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CULTURA • SUL

8 de Março de 2019

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ESPAÇO AGECAL •••

Chefchaouen... um esboço sobre a dieta mediterrânica

Mohamed Zitane Reda

Engenheiro e gestor cultural Chefchaouen - Marrocos

Através dos tempos, Chefchaouen, pequena cidade do norte de Marrocos, soube preservar as suas heranças ancestrais, o modo de vida da população. A situação geográfica da cidade, o seu tecido socioeconómico constituíram entraves para formas de vida modernas, para a globalização de temporalidades sociais. Foi assim que Chefchaouen se afirmou como

uma das primeiras urbes inscritas na lista representativa das comunidades emblemáticas da dieta mediterrânica, reconhecida pela UNESCO em 2010 como património cultural imaterial. Chefchaouen, está situada na área de reserva da biosfera intercontinental do Mediterrâneo, acolheu, depois da sua fundação em 1471, uma vaga de imigrados mouriscos e judeus da Andaluzia, trazendo nas suas bagagens os seus costumes, modo de vida e as suas tradições. Actualmente, a população urbana, com 42 mil habitantes, guarda permanentemente vivo um património mediterrânico constituido e enraizado ao longo dos séculos. Na actualidade, Chefchaouen continua a polarizar actividades na sua retaguarda rural. Com efeito, as mulheres e os homens das aldeias transportam cada manhã para os di-

versos mercados da cidade produtos alimentares bio, como pão, ovos e azeitonas, plantas aromáticas colhidas frescas, figos secos ou frescos, galinhas do campo, produtos feitos com leite e legumes provenientes de parcelas minúsculas. Neste aspecto, a cidade oferece uma variedade de alimentos que caracterizam a refeição mediterrânica, representada em forma de pirâmide com 29 tipos culinários que cobrem o conjunto dos países mediterrânicos. Como nas outras comunidades representativas, a dieta mediterrânica conserva em Chefchaouen a base alimentar, que é o vector do estilo de vida que reflecte a identidade da cidade. Para o analisar, é necessário considerar o conjunto de saberes-fazer, as tradições que dizem respeito às culturas agrícolas, as sementeiras, as colheitas, o armazenamento, a trans-

formação, a cozinha e, em particular, a forma de partilhar a mesa e de consumir os alimentos. Contudo, certos factores constituem uma ameaça real para a sobrevivência e dinamismo deste património cultural imaterial. Referimo-nos, entre outros, à modernidade e ao urbanismo, que uniformizam os modos de vida actuais. É esta a razão porque as estruturas sociais e culturais locais de protecção deste património funcionam e resistem admiravelmente a todo o eventual basculamento radical do modo de vida mediterrânico. Compostas por cozinheiros profissionais, artesãos, populações locais, produtores e comerciantes, tecido associativo, etc… essas estruturas trabalham, cada uma no seu domínio, para preservar esta arte de viver. A protecção do património da dieta

mediterrânica é um grande desafio e deverá envolver uma visão estratégica das comunidades. No contexto das ameaças às estruturas portadoras e transmissoras da dieta mediterrânica, o reforço das capacidades de gestão, protecção e valorização do património junto dos seus nichos sociais e culturais, estabelecerá certamente, uma acção a adoptar pelos decisores. O primeiro desafio de protecção da dieta mediterrânica consiste na consolidação de esforços do conjunto dos intervenientes, a identificação das populações que guardam e defendem este património, a fim de inventariar as produções e práticas, diagnosticar as restrições e potencialidades. É o que permitirá às instituições possuir visões convergentes para um mesmo objectivo, valorizando acções de preservação e desenvolvimento sustentável da dieta mediterranica. l

FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

O mistério da Primavera d.r.

Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

A Sagração da Primavera (Le Sacre du Printemps) do compositor russo Igor Stravinsky estreou a 29 de Maio de 1913 no Teatro dos Campos Elísios em Paris. Os Ballets Russes de Sergei Diaghilev apresentaram no seu máximo esplendor a coreografia de Vaslav Nijinsky e a música de Stravinsky. Em Mestres da Música podemos encontrar uma descrição deste histórico debutar: “logo após os primeiros compassos, a sala rebentou num violento confronto entre defensores e detratores daquela música. Uma senhora esbofeteou um jovem que pateava, o que deu origem a que o jovem e o acompanhante da referida senhora se desafiassem para um duelo; a condessa Portalós foi vista a gritar do seu camarote que, em sessenta anos, nunca ninguém tinha zombado dela como naquele dia. Stravinsky, nos bastidores, viu Nijinsky que, de pé em cima de uma cadeira, gritava uns números a uns bailarinos que estavam em cena para que pudessem interpretar a coreografia, apesar de que, dada

a algaraviada geral, não se conseguia ouvir a música”. O espectáculo foi recebido com indignação e tumulto tanto pelo público como pelos críticos. Camille de Bellaigue escreveu que a composição era “qualquer coisa de bárbaro, um esforço para derrubar toda a civilização musical”! Outros críticos referiram-se-lhe ironicamente como “le massacre du printemps” (o massacre da primavera). Afinal, que fizeram Stravinsky e Nijinsky de tão escandaloso? Nesta composição cujas dissonâncias, assimetrias e politonalidades foram levadas a um extremo até então desconhecido, a Primavera não aparece como chilrear de passarinhos, desabrochar de flores e amor no ar... Em La Grande Revue num artigo de Junho de 1912 tentou preparar-se o público para este ballet religioso que estrearia no ano seguinte: “é a vivacidade eterna da terra que inspira esta música e leva o frenesi triunfante ao ponto do terror; então, no inquieto silêncio da noite, há uma longa perseguição na escuridão, a captura, a homenagem à vitima escolhida, e, finalmente, a mediação que precede o sacrifício libertador”. Apelida-se a música de Stravinsky de “super-humana” por conseguir revelar os poderes elementares, “os labirintos, os remoinhos, os clamores, as vozes distantes, a respiração das coisas vivas, as emoções do espaço, a agitação, o êxtase, as iniciações cruéis e as ce-

lebrações misteriosas”. Finalmente conclui-se que com as ousadas inovações musicais de Stravinsky o culto da natureza “encontrou a sua liturgia”. Contudo, não apenas a música mas sobretudo a coreografia originaram as maiores hostilidades! Cerca de um ano após a estreia, em La Revue Musicale, consta que A Sagração da Primavera era agora ouvida e vista num silêncio respeitoso e acolhia aplausos sem fim. Todos, sem excepção, reconheciam o seu poder e virtuosismo inédito. Stravinsky é então considerado o grande mestre dos sons e do ritmo, capaz de escolher e conjugar timbres de tal maneira que todos os ruídos da natureza são evocados. “São os terrores da noite, um leve toque de asas, os gritos, os lamentos no espaço, o rosnar de monstros, galopes implacáveis, animais que rastejam, sobressaltos, indícios de agonia, lutas, angústia, delírios, prostrações, triunfos sangrentos, e a indissolúvel união de vida e morte.” O efeito do inovador ritmo stravinskiano é descrito como um furacão capaz de desnudar a alma, romper-lhe os escrúpulos, a modéstia, o controle. “É embriaguez, êxtase, aniquilação, e quando a música pára, a audiência está para lá de si própria, presa de um entusiasmo que só poderia ser melhor descrito como pânico.” Com A Sagração da Primavera de Stravinsky podemos sentir na carne as palavras que Nietzsche escreveu em

A Sagração da Primavera, de Stravinsky, estreou a 29 de Maio de 1913 em Paris •

A Origem da Tragédia ao referir-se à independência da música da imagem e do conceito. “Na sua liberdade plena a música não precisa nem de um nem de outro, apenas os tolera”. Neste livro, Nietzsche, que era filólogo de formação e levou uma vida dedicada ao estudo da linguagem, rende-se à inexorável superioridade da música afirmando que é impossível à linguagem esgotar o simbolismo universal desta. Escreve que a música é “expressão simbólica do antagonismo e da dor universais que estão no coração do Uno primordial, superior a todas as aparências e anterior a todos os fenómenos.” Com as sonoridades da Sagração somos como que transportados para um ritual dionisíaco no qual o êxtase arrebatador surge perante a falência

do princípio da individuação. Após a beberagem narcótica, assenhora-se a embriaguez e é a entrega “à força despótica da renovação primaveril”. É a “exaltação dionisíaca”, através da música e da dança, é a aniquilação, o total esquecimento de si próprio. Pensar poeticamente implica “repartir bem os jogos pelas entranhas” (Empédocles), ou “dar um pouco mais de luz ao sangue” (Cervantes). Trata-se da descida aos “infernos da alma” (María Zambrano), às raízes do humano, às entranhas - esse fundo obscuro onde padece o ser escondido sonhando. Desentranhar-se. Será este, afinal, o mistério da Primavera? l Inscrições para o café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com


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