ou porque não sabem as coreografias. “Tem o sinsará, que a gente nunca dançou, o sinsará caloado, o feliz, a serrana”, lista Cleuza. Outras danças e manifestações que o grupo realiza são a dança do lenço, a cana verde e a Reiada. Esta última é uma manifestação tradicional de cunho religioso que acontece entre 25 de dezembro e 6 de janeiro e que possui muitas simbologias, representações e ligações com o fandango caiçara. É Cleuza quem explica: “Nosso grupo de Reis tem os mesmos integrantes do Vida Feliz do fandango. Só que ali a gente é o grupo da Reiada.” Em 2011, o Vida Feliz gravou a música “Vida Aventureira”, com a cantora e compositora Kátya Teixeira, para seu álbum “Feito de Corda e Cantiga” – a canção foi tocada junto com o grupo Jovens Fandangueiros do Itacuruçá. Em 2016 surgiu a oportunidade de gravar um CD próprio, por meio do Projeto Acervo das Tradições, que tem como foco a autogestão do acervo documental
de comunidades tradicionais, gerando ações de memória de forma compartilhada. Os batidos e a alegria do Vida Feliz costumam ser requisitados em diversos eventos e cidades do Brasil. Eles já se apresentaram na Barra de Una em Peruíbe, em Diadema e no SESC em São Paulo, em Guaraqueçaba no Paraná e na Ilha dos Valadares em Paranaguá (PR), além de participarem de muitas festas e encontros nas comunidades de Cananeia. Em 2021, o Vida Feliz tinha sua formação composta pelas dançarinas Cleuza da Silva dos Reis, Lurdes Franco de Campos, Maria Aparecida Dias Sérgio e Dilza Xavier Cordeiro; pelos dançarinos Elvaristo Paiva da Silva, Odinir Barreto, Pedro Costa e Amir Oliveira; e pelos tocadores Isaltino de Campos (Quico) na voz e viola caiçara, João Firmino na rabeca e Francisco Adelar Xavier (Chiquinho) na voz e viola caiçara. c.r.c.
Vida Aventureira • Vida Feliz OuçA Fandango Caiçara
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Grupo ImPures no Fandango
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Da esquerda para a direita: Verônica Guimarães Coutinho Marques, Lilia Gomes de Souza, Rodolfo Guimarães Vidal, Heitor Cardoso e Daniel Clayton Pedro 59 Rodrigues
Grupo ImPures no Fandango
Impuros, e com orgulho UMA TURMA DE JOVENS, hOMENS E MULhERES, REINVENTA O FANDANGO
“mas por que impures? eles não são puros?”O jogo de palavras pouco convencional que batiza este grupo irreverente sempre desperta perguntas assim. Surgido dos encontros descontraídos de músicos para se divertirem tocando fandango, entre os anos de 2016 e 2017, o ImPures no Fandango traduz, no nome, o movimento de renovação pela qual passa essa manifestação popular em Cananeia. O coordenador Rodolfo Guimarães Vidal, que desde 2005 vivencia o fandango caiçara, explica que o nome surgiu de um causo que aconteceu durante uma domingueira. Quando seu amigo e músico Marcos Rangel, o Marquinhos, contou a um fandangueiro mais velho que estava tocando o ritmo tradicional com os jovens Amir Oliveira e Rodolfo, o fandangueiro disparou sem hesitar: “mas o fandango que eles tocam não é o puro - o que a gente toca, sim, é puro!” Ao ficar sabendo do episódio, Rodolfo riu e teve a sacada para criar um nome curioso: “Marquinhos, se o nosso fandango não é puro, então nós somos os Impuros do Fandango!”. Surgia assim a primeira versão do nome. Mas alterações vi60
riam. Com a entrada de mulheres para fazer parte do time, veio a necessidade de incluí-las também na identidade do grupo, alterando a palavra “impuros” para a flexão neutra “impures”, que abarca tanto o gênero masculino quanto o feminino. Eles também preferiram adotar o complemento “no” fandango, em vez de “do” fandango, que dá margem a uma interpretação de algo que não é fixo, de raiz, mas sim mais temporário. O diferencial do ImPures no Fandango é ter uma formação bem dinâmica. Por trabalharem com outros estilos musicais, seus integrantes acabaram inserindo instrumentos incomuns ao ritmo, como guitarra, baixo, trombone, trompete, cajón, xequerê, ganzá e triângulo. A inclusão de mulheres na composição virou um grande incentivo para ampliar a presença feminina no fandango, principalmente no toque, como ressalta Rodolfo: “Ao verem nossas meninas tocarem, outras mulheres podem se motivar a fazer o mesmo, entendendo que tocar não é coisa só de homem”, diz Rodolfo. Essa nova roupagem do fandango caiçara já foi apresentada em diversos eventos e festas em Ca-
naneia. Os ImPures participaram da 3ª Semana da Cultura Caiçara de Praia Grande (SP), em 2019, naquele que é considerado por eles o show mais especial que fizeram, tanto pela grande quantidade de público quanto pela empolgação da plateia. “Não sei o que aconteceu com aquelas pessoas”, lembra Rodolfo. “Elas estavam tão animadas que estimularam a gente a passar três horas ali tocando, sem intervalo”, diz, entusiasmado. O grupo possui algumas composições autorais, como a moda do “ET intruso” e a “Canela em faixo”, além da “O lanceio com meu compadre”, escrita por Rodolfo. Para compor esta última, ele conta que imaginou o encontro dele com seu compadre durante uma pescaria. Ao saírem para pescar com suas canoas, teriam visto um cardume de tainha correndo pela costa e foram logo lancear. Mas era tanto peixe que estourou a rede do amigo. Por sorte, Rodolfo tinha uma rede sobrando e, entre um gole e outro de cachaça, eles teriam lanceado novamente e feito a maior pescaria. Como diz a letra, todos os peixes ficaram para o compadre vender e re-
formar sua rede – e ele agradeceu convidando o companheiro para um almoço farto. Essa história exemplifica como podem surgir as letras do fandango. “Cada moda pode ser feita contando uma história de amor, algum causo que aconteceu na comunidade ou mesmo algo que vem da imaginação do modista”, explica Rodolfo. “No domingo bem cedinho, fui pro porto pra pescar Empurrei minha canoa, dava gosto no olhar E no som dos passarinhos, no assovio acompanhar Encontrei o meu compadre, disse a ele vamos pescar E não é que ele aceitou E também tava de malha E também tava de malha Com cachaça pra nós dois...” Em 2021, a formação do ImPures no Fandango era composta por Rodolfo Guimarães Vidal na voz e viola caiçara, heitor Cardoso no cavaquinho, Daniel Clayton Pedro Rodrigues no adufo, Verônica Guimarães Coutinho Marques no cajón e Lilia Gomes de Souza no ganzá e xequerê. c.r.c. 61
Da esquerda para a direita: Írio Pontes, Matheus Henrique de Almeida, André Pires, Beto Pereira, Joaquim Pires e Paulo Pereira
Grupo de Fandango Esperança
Grupo de Fandango Esperança
Tradição viva É NAS LEMBRANçAS E NA CANTORIA QUE ELES REVIVEM O FANDANGO
representado por caiçaras que viveram os tempos de auge do fandango em Cananeia e que guardam consigo uma grande bagagem de conhecimentos e histórias, o Grupo de Fandango Esperança foi criado em 2005. Sua composição original reunia antigos tocadores dos Grupos Caiçara Cananeia e Tradição. Com o tempo, esses grandes mestres e detentores de saber ganharam a companhia de jovens e aprendizes que têm revivido essa tradição. O coordenador Beto Pereira explica que o nome do grupo foi ideia do respeitado violeiro João Dias. Ao sentar com o mestre fandangueiro e perguntar “como fazemos com o nome do grupo, Seu João?”, Beto ouviu a resposta inusitada: “Lutam com esse tal de Criança Esperança e não sei o quê... Que tal falar em Fandango Esperança?”. E assim, em alusão ao programa televisivo, foi batizado o grupo. Uma característica marcante dessa trajetória é a estreita relação que o Esperança possui com agências de turismo e escolas que vêm para Cananeia realizar estudos do meio. Desse contato com os estudantes, professores e monitores 64
resultam apresentações musicais, rodas de conversa, oficinas e entrevistas que contribuem para gerar momentos de alegria e divertimento para estes tocadores, bem como garantem recursos financeiros. “É muito gratificante a gente chegar em casa e lembrar que foi entrevistado por um jovem ou por uma jovenzinha ricos em sabedoria”, lembra Beto Pereira. Em 2014, os integrantes tiveram um projeto aprovado pelo ProAC – Programa de Ação Cultural do Governo de São Paulo para realizar o “Registro da Memória do Grupo de Fandango Esperança & Grupo de Dança Tamanco Caiçara”. Por meio dessa iniciativa eles conseguiram formar uma turma de jovens dançarinos para acompanhar os tocadores e fazer o batido (ou rufado) e o bailado (ou valseado). Com o fim do projeto e sem recursos financeiros para manter o grupo de dança, o Esperança voltou a ter apenas tocadores. É com brilho nos olhos que Beto Pereira lembra da participação de suas filhas e sua neta nas apresentações: “elas me deixavam muito mais forte, me estimulavam e deixavam o grupo bem bonito e arrumado para fazer as danças.”
Com repertório muito especial cedido pelo integrante e grande compositor Paulo Pereira, o Grupo Esperança também toca modas tradicionais e canções de outros grupos de Cananeia e da região. Em 2016, seus integrantes gravaram um CD por meio do Projeto Acervo das Tradições, que tem como foco a autogestão do acervo documental de comunidades tradicionais, gerando ações de memória de forma compartilhada. O Esperança também fez parte do Programa Puxirão - Apoio ao Fandango Caiçara de Cananeia, realizado pelo atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica entre os anos de 2010 e 2012, e que resultou em uma série de SMD’s (mídia semelhante ao CD comum, porém mais econômica por usar menos material na sua composição). Seus integrantes sempre marcam presença em festas e eventos locais. Entre as outras cidades e estados onde já tocaram estão Guaraqueçaba (PR) e Goiás (GO) – nesta última, Beto Pereira representou o grupo no XII Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, em julho de 2012. Uma apresentação inesquecível foi a que o grupo fez em 2011, quando um grande navio da
Marinha do Brasil estava atracado no píer municipal de Cananeia. Os tocadores foram convidados para mostrar um pouco do fandango caiçara para os tripulantes. Na embarcação, eles fizeram questão de cantar a moda Navio de guerra, que fala sobre dois barcos de batalha que estavam no porto de Cananeia prontos para guerrear durante o período da II Guerra Mundial. Beto não contém o riso quando narra o episódio: “Nós lá, com um grupo de fandango, cantando para o comandante... Será que eles entenderam alguma coisa? Podem saber bem de estratégia de guerra, mas de fandango…”. Além de Beto Pereira na voz e viola caiçara, a formação do grupo em 2021 tinha Joaquim Pires na voz e viola caiçara, André Pires na rabeca, Paulo Pereira na voz e cavaquinho, Írio Pontes no pandeiro e o jovem Matheus henrique de Almeida, filho de Írio, na caixa de folia. c.r.c.
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Esperança Fandango Caiçara • Puxirão
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Grupo de Fandango Família Neves
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Da esquerda para a direita: Caio das Neves, Isidoro Leodoro das Neves, Salvador Alberto das Neves (Baduca) e 67 Eliel Alves
Grupo de Fandango Família Neves
Herança musical, sabedoria ancestral A MEMóRIA É PRESENTE E O RITMO PULSANTE NA FAMÍLIA NEVES
esta Família de caiçaras natiVos moradores da comunidade tradicional do Marujá, no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, traz consigo a herança musical do fandango de seus antepassados, com quem os descendentes aprenderam a arte e a perpetuação de sua cultura. O Grupo Família Neves foi criado em 2005, a partir da iniciativa do Museu Vivo do Fandango, projeto que incentivou o encontro destes fandangueiros e fomentou sua continuidade ao longo dos anos. O nome não poderia ser outro: a história desta família é secular na Ilha do Cardoso e repleta de memórias dos tempos em que o fandango estava ainda mais fortemente associado ao modo de vida caiçara. Tinha na formação original o saudoso mestre Antônio Neves na viola, Isidoro Leodoro das Neves no tantam e voz, Laurinei Antônio Neves na rabeca, Salvador Alberto das Neves (Baduca) na viola e voz e João Luís Pontes Lara no cavaquinho. Falecido em 2009, o mestre Antônio Neves partiu cumprindo a incumbência de zelar e transmitir seus conhecimentos para as próxi68
mas gerações. Isidoro, seu filho, conta que nos últimos anos de vida o pai lhe pedia que não deixasse o fandango acabar. Isidoro vem cumprindo esse legado com sucesso. Com um ritmo musical mais acelerado do que o de outros grupos de Cananeia, a Família Neves anima os bailes e coloca todo mundo para dançar. Isidoro conta que antigamente o ritmo do fandango era mais lento. Ao ouvir as pessoas comentando que não estavam gostando de dançar devagar, os fandangueiros resolveram mudar. “Antes as músicas eram mais melodia, mais lentas, daí veio aquele negócio de frevo, country e outras coisas, com um ritmo mais acelerado. Foi quando vimos a necessidade de acelerar o ritmo da música e ficou bom”, explica Isidoro. O Grupo de Fandango Família Neves tem um papel importante na salvaguarda do fandango, principalmente pela vontade de seus integrantes de valorizar a cultura caiçara, como ressalta Baduca. “O fandango me fortalece, hoje trabalho resgatando e mantendo essa cultura que deixaram pra gente.”
Essa disposição do grupo vem gerando valiosas iniciativas locais. Uma delas foi a organização, em janeiro de 2019, do 1º Encontro de Fandango Caiçara do Marujá. “A ideia de criar o evento nasceu do desejo de fortalecer a cultura caiçara no Marujá não só para atender aos visitantes que vem pra cá nesse período, mas a toda a comunidade. Foi um desafio gostoso que quero fazer de novo”, afirma Isidoro. A Família Neves já se apresentou em diversos eventos em Cananeia e outras cidades de São Paulo e Paraná. Em 2014, o grupo foi convidado para participar da Teia Nacional da Diversidade, em Natal, no Rio Grande do Norte. Em 2009 seus integrantes gravaram um CD com apoio do músico Felipe Gomide, grande amigo destes fandangueiros. Fizeram parte dos SMD’s que resultaram do projeto Programa Puxirão - Apoio ao Fandango Caiçara de Cananeia, realizado pelo atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica entre os anos de 2010 e 2012. Além de cantarem músicas feitas pelos parentes, pelos amigos e por outros grupos, eles tam-
bém possuem modas próprias. Uma delas é “Meu compadre Leodoro”. “Esta foi uma das músicas que eu e o Isidoro fizemos”, relata Baduca. “Ela fala da praia da Laje, do Morretinho, dos peixes, do lanço que nós demos. É uma música bem criativa que fala de nós mesmo, da nossa cultura”, continua Baduca, evidenciando uma das formas de como o processo criativo de composição das modas é realizado: por meio da própria vivência desses fazedores de cultura em suas comunidades. Em 2021 a formação do grupo era: Salvador Alberto das Neves (Baduca) na viola e voz, Isidoro Leodoro das Neves no pandeiro e voz, Caio das Neves, filho de Isidoro, na caixa de folia e Eliel Alves na rabeca. Além de participações especiais dos mestres zé Pereira e Leonildo Pereira, muitas vezes convidados para comporem o time e abrilhantarem o toque. c.r.c.
Puxirão
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VEJA
Família Neves Boteco do Ribeira/2021
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Grupo de Fandango Família Pereira
Da esquerda para a direita: David Barreto Pereira, Eliel Alves, Arnaldo Pereira, Laerte Camilo 71 Pereira Pereira e Zé
Grupo de Fandango Família Pereira
a resistência da tradição oral MODAS E TOADAS DA FAMÍLIA PEREIRA SãO PASSADAS DE PAI PARA FILhO
a Família pereira é um caso admiráVel de tradição e resistência. Originários das comunidades do Araçaúba e Ariri, em Cananeia, os Pereira migraram entre 1930 e 1940 para Rio dos Patos, no interior de Guaraqueçaba - PR. Ali viveram isolados por mais de 50 anos. Até que, em virtude das mudanças de costumes, de novas legislações ambientais e de desafios relacionados à economia de subsistência, se dispersaram para comunidades mais próximas de centros urbanos. Regressar a Cananeia foi o caminho de alguns dos Pereira, para o bem do fandango local. Na formação original do grupo estava Nilo Pereira. Referência importante no universo fandangueiro, Nilo era responsável pela organização dos tocadores para as apresentações que realizavam. Esteve à frente da gravação do CD Viola Fandangueira, primeiro álbum do grupo, em 2002, feito em parceria com o grupo Viola Quebrada, de Curitiba. Nilo faleceu em 2020, mas será sempre lembrado tanto por seu legado quanto pela homenagem que batizou com seu 72
nome a Biblioteca Virtual Mestre Nilo Pereira, acervo digital com registros em áudio, vídeo, livros e documentos sobre o Fandango Caiçara. José Pereira, mais conhecido como Mestre zé Pereira, é um dos membros da família que retornaram para Cananeia e se estabeleceram no bairro rural do Varadouro e em seguida no Ariri. Em sua bagagem, trouxe o conhecimento, o dom e a pureza de um grupo que usa a música para traduzir a complexidade do fandango e transformar tudo isso em encantamento. zé Pereira lembra, com emoção, do pai, do avô, do tio e de outros entes próximos a quem se diz eternamente grato pela arte que aprendeu. zé tem dado continuidade, em terras paulistas, à tradição familiar, tanto para construir instrumentos musicais quanto na exímia destreza de tocar todos eles. Descendente de uma linhagem de mestres e mestras, a Família Pereira se diferencia por tocar apenas músicas que receberam de herança dos mais velhos. As modas e toadas (as melodias e
os ritmos das músicas) foram mantidas ao longo dos anos por meio da oralidade.“Temos muitas modas antigas”, conta zé Pereira. “Tem Avião estrangeiro, Ai Moreninha Moreninha, Vem cá Morena, Pó de arroz, Chorar pra quê?, Menino te quero bem mas vou te deixar, Lari lai lai…”. O fandangueiro explica que muitas músicas são apenas toques, com ritmos e melodias: “a maioria é toada que não tem nome e não tem letra, a gente canta só o verso naquela toada.” Por alguns anos a partir de 2006, os tocadores da Família Pereira executavam o fandango batido e o bailado acompanhados por um time de jovens dançarinos do bairro. Atualmente o grupo tem no corpo fixo apenas os tocadores. Entre suas apresentações marcantes está a do Mercado de Pinheiros, na cidade de São Paulo, durante a Semana do Fandango em 2016, organizada pela instituição C de Cultura. “A apresentação no mercado foi a melhor da minha vida”, diz zé Pereira. “Estava muito divertido, muita gente que nos conhece em São Paulo foi assistir.”
A criação da Casa do Fandango Caiçara, um espaço para encontros, ensaios, oficinas e bailes em Cananeia, destaca-se como outra contribuição dos Pereira em sua busca constante por novas formas de proporcionar que a comunidade vivencie o fandango. A formação da Família Pereira em 2021 é composta por três gerações de tocadores: zé Pereira na viola, rabeca, machete e voz; seu filho, Laerte Camilo Pereira, na viola, machete e voz; e seu neto, David Camilo Pereira, na caixa de folia e aprendiz de viola e machete. O grupo conta também com Arnaldo Pereira, irmão de zé, que toca viola, machete e adufo, e na rabeca Eliel Alves - que não é um “Pereira” mas é considerado igualmente da família. c.r.c.
LEIA
Biblioteca Virtual Mestre Nilo Pereira
VEJA
Grupo de Fandango Família Pereira [Prêmio Mutirão]
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Jovens Fandangueiros do Itacuruçá
Da esquerda para a direita: Felipe Ribeiro Arakaki (Filpo), Adriano Carlos Neves, Augusto Caetano Neves Pereira, Aldemir Carlos Neves, Aldemir Carlos Neves Filho, Mariano Neves Lobo, Tiago das Neves, Cleuza da Silva dos Reis e Elvaristo Paiva da Silva
Jovens Fandangueiros do Itacuruçá
Sopro de renovação DESDE O ANO 2000 A JUVENTUDE CAIçARA REAVIVA UMA COMUNIDADE DA ILhA DO CARDOSO
enquanto o mundo ViVia a Virada do século e do milênio, no ano 2000, um grupo de jovens majoritariamente com idades entre 17 e 24 anos se reunia com um objetivo nobre na comunidade do Itacuruçá, na Ilha do Cardoso, onde vários deles nasceram e moravam: criar um novo grupo de fandango que ajudaria a resgatar a tradição regional e contribuiria para renová-la. Começava ali a trajetória dos Jovens Fandangueiros do Itacuruçá. É Felipe Ribeiro Araraki, o Filpo, quem lembra: “éramos o único grupo de jovens de Cananeia, mas ao mesmo tempo existia o Jovens da Jureia e logo começaram a pintar outros grupos novos no Paraná”. Era como um vento de renovação no universo do fandango. “Começamos a andar atrás dos velhos e a pedir que ensinassem a gente, e eles gostavam. Muitos mestres serviram de inspiração para o grupo, como o Janjão, o Seu João Vito, Andrezinho, Seu Ângelo, João Firmino, zé Pereira...” Desde então, um diferencial dos Jovens Fandangueiros do Itacuruçá tem sido o envolvimento 76
de crianças e jovens para aprenderem os toques e ritmos. Eles também ensaiam os toques e cantos da Romaria do Divino Espírito Santo, manifestação de cunho religioso que possui relação com o fandango mas que carece de quem execute os ritos e realizem o trajeto da bandeira nas casas dos devotos. Outras manifestações das quais têm participado são as modas de São Gonçalo – neste caso com a participação de Cleuza da Silva dos Reis, coordenadora do Grupo Vida Feliz. O grupo já se apresentou em muitos eventos de cultura popular, com destaque para: I Encontro de Fandango da Ilha do Cardoso (2003); Revelando Vale do Ribeira, em Registro/SP (2004); II Semana do Meio Ambiente da USP, em São Paulo/SP (2004); Projeto Serra do Mar, Minha Terra, no SESC Consolação de São Paulo/SP (2005); encontro no MIS (Museu da Imagem e do Som), em São Paulo/SP (2005); Projeto Coisas do Brasil, no SESC São Carlos/SP (2005); Virada Cultural Paulista, em São Paulo/ SP (2006 e 2010); evento no SESC Bauru/SP (2006); I e II Encontro de Fandango e Cultura
Caiçara, do Projeto Museu Vivo do Fandango, em Guaraqueçaba/PR (2006 e 2008). Em 2011, o Jovens Fandangueiros do Itacuruçá gravou, com o grupo Vida Feliz, a música Vida Aventureira, da cantora e compositora Kátya Teixeira, em seu álbum Feito de Corda e Cantiga. Fizeram parte do CD do Museu Vivo do Fandango, em 2006, e das gravações que resultaram do Programa Puxirão - Apoio ao Fandango Caiçara de Cananeia, realizado pelo atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica entre os anos de 2010 e 2012. Eles possuem diversas modas próprias, em sua maioria escritas por Valdemir Antônio Cordeiro, o Vadico. Várias são cantadas por fandangueiros de Cananeia e de outras cidades. As tecnologias têm ajudado a difundir o trabalho do grupo. Um dia Vadico mandou no grupo de Whatsapp de fandangueiros do qual fazem parte uma moda que tinha acabado de fazer.“Não deu uma hora e o Aldemir e seu filho, o Aldemirzinho, já estavam ali cantando em duas vozes”, conta Filpo. As letras retratam a cultura caiçara.
“Pobre Pescador”, por exemplo, fala da realidade do pescador artesanal que, além de arriscar a vida para pescar, tem que lidar com os atravessadores que não valorizam todo esse trabalho e pagam um preço muito baixo pelos pescados. Com a mesma formação da sua criação, o Jovens Fandangueiros tem Aldemir Carlos Neves na viola e voz, Adriano Carlos Neves na viola e caixa de folia, Elvaristo Paiva da Silva no cavaquinho e voz, Felipe Ribeiro Arakaki na rabeca, Tiago das Neves no pandeiro e Valdemir Antônio Cordeiro (Vadico) na viola e voz. Junta-se a eles uma nova geração com Aldemir Carlos Neves Filho, filho de Aldemir, na rabeca e cai xa de folia, Augusto Caetano Neves Pereira na viola e voz, Mariano Neves Lobo na viola e voz e Manoel Osório Neves Júnior na viola, além de algumas participações especiais de Cleuza dos Reis. c.r.c.
VEJA
Jovens Fandangueiros do Itacuruçá
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Fandangueiros do Mandira
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Seu Arnaldo Mandira e SeuJoão Teixeira, mais conhecido como Jango, são os tocadores de fandango remanescentes na 79Mandira Comunidade Quilombola do
Fandangueiros do Mandira
fortaleza quilombola UMA FAMÍLIA RESISTE NA LUTA PELA TERRA E PELO LEGADO DO FANDANGO
na área continental de cananeia fica o Mandira, uma comunidade remanescente de quilombo assim reconhecida em 2002. Segundo relatório técnico do Instituto de Terras do Estado de São Paulo (ITESP), seu povo ocupa as terras que reivindica pelo menos desde 1868, produzindo e reproduzindo ali sua cultura, tanto material quanto simbólica. Alijados da maior parte do território que confere significados à sua existência, os mandiranos, como se autodenominam, recriaram formas de viver que incluem novas atividades produtivas. Experiências como a exploração de ostras, o artesanato e o turismo já não cabem no reduzido espaço físico da comunidade rural em que se encontram, alimentando assim a perspectiva de resgate da dimensão original de suas terras. Como se sabe, os remanescentes quilombolas foram furtados de seus laços culturais ancestrais ao longo do violento processo de colonização do Brasil, que utilizou mão-de-obra forçada de diferentes povos africanos escravizados. Seu território foi doado ao patriarca da família, Francisco Mandira, por sua meia-irmã Ce80
lestina Benícia de Andrade. Ambos eram filhos de um senhor de escravos de posses e significativa influência política. A partir do século 18, eles se estabeleceram ali e viraram uma das comunidades tradicionais mais potentes do Vale do Ribeira, especialmente pela consolidação da Reserva Extrativista do Mandira, em 2002, e pelo reconhecimento de suas terras pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em 2015. Acredita-se que a presença do fandango caiçara na comunidade remonta a esse período de ocupação das suas terras. Seu Arnaldo Mandira, de 89 anos, relata que haviam muitos tocadores na sua época: “Ih… são muitos, aqui tinha muitos fandangueiros, muitos tocador de viola. Eu tinha um tio chamado Graciliano, ele era muito tocador de viola, inclusive tinha mais alguns, tinha meu tio João Vicente Mandira, Francisco Mandira...”. Tudo levar a crer que o fandango esteja na família Mandira há pelo menos um século e meio, pois as memórias de Seu Arnaldo
relatam causos de quando ele tinha 14 anos de idade. Um dos depoimentos é curioso e até certo ponto divertido: “Inclusive nesse tempo, aqueles tocador muito bom, que tocavam viola, às vezes tinha algum que não tocava bem, né? Mas queria tocar igual os outros. Então eles tocavam a viola, então eles cantavam um verso assim pra outro: o cantar não vai da força, vai da sustância do espírito, quem é ruim não fica bom e quem é bom já nasce feito... É o tipo que eles faziam no fandango. E daí em diante comecei a também cantar fandango”. Atualmente, Seu Arnaldo Mandira e Seu João Teixeira, mais conhecido como Jango, se reúnem ocasionalmente para tocar em apresentações específicas, ainda que não se reconheçam como um grupo. “Nós não temos grupo, sabe? Porque nós não tivemos assim uma junta de companheiros pra fazer um grupo”, lamenta, saudoso dos companheiros de fandango que partiram. O fato de ora serem chamados de Fandangueiros do Continente
e ora de Fandangueiros do Mandira reforça essa nãoafirmação como um grupo de tocadores hoje em dia. Sem conseguir que seus descendentes mais jovens se interessem para dar continuidade ao legado do fandango, os tocadores do Mandira têm dificuldade de se adequar à modernidade que abarcou o fandango caiçara. Apesar disto, seus remanescentes fandangueiros fazem parte do roteiro do Museu Vivo do Fandango Caiçara e também participaram do Programa Puxirão - Apoio ao Fandango Caiçara de Cananeia, realizado pelo atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica. Vez ou outra, Arnaldo e Jango Mandira são vistos tocando em eventos locais, como por exemplo a Festa do Fandango Caiçara de Cananeia - e mantendo viva, como podem, a tradição familiar fandangueira quilombola. F.O.S.
LEIA
Relatório sobre o Quilombo do Mandira
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ReLíQuIaS de CananeIa Quero contar uma história Daquilo que me convém Se todos querem saber Eu quero saber também Vou contar alguma coisa O que Cananeia tem Tem balsa da travessia Na praça tem seu canhão Tem vários supermercados A matriz de São João É na Rua Tristão Lobo Onde mora o tubarão Tem sua velha figueira Ceagesp, Hotel Glória Avenida Independência Completando a sua história A Praça Martim Afonso Retratado na memória Tem Carijo, Acaraú Tem Porto de Cubatão Tem suas lindas paisagens O morro de São João Cananeia abençoada É uma terra de oração Cananeia é o paraíso Que o turista descobriu Por ser uma das cidades A mais velha do Brasil Tem ponte da Aroeira Tem a Praça do Rocio Dali só resta saudade Pra quem fica e pra quem viu
Armando Teixeira Tamancos típicos do fandango batido: som é melhor sobre chão de madeira
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meSTReS, meSTRaS e HeRdeIRoS do Legado As históriAs de Alguns dos principAis detentores do sAber fAndAngueiro de cAnAneiA
os caiçaras têm uma rotina intimamente ligada aos ciclos da natureza que moldam os seus afazeres. Da roça à pesca, do trabalho ao descanso, existe o tempo certo para tudo - inclusive para construir um instrumento de fandango ou para ensinar um toque ou uma moda. Tais saberes são passados adiante por meio da oralidade. É no compasso do tempo das marés e das luas que os jovens aprendem com os mais velhos. Alguns exemplos dessa herança geracional estão presentes nas histórias de vida de fandangueiros, de ontem e de hoje, como os das fotos ao lado e os perfilados nas próximas páginas. Elas retratam as trajetórias de pessoas – entre tantas outras que não caberiam nas páginas de um livro – que mantêm viva e renovada a tradição. Este é apenas um recorte livre e heterogêneo de pessoas que têm eternizado este saber ancestral. O ensino convencional nas escolas por vezes nos afasta de formas mais naturais de transmissão dos costumes e da sapiência sobre as coisas simples da vida. Mas as histórias dos sábios e sábias, assim como dos herdeiros e herdeiras de seu legado, nos levam a acreditar que a sabedoria humana mais valiosa é esta ciência que não está nos livros, passada de pai para filho, de professor para discípulo. Tomamos a liberdade de chamar alguns deles de mestres e mestras, uma vez que têm compartilhado há tempo os conhecimentos recebidos no seio familiar ou em práticas de convivência comunitária. A sociedade e as futuras gerações agradecem por tamanho entusiasmo para manter vivo o fandango caiçara de Cananeia. F.O.S.
Laerte Pereira, João Dias, Zé Pereira, Dito Campos, Pedro Izidoro, Arnaldo Pereira, Cleuza dos Reis e Elvaristo da Silva, Juhlica Cordeiro, Aldemir Neves, Filpo Ribeiro e João Cassiano Martins (João da Toca) 85
um mestre do ariri para o mundo O TOCADOR E ARTESãO VIRTUOSO zÉ PEREIRA DEDICA A VIDA àS TRADIçõES CAIçARAS
Zé Pereira 86
criado no amBiente original do Fandango caiçara, em uma família que conserva há muitas gerações as tradições de sua cultura, José Pereira tem motivos de sobra para ser reconhecido como Mestre zé Pereira: é um grande rabequista e violeiro, também toca viola caipira, violão, machete, surdo e adufo, além de saber confeccionar todos estes instrumentos. zé Pereira nasceu em 1951 na comunidade de Rio dos Patos, em Guaraqueçaba (PR). Sua família vivia de pesca, caça e plantação. Desde cedo, o garoto zé Pereira acompanhava os pais e os irmãos nos fandangos da região. Aos 12 anos, aprendeu a tocar rabeca. zé era tão pequeno que tocava a rabeca apoiada em seu colo, em posição vertical, e não sustentada no braço. “Meu bracinho era mínimo, então precisei aprender assim, de cabeça pra baixo”, lembra. Mesmo depois de ter crescido e se tornado um dos maiores virtuosos da rabeca fandangueira, ele manteve esse modo único de tocar. Igualmente original é como o mestre, que se mudou para Cananeia aos 31 anos logo depois do casamento, aprendeu a construir e tocar seus próprios instrumentos. “Eu ficava vendo os meus tios e ouvindo o toque deles. Ninguém me ensinou. Eu via o objeto e ia fazendo igual”, relembra zé. Quem o conheceu tanto no primeiro endereço em Cananeia, na vila do Varadouro, quanto no Ariri, onde se estabeleceu de vez, reconhece seus outros saberes caiçaras inegáveis de agricultura, construção de casas e canoas, confecção de remos e cestos, entre tantos outros. “Pra ser um mestre você tem que saber tudo de fandango. Você tem que saber como é, como não é, explicar direitinho, saber cantar, dançar, tirar verso, fazer e tocar instrumentos.” Integrante da formação original do Grupo Família Pereira, zé foi destaque dos livros Tocadores (2002) e Museu Vivo do Fandango (2006) e dos discos Viola Fandangueira (2002) e Fandango de Mutirão (2003). Teve participação especial ainda nos álbuns Grupo de Fandango Família Neves (2009) e no CD Fandango no Araçaúba (2011).
Possui um álbum próprio, gravado de maneira independente em 2011 por meio de uma parceria da Família Pereira com o amigo e parceiro Felipe Gomide. Nele, zé e seus irmãos Leonildo e Arnaldo Pereira tocam músicas de diferentes estilos do fandango. Um dos momentos marcantes de sua carreira foi a viagem internacional a Cuba, em 2013, quando participou da XX Romerías de Mayona cidade de holguín. O evento é um encontro anual que envolve manifestações culturais, tradicionais e contemporâneas, de diversos países. Este intercâmbio foi viabilizado pelo atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica com recursos do Ministério da Cultura (MinC), e o mestre foi acompanhado do educador Cleber Rocha Chiquinho e da jovem bolsista Luana Taís Vitório. “Foi a primeira vez que andei de avião e a primeira vez que saí do meu país”, conta, emocionado. “A família inteira ficou chorando em Cananeia, mas eu dizia que era importante a gente mostrar nossa cultura em outro país, né?”. Mestre zé Pereira ostenta outros dois importantes projetos no currículo. O primeiro, Violas e Rabecas – A arte de construir instrumentos musicais, foi desenvolvido em 2015 e contemplou atividades de transmissão do conhecimento para jovens, oficinas na comunidade e intercâmbios com outros grupos e instituições culturais. Já o segundo, intitulado Casa do Fandango Caiçara, foi realizado em 2018 e resultou na construção de um espaço para atividades de manutenção e valorização dessa rica expressão cultural local no bairro do Ariri. Ambos foram contemplados pelo ProAC – Programa de Ação Cultural, da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo de São Paulo, e contaram com apoio do Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica.. c.r.c.
OuçA
Mestre Zé Pereira Rabeca Fandangueira
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Cleuza da Silva dos Reis
ela dá o tom da batida CLEUzA DA SILVA DOS REIS É UMA DAS TOCADORAS QUE FLORESCEM NO FANDANGO DE CANANEIA
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a emoção da memória dos mutirões que aconteciam na casa do pai, seu Benes, pode ser vista nos olhos de Cleuza da Silva dos Reis. Nascida em 1954 em um sítio no Capuava, a 12 quilômetros do Ariri, em Cananeia, ela viveu a infância vendo o povo se reunir na casa de taipa caiada com um grande salão onde se tocava fandango. “Aqueles foram os últimos mutirões”, recorda, com saudade, a atual coordenadora do Grupo de Fandango Vida Feliz. Com a venda dos terrenos para uma companhia do Paraná, a turma dos mutirões se dispersou. Tocadora, dançadora, catequista, parteira, cantora da Folia de Reis. Cleuza é uma líder respeitada na cultura popular de Cananeia. Dança fandango batido e bailado, conhece os ritos e orações da Folia de Reis, canta na quarta voz, sabe de cor centenas de modas de fandango – e costuma escrever as letras para compartilhar. Também bate colher, toca caixa de folia e cavaquinho. Para ela fandango é divertimento, simplicidade e cultura. Ainda que admirasse o fandango na infância, não podia dançar. “O meu pai não gostava que a gente participasse”, lamenta. Escondida, aprendeu a bailar e cantar com os tios e tias Elza e Antônio Gomes e José e Josefa Gomes, que levavam a viola para a roça dentro de um saco. O aprendizado através da vivencia familiar é comum no fandango. Até hoje Cleuza se espelha nas tias, entre elas também Celina Silva e Leotilda Gonçalves. Para Cleuza, a maioria dos homens tinha comportamento machista. “Era difícil eles darem um instrumento pra uma mulher tocar, elas só tocavam escondido, assim como eu aprendi”, recorda. Foi depois de casada com seu primeiro marido, Paulo Reis, que ela pôde dançar no baile pela primeira vez. E estava grávida de 4 meses, ainda que sua barriga não demonstrasse. Mulher grávida dançando no fandango causaria um "muvuco", como diz. Com o falecimento de Paulo, Cleusa se casou com Elvaristo da Silva. Juntos, criaram o Grupo de Fandango Vida Feliz. A partir daí, Cleuza passou também a tocar nas apresentações e a aprender cavaquinho. Dos 5 filhos de Debenete da Silva e
Maria Gomes da Silva, só ela segue a tradição do fandango e do catolicismo. Além de ser mãe de duas filhas e avó de sete netos, esbanja sua alegria no fandango, no trabalho na Pastoral da Catequese e como Ministra da Eucaristia na Igreja. Para Cleuza, a religião está misturada à cultura do fandango caiçara. A 15 dias de uma das Festas do Fandango de Cananeia, Cleuza topou o desafio de organizar uma apresentação dos catequizandos, com apoio das mães. Passou uma noite costurando vestidos de chitão e vários dias ensaiando uma apresentação memorável. Esse capricho passou a ser sua marca também na coordenação do Grupo de Fandango Vida Feliz. Na companhia do marido, acostumou-se a ir de casa em casa falar com os membros do grupo, combinar as roupas, agendar apresentações. Nos ensaios, Cleuza orienta tanto as mulheres quanto os homens que estão sapateando. “Todos os cavalheiros têm que fazer o som iguais, pra não sair um pra lá e um pra cá.” E oferece sua própria casa para os ensaios semanais, que são feitos em um tablado de madeira colocado no quintal. Dentre muitas atividades comunitárias, Cleuza também é parteira, ofício que aprendeu com tia Elza e desenvolveu com a sogra Malvina Reis. Também atua na cozinha. Nos sítios, durante os saudosos mutirões, Cleuza lembra que muitas mulheres se desdobravam com as panelas. “Elas trabalhavam muito, em conjunto. Faziam “aqueles panelão grande” pra fazer muita comida, e cada uma tinha a sua função. Tia Malvina era quem comandava.” Cleuza lamenta o fim dos mutirões e do fandango nos sítios. “Depois daquele tempo, o fandango ficou vinte anos dormindo”, analisa. Ela acredita que a entrada do dinheiro nas relações fez esmorecer o real sentido da manifestação cultural. Mas vê algumas mudanças e o retorno gradual do fazer fandango com esperança. Uma das coisas que mais lhe traz alegria é o movimento de mulheres tocando, que ela descreve de forma poética: “eu vejo que é uma coisa muito bonita, porque tá florescendo.” c.A.S. 89
fé no divino e devoção à arte PARA ANDRÉ PIRES, A EXPRESSãO CULTURAL DE hOJE É UMA REPRESENTAçãO DO FANDANGO ORIGINAL
André Pires 90
a religiosidade é a Base da Vida de andré pires, grande mestre da cultura popular de Cananeia. Chamado carinhosamente de Andrezinho por muita gente que o admira, ele tem uma simplicidade que se destaca por onde quer que passe. Nasceu na Ilha do Cardoso, no sítio Barreirinho, em 1937, onde morou até seus 30 anos. Devido às legislações ambientais que começaram a ser implementadas na ilha na década de 1960, teve que mudar para a cidade, estabelecendo-se no bairro Acaraú. Viúvo e pai de 3 filhos, tem como santos de devoção “o Divino Espírito Santo em primeiro lugar e Santo Antônio em segundo”. O fandango entrou em sua vida aos 14 anos, quando vivia no sítio e por lá realizavam os mutirões. “Era uma vizinhança grande, nós fazíamos mutirão todo sábado e à noite tinha o fandango”, lembra. “Tinha uma vida feliz no sítio. Pagávamos as pessoas que iam trabalhar com a gente no mutirão com a dança quando anoitecia. Aprendi a tocar viola, rabeca e cavaquinho nessa época”, continua, com saudades daquela vida diferente. “Nossa plantação era para o alimento da casa: a gente plantava arroz, feijão, milho, cana-de-açúcar. O que não tínhamos, como sal, roupa para fazer calça e camisa, a gente comprava em Cananeia.” Ao se mudar para a cidade, Mestre André trabalhou como pescador, vigia de um entreposto de pesca e vigia na Igreja Matriz, até que aposentou. É um grande conhecedor do fandango caiçara, da Romaria do Divino Espírito Santo e da Reiada. Depois de integrar o antigo Grupo Violas de Ouro do São Paulo Bagre e de participar do Grupo de Fandango e Dança Vida Feliz, ele passou a compor o time de tocadores do Esperança, no qual executa com maestria o dom de tocar rabeca. Para André, porém, o que se faz hoje é apenas a representação de uma expressão cultural do passado. “Nós representamos o fandango como ele acontecia, porque ficou na memória da gente. Mas fandango não existe mais, só a representação dele”, define.
Já a Romaria do Divino Espírito Santo foi herança do seu bisavô, Apolinário Pires. “Meus antepassados já falavam da romaria. Isso é secular, muito antigo. O meu bisavô e meu avô eram mestres foliões”, relembra André. Foi com Juquinha Rangel, em 1983, que aprendeu a tocar e fazer os versos. “Ele era um cara que sabia bem e cantava afinado. Eu era curioso e interessado, e foi assim que aprendi”, conta. Com o falecimento do Juquinha, quem assumiu o papel de mestre folião na cidade foi Leonardo de Freitas, conhecido como Jacaré – e com quem o Mestre André continuou fazendo a romaria. Em 2002, foi Jacaré quem partiu. André conta: “Aí ninguém mais pensava em fazer romaria. Porque ser mestre é o mais difícil, tem que fazer o verso na hora, tem que ser repentista. Chega numa casa e, conforme a nossa tradição, tem que cantar pra luz. Põe a imagem de santo e coisas assim. Isso eu não sabia fazer. Mas eu acompanhava com a rabeca e via como ele fazia. Fui pegando o jeito, arreparando”. A morte de Jacaré levou a bandeira a ficar enfim sob responsabilidade de André. Até que ele passou a função de mestre da romaria para Isaltino de Campos, o Quico, e seguiu como rabequista da tripulação. Em 2014, André Pires publicou o livro Chegadas e Despedidas – A Romaria do Divino Espírito Santo e a Reiada em Cananeia. A publicação, que conta ainda com um CD, veio acompanhada de oficinas de transmissão de seus conhecimentos para a comunidade. O projeto foi contemplado pelo ProAC – Programa de Ação Cultural da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Governo de São Paulo e contou com a parceria do atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica. E serviu como mais um legado de André para que a memória do fandango resista. c.r.c.
LEIA
Chegadas e Despedidas – A Romaria do Divino Espírito Santo e a Reiada em Cananeia
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João Firmino
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o mestre que ama ensinar as crianças PARA O RABEQUISTA JOãO FIRMINO, O FANDANGO É A MAIOR ALEGRIA DA VIDA
nascido em um sítio, Mestre João Firmino guarda boas recordações da vida na roça, quando ainda se faziam mutirões. “Conheci o fandango quando era criança, engatinhava. Meu pai já era fandangueiro, assim como minha mãe, a vizinhança, todos nós que morava lá, porque praticamente a vida do sitiante era o fandango. A gente fazia a roça e convidava aquele montão de gente pra roçar. A mesma roçada vinha à derrubada com machado. Então de sábado, quando era de noite, tinha fandango. Num tinha dinheiro pra pagar, então dançavam a noite inteira.” Sua vida familiar tranquila foi interrompida com a transformação de parte do município em áreas de proteção. Aquilo impediu que muitas atividades de subsistência fossem praticadas. O acúmulo de dificuldades agravado pela falta de apoio governamental fez com que os Firmino se mudassem para a cidade. João continua: “Eu dizia: o que nós tamo fazendo aqui no sítio, né? A pesca tá fraca, num dá pra viver só da pesca, à toa por à toa. Num vai ter mais nada que fazer no sítio porque a proibição do IBAMA não deixa desmatar, né? Eu já era casado e disse: vamo pra cidade, a gente faz um servicinho lá qualquer e vai vivendo”. E assim fez, guardando saudades dos tempos de fandango. Mas tudo mudou anos depois, quando o fandango foi “redescoberto”. Exímio construtor de rabecas e reconhecido como um dos mais importantes rabequistas locais, João Firmino passou a ser requisitado em apresentações com vários grupos da cidade. “Cheguei aqui e o serviço que apareceu foi tocar rabeca”, conta. “Toquei por
aí tudo, fui pra Santos, pra São Paulo, pra Rio do Sul. E dei aula de rabeca dois anos, ali na Rua do Artesão”, conta, sobre os cursos para crianças e jovens da cidade. Mais tarde, o mestre passou a se apresentar para grupos de alunos de estudo do meio e turismo pedagógico, importante fonte de renda complementar para os fandangueiros. “Vinha de toda parte essa criançada pra assistir o toque do fandango.” Entre 2007 e 2008, Firmino participou do Programa Cultura Viva – Ação Griô como Mestre de Tradição Oral, junto com hugo Emiliano e o aprendiz Rodolfo Vidal. O projeto foi proposto pelo atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica e aprovado no edital Bolsas de Incentivo Griô pelo extinto Ministério da Cultura (MinC). Dentre suas andanças, guarda especial lembrança de uma viagem que fez para o 4º Encontro Regional da Ação Griô Nacional, em 2007, em Rio do Sul (SC). O mestre nos dá uma aula sobre a importância de se criar e manter políticas públicas para a salvaguarda do fandango caiçara como a Ação Griô: “É importante, né? Porque a gente já tá velho, daqui a pouco morre e os mais novo, que fica, aprende o que a gente sabe. Foi por isso que eu levei dois anos dando aula de toque de rabeca. Mas eles cortaram porque diz que o governo tava fraco de dinheiro. Num era pra cortar, pois a pessoa vai e ensina as criança como um professor, né?” Tamanho talento e paixão levaram Mestre João Firmino a ter sua trajetória reconhecida, em 2013, com o Prêmio Culturas Populares, do extinto Ministério da Cultura (MinC). F.O.S 93
a aprendiz da sua história A TRAJETóRIA DE AMOR, CULTURA E RESISTêNCIA DE MáRCIA PONTES
Marcia Luzia da Silva Pontes 94
em sua casa na ilha do cardoso, a monitora local de turismo comunitário Marcia Pontes toca ao lado do filho Ravi a rabeca caiçara feita pelo avô e repete a tradição. Os pais, Benedito Pontes e Rosalina da Silva, sempre estiveram ligados à cultura popular. Com olhos brilhando e sorriso largo, ela gosta de contar sobre a família festiva. Nasceu em 1972 e passou a infância, com seus 5 irmãos, cercada por fantasias, artesanatos, instrumentos, danças e canções. A família vive no território há 5 gerações, tendo suas raízes no Paraná e nos quilombos do Vale do Ribeira. Sua ligação ancestral com o fandango caiçara se dá pelos antepassados foliões do Divino Espírito Santo. Os avôs eram tocadores e as avós anfitriãs da folia. Márcia se recorda de todo o rito. “às vezes o pai do meu pai, Lauro Pontes, construtor de instrumentos, ia com a bandeira pro Norte. E o pai da minha mãe, Antônio França, rabequeiro, pro Sul. Eu tinha 10 anos. A gente ia na saída das bandeiras e depois para a igreja celebrar o encontro delas. Em todas as casas que passávamos as pessoas recebiam a Folia do Divino com uma oferenda. A bandeira retribuía com preces na rabeca e viola.” Após a despedida aconteciam os bailes de fandango, quando toda a comunidade festejava. Em 1994, Márcia se casou com Ilton de Oliveira, foi morar no Marujá e experimentou o fandango de mutirão. Foi quando a sua herança familiar se somou a do marido: o sogro Ezequiel de Oliveira era uma liderança local caiçara que participou das ações para fortalecimento do fandango junto com Isidoro e Baduca, da família Neves. E foi Baduca, em uma apresentação da família Neves, quem cedeu seu lugar de violeiro para Márcia tocar uma moda. “Quando você convida, você inspira. hoje as mulheres são chamadas e isso é uma grande motivação.” Marcia acredita que as mulheres podem tocar e ter um grupo até de Folia do Divino. “Tudo é possível.” Ela conta sobre o apoio recebido dos mestres, com paciência, quando os procura
para aprender. “Meta a cara mesmo”, ensina. “Vai lá e pergunta pros mestres!” Ela não esquece quando viu pela primeira vez uma rabequista, em 1995, no Marujá, durante um encontro de fandango realizado em uma parceria entre Lu Favoreto, da Cia Oito Nova Dança, Marcos Campolim, gestor do Parque Estadual na ocasião, e o sogro Ezequiel de Oliveira. “Aquilo me inspirou, foi um encontro muito importante. O fandango estava apagadinho. Mas era como uma brasa embaixo da cinza, só faltava assoprar.” Em 2013, Márcia participou de uma oficina do projeto Museu Vivo do Fandango. “Eu já tinha rabeca feita pelo meu pai e aprendi uns pontos com o Seu zé Pereira”, conta. “De lá para cá eu venho treinando rabeca, viola e tenho ajuda do Baduca e do Laurinei. Vivo pedindo para os mestres me darem uns pontos.” Márcia acredita que as tecnologias e os encontros culturais são o caminho para a continuidade das tradições. “Eu juro que se eu aprender a tocar bem a rabeca e a viola vou tentar ensinar e cantar para as crianças.” Ela tem feito a sua parte para passar adiante o que aprende. Tanto é que utilizava até pouco tempo os instrumentos usados pelos avós na Folia do Divino Espírito Santo – e guardados por ela como algo sagrado por mais de 10 anos – para apresentar a cultura local para visitantes de escolas. “Isso é algo de muito valor, de uma identidade muito forte. É o que vai manter o caiçara aqui”, afirma. Márcia pensa que as mulheres de antigamente não tocavam fandango por causa das suas rotinas: “elas eram maravilhosas, dançavam muito, mas o instrumental era mais pros homens mesmo. E não é fácil aprender, você rala.” Para a aprendiz, o fandango caiçara é resistência. “Você vai até onde der e então passa o bastão para o próximo. Eu lembro que meu avô paterno fez a última Folia do Divino antes de partir e o pai da minha mãe também. Era linda a devoção deles. Eles gostavam mesmo, não tinha microfone ou equipamento de som ligado, era peito aberto, amor e muita vontade. Aquela luz que me motiva até hoje.” c.A.S. 95
Rodolfo Vidal
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um jovem discípulo vira professor ALÉM DE APRENDER A TOCAR OS INSTRUMENTOS COM OS MESTRES, RODOLFO VIDAL TAMBÉM ENSINA A NOVA GERAçãO
a prancha em uma mão, a Viola na outra. É assim que Rodolfo Guimarães Vidal, uma das lideranças jovens que mais tem renovado o fandango caiçara de Cananeia, exerce sua veia caiçara raiz. Nascido na cidade em 1981, o rapaz que segura o instrumento enquanto encara as câmeras no Museu de Cananeia para ser fotografado para este livro é um músico, funcionário público e empreendedor que há mais de 15 anos se dedica a desengessar e a transformar o fandango. Seu grupo atual, os ImPures no Fandango, aposta na introdução de instrumentos não típicos e milita pela representatividade de gênero. É o estilo que Rodolfo chama de Fandango Brisa. “A ideia é agregar pessoas que trabalham com música em outros estilos e incluir a presença feminina nos toques e nos trabalhos.” Filho de Maria de Lourdes Guimarães Vidal, professora nativa que caminhava diariamente cerca de 7 milhas para ir trabalhar, e do chileno Júlio Manuel Vidal Miranda, desenhista naval em Cananeia e Paranaguá, ele já tocava violão, aos 24 anos, quando voltou de uma viagem ao Chile natal de seu pai obstinado por aprender rabeca. Ao se envolver com o fandango caiçara, Rodolfo percebeu ser necessário aprender a tocar todos os instrumentos. E foi nas oficinas de formação ministradas pela Rede Cananeia, no mesmo ano de 2005, que iniciou a busca pelo conhecimento ancestral do seu território. Na época, teve a oportunidade de ir para a capital estudar, mas logo retornou — segundo ele, sabiamente.
O grupo Fandango Batido de São Gonçalo foi o primeiro a lhe dar oportunidade. “Eu já tocava rabeca e estava aprendendo viola quando me chamaram para substituir o mestre, que não podia tocar naquele dia”, recorda. “Foi a viola que me escolheu. “ Aí não parou mais. Ficou no grupo por 10 anos, também ensinando outros jovens por meio da dança, da rabeca, da viola e de outros instrumentos. “Para aprender, eu ia na casa dos mestres de tardezinha e ficava tomando café com eles.” Rodolfo esperava a hora certa de pegar os instrumentos. “Tem todo um tempo, né? A gente não chega na casa do mestre e já começa a tocar.” Seus mestres? Ângelo Ramos, Agostinho Gomes, João Firmino, Davino, zé Pereira, Aorelio Domingues (de Paranaguá)... Rodolfo participou de momentos emblemáticos do fandango, como a primeira festa, o Programa Cultura Viva – Ação Griô (em que foi Griô Aprendiz) e a entrega ao IPhAN do dossiê em busca do registro como patrimônio imaterial Conhecedor da sua responsabilidade para que a cultura fandangueira seja transmitida para outras gerações – como da sua filha, Maria Luíza –, desde 2015 ele grava vídeos com dicas sobre rabeca, por exemplo. Sua maneira de ensinar se transformou em um produto educativo que multiplica o fandango caiçara de forma digital, por meio de conteúdo online. Ao mesmo tempo, segue cultuando as tradições nas festividades presenciais, como quando canta como mestre da romaria do Divino Espírito Santo de Cananeia. c.A.S. 97
Juliana Maria Cordeiro
da folia do divino ao fandango JULIANA MARIA CORDEIRO, A JUhLICA, TOCA VIOLãO, VIOLA FANDANGUEIRA E CAIXA DE FOLIA
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Foi com apenas 8 anos de idade que Juliana Maria Cordeiro, a Juhlica, começou a participar do fandango caiçara na Ilha do Cardoso, onde nasceu em 1979 e vive até hoje. Aos 10, a menina já tocava violão. Por influência do irmão Vadico, co-fundador do Grupo Jovens Fandangueiros de Itacuruçá, ela passou a aprender viola fandangueira. “Sempre tinha instrumento em casa. Começaram a aparecer violas e eu pegava pra tocar”, conta. Com o tempo, passaria a tocar também caixa de folia e ukulele. Em casa, com a esposa Patrícia Medeiros dos Santos e a família, tocar é tradição. Tanto que, aos 11 anos, a filha Maria Fernanda Cordeiro já toca caixa de folia. “Antes nossa comunidade não tinha um grupo de fandango próprio”, lembra Juhlica. “Mas existia a Folia do Divino. A bandeira ficava entre um dia e outro em cada casa, e sempre surgia um fandango ao final. Quando havia roça, mutirão, casamento na comunidade ou festa do padroeiro, vinham pessoas de fora pra tocar.” Ela não esquece de um mutirão do qual participou com o pai, o pescador Antônio Cordeiro Neto, já falecido, no Taquari, no continente, em Cananeia. “Era uma roça muito grande e o fandango virou a noite na domingueira. Quando estava amanhecendo, fechavam as janelas para ficar escuro e continuar o baile”, recorda. Era comum a família visitar outras comunidades. “No São Paulo Bagre, meu pai levava a gente quando tinha festa com o grupo Violas de Ouro e a gente só voltava noutro dia.” Quando aconteceu o projeto Museu Vivo do Fandango, vários grupos começaram a surgir. Juhlica formou um grupo com Cleuza dos Reis e Elvaristo da Silva, o Viola de Prata, que tocou na festa da Associação do Carijo e em uma domingueira. “Foi a primeira vez que tinha mulher tocando viola no palco da domingueira, e as pessoas ficavam olhando curiosas”, diz. Ela festeja o incentivo dos mestres. “Antes, se uma mulher subisse no palco pra tocar, o povo ficava escandalizado. Quando eu toquei, o mestre Seu Janjão ficou paradinho escutando ao lado do palco. Eu desci e ele falou: muito bem, parabéns! A viola tava certinha.”
Juhlica nunca ganhou cachê para tocar, mas são incontáveis os festejos comunitários onde já tocou viola com sua familia. Era também frequentadora assídua das domingueiras de fandango em Cananeia, onde dançava até o final. Costuma acompanhar o grupo de sua comunidade em outras cidades. “Fico feliz de saber que tem mais mulheres tocando fandango, e me dá esperança de que um dia seja natural pra todo mundo ver uma mulher tocando no palco ou nas comunidades – e não só falar ‘ai que lindo as meninas tocando lá’. Torço para que tenha mais mulheres tocando fandango e que isso influencie mais pessoas a participar", afirma. Para sobreviver, Juhlica trabalha em um restaurante comunitário no Itacuruçá, e lá faz de tudo. O fandango, para ela, é diversão. A promoção dessa expressão cultural e a garantia do território para a atuação dos fandangueiros, no entanto, precisam de investimento público, na sua opinião. “Tem muita gente que vive da cultura, é bem importante preservar esse ofício. Se não se mantém em evidência, a manifestação cultural pode acabar.” Além de engajada na preservação do fandango caiçara, Juhlica também participa ativamente dos encontros de articulação das comunidades da Ilha do Cardoso. “Na ilha, juntamos um grupo pra reivindicar nossos direitos. A gente tem muita dificuldade por morar em uma área de parque, então eu ajudo assistindo às reuniões pra poder passar pra comunidade o que tá acontecendo”, conta Juhlica. Ela narra a pressão sofrida com a criação de leis que visam retirar o povo que mora na área de preservação. “A gente vem sofrendo bastante pressão ao longo dos anos, nossos antepassados sofreram muito também. Só que, hoje em dia, a gente tem mais conhecimento das leis, tem a ajuda da Defensoria Pública, do Ministério Público Federal. Não podemos ficar parados e deixar o estado fazer com a gente o que quiser.” c.A.S.
VEJA
Romaria do Divino Espírito Santo na comunidade Itacuruça Pereirinha/2021
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Eliel Alves
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considerado um dos melhores jovens rabequistas do Vale do Ribeira, Eliel Alves se diferencia no universo do fandango caiçara por sua juventude em um contexto onde a maior parte dos conhecedores desse instrumento já tem idade avançada. Nascido em Cananeia em 1988, ele mora no bairro do Ariri e é vizinho do mestre zé Pereira, com quem se acostumou a ter encontros frequentes para tocar fandango. Não por acaso ele toca rabeca no grupo Família Pereira, dos vizinhos, e também com a turma da Família Neves, no povoado do Marujá, na Ilha do Cardoso. Além disso, vive sendo convidado para viajar e se apresentar divulgando a cultura caiçara. Eliel é devoto de Nossa Senhora dos Navegantes e São Luiz Gonzaga, o padroeiro da sua comunidade no Ariri. Vem de uma família que sempre dedicou a vida a trabalhar na roça, como fazem diversos sitiantes desse território, e neste ambiente conheceu o fandango. Seu pai, Dilermando Teodoro, é construtor de instrumentos. “Ele faz rabeca, faz viola, faz cavaquinho e tudo”, conta, com orgulho, sob o olhar do pai que assiste nossa entrevista no Museu de Cananeia. “Eu tenho quatro rabecas: a que eu toco nos shows e que ganhei do meu tio, tenho mais duas em casa e uma outra na casa do meu pai”, conta. Só ele e o pai tocam fandango na casa onde cresceu, um lar com três irmãs e a mãe, Cecilia Bento Alves. Mas durante um tempo passado de sua vida, Eliel não frequentava o fandango. “Quando eu era mais novo eu era mais pro lado
do rock, samba, esses negócios assim. Quando comecei a entrar no fandango, passei a ter outra visão das coisas”, lembra. Ao se reconectar com essa tradição familiar, no ano 2000, Eliel passou a tocar pandeiro, cavaquinho e viola. “Fui tentando sozinho, olhando o pessoal mais velho tocar.” Em 2005, em Guaraqueçaba (PR), iniciou seus aprendizados a valer, especialmente de rabeca. Poucos anos depois já era considerado um dos melhores jovens rabequistas de sua geração nessa região. Aposentado e cego de um olho, Eliel se dedica ao fandango quase que em tempo integral. “Agora não esqueço do fandango, aonde tem fandango eu tô”, explica. Ele acredita que o fandango deve ser preservado e que isso passa por trazer a juventude para a prática. “Tem muitas pessoas que vêm de fora, que querem ver o fandango nosso aqui. A gente não pode deixar morrer porque já é uma coisa muito difícil de se encontrar”. Ele reforça que as pessoas mais velhas que tocavam já estão “indo embora”. “O pessoal sempre me chama porque a maioria dos rabequistas já tão de idade. Então nós que somos mais jovens temos que incentivar os outros jovens a aprender a fazer o que a gente faz.” Casado, Eliel já ensina os filhos Lyan, de 7 anos, e Laura, com 10. “Meu filho tá começando agora a pegar o jeito. E minha filha tá tocando bumbo”, diz. E segue: “O fandango caiçara, se depender de nós lá do Ariri e dos dois grupos que eu faço parte, tá vivo. Eu só vou parar de tocar fandango quando morrer.” c.A.S.
Rabequista de respeito DONO DE QUATRO RABECAS, ELIEL ALVES DIz QUE Só PARA DE TOCAR FANDANGO QUANDO MORRER 101
a foRça da muLHeR fandangueIRa pArticipAntes AtivAs no toque, no cAnto, nA dAnçA e nos bAstidores dos encontros musicAis, As mulheres Assumem novos pApeis nA cenA do fAndAngo cAiçArA POr cAthAriNA APOliNáriO De SOuzA
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Batido caiçara durante 103Cananeia Festa do Fandango de
peço licença às minhas ancestrais, às mestras e mestres, para adentrar este universo do fandango e suas relações de gênero. Não com a intenção de segregar, mas de trazer à luz a atuação das mulheres caiçaras no fandango. Me cabe uma tarefa gratificante, porém de muita responsabilidade. Como nas modas de fandango, escrevo essas linhas contando histórias, apoiada no conhecimento popular e comunitário. historicamente, as mulheres das comunidades tinham a missão de gestar crianças, fazer partos, educar, cuidar das pessoas, benzer, preparar comida, remédios, costurar roupas, fazer artesanatos para uso doméstico, cuidar da roça. Dezenas de tarefas que “cabem” às mulheres na sociedade em geral, como conta a nossa protagonista do território caiçara de Cananeia, a mestra Cleuza dos Reis, do grupo de fandango Vida Feliz. Dezenas de anos de pesquisas não dão conta do total papel da mulher no fandango caiçara. Não porque elas não fossem importantes nesta expressão da vida social comunitária, mas porque elas não eram protagonistas da música ou da dança. O olhar de quem estuda, portanto, se voltava para ouvir os fandangueiros, os violeiros, os fazedores de instrumentos e, reforço, de forma justa, com todo mérito do saber e ofício realizado por eles. o papel da mulher no Fandango Ao cavoucar as raízes do fandango em busca do papel da mulherada nesse contexto, me deparo com reflexões importantes. Lembro das oficinas de dança e apresentações que assisti durante minhas pesquisas. Em uma determinada coreografia, os homens se cumprimentam com um movimento corporal semelhante a um abraço e as mulheres passam umas pelas outras de costas, balançando suas saias. Este bailado é chamado de Xiba e seu gestual feminino virou tema de ricos diálogos entre as Mulheres Fandangueiras de Ubatuba, grupo coordenado por Carolina Barbosa, que se propõe a discutir as questões 104
de gênero no fandango. Esta é apenas uma das diversas coreografias interessantes existentes, pois elas variam de acordo com a região. Relembro também a segunda Festa do Fandango Caiçara de Cananeia, em 2017, e uma conversa com o mestre Aorelio Domingues, de Paranaguá (PR), que me falou sobre as origens do fandango. Em um dado momento, Aorelio retorna à história do Brasil colônia e suas relações de gênero para fazer uma reflexão sobre os motivos de a dança ter, para homens e mulheres, coreografias tão distintas e constante predominância masculina. Busco em minhas referências bibliográficas e orais uma visão daquele tempo, quando se iniciaram os assentamentos de imigrantes nas terras brasileiras do litoral, distribuídos em sítios. Tento imaginar o cenário. Os homens se conheciam, normalmente trabalhavam juntos, e as mulheres eram, muitas vezes, indígenas capturadas, trocadas pela família ou toda sorte de negócios que se faziam a partir da colonização do corpo feminino. hoje entendemos que muitas opressões e violências comuns àquele tempo – e ainda hoje enraizadas em toda a sociedade - não fazem nenhum sentido. E não podemos falar de questões de gênero em nenhuma esfera sem citar o machismo, comportamento que nasce do sistema patriarcal – e presente até mesmo em sociedades tradicionais. Gostaria de citar o feminismo comunitário, um conceito que vem dos povos indígenas Aymara, criado pela escritora indígena boliviana Julieta Paredes. Tal linha do feminismo não exclui o homem, mas o vê como companheiro nas lutas pela justiça e equidade de diretos, contra o capitalismo, pelo direito à terra e pelo respeito às mulheres e às relações saudáveis. Sob essa perspectiva eu me lanço. a dama compositora As modas de fandango mais tradicionais são normalmente compostas a partir de fatos reais,
de causos que aconteceram — alguns aumentados, mas não inventados. E os compositores são, em regra, homens. Até onde descobrimos, a exceção é uma moda feita por Lauriana Lucio de Oliveira, mestra de Ubatuba, no extremo norte do litoral paulista, junto com seu padrinho. A moda conta a história de um passarinho preso em uma gaiola, morto por um gavião oportunista. Muito simbólico, visto que a mestra, que sempre amou a música e que aprendeu acompanhando os avós nos bailes de fandango, ficou anos sem tocar porque o marido na ocasião vendeu sua sanfona para comprar uma espingarda. O casamento dela não foi uma daquelas bonitas histórias de vida conjunta e parceria, como me contaram a mestra Cleuza dos Reis, o mestre André Pires e também Joaquim Pires, de Cananeia. Estes dois últimos inclusive lembram com saudades das falecidas esposas, respectivamente Elza e Odete Pires, que os acompanhavam no fandango. Felizmente, como contam os entrevistados, a superação de Lauriana se deu por seu amor pela música: ela está de volta aos tablados, a agora com a alcunha de mestra. Benzedeira, guardiã da bandeira do Divino, tocadora e cantadora, conhecedora das modas, dos toques, das danças, das festas tradicionais e cheia de vontade de ensinar as crianças, Lauriana faz jus ao reconhecimento comunitário e abre um caminho de introdução das mulheres em espaços antes ocupados somente por homens. Como Cleuza, de Cananeia, que detém e partilha conhecimentos diversos sobre o fandango em toda sua dimensão social. Ao conversar com a aprendiz de viola e rabeca Marcia Pontes, percebo que essas damas do fandango são inspiração para “romper a casca” que afasta as mulheres do protagonismo na música. Espaço que, muitas vezes, não lhes era permitido. Das mulheres mais antigas não ouço as palavras feminismo ou machismo. No entanto, Cleuza Reis dá o tom para nossa conversa lembrando das proibições postas e
das vezes em que precisava se esconder do pai para aprender a dançar. pelo direito de dançar Fandango Também Joaquim Pires, aos 70 anos, diz que as mulheres antigamente não podiam dançar, e que “talvez fosse por causa do machismo”. O que impedia as mulheres de estarem livres no baile, inicialmente, seria uma ação de familiares para protegerem as moças. Em muitos casos, esse cuidado condicionava a participação das mulheres à autorização de pais, irmãos, maridos. Joaquim afirma, no entanto, que dançava fandango antes mesmo de nascer, na barriga da mãe Maria Catharina, que bailou oito dias antes de seu nascimento. E que sorriso ele dá quando conta que dançava no útero materno, o útero que gera a vida, onde há a transmissão de informações genéticas, traços físicos e emoções. A situação era atípica, visto que em alguns lugares havia uma regra de que mulheres grávidas não podiam dançar, como conta também Cleuza dos Reis. “Se mulher grávida dançasse era um muvuco. Mas eu dancei pela primeira vez com quatro meses de gravidez.” Várias modas, sejam de fandango bailado ou batido, falam de paquera e romance no sítio. Era nos bailes que muitos namoros começavam. Joaquim conta que “primeiro o cavalheiro deveria dançar com a mãe, e só depois com a filha solteira”. Muitas letras trazem a imagem da mulher pura, falam da ingenuidade da juventude e das mulheres “do sítio”. São canções românticas onde a mulher é respeitada, cortejada, inspiradora — mas coadjuvante. mariquinha, uma protagonista A primeira letra de fandango que ouvi cuja mulher é protagonista chama-se Feliz, de autor desconhecido e gravada no CD Fandango Pancada, do Mestre Aorelio Domingues. A música reforça a mensagem da parceria entre homem e mulher ao mencionar que o cancioneiro dá o braço, em apoio à companheira, para a luta, e 105
também doa seu coração. Tudo isso numa nítida expressão de admiração pelo protagonismo dela, que não ameaça sua condição de homem. Segundo aprendeu pela tradição oral o mestre Cleiton do Prado Carneiro, fandangueiro de Iguape, a Mariquinha da música seria Anita Garibaldi. Nascida na região de Laguna, em Santa Catarina, em 1821, e falecida em 1849, Anita de Jesus Ribeiro lutou na Revolução Farroupilha, conhecida como Guerra dos Farrapos, e também na Batalha dos Curitibanos e na Batalha de Gianicolo, na Itália, ao lado do marido Giuseppe Garibaldi. A canção abre o único material audiovisual produzido sobre as mulheres no fandango que tive acesso, o documentário curta-metragem Caprichada Dama com Tonica Moura (RJ). Diz a letra: “No meio daquele mar, ai Feliz meu bem Dois navios a vela vão, ai Naquele mais dianteiro Feliz meu bem Navega meu coração Dona Mariquinha Vem descendo a serra Vem matando gente Vem fazendo guerra Sua esquadra pelo mar, ai Feliz meu bem Mariquinha vem por terra Vâmo dar a despedida Feliz meu bem Hoje sim, amanhã não, ai Hoje te darei meu braço Feliz meu bem Amanhã meu coração, ai Dona Mariquinha Vem descendo a serra 106
Vem matando gente Vem fazendo guerra Sua esquadra pelo mar, ai Feliz meu bem Mariquinha vem por terra”
histórias de marias Assim como Mariquinha, mulher que vem na linha de frente, sempre forte, ativa e abrindo os caminhos, também as mulheres caiçaras seguem na resistência de sua cultura e identidade. A partir do protagonismo da experiente Cleuza dos Reis, que além de dançar e cantar toca caixa de folia e aprende cavaquinho, investigamos outras histórias escondidas nesse lugar de tradições preservadas que é Cananeia. No Ariri, o mestre zé Pereira nos conta sobre Maria Marciana, do Varadouro, irmã do mestre Dito. Ele costumava tocar e marcar o sapateado no grupo Vida Feliz, coordenado por Cleuza. Segundo o mestre do Ariri, Maria Marciana ia para o mato tocar viola, mas escondia o instrumento quando alguém aparecia. Procuramos a fandangueira, sob a mediação da filha Vania Camilo, mas ela é tímida e preferiu não falar. Cleuza conta que Maria quase não sai de casa, especialmente depois que o marido faleceu. Não poderíamos deixar de citá-la, já que seu nome foi levantado por este que é um dos mais tradicionais mestres do fandango de Cananeia por tocar muito bem. No Marujá, acessamos a história da falecida Maria Rodrigues, uma mulher à frente do seu tempo, hábil em tocar viola e sanfona. Quem traz essa memória é Isidoro Neves, do grupo Família Neves. E a aprendiz Márcia Pontes nos relata sua visão sobre Maria Rodrigues, “uma mulher forte, conhecedora dos segredos das ervas e plantas para cuidar das pessoas”. Cleuza nos conta que Maria era também parteira.
elas ViVem o Fandango Chegando na história contemporânea da música popular de Cananeia, o grupo ImPures do Fandango se destaca como um coletivo que reconhece e valoriza as diferenças de gênero, e traz elementos que não são puros do fandango, como diz o nome do grupo. Tem entre suas participantes duas mulheres, Verônica Marques e Lilia de Souza, que vieram de outras cidades mas escolheram Cananeia para viver e a cultura popular local para levar adiante. Na Ilha do Cardoso, na contramão das apresentações feitas em formato de show, Juliana Maria Cordeiro, a Juhlica, relata sua paixão pela viola e o hábito de tocar com a família em festejos de sua comunidade. Para ela, o fandango deve ser feito por amor à cultura, e o movimento de mulheres tocando instrumentos lhe traz esperanças. Junto com Cleuza, ela já se apresentou tocando viola em atividades do antigo grupo Viola de Prata. E se essas mulheres vêm pavimentando um caminho novo, já há quem possa caminhar por ele. Eliel Alves, tocador de rabeca, destaca que a filha Laura Mariani é aprendiz desde os oito anos e deseja que ela siga evoluindo nos instrumentos. Outros fandangueiros trazem seu orgulho de terem suas filhas tocando instrumentos, como Joaquim Pires, cuja filha Elizete Pires Garcia toca caixa de folia. historicamente, porém, as mulheres se fazem importantes no cantar. Suas vozes de tons diferentes dos masculinos chegam em um tom específico, chamado de tipi, que só é alcançado por mulheres ou crianças. E em Cananeia, onde a tradição da Folia do Divino é muito forte entre os fandangueiros, mulheres como Cleuza dos Reis são cantoras e detentoras das letras dos cantos religiosos, que devem ser entoados durante os ritos católicos, bem como conhecedora dos preparativos e rituais. Mestra Cleuza conhece de cor centenas de canções.
chama acesa Nos mutirões, considerados o berço histórico dos fandangos comunitários, costumava caber às mulheres ainda preparar a comida. Elas lideravam o processo e tinham funções específicas. Cleuza dos Reis se recorda de uma pioneira nesta função, Malvina Reis, falecida há 8 anos. Ela coordenava tudo com a sabedoria das quantidades adequadas. “Era muito mais difícil cozinhar naquela época para tantas pessoas”, diz Cleuza. Porém, elas se dividiam em tarefas. Na dança, a mulher é fundamental como par e tem uma função específica para “fazer o oito”, como Cleuza chama um movimento feito em uma das coreografias apresentadas pelo grupo Vida Feliz. O oito, que traz na sua forma o símbolo do infinito, o oito presente na história do mestre Joaquim, cuja mãe dançou com ele no útero 8 dias antes de parir, e o 8 da idade em que inicia seus aprendizados no fandango a sua filha Elizete, que ao seguir os passos do pai se apresenta como futura fandangueira. Cleuza, Márcia, Juhlica e tantas outras mulheres da cena contemporânea do fandango caiçara de Cananeia são como brasas em espera, que se mantêm ativas para fazer arder a cultura popular. Atuam como educadoras em suas casas, apoiando seus companheiros, companheiras, filhos e filhas, preparando e produzindo as festas religiosas e exercendo tantas funções como as aqui destacadas. Mais que isso, buscam novos caminhos de fortalecimento da sua identidade, convocadas por um novo tempo a inovar na sua função social histórica. E, como nos fogões à lenha, as mães-do-fogo não deixam morrer a chama da cultura fandangueira, que tem como principal ferramenta o exemplo, a vivência e a partilha.
VEJA
Curta-metragem Caprichada Dama, com Tonica Moura
OuçA
Feliz, com Mestre Aorelio Domingues
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Augusto Caetano Neves Pereira, o Guto, de 11 anos: nova geração da comunidade do Itacuruçá mostra que tem o talento no sangue
JuvenTude fandangueIRa Ao se dedicArem Ao fAndAngo, os jovens de cAnAneiA se prepArAm pArA ser os mestres do futuro
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consciente do Valor de aprender com os mestres e as mestras que seguem transmitindo o legado do fandango caiçara, uma série de aprendizes tem encarado o desafio de perpetuar a cultura tradicional de Cananeia. Além de valorizar o saber ancestral, a participação desses jovens e crianças nas atividades do fandango fortalece o vínculo das novas gerações com os territórios culturais que habitam. A renovação humana e criativa nos encontros fandangueiros é algo especialmente bem-vindo em uma sociedade onde as manifestações da cultura popular carecem da participação da juventude — acostumada a migrar para cidades maiores em busca de emprego e cada vez mais conectada a experiências digitais que a vivências presenciais. Depois de um hiato de cerca de 20 anos em que o fandango caiçara foi deixado de lado, em função da desmobilização social provocada pela dispersão forçada das comunidades para fora dos seus locais de origem, nota-se um frescor nos grupos. Parte dessa moçada nasceu em berço fandangueiro. No Marujá, Caio Cesar Neves, de 24 anos, filho de Isidoro Neves, participa do grupo da família desde 2012. Teve até um post viralizado em que tocava fandango na rede social Tiktok. “Andei de avião pela primeira vez pra uma apresentação de fandango caiçara”, conta Caio. O pai se orgulha: “Precisa valorizar a molecada que tem a vontade de aprender, né? Porque daqui a uns trinta anos nós já vamos tá parando de tocar”. Já a comunidade do Itacuruçá celebra o talento de jovens como Augusto Caetano, de 11 anos, e Aldemir Carlos Neves Filho, o Aldemirzinho, com15. Para a violeira local Juliana Cordeiro, a Juhlica, de 42 anos, “tem criança que já tem aquela coisa no sangue, já nasce com o
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Caio Cesar Neves (acima), de 24 anos, e Aldemir Carlos Neves Filho, o Aldemirzinho, de 15: herdeiros da cultura dos pais Isidoro Neves e Aldemir Carlos Neves
dom”. Ela sabe, porém, que a vivência é tudo. E ensina, aos poucos, a filha Maria Fernanda, 11 anos. Durante uma celebração de Natal, seu tio Vadico, irmão de Juhlica e co-fundador do Grupo Jovens Fandangueiros de Itacuruçá, deu o tambor para a menina tocar. “Ela acompanha certinho a caixa de folia”, orgulha-se a mãe. “Mas não é todo tio e todo avô que solta o instrumento na mão da criança”, lembra a fandangueira Márcia Pontes, 49. “Como dizem Isidoro, Baduca e outros tocadores experientes, uma maneira de repassar o conhecimento é realizar oficinas e chamar a criançada”, sugere. Um grande desafio é a evasão da mocidade. “Aqui em Cananeia não tem campo de trabalho para os jovens, então eles acabam se dispersando para outras cidades”, lamenta a experiente Cleuza dos Reis, 67. Jovens lideranças fandangueiras como Laerte Pereira, Rodolfo Vidal e Amir Oliveira lembram dos vários grupos de jovens tocadores que acabaram por falta de oportunidades para manter a nova geração na terra de suas raízes. Aos 38 anos, Laerte lembra que a realidade muda quando o fandango passa a ser um produto cultural e gera renda, garantindo melhor qualidade de vida para tocadores. “A maioria que começou a tocar recentemente foi atraída também pelo cachê. Quando eu comecei a tocar viola, a gente tocava mesmo porque gostava”, conta. Amir Oliveira concorda que a permanência de principiantes no fandango caiçara às vezes precisa de estímulos. “Eu só acredito que vai ser duradouro a partir do momento que os jovens falam assim: eu consigo viver disso”, diz Amir, que viu acabar o seu grupo Fandango Batido de São Gonçalo. “A partir do momento que os mais novos viam que não iam ter sequência daquilo, eles iam embora”. Para Amir, o problema não está em falta de desejo. “Eu escuto muito que o jovem não se interessa, mas eu dou vários exemplos do contrário, em Paranaguá, em Ubatuba e em Cananeia também. A gente vai no Ariri, vai na Ilha do Cardoso, vê
os jovens ali tocando rabeca, já interessados na romaria do Divino. Eu ainda acredito que o fandango tá no caminho e num caminho muito bom”, diz Amir, otimista. O jovem Matheus Pontes, de 15 anos, que toca no Grupo de Fandango Esperança, já vê no fandango o seu ofício. “Essa é uma oportunidade de trabalhar com o que eu gosto de fazer”, diz. Matheus senta, escuta e aprende sobre modas, causos e sobre a vida com os integrantes do grupo, como Joaquim Pires, André Pires e Irio Pontes. “Ah, que eu tava agoniado pra tocar algum instrumento e o dirigente do nosso grupo me ensinou. hoje eu tô alegre porque aprendi”, diz. Laerte Pereira acredita que cabe aos mestres a importante missão de transmitir a oralidade e o exemplo diário, e por isso se mobiliza para a construção de um espaço comunitário de cultura em seu bairro, o Ariri. “Muitos mestres fandangueiros morreram com o fandango pra si próprio. Eu acho que precisa eles ensinar os jovens, né?”. Laerte é membro do grupo Família Pereira e foi protagonista na criação de um grupo de dança de fandango. E vê com satisfação o interesse do filho Davi Pereira buscar com o avô, mestre zé Pereira, o conhecimento para tocar. Se há pouco tempo os jovens não se interessavam pelo fandango, o reconhecimento recente como patrimônio e produto cultural tem valorizado os músicos populares enquanto artistas. O lastro gerado pelo fortalecimento da autoestima caiçara com a realização de eventos e encontros de trocas de saberes tem promovido uma mobilização inédita em busca das origens cananeenses. O fandangueiro Rodolfo Vidal, 40, acredita que a resistência depende da juventude. “Assim, daqui a alguns anos, nós é que vamos dizer ‘nossa, tem uns meninos novos tocando, pena que os mestres já se foram, mas a nova geração tá aí pra não deixar o fandango caiçara de Cananeia acabar.’” c.A.S. e D.N.G. 111
PoRQue SenTImenTo eu TenHo Já se sabe como é Eu vou, eu vou, porque sentimento eu tenho Acabou-se nosso amor Que era meu maior empenho Vou embora pro interior Aqui nunca mais eu venho Aqui nunca mais eu venho A mulher abraça o homem Eu vou, eu vou, porque sentimento eu tenho Um homem abraça a mulher Eu vou, eu vou, porque sentimento eu tenho Acabou-se nosso amor Que era meu maior empenho Vou embora pro interior Aqui nunca mais eu venho Aqui nunca mais eu venho Vamos dar a despedida Eu vou, eu vou, porque sentimento tenho Despedida já foi dada Eu vou, eu vou, porque sentimento tenho Acabou-se nosso amor Que era meu maior empenho Vou embora pro interior Aqui nunca mais eu venho Aqui nunca mais eu venho
(música tradicional) Arnaldo Pereira e a nova geração
Mutirão Este livro foi realizado por um coletivo multidisciplinar que acredita na cultura, na arte e na educação como ferramentas de transformação da sociedade.
Direção eDitorial e eDição De texto Daniel Nunes Gonçalves Direção Criativa e Projeto GráfiCo Ricardo Godeguez ConCePção Cleber Rocha Chiquinho ProDução exeCutiva Fernando Oliveira Silva CoorDenação De Pesquisa Catharina Apolinário de Souza textos Catharina Apolinário de Souza, Cleber Rocha Chiquinho, Fernando Oliveira Silva entrevistas Catharina Apolinário de Souza, Cleber Rocha Chiquinho, Nathalia Vargas, Vitor de Souza fotoGrafia Maurício Velloso, arquivo do Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica, acervos pessoais PrefáCio Maria Rita Basso ilustrações Bruno Romã assistênCia De ProDução Kauany Milene Marques De Lima, Silvana Guerreiro assessoria De CoMuniCação Catharina Apolinário de Souza – Oquá Comunicação CoorDenação Ponto De Cultura Povos Da Mata atlântiCa Agnaldo Bernardo Junior, Cleber Rocha Chiquinho, Fábio Quirino Teixeira, Fernando Oliveira Silva, Silvana Guerreiro
aGraDeCiMentos Cleiton do Prado, Carolina Barbosa, Departamento Municipal de Cultura de Cananeia, Melissa Branco, Museu Vivo do Fandango, Namastê Portal Ecocultural Lagamar, Nathalia Vargas, Oséias Martinowski, Rubens Paiva, Rica Almeida, Secr. da Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, Vitor de Souza nossa gratidão especial aos fandangueiros e fandangueiras de Cananeia que aceitaram ser retratados nesta obra, e também aos que partiram e deixaram seu legado entre nós.
PRODuçãO
PARCERiA
APOiO
REALizAçãO
Detalhe dos adereços usados nos bailes fandangueiros
autores CatHarina aPolinário De souZa Afro-indígena, nascida em Santos, a jornalista, guia de turismo e produtora cultural caiçara Catharina Apolinário de Souza pesquisa cultura popular há quase 15 anos. Seus trabalhos nas diversas esferas em que atua são pautados em questões socioambientais, raciais e de gênero, buscado novas narrativas. É bacharel em Comunicação Social e pós-graduada em Controle e Gestão Ambiental. Roteirista e diretora do documentário longa-metragem Mães do Fogo, pesquisadora do Projeto Marias do Monte Serrat (MPMN Hip Hop), produtora do projeto Memória Santista do Samba (Mar Produções), produtora do clipe Maracá Maracatu (Quiloa) e idealizadora do projeto Pixerum: Intercâmbio entre Comunidades Caiçaras. Na área cultural, participou ainda do projeto de formação Museu Aberto, do Museu de Arte Moderna de SP.
CleBer roCHa CHiquinHo Educador do Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica, angoleiro no coletivo de capuêra angola Na Ginga da Maré e professor da rede pública de ensino. Licenciado e bacharel em Ciências Biológicas. Contemplado com o Prêmio Tuxáua (2019) e classificado no Prêmio Economia Criativa (2012), ambos pelo MinC, e contemplado com o Prêmio Neide Rodrigues Gomes (2020) no ProAC LAB. Organizador dos livros Saberes Caiçaras – A cultura caiçara na história de Cananeia (2007), Terço Cantado – Ontem, Hoje e Sempre (2010) e Chegadas e despedidas – A Romaria do Divino Espírito Santo em Cananeia (2014). Diretor do filme Prosas, Causos e Aventuras – O Retorno da cantoria caiçara (2013) e dos documentários Saberes Caiçaras (2008) e Religare – A diversidade da fé nas tradições de comunidades tradicionais em Cananeia (2019).
fernanDo oliveira silva Gestor do atual Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica desde 2005, Fernando Oliveira Silva é licenciado e bacharel em ciências biológicas, especialista em educação ambiental para a sustentabilidade, mestre em ecologia, MBA em gestão de negócios sociais de impacto e guia de turismo. Paulistano, atua nas áreas de ciência, cultura popular, educação e turismo com foco em comunidades tradicionais no Vale do Ribeira desde 1997, onde reside há 20 anos. Foi diretor do iPeC - instituto de Pesquisas Cananeia (1999 a 2007) e educador na área de software livre do Pontão de Cultura Nós Digitais (2008 a 2010). Em 2011, assumiu como diretor de cultura na prefeitura de Cananeia, onde foi um dos responsáveis pela aprovação da lei que criou o Sistema Municipal de Cultura. Em 2010, recebeu o Prêmio Cultura Digital do MinC.
O ritmo do fandango caiçara marcado na palma da mão
créditos das fotos CaPa: Cleber Rocha Chiquinho
págs. 58-63: Cleber Rocha Chiquinho
págs. 4-5: Felipe Scapino
págs. 66-79: Maurício Velloso
págs. 6-10: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica
págs. 82-83: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica
págs. 12-13: Fernando Oliveira Silva
págs. 84-85: Maurício Velloso (1, 6, 7, 8, 9, 10), Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica (2, 3, 4 e 5) e Felipe Varanda / Museu Vivo do Fandango (11)
pág. 15: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica pág. 17: Felipe Varanda / Museu Vivo do Fandango págs. 20-21: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica
págs. 86-88: Maurício Velloso pág. 90: Cleber Rocha Chiquinho págs. 92-94: Maurício Velloso
pág. 25: Felipe Varanda / Museu Vivo do Fandango
pág. 96: Cleber Rocha Chiquinho
págs. 26-27: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica
págs. 98-100: Maurício Velloso
pág. 28: Maurício Velloso e Fernando Oliveira Silva
pág. 102: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica
pág. 29: ivan Carlos Neves e Maurício Velloso
págs. 108-113: Maurício Velloso
pág. 30: Antonia Regina Moura
pág. 115: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica
pág. 32: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica pág. 34: Acervo Rede Cananeia pág. 36: Maurício Velloso pág. 37: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica
pág. 116: Catharina Apolinário de Souza, Cleber Rocha Chiquinho, Maurício Velloso págs. 117-121: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica ContraCaPa: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica
pág. 40: Maurício Velloso págs. 44-45: Cleber Rocha Chiquinho PáG. 46: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica págs. 48-49: Felipe Scapino pág. 52: Acervo Ponto de Cultura Povos da Mata Atlântica e Felipe Varanda / Museu Vivo do Fandango pág. 53: Felipe Varanda / Museu Vivo do Fandango e Maurício Velloso págs. 54-55: Maurício Velloso
A memória e os costumes caiçaras na foto e nos tamancos da casa do falecido Mestre Agostinho Gomes: tradição
Grupo Violas de Ouro de São Paulo Bagre sob as bênçãos de São Gonçalo na Festa do Fandango de Cananeia de 2017
quanDo uM Mestre Do fanDanGo Caiçara De Cananeia PeDe a Benção De são Gonçalo, o padroeiro dos violeiros, e começa a cantar Amanhece! ao som de viola, rabeca, adufo, machete e tambor em animados bailes locais, uma tradição secular está se renovando. Trata-se de um costume trazido dos colonizadores europeus e que se incorporou de tal forma à rotina originalmente rural da população caiçara no litoral do Sul e do Sudeste do Brasil que acabou se tornando parte fundamental da identidade local. Reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o fandango caiçara tem resistido bravamente aos desafios da sociedade moderna. Este livro, com pesquisa e textos de Catharina Apolinário de Souza, Cleber Rocha Chiquinho e Fernando Oliveira Silva, revisita a trajetória da mais valiosa manifestação cultural de Cananeia. Mais que isso, revela a faceta contemporânea de uma expressão popular que avança nos anos 2020 renovada, com uma participação jovem e feminina crescente, e que enche de orgulho o povo caiçara que mantém viva a sua cultura.
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