Migrantes em busca de sonhos - Revista Novolhar, Ano 14, Número 62, Abril a Junho, 2016

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Venha passar dias agradáveis em nossas dependências num clima acolhedor e hospitaleiro

CONTATO PARA RESERVA e-mail: larbelem@luteranos.com.br Site: www.luteranos.com.br/larbelem Campinas-SP Tel: (19) 3252 5458 Novolhar_62_AbrJun_2016.indd 2

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Migrantes em busca de sonhos

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FRONTEIRAS SEPARAM VIDAS A COMPAIXÃO TEM LIMITES? A MUDANÇA VEM DO POVO UM DESAFIO PARA AS IGREJAS DEUS CRIOU VIDAS E NÃO RAÇAS

ÍNDICE

Ano 14 –> Número 62 –> ABRIL A JUNHO DE 2016

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Como vencer crises e provas?

Cacoal, uma paróquia de migrantes

Ulf Ekman torna-se católico

RESILIÊNCIA

COMUNIDADE

ECUMENISMO

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CONGRENAJE

Timbó pronta para o congresso da juventude

SEÇÕES

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CIL: Meio século de parceria interluterana

A mentira nossa de cada dia

LUTERANISMO

COMPORTAMENTO

PALAVRAS CRUZADAS > 6 MOSAICO BÍBLICO > 6 NOTAS ECUMÊNICAS > 7 CONSULTÓRIO DA FÉ > 35 REFORMA 500 ANOS > 36 DE OLHO NA CIDADANIA > 37 REFLEXÃO > 38 ESPIRITUALIDADE > 40 PENÚLTIMA PALAVRA > 42 NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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AO LEITOR Revista trimestral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil-IECLB, editada e distribuída pela Editora Sinodal CNPJ 09278990/0002-80 ISSN 1679-9052

Diretor Nestor Paulo Friedrich Coordenador Eloy Teckemeier Redator João Artur Müller da Silva Editor Clovis Horst Lindner Jornalista responsável Eloy Teckemeier (Reg. Prof. 11.408) Conselho editorial Clovis Horst Lindner, Denize Inez Volkart Pinto, Eloy Teckemeier, Jaime Jung, João Artur Müller da Silva, Marli Lutz, Robson Luis Neu e Werner Kiefer. Arte e diagramação Clovis Horst Lindner Criação e tratamento de imagens Mythos Comunicação - Blumenau/SC Capa Arte: Cristiano Zambiasi Jr. Impressão Gráfica e Editora Pallotti Colaboradores desta edição Carine Fernandes, Catarina Volkart Pinto, Cibele Kuss, Claudete Beise Ulrich, Daniela Schmid, Emilio Voigt, Flávio Weiss, Graziela Tillman, Ildo Bohn Gass, Irineu Valmor Wolf, Leonídio Gaede, Lizandra Carpes, Lothar Carlos Hoch, Rodolfo Fuchs dos Santos, Roger Marcel Wanke, Romi Márcia Bencke, Susana M. Rocca, Tânia Cristina Weimer e Valério G. Schaper.

Publicidade Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: editora@editorasinodal.com.br Assinaturas Editora Sinodal Fone/Fax: (51) 3037.2366 E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br www.novolhar.com.br Assinatura anual: R$ 36,00 Correspondência E-mail: novolhar@editorasinodal.com.br Rua Amadeo Rossi, 467 93030-220 São Leopoldo/RS

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Migração

N

ão há como não se comover com as chocantes imagens e notícias sobre milhares de pessoas refugiadas em todo o mundo. São homens e mulheres, pessoas jovens e idosas e sobretudo crianças em busca de um lugar onde reclinar as cabeças. Buscam um espaço para viver com dignidade, nem que seja num campo de refugiados com acomodações precárias e saneamento básico reduzido a condições primitivas. Qualquer lugar é melhor do que aquele que deixaram para trás depois de experiências traumatizantes. Escapar milagrosamente com vida significou perder quase tudo e muitos entes queridos pelo caminho. Os cenários repetidos vão se desenrolando, ante olhos incrédulos, como uma tragédia fartamente documentada. Não faltam reportagens, imagens, depoimentos e relatos sobre o que já se desenha como a maior catástrofe humanitária do século 21. As imagens e os relatos nos sites de busca na internet transformam-se num verdadeiro tsunami. Em mais de sessenta edições da Novolhar, é a primeira vez que não tivemos nenhuma dificuldade para juntar informações e ilustrações sobre o tema de capa. Ao contrário, foi um drama à parte fazer as escolhas pertinentes. Também aqui no Brasil não faltam relatos e imagens sobre os dramas locais na busca de abrigo e refúgio. Em meio a tudo isso, encontrar pessoas como a pastora Daniela Schmid e a jornalista Lizandra Carpes nos permitiu ver pequenas luzes no fim do túnel: de solidariedade, apoio e auxílio responsável. Seu envolvimento com os haitianos no Brasil ou os refugiados na Alemanha leva-nos muito além da atitude jornalística de mostrar o que se passa, desafiando à solidariedade. Além do dramático tema da capa desta edição, não faltam outras abordagens. Como, por exemplo, o depoimento sobre os 40 anos da Paróquia Evangélica Luterana dos Migrantes em Cacoal (RO), que dá um testemunho forte sobre o resultado bom a que pode levar o processo migratório. A caminhada conjunta das duas maiores igrejas luteranas ao longo de meio século de existência da Comissão Interluterana de Literatura (CIL) é outro bom testemunho. Como sempre, esmeramo-nos em apresentar a você um amplo leque de reportagens, em busca da boa informação e do prazer da leitura. Equipe da Novolhar

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NOTAS

Uma palavra da IECLB Do Confronto ao Diálogo As comunidades da IECLB anunciam e vivenciam em 2016 que, Pela graça de Deus, [somos] livres para cuidar. E queremos exercitar esse cuidado, tendo como critério a orientação do profeta Amós: Buscai o bem e não o mal (Amós 5.14a). Acreditamos que o convite feito às comunidades da IECLB pode ser um convite também para o povo brasileiro em geral diante do que se passa em nosso país hoje, cujos desdobramentos são imprevisíveis e perigosos. O Brasil conquistou a democracia a duras penas. Um dos componentes imprescindíveis para que a democracia cresça e floresça chama-se diálogo. Dia Logos: por meio da palavra; através da palavra. Diálogo é a interação entre pessoas através da palavra. Porém, acompanhando as notícias em nosso país hoje, fica-se com a nítida impressão de que estamos desaprendendo a dialogar. Há um clima de crescente tensão. Em lugar da palavra são colocados gritos, empurrões. Cresce o confronto a qualquer custo. Será que estamos esquecendo o que conquistamos a duras penas? Cansamo-nos da bendita oportunidade de viver a democracia que se constrói com diálogo? Do ponto de vista cristão, há o que aprender quando o diálogo é substituído pelo confronto e até pela negação da outra pessoa. Do conflito à comunhão, um documento que avalia numa postura autocrítica a Reforma (1517), contém um parágrafo que pode jogar uma luz sobre o atual momento brasileiro: “No século XVI, católicos e luteranos frequentemente não apenas entenderam mal, mas também exageraram e caricaturizaram seus oponentes para expô-los ao ridículo. Repetidas vezes violaram o oitavo mandamento, que proíbe levantar falso testemunho contra seu próximo. Mas mesmo quando os oponentes eventualmente fossem corretos um com o outro, sua disposição de ouvir o outro e levar a sério suas questões era insuficiente. Os controversos queriam refutar e vencer seus oponentes, muitas vezes exagerando de modo deliberado os conflitos ao invés de buscar soluções a partir de um olhar do que tinham em comum. Preconceitos e mal-entendidos tiveram um grande papel na caracterização da outra parte. Formaram-se assim oposições que foram passadas à geração seguinte” (parágrafo 233). A democracia, a política, a cidadania, a palavra como meio – é o que dispomos para, como gente cidadã,buscar o bem e não o mal. Afinal, a democracia não está à venda! É nossa convicção de que somos livres, por graça divina, para cuidar bem desse bem! Do confronto ao diálogo – respeitoso, persistente, atento – para deixar que o bem cresça e floresça, Nestor Paulo Friedrich - Pastor Presidente

Tema da próxima edição A edição no 63, de julho a setembro de 2016, terá como tema de capa OLIMPÍADAS. O encontro no Rio será apreciado a partir das Paralimpíadas e do conceito de superação.

Ato contra as barragens no rio Uruguai O Sínodo Noroeste Riograndense e a Diocese de Santo Ângelo da Igreja Católica, juntamente com as igrejas parceiras da Argentina, Distrito Misiones da Iglesia Evangelica del Rio de La Plata e o Distrito Norte da Iglesia Evangelica Luterana Unida e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) realizaram uma celebração e ato ecumênico internacional em favor do rio Uruguai e contra as barragens binacionais de Garabi e Panambi. O evento ocorreu no dia 12 de março de 2016 na praça da cidade de Alba Posse, província de Misiones, Argentina. O ato ecumênico faz parte das atividades motivadas pelo dia 14 de março, quando é celebrado o Dia Internacional de Luta contra as Barragens. Cerca de 300 pessoas, entre religiosos e ribeirinhos brasileiros e argentinos, estiverem presentes manifestando a contrariedade aos projetos de barragens no rio Uruguai. Tereza Pessoa, do MAB, que é pescadora ameaçada pela barragem de Panambi em Alecrim (RS), enfatizou em sua fala a unidade entre os dois países nesse momento de luta e resistência contra esses empreendimentos: “Sempre fomos separados pelo rio, hoje mais do que nunca ele une esses dois povos por um objetivo comum: a defesa do rio Uruguai e pelo nosso direito de dizer não a essas barragens”. Desde 2008, a população revive um drama antigo: o projeto binacional de construção das hidrelétricas de Garabi e Panambi. Neste ano, as famílias resolveram manifestar a contrariedade realizando uma celebração ecumênica, buscando alertar a população ribeirinha das consequências que as hidrelétricas trazem junto com sua construção. Com a celebração e o ato ecumênico, as igrejas expressaram o seu compromisso profético em favor das famílias ameaçadas pelos projetos, ignoradas em seus direitos e vitimadas. De acordo com Vilson Thielke, pastor Sinodal do Sínodo Noroeste Riograndense, foi a oportunidade de denunciar as violações de direitos humanos e também os impactos ambientais que acabarão por matar o rio Uruguai: “Somos contrários a essa proposta energética de mão única que sacrifica pessoas e o meio ambiente somente pelo desejo de lucro por parte das grandes empresas e seus acionistas”. NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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PALAVRAS CRUZADAS

MOSAICO BÍBLICO

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Migração Migrantes e estrangeiros por Emilio Voigt

Elaborado pelo pastor Irineu Valmor Wolf, que reside em Indaial (SC).

“Certo dia, o Senhor Deus disse a Abrão: Saia da sua terra, do meio dos seus parentes e da casa do seu pai e vá para uma terra que eu lhe mostrarei” (Gênesis 12.1). Assim parece ter começado a saga dos patriarcas e das matriarcas do povo de Israel. Abrão, mais tarde chamado de Abraão (Gênesis 17.5), pertencia a um grupo seminômade de gente que criava ovelhas e cabritos. Não eram pessoas sedentárias, mas estavam em constante busca de pasto e água para o rebanho. Era uma atividade árdua e insegura. Nessa situação, o grupo precisava ficar unido. As vidas desses homens e mulheres estavam profundamente interligadas e eram interdependentes. Abraão era natural da cidade de Ur, na Mesopotâmia, região que atualmente pertence ao Iraque. De lá saiu para Harã (Gênesis 11.31), onde recebeu a determinação divina para migrar. Abraão deixou para trás a terra, os parentes e a casa paterna. Esses três âmbitos são fundamentais para a constituição da pessoa e de sua história de vida. Daqui para frente, o caminho rumo ao desconhecido seria o seu lar – dele e do pequeno grupo que o acompanhava. Essa foi também a experiência de sua descendência. Até se estabelecer na terra de Canaã, o povo de Israel fez um longo e demorado caminho de peregrinações. Durante séculos, israelitas foram pessoas migrantes, refugiadas e fugitivas. Após o estabelecimento na terra de Canaã, cresceu o distanciamento entre Israel e os outros povos. O termo “gentio” designa a nação ou a pessoa que não fazia parte do povo de Israel. Há trechos na Bíblia que manifestam hostilidade em relação aos gentios, assim como há passagens que os descrevem de maneira positiva (Neemias 5.9; 2 Reis 5). Em todo caso, permaneceram as tradições que lembravam a história ancestral: “Não maltratem os estrangeiros que vivem na terra de vocês (...) amem os estrangeiros, pois vocês foram estrangeiros no Egito” (Levítico 19.33s). Também nós somos apenas peregrinos por este mundo (Hebreus 13.14). Que consequências tiramos para a N nossa relação com pessoas migrantes? EMÍLIO VOIGT é teólogo, doutor em Teologia e assessor de Formação do Sínodo Vale do Itajaí da IECLB em Blumenau (SC)

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Notas ecumênicas

JOEL ZEFERINO, presidente da Aliança Batista do Brasil.

“ANTES DA EPIDEMIA DO ZIKA, NÓS TEMOS MILHARES DE OUTROS PROBLEMAS RELACIONADOS AO SANEAMENTO BÁSICO. AS CRIANÇAS AINDA MORREM DE DIARREIA. EMBORA O BRASIL TENHA UMA GRANDE COBERTURA DE ÁGUA POTÁVEL, AINDA HÁ LOCAIS ONDE AS PESSOAS NÃO TÊM ACESSO À ÁGUA POTÁVEL, E ISSO TAMBÉM MATA AS PESSOAS. É PRECISO QUE A SOCIEDADE COBRE DOS PODERES PÚBLICOS, SOBRETUDO OS MUNICIPAIS, O INVESTIMENTO DE RECURSOS PARA SOLUCIONAR O PROBLEMA.”

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Saneamento

CFE 2016 internacional

Compromisso das igrejas “O convite do CMI para a Peregrigem importante: as igrejas estão numa peregrinação neste mundo, a caminho de outro mundo possível, como diz a Bíblia, de ‘um novo céu e uma nova terra’ (Apocalipse). Significa que as igrejas precisam seguir no caminho por outro mundo possível, testemunhando e trabalhando a justiça com paz. Não mais uma forma de ativismo cristão e sim um compromisso com o Deus do ‘shalom’. Uma jornada ‘de’ justiça e paz que os cristãos mesmos devem testemunhar dentro de suas comunidades religiosas, entre elas e com as outras religiões, contagiando o mundo.”

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nação de Justiça e Paz tem uma mensa-

MAGALI DO NASCIMENTO CUNHA é professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo e membro do Conselho Mundial de Igrejas (CMI)

A Campanha da Fraternidade Ecumênica (CFE) de 2016 é, pela primeira vez, realizada com alcance internacional, ou seja, ultrapassa as fronteiras nacionais. Isso se deve à parceria construída com a Misereor, entidade episcopal da Igreja Católica na Alemanha, que trabalha diuturnamente na cooperação para o desenvolvimento na Ásia, África e América Latina. Também somam esforços na CFE a Igreja Católica (CNBB), Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), Igreja Episcopal Anglicana do Brasil (IEAB), Igreja Presbiteriana Unida (IPU), Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia (ISOA), Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular (Ceseep), Visão Mundial, Aliança de Batistas do Brasil. NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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Migrantes em busca de sonhos O NÚMERO DE MIGRANTES AUMENTOU 41 POR CENTO ENTRE 2000 E 2015, LEVANDO UM IMPRESSIONANTE GRUPO DE 244 MILHÕES DE PESSOAS A DEIXAR SEU LOCAL DE ORIGEM EM BUSCA DE VIDA DIGNA. É UMA CRISE HUMANITÁRIA SEM PRECEDENTES NA HISTÓRIA HUMANA. SUA ÚNICA ALTERNATIVA É A NOSSA SOLIDARIEDADE. por Carine Fernandes colaboração: Lizandra Carpes

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imagem de um menino sírio morto numa praia da Turquia, registrada em setembro do ano passado, virou símbolo da crise migratória na Europa e trouxe à tona a discussão do assunto em todo o mundo. O fato é que, desde a época da colonização dos países, a migração já existia. Mas o que vemos hoje é um aumento significativo em função de situações de extrema pobreza em diversas regiões, somadas a conflitos sociais e políticos, além de desastres ambientais. Segundo relatório apresentado pela Organização das Nações

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Unidas (ONU) em janeiro de 2016, o número de migrantes no mundo aumentou 41% entre os anos de 2000 e 2015 e alcançou um total de 244 milhões. Por continente, a Europa recebe mais migrantes (76 milhões), seguida pela Ásia (75 milhões). A América do Norte conta com 54 milhões, a África, com 21 milhões, a América Latina e o Caribe, com nove milhões e Oceania, com oito milhões. O aumento do número de migrantes no mundo nos últimos 15 anos foi maior do que o crescimento populacional. Para o doutor em Antropologia Social pela UFRGS e professor adjunto da Universidade Federal do Pampa

Crédito: Esta imagem viralizou nas redes sociais e na imprensa em 2015 e foi captada por dezenas de fotógrafos.

CAPA

(Unipampa), Daniel Etcheverry, o fenômeno das migrações está passando por uma fase desproporcional devido à desigual distribuição da riqueza e às práticas de dominação e colonialismo do chamado ‘Ocidente’ sobre regiões ricas em matérias-primas necessárias para a construção da riqueza ocidental. “É assim desde o século 16, época das grandes navegações”, lembra. A opinião é compartilhada por Lizandra Carpes, jornalista, assessora de comunicação do Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Bráz em Joinville (SC). Para ela, a raiz do problema está no capitalismo, que envolve mão de obra escrava, produção em massa e a valorização da mercadoria, “que tem as fronteiras abertas ao tempo em que pessoas morrem à deriva nos mares do mundo”, completa. “No sistema capitalista, a regra é lucrar, não importa de que maneira seja. Aí surgem os apelos da propaganda, que nos faz uma lavagem cerebral diária de que comprar, substituir, descartar é necessário para ser feliz. Somos

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AYLAN KURDI

A CRISE DOS REFUGIADOS VEM SE AGRAVANDO HÁ DÉCADAS EM TODO O MUNDO. MAS FOI ESTA EMBLEMÁTICA FOTO DO MENINO MORTO NA PRAIA QUE DESPERTOU O MUNDO PARA A DRAMÁTICA CRISE HUMANITÁRIA E PÔS A EUROPA EM ESTADO DE ALERTA.

meros números e metas a serem alcançadas. Na questão das migrações, não é diferente. A grande exploração dos recursos naturais da África e do Oriente Médio é prova disso. Petróleo, manganês, diamante entre outros são produtos utilizados na produção das grandes tecnologias”, analisa. No Brasil, a migração é bem menor se comparada com outros países. Segundo o Conselho Nacional de Refugiados (Conare), órgão ligado ao Ministério da Justiça, em 2015 eram cerca de oito mil refugiados estrangeiros, de 81 nacionalidades, vivendo no país. Entre eles, os sírios são o maior grupo, com 23% do total, seguidos pela Colômbia, Angola e República Democrática do Congo. Há ainda estrangeiros vindos do Líbano, da Palestina, da Libéria, do Iraque, da Bolívia e de Serra Leoa. Segundo a pesquisadora em Economia da Fundação de Economia e Estatística do RS (FEE), Iracema Castelo Branco, o processo de reestruturação do mercado de trabalho bra-

sileiro a partir de 2004 com a geração de empregos formais passou a atrair estrangeiros. “O Brasil, que já exportou muitos trabalhadores em busca do ‘sonho americano’, mais recentemente passou a representar o ‘sonho brasileiro’ para muitos imigrantes, principalmente haitianos”, destaca. Mas, após dez anos com indicadores favoráveis, o Brasil vem registrando desde 2015 a deterioração do mercado de trabalho diante da recessão econômica. “Isso torna ainda mais difícil a vida de quem deixou o seu país em busca do ‘sonho brasileiro’ e ainda prejudica a integração desses imigrantes ao convívio social”, avalia a pesquisadora. Ela alerta que, diante da transição demográfica que o país vive, em que em poucos anos haverá mais idosos do que jovens na população em idade ativa para o trabalho, a chegada desses imigrantes, na maioria jovem, pode amenizar o problema. “Para isso faz-se necessária uma política de integração desses estrangeiros à sociedade brasileira, aproveitando seus conhecimentos

e suas capacitações para o desenvolvimento do Brasil, além de o país voltar a crescer e a gerar empregos.” Para o pesquisador em Relações Internacionais, também da FEE, Bruno Mariotto Jubran, pelo tamanho do país e por seu distanciamento em relação aos principais focos de conflitos globais, é possível abrigar mais pessoas, “ainda que as condições de recepção e de adaptação delas estejam muito aquém do satisfatório”. A jornalista Lizandra Carpes questiona o papel do governo brasileiro no sentido de garantir que o estrangeiro tenha vida digna como qualquer outra pessoa nata do país. “Ao entrar no país, eles têm direito a todas as políticas de assistência existente aqui. O que acontece é que não temos pessoas qualificadas nesses serviços para atender os estrangeiros, em especial na Região Sul”, aponta. Para suprir essa demanda, entidades do terceiro setor e a igreja trabalham para oferecer apoio a essas pessoas. Por exemplo, em Joinville, o Centro dos Direitos Humanos

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MULTIDÕES A CAMINHO: O desespero e a saudade são os combustíveis de multidões à procura de uma nova pátria em todo o mundo

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Maria da Graça Bráz, onde Lizandra atua, trata das questões de políticas públicas e ajuda humanitária. Já as organizações assistenciais, como a igreja, trabalham para suprir as necessidades emergenciais dos migrantes, como alimentação, abrigo e saúde. Essa situação pode mudar com alteração na legislação. Atualmente, a única lei existente sobre o assunto

é o Estatuto do Estrangeiro, em vigor desde 1980, criado em meio à ditadura militar. A lei abre brechas para a contratação de migrantes com remuneração abaixo do salário-mínimo e sob jornadas de trabalho exaustivas. Já está em discussão na Câmara dos Deputados o projeto que institui a nova Lei de Migração, que substituirá o Estatuto. De autoria do senador Aloysio Nunes

Ferreira (PSDB-SP), o texto muda a interpretação brasileira relacionada ao tratamento dado às pessoas de outros países que queiram viver no Brasil com a mudança do termo “estrangeiro” para “migrante”. O projeto de lei garante aos migrantes condições de igualdade com os nacionais, prevê a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade,

HUMANIDADE MIGRATÓRIA LUCY A fêmea de australopithecus afarensis foi descoberta em 1974 no deserto de Afar, na Etiópia. O fóssil de 3,2 milhões de anos é considerado a mãe da humanidade. De sua terra natal, seus descendentes povoaram todo o planeta a partir de sua origem na África. Desde então, a humanidade jamais parou com o processo migratório.

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EVA MITOCONDRIAL Foi também na África que se descobriu o DNA comum a todos os Homo Sapiens, datado de 200 mil anos atrás. De lá a humanidade saiu, ao ritmo de 20 quilômetros por geração, para povoar toda a Terra. No caminho, enfrentou o Neanderthal e o Homo Erectus.

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Reprodução Novolhar

MULTIDÃO: Obra de Jacob Lawrence, “The migrants arrived in great numbers” (1940/41)

sociedade que os locais naturalizam, não veem”, completa. Ele salienta que diferentemente dos fluxos migratórios do século passado, os novos imigrantes são, em sua maioria, pessoas com níveis educacionais mais elevados. “A maior parte deles tem, no mínimo, estudos secundários completos, e muitos deles fizeram cursos universitários em seus países de origem. Hoje em dia, as universidades brasileiras perceberam isso e estão facilitando o ingresso de estudantes e de professores em seus quadros”, salienta.

Etcheverry lembra que nenhuma sociedade evoluiu sem a participação de gente de fora dela. Enquanto não resolvemos o problema do capitalismo e não mudamos a legislação, que possamos fazer a nossa parte, exercitando a solidariedade e o respeito ao próximo, para receber os migrantes N de braços abertos. CARINE FERNANDES é jornalista em Porto Alegre (RS) LIZANDRA CARPES é jornalista e ativista de Direitos Humanos em Joinville (SC)

Pesquisa e texto: Clovis Lindner. Imagens da Internet

além de garantir os direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos, bem como o direito à liberdade de circulação no território nacional. Os migrantes terão acesso igualitário e livre aos serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social. Mas a barreira não é só a legislação para quem busca uma vida mais digna no Brasil. Especialmente os haitianos e africanos têm que lidar também com o preconceito. Para o professor Daniel Etcheverry, as pessoas que veem esses migrantes como uma ameaça estão se confrontando com seus próprios preconceitos. “Imigrantes caribenhos, andinos e africanos introduzem uma estética visual e dos costumes que confronta os valores de uma sociedade hegemônica que se pensa a partir de uma perspectiva branca e europeia, mesmo sendo multirracial. Isso gera todas as manifestações de xenofobia que têm circulado nas redes sociais e, pior ainda, o medo infundado que prevalece no encontro com essa alteridade”, constata Etcheverry. Mas a vinda de outros povos deveria ser vista pelos brasileiros como uma oportunidade de enriquecer a sociedade local, acredita o professor. “Não apenas em termos culturais e profissionais, mas em sua capacidade de nos mostrar aspectos de nossa

ERA DO GELO Embora isso pareça inacreditável, a humanidade moderna é fruto do resfriamento da superfície terrestre. Somos filhos e filhas da era do gelo, que extinguiu todas as demais espécies de hominídeos. Uma supererupção vulcânica há 75 mil anos reduziu a temperatura em mais de 5 graus por décadas. Foi então que o Homo Sapiens saiu da África em busca de comida e pastagem para o gado. Há 70 mil anos, ele se espalhou por todo o sudeste da Ásia e migrou para a Austrália (50 mil anos), Europa (40 mil) e Indonésia (30 mil). NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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CAPA

Fronteiras separam vidas

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mundo é dividido em fronteiras que cercam territórios. São as linhas imaginárias, ou não, traçadas geograficamente, que definem quem tem direito de ir e vir no mundo inteiro. No entanto, esses traços ocupam marcas muito mais profundas na história, seja de uma localidade ou de vidas. As fronteiras dentro do sistema capitalista globalizado são mais importantes do que as vidas que vêm e vão e, muito mais do que isso, estabelecem instâncias de poder. De acordo com o filósofo esloveno Slavoj Zizëk, as mercadorias e o dinheiro têm trânsito livre no mundo; o ser humano, não. Como não associar as fronteiras aos muros das casas? E muito mais do que isso: como não associar as fronteiras geográficas com aquelas que são traçadas no coração? As ideologias, as crenças religiosas, os preconceitos, a ignorância: tudo isso de alguma forma cria uma fronteira. O racismo, a

xenofobia, a intolerância religiosa são fronteiras em forma de muralhas que separam e aniquilam vidas. As fronteiras do mundo estão marcadas com a história de Aylan Kurdi, o menino de três anos, sírio, que foi encontrado morto à beira do mar quando ele e a família tentavam fazer a travessia de barco entre a Turquia e a Grécia. O sangue derramado por conta das fronteiras é de todas aquelas milhares de pessoas que passam meses à deriva no meio do oceano, aguardando compaixão de algum governo para atracar em porto seguro com suas famílias. Aylan Kurdi simboliza muitas vidas, muitas mortes e também muitas fronteiras. Ismaila Diallo não é um menino de três anos, mas um homem de 39, que está no Brasil há dois. Africano, da República do Guiné, migrou para o Brasil apenas com um amigo, deixando a família no país de origem. “O que me impulsionou a vir para cá

Divulgação Novolhar

por Lizandra Carpes

foi uma melhor condição de vida”, explica Ismaila. Os olhos e a pele negros, o sotaque francês, língua oficial de Guiné, a leveza nas palavras são algumas das características desse guineano que veio ao Brasil em busca de trabalho. “Trabalhava lá em Guiné como padeiro e no comércio”, conta.

HUMANIDADE MIGRATÓRIA BERÍNGIA - Todas as teorias sobre o cruzamento da humanidade para o continente americano passam pelo Estreito de Bering, mas não de barco. A era do gelo reduziu drasticamente o nível dos mares, essa passagem era seca e, provavelmente, habitada e cultivada no tempo da travessia. Entre 50 mil e 25 mil anos, a região era livre de gelo e dominada pela tundra, com pastagem e arbustos, permitindo a caça de bisões e mamutes. Tudo indica que o processo migratório seguiu os animais de caça através do Alasca, para chegar às regiões livres de gelo rumo ao sul do continente americano.

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BARREIRAS

ARAMES, MUROS E BUROCRACIA DIVIDEM A HUMANIDADE EM TERRITÓRIOS. FRONTEIRAS INVISÍVEIS ESTÃO NOS CORAÇÕES.

HOLOCENO - A partir daí se espalharam pelo continente, que se separou da Ásia e da Europa quando o Estreito de Bering foi inundado no final da Era do Gelo, dando origem às primeiras culturas genuinamente americanas. Os outrora exímios caçadores de mamutes tornaram-se os ancestrais das civilizações que, milhares de anos depois, os europeus chamariam de indígenas. Entre outros, foram capazes de criar civilizações tão impressionantes quanto a egípcia: as culturas maia, asteca e inca.

Ismaila nem saiu do aeroporto e embarcou para Dubai. Ele perdeu todo o dinheiro que investiu para vir ao Brasil e ainda gastou suas economias para retornar. Depois, com a ajuda de um irmão, ele conseguiu retornar ao Brasil, frisando que com a mesma

EUROPA - A vida do Homo Sapiens na Europa não era nada fácil. O norte era coberto por uma espessa camada de geleiras e neve, mas no sul uma rica civilização florescia com um clima estável. Com a chegada do Holoceno e a extinção dos grandes animais de caça, a humanidade deu início às primeiras agressões maciças à natureza através da agricultura e da pecuária. Os caçadores nômades fixavam-se e a humanidade chegava a cinco milhões.

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Pesquisa e texto: Clovis Lindner. Imagens da Internet

As dificuldades e desafios foram muitos. Ismaila não falava nenhuma palavra em português e o básico do inglês. Ao desembarcar pela primeira vez em São Paulo (SP), recebeu a informação de que teria que voltar. “A Polícia Federal não aceitou minha documentação e meu visto”, lembra.

documentação dessa vez ficou no país, sua entrada oficial no cruzar de fronteiras. De São Paulo (SP) foi para o Rio Grande do Sul (RS), fez sua carteira de trabalho, ficou empregado por um tempo. Enfrentou solidão e as diferenças de cultura e de religiosidade, muçulmana. Sofreu também com o racismo. “Prefiro não falar sobre racismo. Tem muito sim, mas fiz muitos amigos no Brasil, amigos quase parentes”, afirma. Ismaila migrou novamente, agora para Joinville (SC). No momento, conseguiu instalar-se: tem emprego e endereço fixo. Sonha em trazer a esposa para morar junto dele. “Ela está esperando por mim este tempo todo, e eu esperando por ela”, lamenta. Tentou por duas vezes, mas ainda não conseguiu autorização. Ele diz que vai ficar na cidade. Gosta do clima quente e do lugar em geral. O seu apelo é que, sabendo que o governo brasileiro abre as portas para as migrações, deve tam-

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Foto: Centro dos Direitos Humanos de Joinville (SC)

DIREITOS HUMANOS DO MIGRANTE – 1

ISMAILA DIALLO procurou orientação no Centro dos Direitos Humanos de Joinville e na Polícia Federal, mas ainda não conseguiu trazer sua esposa para o Brasil

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bém preparar seu povo para recebê-lo, principalmente no quesito idioma. “A maioria dos brasileiros só sabe falar português. Um país precisa ter uma segunda língua”, ressalta Ismaila. Os limites das fronteiras são para proteger o território, custe o que custar, mesmo que o custo sejam vidas, e os traços dessas linhas cruéis foram feitos pela humanidade. No entanto, a história pede uma nova construção, e se o migrante for recebido como ser humano e não como mero estrangeiro, quem sabe assim seja possível mudar o rumo de outras histórias. N LIZANDRA CARPES é jornalista e ativista dos Direitos Humanos em Joinville (SC)

A Rede de Casas do Migrante Scalabrini (da Igreja Católica) na Guatemala e no México elaborou uma relação de direitos humanos do migrante. Eles servem de orientação e inspiração para as comunidades cristãs no Brasil que decidem iniciar um trabalho humanitário com os migrantes em sua cidade. A seguir, transcrevemos alguns desses direitos. 1. Toda pessoa cristã tem o compromisso de proporcionar ajuda humanitária gratuita às pessoas migrantes, como nos pede o evangelho: “(...) era forasteiro, e me hospedaste” (Mateus 25.32). 2. Como migrante você é o “rosto visível de Cristo”, e por isso “onde se encontra o migrante que luta e sofre, ali está a igreja”. 3. O trato respeitoso e digno à mulher migrante será sempre nossa responsabilidade. 4. Todos os serviços que são prestados nas Casas do Migrante são totalmente gratuitos. 5. Ao chegar a uma cidade, dirija-se a uma igreja católica ou Casa do Migrante, e nesses lugares você será cuidado, poderá informar-se, alimentar-se e poderá tomar banho. 6. Se você é vítima de abusos, violações ou maus-tratos por parte de autoridades ou de outras pessoas, denuncie-o. 7. Nenhuma Casa do Migrante tem relação com coiotes ou traficantes. Ao chegar à cidade 1. Procure agrupar-se com outros companheiros de viagem, ao menos até as ruas/ avenidas principais da cidade; depois convém separar-se. 2. Não aceite ofertas de coiotes e aduladores nos trilhos do trem. Não aceite que o levem a algum lugar. É melhor você caminhar ou pegar carona num caminhão ou táxi. 3. Tome cuidado com os coiotes, enganadores e sequestradores que querem extorqui-lo, pedindo números de telefones de seus familiares. 4. Se sequestram você, memorize as ruas, as pessoas, o lugar onde você estava alojado e depois informe-o a algum Centro de Direitos Humanos.

HUMANIDADE MIGRATÓRIA SECAS, MONÇÕES E VULCÕES - As culturas sedentárias trouxeram os primeiros problemas ambientais. As extensas áreas de cultivo de arroz na China são consideradas as primeiras agressões maciças da humanidade ao meio ambiente. Os problemas que surgiram daí, aliados a períodos de seca, de enchentes, gelo e calor, levaram muitas culturas ao colapso, obrigando a novos processos migratórios. Algumas erupções de vulcões causaram grande impacto ambiental em diversas partes do mundo, provocando também migração e novas ocupações.

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PORTAS ABERTAS: O grande número de pessoas refugiadas desafia a sociedade alemã como um todo e afeta as Igrejas, o Estado e a economia

A compaixão tem limites?

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m 2015, o mundo celebrou os 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. Isso significa que os alemães vivem em paz e segurança há sete décadas. Durante esse tempo, parecia que todas as guerras e catástrofes aconteciam longe de nós. Mas, nos últimos meses, as crises deste mundo chegaram perto, porque muitas pessoas estão fugindo delas. O número de pessoas vindo para a Alemanha, fugindo de

IMPÉRIOS - Com o aumento da população e o surgimento do comércio, também aumentaram os conflitos. Guerras de conquista e expansão territorial causaram muita destruição em diversas culturas, esmagadas ou afetadas pelo ímpeto colonizador de pessoas como Gengis Khan e outros. As populações invadidas quase sempre eram obrigadas a fugir ou estabelecer-se em outras regiões. Dando origem à condição de refugiado de guerra.

guerra, violência e todo tipo de miséria, aumentou bastante, e agora essas pessoas estão em nosso dia a dia. Numa confraternização depois da celebração do Dia Mundial de Oração, por exemplo, uma mulher me contou que ela veio para a Alemanha caminhando quatro semanas com três crianças, sem lugar onde dormir. O esposo dela já fugira antes, depois de ter ficado gravemente ferido pelas torturas que sofrera. Na Alemanha, as vozes com posicionamentos xenofóbicos e islamofóbicos estão ficando cada vez mais

fortes. Aproveitando-se do medo das pessoas, um novo partido político da extrema direita nacionalista consegue o apoio de até 20% da população. A situação fica mais complicada ainda pelo fato de que a posição do governo da Alemanha é quase singular na Europa. A maioria dos países da União Europeia quer fechar suas fronteiras para refugiados ou já fecharam. A Alemanha está numa situação econômica muito boa, mas o maior problema é que a sociedade alemã está envelhecendo. Há mais pessoas idosas do que jovens com 15 anos,

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POGROM - A palavra vem do russo. Significa “destruir completamente”. Descreve os levantes populares contra os judeus na Europa, cujas propriedades eram saqueadas e seus ocupantes assassinados. Na Idade Média, a Europa estava convencida de que os judeus eram culpados das mortes pela peste negra. Entre 1096 e 1098, a população matou mais de 50 mil judeus, o que produziu milhões de refugiados ao longo de séculos. Muitos converteram-se ao cristianismo para salvar a vida. Grandes grupos deles vieram para a América recém-conquistada, fugindo da perseguição na Espanha e em Portugal. A própria igreja cristã participou dos Pogroms. Desde então, a perseguição aos judeus os espalhou pelo mundo. O ápice veio com o nazismo, durante o regime do III Reich na Alemanha, quando mais de seis milhões morreram nos campos de concentração nazistas. Israel como nação apenas ressurgiu em 1948, depois da guerra. Mas o ódio aos judeus continua latente em muitos lugares. NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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por Daniela Schmid

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ou seja, vai faltar muita mão de obra. Nessa situação, a vinda de pessoas de fora é mais uma solução do que um problema para a economia. No entanto, o desafio vai ser a integração e a formação dessas pessoas tanto como superar o medo e a xenofobia na sociedade alemã. A Igreja Evangélica na Alemanha (IEA) apoia oficialmente a posição da chanceler Angela Merkel, que não quer fechar as fronteiras nem fixar um número máximo de pessoas que a Alemanha vai receber. Em sua declaração mais recente, a Igreja Luterana na Baviera aponta que conceder asilo a pessoas que são ameaçadas em seu país não é um favor, mas um direito fixado na Constituição Alemã. Pedir asilo na Alemanha é um processo burocrático para controlar que o asilo seja concedido somente a pessoas que realmente são ameaçadas de alguma forma em seu país de origem. Cada pessoa que entregou o seu pedido de asilo recebe um lugar onde dormir e comida, mas não lhe é permitido trabalhar nem pode ir para outro lugar. Assim, as pessoas ficam em acampamentos muito apertados por vários meses, porque o procedimento é demorado. Muitas igrejas e ONGs criticam esse procedimento demorado, porque atrapalha a integração das pessoas. Elas que vieram para pedir asilo, muitas vazes são traumatizadas. Muito tempo sem perspectiva e nada para fazer pode causar depressão

Fonte: Igreja Evangélica na Alemanha

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NÚMEROS DA INDECISÃO: Enquete da Igreja Evangélica na Alemanha revela a divisão da população

ou agressão. As igrejas reclamam: para garantir a dignidade de cada pessoa, esse procedimento deveria ser bem mais rápido, sem deixar de olhar o caso e a situação de cada um individualmente. Em muitas comunidades formaram-se grupos de pessoas voluntárias para ajudar e apoiar. Os voluntários dão aulas de alemão, acompanham pessoas a consultas médicas, oferecem atividades para crianças ou simplesmente ouvem as histórias das pessoas refugiadas. Conversar com essas pessoas voluntárias dá uma impressão diferente do que ver somente as notícias na TV. Os voluntários, porém, que conhecem o nome e as histórias de pessoas refugiadas, também veem como enorme o de-

safio. Mas, sobretudo, veem as pessoas e afirmam: Não temos alternativas senão acolher essas pessoas. O que significa isso para o nosso país, para a nossa sociedade, para a nossa cultura cristã? Gostei muito do comentário de um jornalista na TV quando disse: “Não sei como a nossa sociedade vai mudar com a vinda de tantas pessoas com culturas e religiões diferentes da nossa. Somente sei se agora não atuássemos como cristãos, acolhendo pessoas que estão pedindo ajuda, já teríamos perdido N a nossa fé cristã”. DANIELA SCHMID é teóloga e pastora da Igreja Evangélica na Alemanha, tendo residido em Joinville (SC) por um ano e atuado na causa dos refugiados haitianos em Santa Catarina. Reside em Selb-Alemanha

HUMANIDADE MIGRATÓRIA CRUZADAS - Um dos capítulos mais terríveis da história do cristianismo foram as Cruzadas. Em nome de recuperar o acesso da cristandade à Terra Santa, exércitos mataram e perseguiram milhões de muçulmanos. No caminho para Jerusalém iam invadindo cidades e aldeias, saqueando palácios, comércios e lavouras, matando e destruindo em nome da fé. Tudo era válido por amor à causa, inclusive tortura, assassinato e estupro. O longo período de trevas produziu intensa migração de milhões de refugiados.

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CAÇA ÀS BRUXAS - Na mesma época e durante séculos a igreja e a sociedade condenaram milhares de mulheres à fogueira, acusadas de bruxaria e heresia. Uma onda de acusações e vinganças levou muitas mulheres inocentes à morte. As poucas que escaparam dos tribunais tornaram-se proscritas e refugiadas da intolerância.

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A mudança vem do povo por Graziela Tillman

patrimônio multicultural em grupos separados, mas não integrados. “Eu sentia isso em meus alunos do Ensino Médio. Eles sabiam identificar os grupos do Brasil, mas não sabiam problematizar”, diz Roberta Nabuco de Oliveira, professora e doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Aprende-se como é a vida do índio, os costumes

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EDUCAÇÃO: Um instrumento poderoso de transformação social que fortalece as lutas emancipatórias

CONQUISTA DA AMÉRICA - A execução do imperador inca Atahualpa simboliza a intolerância e a violência das conquistas inglesa, espanhola e portuguesa da América. A chegada dos europeus desmontou grandes impérios, ignorou a fé e a cultura de incontáveis povos e desencadeou uma onda migratória de proporções continentais nas três Américas. A violência contra os povos indígenas continua produzindo refugiados e perseguidos em todos os países do continente até os dias de hoje.

INQUISIÇÃO - Noite de terror ilimitado abateu-se sobre a Europa com a Inquisição. Tribunais da Igreja julgavam os “hereges” e usavam requintados métodos de tortura para extrair confissões absurdas. A sanha justicialista espalhou-se de tal forma pelo continente que a via de acesso às cidades era um festival de exibição de corpos executados. NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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censo de 2010 mostra que 35,4% dos brasileiros são migrantes. O que motiva essas pessoas a mudar de cidade é a busca por oportunidades de emprego e estudo. Mas, às vezes, a população da nova cidade não está preparada para lidar com o diferente. É responsabilidade do Estado e do município acolherem essas pessoas, e a recepção das mesmas pela sociedade se faz pela educação. Mas como a educação trata o assunto? “A educação torna-se um dos instrumentos importantes, mas não o único. Ela deve vir acompanhada de ações coletivizadas”, afirma Dauto Silveira, sociólogo e professor. Ele considera relevante o poder da educação nas escolas para um desenvolvimento crítico do pensamento. O tratamento do assunto da migração e da imigração pode ir além das histórias da escravidão antes de 1888 e mais do que a chegada de Pedro Álvares Cabral na colônia. Porém o que é ensinado só vai ao limite do que o sistema dominante quer. No currículo escolar, as disciplinas de Sociologia e História estudam o

vindos de grupos africanos e espalhados pelos escravos, a cultura alemã bastante presente no sul do Brasil, mas não como eles podem ser inseridos em uma realidade diferente de seus padrões. A xenofobia causada pela desinformação do que é a convivência com o outro está presente. “Eu só consigo perceber um pouco de problematiza-

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CIDADANIA: Quem está formando professores não está formando para os direitos humanos

ção no assunto da geografia humana”, relata a professora Roberta, que já deu aula nas redes públicas e particulares de ensino. Em casa, a criança ouve dos pais que quem vem de fora quer roubar o emprego dos nativos. E então chegam à escola e veem o migrante como uma “ameaça” e que ele não deveria estar ali. O tema é problematizado apenas nas cartilhas de programas contra bullying, em que a inclusão do indivíduo é integrada. Tanto a migração como a imigração são casos imprevistos. Atualmente, não temos uma migração em massa no Brasil, e é difícil prever quando vai acontecer uma. Por isso o instrumento que possibilita o estímulo de consciência para transformações

sociais, segundo o professor Dauto, é: “Tornar a educação um instrumento poderoso de transformação social (…) como forma de fortalecer as lutas emancipatórias”. A professora de Sociologia da Instituição Educacional Luterana (Bom Jesus/IELUSC), Valdete Daufemback, releva que esse desafio de educação transformadora de realidades fica por conta do educador. “Quem está formando professor não está formando professor para os direitos humanos”, reforça Valdete. Por isso o assunto em sala de aula é interpretado pela concepção política de quem ensina. A professora ainda cita que os cursos de Licenciatura são ultrapassados, o que também justifica a falta da “huma-

nização” dos assuntos. O profissional acaba aceitando o sistema ao qual já está acostumado, pois ele tem pouca autonomia dentro da instituição. “Os professores não são capazes de desafiar”, enfatiza Valdete, trazendo à tona a repressão que sofrem por tentar ir contra as concepções da escola. Tudo o que é novo na educação é um pedido vindo do povo. Mas para tal mudança é importante ressaltar atividades de movimentos sociais. “Nada no Brasil foi conquistado sem luta, sempre foi uma coisa muito complicada”, completa Daufemback. Greves de professores municipais, estaduais e federais são exemplos do motivo para poder enxergar que há necessidade de mudança. A ajuda dos migrantes nessa mudança de sistema fica nula, pois quem migra está em busca de algo melhor e encontra. Quem vem do campo e chega à cidade, vê escola perto de casa e uma oportunidade de emprego acomoda-se, pois de onde veio a situação era pior. A conquista do novo trabalho sustenta e distrai o que, na realidade, ainda é pouco. E é possível buscar muito mais. A mudança vem do povo, mas para isso se necessita de uma educação melhor, e para esse fim precisa-se N de povo unido e “educado”. GRAZIELA TILLMAN é estagiária de jornalismo do Centro dos Direitos Humanos Maria da Graça Bráz em Joinville (SC)

HUMANIDADE MIGRATÓRIA EMIGRAÇÃO - No século 19 a pobreza, a fome e a falta de terras levaram centenas de milhares de alemães a vender seus últimos pertences e comprar uma passagem de navio. O destino era a América, especialmente EUA e Brasil. O movimento migratório deu origem à colonização alemã, entre outros, no sul do Brasil e no Espírito Santo. A migração trouxe também italianos, ucranianos, russos, japoneses, poloneses e europeus de outras nacionalidades às Américas.

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Um desafio para as igrejas SE ALGUÉM DISSER: AMO A DEUS, E ODIAR A SEU IRMÃO, É MENTIROSO; POIS AQUELE QUE NÃO AMA A SEU IRMÃO, A QUEM VÊ, NÃO PODE AMAR A DEUS, A QUEM NÃO VÊ. ORA, TEMOS DA PARTE DELE ESTE MANDAMENTO: QUE AQUELE QUE AMA A DEUS AME TAMBÉM A SEU IRMÃO.

por Romi Márcia Bencke

A Divulgação Novolhar

(1 João 4.20-21)

s crises humanitárias impulsionam as atuais ondas migratórias. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, há, atualmente, 60 milhões de pessoas deslocadas por causa de conflitos, guerras e catástrofes ambientais. É importante prestar atenção aos debates que estão inseridos nesse tema: fechar ou não as fronteiras, restringir ou não o número de entrada de migrantes e refugiados nos diferentes países, refletir sobre programas de integração, xenofobia, intolerância religiosa, o papel das igrejas e demais organizações religiosas, diálogo inter-religioso e intercultural. Embora o continente europeu seja o mais atingido pelas novas ondas migratórias, o Brasil, entre os anos de

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POVOS INDÍGENAS - Os povos originários foram considerados, desde o início, o maior empecilho para a colonização do sul do país pelos imigrantes. Os Xokleng e os Guarani, que dominavam extensas áreas da serra ao litoral, foram sendo vítimas da colonização. Grupos de bugreiros foram organizados para caçar os indígenas em sua retirada. O final do processo de migração desses povos foi o confinamento em reservas. Hoje ainda lutam pelo direito à terra, com problemas de demarcação em todo o país.

Pesquisa e texto: Clovis Lindner. Imagens da Internet

BOLIVIANOS: Imigrantes encantam público em Corumbá com sua indumentária típica e sua festa tradicional. Os bolivianos somam-se aos muitos imigrantes que buscam nova possibilidade de vida no Brasil.

O RETIRANTE - O quadro de Cândido Portinari (1944), à direita, retrata bem a imagem das famílias brasileiras vítimas de catástrofes climáticas. As intermináveis secas no Nordeste brasileiro provocaram a migração da população atingida. Falta de água e o fim das lavouras e das pastagens provocaram fome e morte. As principais vítimas dessa tragédia migratória são as mulheres e as crianças. NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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ACEITAÇÃO: O mais urgente é a superação do racismo e da não aceitação de outras tradições religiosas

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2012 e 2015, também foi escolhido como destino de pessoas migrantes e refugiadas. Quem são essas pessoas que vêm ao Brasil? De que países vêm, quais as histórias de vida que carregam? Segundo dados do Ministério da Justiça, no ano de 2012 viviam no Brasil 1,5 milhão de migrantes legalizados. A maioria é de bolivianos e haitianos. Em relação aos refugiados

e refugiadas, os dados indicam que vivem no Brasil 8.400 pessoas refugiadas. Em setembro de 2015, existiam 12.668 solicitações de refúgio. No ano de 2010, foram 566 solicitações. Os principais países de origem das pessoas que solicitam refúgio são: Síria – 2.077 pessoas; Angola – 1.480 pessoas; Colômbia – 1.093 pessoas. O Relatório sobre Refúgio no Brasil revela que 51,13% das pessoas

que solicitaram refúgio saíram de seus países em função da violação de direitos humanos. Chama a atenção que 3,18% das pessoas deixaram o seu país por perseguição religiosa. Em dezembro de 2015, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs no Brasil e o Fórum Ecumênico ACT Brasil realizaram, em São Paulo, a oficina “Migrantes e refugiados: desafios para a Casa Comum”. Os objetivos eram: sensibilizar igrejas e organizações de diferentes tradições religiosas para a situação dos migrantes e refugiados; fortalecer a rede de acolhida, criando espaços de escuta e diálogo para migrantes e refugiados. A oficina mostrou que muito precisa ser feito na acolhida das pessoas migrantes e refugiadas. As ações podem ir das simples às mais complexas. Resgato primeiro a mais simples: aula de língua portuguesa. Muitas pessoas migrantes e refugiadas chegam ao nosso país sem falar o nosso idioma. Lamentavelmente, são poucas as ofertas de aulas de português para quem vem de fora. As organizações que trabalham com migração e refúgio procuram oferecer aulas gratuitas. No entanto, faltam voluntários e voluntárias, também faltam espaços para ofertar essas aulas. Outro desafio apontado pelas pessoas migrantes e refugiadas, presentes na oficina, é a dificuldade de encontrar locais para celebrar sua fé. Os

HUMANIDADE MIGRATÓRIA TRANSAMAZÔNICA - A abertura da BR-230, que corta a Amazônia, é um dos maiores símbolos da sanha migratória que moveu multidões no Brasil dos anos 1970. Cerca de 150 anos depois da colonização alemã, o cenário da falta de terras e da degredação repetiu-se no sul do Brasil e levou os descendentes dos imigrantes a migrar novamente. A IECLB, igreja que surgiu no rastro migratório europeu, passou a migrar para as Novas Áreas de Colonização, seguindo seus membros em busca de novas terras ao longo da rodovia aberta pelos militares no coração da floresta.

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e escuta para essas pessoas. Ouvir suas histórias para que consigam se fortalecer, reelaborar experiências dolorosas para recomeçar. Deus ama-nos incondicionalmente. Como resposta a esse amor, precisamos sentir-nos provocados e

provocadas a olhar para a realidade que nos circunda para atuar em favor do irmão e da irmã que são estranhos para nós. N ROMI MÁRCIA BENCKE é teóloga e secretária-geral do CONIC em Brasília (DF)

DIREITOS HUMANOS DO MIGRANTE – 2 Se o serviço de migração detém você: 1. Se o serviço de migração descobre você, fique calmo, não corra, não tenha nas mãos algo parecido com uma arma (pedra, navalhas, cacete...), não insulte o agente nem oponha resistência e diga sempre a verdade. 2. Pergunte onde você se encontra (nome da localidade). 3. Os agentes da migração não podem usar a força para detê-lo. 4. Você tem o direito de guardar silêncio; precisa somente dar seu verdadeiro nome. 5. Não podem obrigar você a assinar sua saída voluntária ou outros papéis. 6. Enquanto você permanece sob custódia, os agentes da migração não devem: * agredir ou insultar você * metê-lo em celas sujas ou com superlotação * algemá-lo * negar atendimento médico * privá-lo de água potável e alimentos além de seis horas * tirar o seu dinheiro, joias, medicamentos, entre outros pertences * separar as crianças dos pais Se prendem você * Você tem direito a um tradutor * Você tem direito a um advogado * Avise seu consulado para que preste ajuda * Você tem direito a comunicar-se com um familiar ou amigo * Você pode solicitar uma lista de advogados que se ocupem gratuitamente de seu caso * Se o prendem no seu trabalho, exija o pagamento do seu salário pelo tempo trabalhado ou comunique-se com o consulado para que o apoie * O lugar da detenção deve ter serviços de higiene * Não podem deixá-lo sem comida e sem água por mais de 6 horas * Você tem direito a levar seus pertences

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migrantes haitianos e haitianas, por exemplo, são em sua maioria pessoas cristãs. Nem sempre conseguem espaços para celebrar a fé em Jesus Cristo do seu jeito. O desafio que apresentam às igrejas é que abram as portas de seus templos e salões comunitários para que possam celebrar. Dos desafios pastorais, o mais urgente é a superação do racismo e da não aceitação de outras tradições religiosas. Nota-se que há graus diferentes de acolhida para migrantes e refugiados negros e migrantes e refugiados brancos. Como igrejas precisamos fortalecer as ações voltadas para a superação do racismo. Outro fator que deveria ser refletido nas comunidades cristãs é a abertura ao diálogo inter-religioso. As pessoas migrantes e refugiadas que vêm ao Brasil trazem junto sua cultura e experiências religiosas. Nem sempre a aceitação dessa diversidade cultural é tranquila. Os relatos de preconceito e discriminação são recorrentes. Abrir-se, a partir da fé em Jesus Cristo, para o diálogo com a pluralidade religiosa é um passo diaconal importante a ser dado. Por fim, outro desafio é a ação diaconal na perspectiva dos direitos humanos. Muitos refugiados carregam consigo o trauma de ter que deixar suas casas, seus familiares, seus projetos. Como recomeçar quando as feridas doem? Como igrejas, poderíamos oferecer espaços seguros de acolhida

TRAGÉDIA HUMANITÁRIA - As primeiras décadas do século 21 são marcadas por uma tragédia humanitária sem precedentes. Em diversos lugares do planeta repetem-se as imagens. Campos de refugiados, cercas e muros, milhões de seres humanos buscando um espaço para viver com dignidade. Fogem das guerras, da fome, da perseguição religiosa, política e racial. São vítimas da intolerância. Vêm de regiões em conflito, como a Síria ou o Leste Europeu; são vítimas de desastres naturais, como o terremoto de 2010 no Haiti ou a devastadora seca no Sudão; fogem do Estado Islâmico, como no Iraque; submetem-se a condições inacreditáveis de privação em campos de refugiados. Sua única chance: a nossa solidariedade. NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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Deus criou vidas e não raças por Ildo Bohn Gass

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situação das pessoas estrangeiras na Bíblia é complexa. Como é pouco o espaço que temos aqui para uma abordagem ampla, faremos um recorte. Limitar-nos-emos à posição oficial em relação à questão no pós-exílio, período do segundo templo, que vai desde 539 a.C. até a época de Jesus: Nenhum amonita ou moabita entrará na assembleia do Senhor; nem ainda a sua décima geração entrará na assembleia do Senhor, eternamente (Deuteronômio 23.3). O motivo alegado seria a falta de solidariedade deles para com os hebreus na caminhada do Êxodo. Esdras e Neemias, cuja missão se situa entre 450 e 400 a.C.,

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tomando conhecimento dessa Lei, imediatamente excluíram de Israel todo elemento estrangeiro (Neemias 13.3; cf. Esdras 9-10). Nesse período, portanto, judeus ortodoxos estimulavam a xenofobia. Além de amonitas e moabitas, desprezavam também edomitas, filisteus e samaritanos. No livro do Eclesiástico, que se encontra nas edições católicas, referem-se a eles assim: Há duas nações que minha alma detesta e uma terceira que nem sequer é nação: os habitantes da montanha de Seir (edomitas), os filisteus e o povo estúpido que habita em Siquém (samaritanos) (Eclesiástico 50.25). Consideravam os estrangeiros incircuncisos e idólatras, cachorros ou porcos. Até mesmo na boca de Jesus temos presente essa linguagem: Não deis aos cães o que é

santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas (Mateus 7.6). Falando com a mulher cananeia que lhe pedia que curasse a sua filha, Jesus lhe disse: Não é bom tomar o pão dos filhos e lançá-lo aos cachorrinhos (Mateus 15.26). Além disso, os romanos são chamados de porcos, uma vez que a narrativa apresenta Jesus como o novo Moisés, que vem libertar da opressão de César, o novo faraó (compare Êxodo 14.26-31 com Mateus 8.28-34). A doutrina do “povo eleito”, separado dos demais povos, como propriedade particular de Deus (Deuteronômio 7.6; 14.2), é pós-exílica e tem como principal objetivo justificar a plena pertença de judeus à comunidade em torno de Jerusalém e do templo, legitimando o suposto direito exclusivo à terra e a expulsão

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dos samaritanos que nela viviam. É, portanto, uma teologia de exclusão em nome de Deus. Se, num lado, temos essa doutrina xenófoba dos teólogos do templo, noutro temos a resistência do povo simples a essa teologia. Todo o livro de Jonas é crítico a essa postura excludente. Jonas encarna essa teologia que, embora reconheça que Deus é clemente e misericordioso, fecha-se à sua benignidade e ao perdão divino (Jonas 4.2). Como Jonas, também o livro de Rute pode ser datado em torno de 400 a.C. e reivindica igualmente a dignidade de todos os povos como filhos de Deus. Não é por acaso que essa narrativa escolhe, para Rute, a nacionalidade moabita. Ela é de Moabe. Lá ela casara com um dos filhos de Noemi, cuja família era de Belém, de Judá. Uma vez viúva, ela retorna com sua sogra para Belém, onde Deus visitara o seu povo, dando-lhe pão (Rute 1.6). Quando Noemi insiste para Rute ficar com sua gente em Moabe, ela responde: Não me instes para que te deixe e me obrigue a não seguir-te; porque aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é

o meu Deus (Rute 1.16). Definitivamente, Javé não pertence a nenhum povo em particular. E todas as etnias são povos eleitos e amados por Deus. A comunidade de Mateus incluiu quatro mulheres estrangeiras na genealogia de Jesus: Tamar, Raabe, Rute e Bate-Seba (cf. Mateus 1.3-6). De um lado, é uma crítica à teologia do “povo eleito” enquanto raça pura, afirmando, por exemplo, que nem Davi tem sangue puro, pois é bisneto de Rute, a moabita. Por outro lado, a comunidade de Mateus quer mostrar que a

missão de Jesus é para todos os povos, não se limitando ao povo judeu. Que a postura dos autores de Jonas e de Rute, de Jesus e de seus discípulos nos ajude ainda hoje a seguir na luta contra a xenofobia, uma vez que Deus criou vidas e não raças e não faz acepção de pessoas; pelo contrário, em qualquer nação, aquele que o teme e pratica a justiça lhe é aceitável (Atos N 10.34-35). ILDO BOHN GASS é secretário de formação do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) em São Leopoldo (RS)

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RESILIÊNCIA

Como vencer crises e provas? RESILIÊNCIA É A CAPACIDADE HUMANA DE LIDAR E RECUPERAR-SE DEPOIS DE UMA DOENÇA, DE UM TRAUMA OU DE UM ESTRESSE, DE CONDIÇÕES DE VIDA DIFÍCEIS OU OUTROS ACONTECIMENTOS DESESTABILIZADORES. por Susana M. Rocca

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ada vez mais ouvimos falar em resiliência. Trata-se de uma palavra emprestada da Física e aplicada à Psicologia, que nos ajuda a pensar como superar, mais e melhor, as situações críticas e até traumáticas que nos afetam ao longo da vida. Definimos a resiliência como uma capacidade humana universal de lidar, de recuperar-se e de continuar projetando-se no futuro depois de uma doença, de um trauma ou de um estresse, de condições de vida difíceis ou outros acontecimentos desestabilizadores. Trata-se de vencer as crises e provas, aprender com as experiências dolorosas, tentando transformar situa­ ções adversas em novas perspectivas. Sendo assim, como podemos desenvolver mais as nossas capacidades de resiliência? Como colaborar para que nossos familiares e amigos sejam mais resilientes? Descreveremos dois fatores de proteção externos que podem contribuir muito. Todas as pesquisas

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coincidem na constatação de que a presença de pelo menos uma pessoa que, na hora da adversidade, nos aceita incondicionalmente marca uma diferença. O olhar, a escuta e o carinho demonstrado a quem está sofrendo são importantes ajudas para desenvolver as capacidades de superação. Em segundo lugar, um fator de proteção são as redes de apoio social, tanto formais como informais: família, amigos, grupos e instituições (escola, hospital, igreja etc.). Existem também pilares de resiliência internos que podemos cultivar e fazer crescer. Um deles é a autoestima, entendida como a aceitação e o olhar positivo de si. Quando conseguimos ter uma boa estima por nós mesmos, mais fortalecidos estaremos e mais resiliência poderemos alcançar. A resiliência beneficia-se também por meio dos vínculos e da sociabilidade. Quanto mais solitários e isolados ficamos, menos possibilidades teremos de encontrar ajuda.

DESERTO DO ATACAMA: Impressionante vista do deserto mais seco d

O pensamento positivo e a visão otimista, realista e com esperança favorecem chamar a situação problemática por seu nome e a procurar, com iniciativa e criatividade, alguma possibilidade de seguir em frente. Para isso precisamos fomentar momentos de introspecção, reflexão e oração, pois esses nos ajudam na consciência de nós mesmos, de nossas capacidades

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de nossos sentimentos e preocupações e nos fortalecem. Ainda há um pilar de resiliência muito significativo que, com certeza, ocupa um lugar fundamental em nossa vida: a espiritualidade. Alguns autores preferem falar de sentido de vida. Como continuar vivendo, trabalhando e sorrindo no meio das dificuldades se não temos um por que e por quem viver? A fé religiosa é a nossa maior força de sustento na hora difícil. A Bíblia traz-nos belas histórias de resiliência, resgatando – dentre outros aspectos – o valor da memória. É muito bom crescer com as boas recordações, lembrar o que aprendemos com o sofrimento e nunca nos fechar em recordações negativas. Jesus deixou-nos uma chave da resiliência: o perdão a nós mesmos e às pessoas que nos fizeram sofrer. Finalmente, lembremos a importância da alegria cristã, pois, quando conseguimos ter senso de humor mesmo na adversidade, já demos um bom passo no caminho N da resiliência.

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SUSANA M. ROCCA é graduada em Psicologia, doutora em Teologia Prática e atua no Instituto Humanitas Unisinos (IHU) em São Leopoldo (RS)

mais seco do mundo: depois de uma chuva, um tapete de flores cobre a vastidão arenosa nos Andes

e limites e a descobrir possíveis saídas. A força de vontade e a determinação para ir atrás da saída em cada hora difícil é uma chave da resiliência. A autonomia, o controle de si, a atitude ativa, assumindo o protagonismo que permite cada situação, sem esperar passivamente que as dificuldades se resolvam, são aspectos que favorecem o aumento das capacidades de

resiliência. Tudo isso melhora ainda se temos um projeto de vida. O fato de ter metas claras, suficientemente elevadas e, por sua vez, alcançáveis, favorece para que, na hora da crise, não fiquemos à deriva. Será que a arte e as atividades lúdicas nos ajudam? Sim; a música, a dança, os esportes e exercer atividades artísticas contribuem na canalização NOVOLHAR.COM.BR –> Jan/Mar 2016

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COMUNIDADE

Uma paróquia de migrantes por Flávio Weiss

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m 1969, em busca de melhores condições para suas famílias, chegaram à Rondônia os primeiros migrantes luteranos oriundos do estado do Espírito Santo. Eles se estabeleceram às margens do rio Barão de Melgaço no vilarejo de Pimenta Bueno. Assim iniciava a migração do povo luterano para desbravar as novas áreas de colonização. Atraídos pela propaganda de terra boa e barata para todos, eles migraram rumo ao oeste. Em cima de um caminhão (pau de arara), com suas famílias e pouquíssimos bens, deslocaram-se rumo à região da Amazônia.

Quando em 1972 a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) enviou para a Rondônia o pastor Geraldo Schach, não havia nenhuma forma estrutural de paróquia e comunidade. Havia, sim, membros de nossa igreja, oriundos do Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ele estava disposto a enfrentar toda sorte de dificuldades para levar o evangelho a esse povo disperso na mata. Tudo estava por ser feito. Lentamente foram surgindo núcleos de membros e comunidades. Assim o trabalho missionário e pastoral do pastor Geraldo foi se ampliando. Na

Fotos: Edson S. Arevalo e Cilene D. Müller da Silva

COMEMORAÇÃO: A comunidade reunida para celebrar os 40 anos de IECLB em Cacoal (RO)

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ocasião, a IECLB achou por bem situar a sede do trabalho e a residência pastoral em Pimenta Bueno. Nesse mesmo ano, conforme depoimentos de membros e do próprio Geraldo, o local onde hoje se ergue Cacoal era puro mato e havia apenas alguns barracos. Assim, à medida que os pomeranos do Espírito Santo ficavam sabendo que em Rondônia existiam terras que poderiam ser compradas a preço mais acessível, que já moravam outros pomeranos ali e que também a igreja já estava atendendo aquela região, embarcaram rumo ao “novo território”. Diz uma testemunha ocular: “É realmente inimaginável o número de ‘paus de arara’ que chegam à Rondônia. São todos os dias de cinco a oito, isto é, aproximadamente 30 famílias por dia. É gente que vem de todas as partes do Brasil”. Questões como a falta de justiça, conflitos de terras, assassinatos, trabalho escravo, doenças e conflitos com indígenas eram rotina para as famílias recém-chegadas em Rondônia. A falta de justiça era o principal problema, prevalecendo a lei do mais forte. Conflitos sobre a posse das terras levaram muitas pessoas à morte. Assassinatos faziam parte da rotina, havia pistoleiros por todos os lados e os conflitos de terra eram resolvidos pelo uso das armas. As doenças, como malária, hepatite, desidratação e verminose, também causaram muitas mortes. O atendimento de saúde era precário ou quase nenhum, e ainda havia as distâncias a serem percorridas para encontrar algum remédio. Também houve conflitos com os povos indígenas, levando à morte colonos e índios. Apesar de todas as dificuldades, as famílias iam chegando, e assim surgiram vilas e cidades. Em 1972, do dia para a noite surgiam barracas às margens da BR-364, e ali surgiu a vila

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de Cacoal. Assim, em pouco tempo, o povo já pedia a presença do pastor para estabelecer uma nova comunidade. E assim, em 1972, foi celebrado o primeiro culto em Cacoal às margens da BR-364. Em 1975, o número de famílias luteranas em Rondônia era grande, e todas queriam a presença do pastor. Então a possibilidade de formação de uma nova paróquia na vila de Cacoal. Isso animou as lideranças das comunidades de Cacoal, e em 9 de novembro de 1975, em reunião em Pimenta Bueno, sede da então única paróquia, foi fundada a nova paróquia com sede em Cacoal. Em novembro de 2015, a Paróquia Evangélica Luterana dos Migrantes de Cacoal comemorou 40 anos de atuação com um culto festivo e um almoço comunitário. O Termo de Abertura do Livro de Registros da paróquia registra: Aos vinte e três dias do mês de janeiro de 1976, chegou a Cacoal a equipe de trabalho da Paróquia Evangélica de Cacoal. São eles: João Artur Müller da Silva – pastor; Lenir Torchelsen Büttow – atendente de enfermagem e

PIONEIROS: As famílias pioneiras da Paróquia dos Migrantes foram homenageadas

TEMPLOS: Alguns dos templos na paróquia. Ao lado, a comunidade festiva reunida pelos 40 anos de existência

CONVIDADO ESPECIAL: O pastor João Artur Müller da Silva (esq.) foi o primeiro pastor em Cacoal

Adolfo Büttow – técnico agrícola. Sendo assim, a partir dessa iniciaram-se oficialmente os trabalhos pastorais, de assistência e orientação higiênica, sanitária, alimentar e a respeito de criações. Deus esteja presente no trabalho. Em assembleia geral no dia 17/12/1977, a paróquia recebeu o nome de Paróquia Evangélica Luterana dos Migrantes de Cacoal. As famílias estavam sendo assistidas em suas necessidades: saúde, trabalho e ouvindo a pregação do evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. N FLÁVIO WEISS é teólogo e ministro coordenador da IECLB na Paróquia dos Migrantes em Cacoal (RO) NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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ECUMENISMO

Ulf Ekman torna-se católico

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pastor Ulf Ekman, fundador da igreja pentecostal mais influente da Suécia moderna e de toda a Escandinávia, anunciou ante o assombro de três mil seguidores em pleno culto dominical que ele e sua esposa Birgitta iriam converter-se ao catolicismo porque “nos demos conta de que nossos pré-julgamentos protestantes em muitos casos não têm nenhuma base”. Ekman dedicou quase trinta anos a serviço da congregação “Palavra de Vida”, que ele mesmo fundou junto a uma escola bíblica que tem mil alunos, além de missionários na Rússia, Cazaquistão e outros países do leste europeu, uma ONG de ajuda a crianças na Índia, autor de livros traduzidos para 60 idiomas e apresentador de um programa televisivo internacional. O ex-pastor disse que, após dez anos dedicados a conhecer mais de perto a Igreja Católica, se viu atraído pelo catecismo, pela doutrina social e exemplo de vida dos católicos carismáticos, com os quais conviveu em muitas oportunidades em diferentes partes do mundo. Na Suécia, apenas 1,5% da população é católica, imigrantes na maioria. Ekman assinalou que a confirmação de sua decisão aconteceu ao conhecer o insólito vídeo que o papa Francisco gravou para o congresso de pastores pentecostais nos Estados Unidos. Ele, que sempre tem sido a figura de referência da congregação apesar de ter deixado de ser o pastor

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principal em março de 2013, destacou que crer na unidade dos cristãos “tem consequências práticas”. O agora ex-pastor ingressou na Igreja Católica na Páscoa deste ano e confirmou que ambos “temos visto um grande amor por Jesus e uma sã teologia, fundada na Bíblia e no dogma clássico. Temos experimentado a riqueza da vida sacramental. Temos visto a lógica em ter uma estrutura sólida no sacerdócio, que mantém a fé da igreja e que a transmite à próxima geração”. Ekman também expressou que na fé católica encontraram “uma força ética e moral e uma coerência que pode enfrentar a opinião geral e uma tendência bondosa em relação aos pobres e aos mais fracos, e por último, mas não menos importante, temos estado em contato com os representantes de milhões de católicos carismáticos e temos visto sua fé viva”. “A igreja é o corpo de Cristo, uma entidade estruturada. É concreta, não é uma nuvem de gás. O corpo é visível. O modelo é Jesus, que tinha um corpo visível durante 30 anos. Além disso, como era no início? A nós carismáticos encanta dizer que voltemos ao cristianismo de Atos dos Apóstolos... e naquele tempo só havia uma igreja!”, enfatizou. Em seu contato com os católicos Ekman diz ter descoberto “quão viva é sua crença, os dons que têm, o bem-informados que estão, a força de sua fé. Os cristãos ‘de avivamento’ creem que têm o monopólio desse ardor, de

CASAL EKMAN frequenta a paróquia católica de Sankt Lars, em Up

modo que para mim foi uma experiência decepcionante dar-me conta de que não tínhamos esse monopólio”. De sua parte, Birgitta recordou que “quando descobri todos esses aspectos positivos (da fé católica), pensei: Por que ninguém me disse isso? Pensei: ‘Alguém escondeu isso de mim e de todos os demais não conformistas (referindo-se aos protestantes fora da igreja luterana estatal). Foi uma experiência repentina depois de muita leitura. Expiação, cura, a crença em milagres... tudo isso está forte e bem articulado e muitas pessoas não sabem. E isso me dá vergonha por descobrir nossa ignorância”. Agora o casal Ekman irá continuar com o trabalho solidário com crianças da Índia e serão membros da Paróquia Católica de Sankt Lars em Uppsala. “Nos sentimos um pouco como Abraão e Sara: dois

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OLHAR COM POESIA

A escuta por Lothar Carlos Hoch

Escuta o canto dos pássaros no alvorecer Entrega-te à magia do sol poente ao anoitecer Ouça a dor daquele que padece Assim teu coração se enternece Observa o andar trôpego do idoso Ele merece este gesto respeitoso

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Viva o momento presente Mas lembre dos anos que estão pela frente

t Lars, em Uppsala, desde o domingo de Páscoa

anciãos entrando em um país desconhecido”, acrescenta. “Mas guiados por Deus (…). Porém, isto sim, com vontade de fazer coisas pela evangelização, pela unidade dos cristãos e seu melhor entendimenN to”, disseram.

Escuta a voz da tua consciência Assim inibes os arroubos de onipotência Atente para o sorriso duma criança Ele dá asas à esperança Ouve os ensinamentos divinos Ciente de que somos apenas peregrinos LOTHAR CARLOS HOCH é teólogo e professor aposentado da Faculdades EST em São Leopoldo (RS)

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CONGRESSO JOVEM

Timbó pronta para a juventude MÉDIO VALE RECEBERÁ 1.500 JOVENS DE TODA A IECLB EM JULHO PARA A VIGÉSIMA TERCEIRA EDIÇÃO DO CONGRESSO NACIONAL DA JUVENTUDE EVANGÉLICA-CONGRENAJE. por Rodolfo Fuchs dos Santos

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m 2016, chegamos ao 23º Congresso Nacional da Juventude da IECLB, o CONGRENAJE. O congresso acontece desde 1970. Em 2014, os jovens luteranos foram a Espigão do Oeste, Rondônia, para conhecer uma realidade extremamente distante para a maior parte das pessoas que inte-

gram a nossa igreja, massificada no sul do país e no Espírito Santo. Neste ano, quem receberá as mais de 1.500 pessoas será Timbó (SC), no Sínodo Vale do Itajaí. O evento será tempo de informação e formação. As pessoas jovens oriundas de todos os cantos do país e algumas dezenas do exterior terão a oportunidade de partilhar, compartilhar e mesmo transformar sonhos, anseios, desejos e projetos de vida.

Tudo isso se dará em um espaço de vivência espiritual, fundamentalmente comunitária, marca da IECLB. Nossa fé é comunitária, e nosso testemunho para a comunidade, que não é apenas a que comunga da mesma fé, mas a sociedade como um todo. O tema e o lema do congresso de Timbó deixam questionamentos na cabeça de cada uma e cada um que o vê em um primeiro momento. “Será que eu não tenho valor algum?”; “Será que eu tenho valor?”; “Deus aceita todas as pessoas?”; “Faço boas obras e que não faz é tão salva quanto eu?”; “Deus não exige nada em troca?”. O Conselho Nacional da Juventude Evangélica-CONAJE, que conta com pessoas jovens representantes de todos os sínodos da igreja, além de uma equipe de orientação teológica e uma pessoa representante da Secretaria-Geral da Igreja, entendeu como fundamental – nesse momento em que tudo é mercantilizado no mundo, a natureza, a salvação e até mesmo as pessoas – retomar e pensar o que nossa teologia e nossa fé evangélico-luterana creem sobre tudo

Foto do Facebook

CONAJE: Integrado por representantes jovens, ministros e ministras dos sínodos e da Secretaria-Geral da IECLB, o grupo coordena os trabalhos nacionais

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RODOLFO FUCHS DOS SANTOS é coordenador do CONAJE e representa o Sínodo Rio dos Sinos no Conselho

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isso. Temos um valor inestimável, que nos foi dado por Deus com a morte de seu filho na cruz por todas e todos nós. Dessa forma, de maneira alguma as pessoas podem ser mercantilizadas. Esse valor todo que nos foi dado chama a fazer o bem, a servir, cuidar da criação e transformar realidades. A origem da confessionalidade luterana tem muito a ver com a comercialização da salvação. Cinco séculos depois, com a ascenção constante do capitalismo, vemos cada vez mais a “religião do mercado” instaurada, temos que possuir bens para ser alguma coisa. Alguns movimentos que se dizem religiosos se apropriaram desse movimento da sociedade, e novamente as pessoas têm que possuir bens, além de financiar esses empreendimentos “religiosos” para que possam ser salvas. É uma fé individualista e opressora que é anunciada. Enquanto isso, cremos e anunciaremos mais uma vez no CONGRENAJE, enquanto luteranas e luteranos, que Deus aceita e salva todas as pes­ soas por meio de Jesus Cristo sem exigir nada. A Juventude Evangélica tem um compromisso claro com o evangelho de Jesus Cristo. O CONGRENAJE é o grande espaço para pensar, aprender e buscar formas de dar testemunho público desse compromisso. Temos a responsabilidade, dia após dia, de construir um mundo mais justo, mundo de libertação e não de opressão. Pela graça de Deus somos chamadas e chamados a ser profetisas e profetas, denunciando e agindo contra todas as atitudes, ideologias, leis, estruturas e etc. que tentem diminuir a dignidade e o valor N de toda e qualquer pessoa.

TIMBÓ: Jovens de toda a IECLB serão abrigados neste amplo espaço durante o CONGRENAJE

por Marina Hofstätter Eidelwein

por Andréia Aline Weber

Ser jovem pode parecer encantador: sonhos, esperanças e, como dizem, “ter tudo ao alcance. Estar entre a herança do passado e a promessa de um futuro melhor, no entanto, não é nada simples. Muitos são os desafios impostos às pessoas jovens; desafios esses que vão desde o primeiro emprego até a responsabilidade de construir o tão sonhado mundo perfeito: sem violência, discriminação, corrupção ou danos ambientais. Ao lembrarmos, entretanto, que Deus nos fez seus filhos e filhas e nos presenteou com um mundo maravilhoso, conscientizamo-nos sobre uma importante tarefa: cuidar da Sua Criação. Não por esperar algo em troca, mas em agradecimento a tudo que Ele nos proporciona; em resposta a seu grande amor. Enquanto jovens luteranos e luteranas, acreditamos que é somente através do reconhecimento da graça de Deus e da fé em Jesus Cristo que podemos ser a diferença N que queremos ver no mundo.

S er jovem é viver a vida, com consciência ou não, mas sempre com muita energia e criatividade, nos movendo com a vontade de mudar o que não está agradável, o que nos inquieta e é injusto, comprometid@s com a missão de Cristo. Numa fase de tantas pressões e conflitos, também é possível se importar com a sociedade, embora nem tod@s @s jovens percebam o potencial que têm em suas mãos. Justamente por consumirmos ideias simplesmente impostas e não ideais que brotam do nosso íntimo. Como jovens, as mudanças podem e devem começar por nós. Talvez nos perguntamos o que podemos fazer? Praticar o bem? O que recebemos em troca? Recebemos diariamente um presente maravilhoso: a graça que vem de Deus. Ela nos impulsiona a agir em prol d@ próxim@, manifestando-se através do amor que brota de uma ação e atua como uma grande rede, regida por sentimentos bons. Somos jovens e N buscamos o bem e não o mal!

MARINA HOFSTÄTTER EIDELWEIN integra o CONAJE como representante do Sínodo Vale do Taquari

ANDRÉIA ALINE WEBER é secretária do CONAJE e representa o Sínodo Planalto Rio-Grandense no Conselho NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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LUTERANISMO

CIL: meio século de parceria interluterana A CIL é composta por três representantes de cada igreja e mais dois suplentes, com nomes homologados pelas respectivas igrejas, para um período de quatro anos. Os membros da CIL não recebem remuneração por sua atuação. Para cumprir sua tarefa, a CIL conta com um editor de tempo integral.

UMA COMISSÃO SURGIDA EM 1966 PARA PUBLICAR UM DEVOCIONÁRIO COMUM ENTRE AS DUAS MAIORES IGREJAS LUTERANAS DO BRASIL DEU ORIGEM A UMA CAMINHADA ECUMÊNICA. por Yedo Brandenburg

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Luterana do Brasil (IELB) e da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) criaram, em 1966, a “Comissão de Literatura Castelo Forte”, que, a partir de junho de 1974, passou a chamar-se “Comissão Interluterana de Literatura” (CIL). Seu objetivo: publicar, em conjunto, obras de interesse comum às duas igrejas.

Arquivo CIL

o Congresso Luterano Latino-Americano realizado em Lima, Peru, em julho de 1965, patrocinado pela Federação Luterana Mundial, enfatizou-se a importância de publicações entre os luteranos de fala espanhola e portuguesa. A semente lançada em Lima germinou no Brasil. Representantes da Igreja Evangélica

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CASTELO FORTE: Originalmente, cada igreja mantinha seus próprios devocionários. O modelo dos devo­cio­ nários era igual: “folhinhas” de parede para destacar diariamente. Considerando a baixa tiragem, decidiu-se, em 1966, publicar um devocionário comum em português. Chegou-se assim ao Castelo Forte – Devoções Diárias e, a partir de 1996, ao Castelo Forte – Meditações Diárias. A caminhada do devocionário nem sempre é fácil. As diferenças entre as duas igrejas afloram nas meditações, suscitando reações entre o público leitor. Com a graça de Deus, no entanto, o Castelo Forte consolida-se devido à perseverança dos integrantes da CIL no objetivo de: cooperar no essencial da mensagem bíblica, caminhar juntos no discipulado de Cristo e renunciar a particularidades para levar o evangelho adiante. Embora tenha uma linha Integrantes da CEOL editorial claraDa esquerda para mente luteradireita: Paulo Buss, Claus Schwambach, na, o Castelo Ricardo W. Rieth, Forte excede as Wilhelm Wachholz, fronteiras estaMário Tessmann e Clóvis Prunzel belecidas há 50 anos. Pessoas de

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OBRAS SELECIONADAS: Para publicar em português textos selecionados das obras de Lutero, a CIL assessora-se de doutores em Teologia, versados em Lutero, que formam a “Comissão Editorial Obras de Lutero” (CEOL). Além de selecionar os textos, os membros da CEOL escrevem as respectivas introduções. O trabalho da CEOL é voluntário. Até o momento foram publicados 12 volumes de Martinho Lutero – Obras Selecionadas, que estão sendo gradativamente disponibilizados também em formato e-book. OUTRAS OBRAS: Livro de Concórdia, em 1980 e reeditado em 2006 e

Arquivo CIL

outras denomiIntegrantes da CIL nações confesDa esquerda para sionais, tanto no direita: Carmen M. Brasil como no Siegle, Dietmar Teske, Eric Nelson, Fernando exterior, fazem Garske, João Artur do Castelo Forte M. da Silva, Arnildo seu livro de meFigur, Gerhard Grasel, Rony Marquardt, Nilo ditação diária. Wachholz e Sonja Em 2016, o Hendrich-Jauregui Castelo Forte está em sua 48ª edição com uma tiragem de 81.000 exemplares. A comercialização é realizada pela Editora Concórdia (IELB) e pela Editora Sinodal (IECLB), parceiras na CIL.

2016; Pelo Evangelho de Cristo, em 1984; O Abraço de Deus – Meditações, em 2001; A Confissão de Augsburgo, em 2005; Consolo e Confiança – Para você que está enfermo, em 2006. A CIL tem seu site na internet – www.lutero.com.br – e edita, em formato digital, o seu Informativo, disponível no site. 50 ANOS: Diz o Pastor Presidente da IELB, Egon Kopereck: “Que bênção foi e é o trabalho da CIL, que oferece, através da literatura, tanto pelo devocionário Castelo Forte como pelas

Obras Selecionadas de Lutero, a boa-nova da salvação a todos”. O Pastor Presidente da IECLB, Nestor Paulo Friedrich, salienta: “A atuação e a história da CIL são um belo e bendito exemplo de que é possível caminhar em parceria e viabilizar projetos relevantes, mesmo havendo opiniões divergentes entre quem se dispõe a caminhar. Parabéns e obrigado a quem até aqui ajudou a escrever a história da CIL”. N YEDO BRANDENBURG é teólogo, ministro da IECLB e editor da CIL em São Leopoldo (RS)

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COMPORTAMENTO

A mentira nossa de cada dia DEUS SABE QUE OS CAMINHOS DE NOSSA EXISTÊNCIA SÃO TORTUOSOS. ELE NÃO CESSA DE NOS CHAMAR PARA UMA VIDA TOTALMENTE CONTEMPLADA PELA LUZ DA VERDADE. por Valério G. Schaper

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se, ao invés de um dia da mentira, tivéssemos um dia da verdade? Eu acrescentaria: um dia em que, por algum tipo de mágica, não conseguíssemos dizer uma mentira sequer. Dá para imaginar algo assim? Tentemos visualizar. A filha menor mostraria um daqueles desenhos típicos da infância: “Pai, olha só meu desenho. Ficou bonito?”. Você sairia para a rua e seria parada para responder a uma pesquisa: “Você já furou fila?”. Adiante outra: “Você já cruzou um sinal vermelho?”. Mais uma: “Você já pagou propina (caixinha)?”. Como você se sairia ao responder essas perguntas? Uma pesquisa feita pela DataFolha em 2009 indicou que, ao responderem questões como as últimas, em média 90% das pessoas concordaram que não observá-las representa grave atentado à ética. Quando perguntados, como acima, se já haviam cometido alguns daqueles atos, entre 70% e 90% das pessoas negaram. Que contradição com a realidade de nosso país! Esse experimento mental já possibilita algumas conclusões. Primeiro, mentimos na vida privada (família,

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amizades) e mentimos na vida pública (relações comerciais, profissionais e públicas). Na vida privada, tendemos a mentir para não magoar pessoas com quem temos fortes vínculos afetivos. Na vida pública, mentimos para preservar nossa imagem pessoal. No Evangelho de João, capítulo 8, versículos 39 a 59, há um longo diálogo e debate entre Jesus e seus ouvintes. Os ouvintes argumentavam que eles e elas eram filhas e filhos de Deus. Como resposta, Jesus afirma que, se fosse de fato assim, eles o amariam, pois ele veio do Pai. Entretanto, acrescenta, eles são incapazes de ouvi-lo e querem matá-lo. Jesus, então, conclui que eles são filhos do diabo, já que o diabo é pai da mentira (João 8. 44). Curiosamente, não há um mandamento dedicado exclusivamente à mentira. Porém o tema da mentira está implícito em vários deles. Para as pessoas do Antigo Testamento, “não mentir” equivaleria de forma ampla a “não pecar”. Se analisarmos os dois primeiros mandamentos, veremos que tudo gira em torno da fé unicamente em Deus. A história concreta de sua

caminhada com o povo e seu cuidado constante era a própria verdade. A força da palavra criadora é também a mesma que confessa a fé no Deus da verdade. Cada vez que essa palavra se afasta dessa confissão, afasta-se da verdade, caminha para a mentira, para a idolatria. Por isso Jesus afirma que seus interlocutores são filhos do diabo. Haviam se transformado numa geração de hipócritas, isto é, tomavam por verdade o que não era. Este é o fim de toda a idolatria: a hipocrisia que faz com que se chame de deus o que não é Deus, de verdade o que é mentira. Isso os tornava incapazes de reconhecer em Cristo a verdade do Pai. Essa é a artimanha do diabo. Ele nos leva a tomar o aparente pelo real. Não mais conseguimos ver o Deus verdadeiro, ainda que o próprio Cristo bata à nossa porta. Essa é a raiz de todas as mentiras. Daí brota todo o resto. A fidelidade exclusiva a Deus ajuda a lidar com a complexidade de nossa vida. Assim, em Êxodo 1.15-22,

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CONSULTÓRIO DA FÉ

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É IMPORTANTE QUE SEJAMOS LEMBRADOS DA MENTIRA E DE SEU PODER CORROSIVO SOBRE NOSSAS VIDAS. HAVERÁ TAMBÉM UM DIA DA VERDADE, EM QUE TUDO SERÁ REVELADO.

a mentira das parteiras possibilitou que o povo escravizado não fosse dizimado. A mentira de Raabe (Josué 2.1-23, 6.22-27) permitiu que o povo avançasse na conquista da terra prometida. A mentira de Pedro (Lucas 22.54-62) não encerrou sua trajetória como apóstolo. Deus sabe que os caminhos de nossa existência são tortuosos. Ele não cessa de nos chamar para uma vida totalmente contemplada pela luz da verdade. Sim, temos um dia consagrado à mentira na cultura popular mundial. É importante que sejamos lembradas e lembrados da mentira e de seu monstruoso poder corrosivo sobre nossas vidas. Haverá também um dia da verdade, e então tudo o que agora nos parece ofuscado pela sombra da mentira, da trapaça, do embuste, do engano, da ilusão será, enfim, N revelado.

VALÉRIO G. SCHAPER é teólogo e professor de Teologia na Faculdades EST em São Leopoldo (RS)

Por que festejar São João? por Leonídio Gaede João. Que figura! Social ou alto esporte? Não, bermuda de camelo. Churrasco, caviar, veganismo? Não, gafanhoto com mel (Mateus 3.4). Estádio, arena, holofote? Não, deserto (João 1.23b). Sucesso, avante, pra frente é que se anda? Não – “Meia-volta volver!” Metanoia! – diriam os gregos (Marcos 1.4). Vai que é tua! A bola está picando! Não, “não mereço desatar as sandálias daquele que vem aí” (Mateus 3.11). – Mestre, tem concorrência do outro lado do rio! Não importa: “Ele tem que ficar cada vez mais importante, e eu, menos importante” (João 3.30). E na cadeia? Aí sim o bicho pega: “O tal Jesus é aquele que ia chegar ou devemos esperar outro?” (João 7.20). Resposta: Anda quem não caminha; vê quem não enxerga; escuta quem não ouve; tem saúde o incurável; vive o morto e o pobre é rico (João 7.22). Tem razão o velho pai, Zacarias. Esse menino João era mesmo um menino forte de espírito, que foi viver no deserto (Lucas 1.80). Só pode! Sábio pai. No evangelho, João traz a boa notícia dos opostos: luz e trevas, verbo e carne. A palavra que existia desde o início virou gente e armou barraca. Capaz! Desde quando a palavra acampa? João anuncia que chegou o fim da era do bode expiatório: Agora o cordeiro é Jesus. Ele é de Deus e tira o pecado do mundo. Olha, existem muitas razões para pular fogueira. Deve ser por essas e outras que hoje, dois milênios depois, damos uma de João-sem-braço ou somos Joãozinho, moleque travesso, aluno com respostas desconcertantes, sem papas na língua. Deve ser por isso que no mês de junho mergulhamos nas festas juninas, vestindo, comendo e representando o incomum ou o que já era: bigode de carvão, calça remendada e chapéu de palha, pipoca e quentão. E a grife, onde fica? Viva o jeito diferente! A Mariazinha vai com todos só se estiver sem o Joãozinho. E se for presa, o João paga o resgate, pois o dinheiro vai mesmo para o caixa da excursão de fim de ano. O João é avesso às convenções. Não vai com qualquer um. Tem luz própria. Ops! Desculpem, N não tem luz. A luz é de Cristo. LEONÍDIO GAEDE é teólogo, mestre em Teologia e ministro da IECLB em Itati (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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REFORMA 500 ANOS

Katharina Schütz Zell: pregadora e reformadora por Claudete Beise Ulrich

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Reprodução Novolhar

K

atharina nasceu, provavelmente, entre 1497 e 1498 em Estrasburgo (França), como filha de Elisabeth Gerster e Jakob Schütz, mestre carpinteiro que fazia parte do conselho da cidade. Katharina aprendeu a ler e a escrever quando ainda não havia escolas públicas organizadas, mas em casas-escola, onde professores ministravam aulas para meninas e meninos. Começou muito jovem a ler a Bíblia e tinha muitas perguntas que envolviam a vida religiosa, embora a prática da leitura da Bíblia não fosse apoiada pela hierarquia eclesiástica da época. Ela não viveu no convento, algo que era comum na vida de muitas mulheres. O primeiro grande ato de rebelião contra a sociedade de seu tempo foi casar-se com um homem do clero, o sacerdote Matthäus Zell, no dia 3 ou 4 de dezembro de 1523. O casamento de clérigos era algo central no movimento da Reforma Protestante, pois questionava a separação do sagrado e do profano e a estrutura hierárquica e clerical da igreja. Com o casamento, Matthäus Zell foi excomungado da Igreja Católica, assim como os outros clérigos que haviam se casado. Katharina tomou a iniciativa e corajosamente escreveu uma carta ao bispo defendendo seu esposo e o casamento dos clérigos. Ela intitulou a sua carta: “Desculpas de Katharina Schütz, para Matthäus

TROCA DE IDEIAS: Casada com um pastor, Katharina mantinha correspondência com os reformadores

Zell, seu marido, pastor e servidor da Palavra de Deus em Estrasburgo, devido às grandes mentiras que recaem sobre ele”. A carta demonstra o grande conhecimento bíblico de sua autora. Katharina foi mãe de duas crianças, que morreram pequenas, causando muita dor ao casal. Katharina engajou-se socialmente e escreveu muitos textos. A dor da morte de seus filhos influenciou os seus escritos. Havia também nesse período histórico muita perseguição aos adeptos

da Reforma. O casal deu refúgio a muitos deles. A casa do casal tornou-se uma casa-abrigo e de diálogo ecumênico em relação ao movimento da Reforma. Pode-se dizer que dessa forma surgiu a casa pastoral, uma casa de acolhida para os fugitivos devido à perseguição da Igreja de Roma. Além da diaconia solidária exercida pelo casal, Katharina também agiu como conselheira, fortalecendo as mulheres que, devido às perseguições aos maridos, necessitavam ficar sozinhas e com a responsabilidade do cuidado

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DE OLHO NA CIDADANIA das crianças. Ela recebeu em sua casa os reformadores Ulrico Zwinglio, de Zurique, e João Oekolampad, de Basileia, e também trocou correspondência com vários deles, inclusive com Lutero, e até visitou-o com o seu esposo em Wittenberg. O seu marido a tratava como “pastora assistente”, o que era muito avançado para a época. Ele nunca a barrou em seus escritos e em sua atuação. Havia entre os dois uma cumplicidade na ação em favor da Reforma Protestante. Em 1534, ela editou um hinário, apontando para a importância da música e da oração na vida cotidiana. Ela também reescreveu os Salmos 51 e 130 juntamente com o Pai-Nosso como carta de consolo, numa perspectiva inclusiva no falar sobre Deus. Ela pregou em público três vezes. A primeira em janeiro de 1548, quando faleceu seu marido. As outras duas vezes ela pregou na hora do sepultamento de duas mulheres, adeptas do pregador Schwenckfeld. Os pastores não realizaram o enterro, pois consideravam os/as seguidores/ as de Schwenckfeld heréticos, porque em seu entender os mesmos haviam se separado da Igreja Cristã. Katharina entendia que a pessoa cristã necessita exercitar o amor diariamente. Katharina defendeu a diversidade do movimento da Reforma, opondo-se a radicalismos e exclusivismos. Ela faleceu no dia 5 de setembro de 1562. Foi uma mulher avançada em seu tempo, lutadora pela igualdade de homens e mulheres no serviço da igreja e pela divulgação pública do evangelho em palavra e ação. Ela é considerada a primeira pregadora do movimento da Reforma Protestante, teóloga, mãe na fé, defensora dos N princípios protestantes. CLAUDETE BEISE ULRICH é teóloga, doutora em Teologia e professora na Faculdade Unida em Vitória (ES)

O direito humano de imigrar por Cibele Kuss Pelo menos 10 mil crianças refugiadas na Europa nos últimos dois anos estão desaparecidas, de acordo com a agência de polícia europeia. Muitas delas possivelmente foram traficadas pelas redes criminosas que lucram com trabalho escravo, exploração e abuso sexual. Todas elas fugiram da fome e da violência em seus países e não encontraram políticas públicas eficazes que as integrassem de fato nos países para onde fizeram o caminho do exílio. Refletindo sobre a diaconia transformadora e tradição cristã, fazemos a memória histórica e lembramos que Maria foi uma das raras mães que não chorou a morte de seu filho Jesus, pois migrou com sua família para um tempo de exílio no Egito, África. Herodes mandara matar todos os meninos com menos de dois anos (Mateus 2.16). Passaram-se séculos desde a fuga para o Egito, os contextos acirraram-se, e podemos entender hoje com muita lucidez que há tantas famílias em situação dramaticamente similar à vivida pela pequena criança Jesus e sua família, pobre e perseguida, que encontrou na África o lugar de sua sobrevivência. Na Palestina, na Síria, no Brasil, muitas mães têm que esconder suas filhas e filhos, outras choram a morte, o desaparecimento. Dados do Ministério da Mulher, Igualdade Racial e Direitos Humanos, de 2015, revelam que, no Brasil, em média 60 jovens negros são assassinados diariamente. Muitas pessoas precisam sair, fugir e migrar para encontrar políticas de segurança, trabalho, educação, saúde. O direito à mobilidade humana dentro e fora de um país necessita ser assegurado. Estamos diante da insuportável constatação de que a vida das pessoas pobres e vulneráveis continua em risco permanente e na mais profunda invisibilidade. O direito de estar onde a necessidade humana demandar deve ser aceito pelo Estado, assim como o direito de ser pessoa imigrante vista, ouvida e plenamente integrada. Para incluirmos pessoas em situação de migração, imigração, também chamado de mobilidade humana, é importante e prioritário garantir direitos políticos, de plena cidadania. Não é possível incluir concedendo visto e carteira de trabalho e ao mesmo tempo excluir porque não há políticas públicas que acolham as necessidades integrais das pessoas. A xenofobia e o racismo são maldades humanas e estruturais cruéis e pecaminosas. Como pessoas cristãs, vamos honrar a história familiar de Jesus e, principalmente, os seus ensinamentos, acolher e integrar pessoas imigrantes e refugiadas. Nosso testemunho público de fé é também N uma afirmação política de inclusão nas políticas públicas. CIBELE KUSS é teóloga e secretária executiva da Fundação Luterana de Diaconia em Porto Alegre (RS) NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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REFLEXÃO

Porto seguro O SENHOR É O MEU FORTE DEFENSOR; FOI ELE QUEM ME SALVOU. Êxodo 15.2

por Tânia Cristina Weimer

“E

agora, quem poderá nos defender?”. A atriz Florinda Meza interpretava Dona Florinda, icônica personagem tanto da série “Chaves” como da série “Chapolin Colorado”. Em especial nessa última série, toda vez que ela se encontrava em apuros, soltava o bordão: “E agora, quem poderá nos defender?”. E o Chapolin Colorado logo aparecia para resolver os problemas no papel de grande defensor. Não o bordão, mas a situação de alguém clamar por ajuda e ser prontamente atendido e seguramente amparado é alvo de nossos clamores. Poder contar com um defensor, com alguém que nos socorre e defende diante das agruras da vida é desejado por todos nós. Também o povo de Deus em sua caminhada pelo deserto rumo à terra prometida, depois de cruzar o mar Vermelho, assim o desejou. Buscou em Deus o seu porto seguro. Depois que o povo de Israel viu o grande poder que Deus exercitou contra os egípcios, ele temeu o Senhor e ainda hoje ora fervorosamente rogando a Deus pelas necessidades de cada dia, ansiando pela erradicação do mal. O versículo bíblico, lema do mês de junho, faz parte do cântico de

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Moisés. Esse cântico é totalmente voltado para o louvor a Deus, devido à sua presença salvadora, resgate e proteção. Na história bíblica, a música aparece pela primeira vez como parte de um culto ou de um louvor ao Deus Criador logo depois da libertação do povo de Israel do cativeiro egípcio. Isso se deu logo depois do grande livramento que Deus realizou em favor de seu povo, ao fazê-lo passar a seco pelo meio do mar Vermelho, sepultando logo em seguida o exército do faraó no meio do mar. Em gratidão e reconhecimento ao grande poder de Deus, Moisés compôs uma bela poesia em forma de cântico, que falava da experiência dele e do povo com o grande Deus libertador, forte e defensor. Podemos ver a alegria de Moisés e Miriã, que celebraram, cantaram e dançaram em agradecimento pela libertação do povo da escravidão. Entre o povo de Israel, as festas tinham motivações muito especiais. Eles festejavam para agradecer e louvar a Deus por seu agir em favor do povo e para celebrar a glória e a majestade de Deus. Esse louvor e agradecimento nas festas tinham como objetivo recordar a presença e o agir de Deus e proporcionar o

exercício da comunhão e da partilha. Era a oportunidade para estar juntos. Não temos apenas o exemplo dos profetas e reis do Antigo Testamento que louvam a Deus cantando e tocando, com versos e toda espécie de música de corda, numa verdadeira festa, mas esse costume é conhecido pela cristandade desde o princípio. O cântico de Moisés representa o cântico daqueles que passaram por uma experiência de convivência e dependência total de Deus. É um canto de vitória, cujo conteúdo é a presença de Deus no meio do seu povo, dando-lhe salvação e liberdade.

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“Moisés guia o povo de Israel através do mar Vermelho” – Hortus Deliciarum, Herrad von Landsberg (1180)

Agradecimento equivalente ao do apóstolo Paulo por Deus ter enviado Cristo para junto de nós. Cristo é a dádiva maior de Deus a nós. Jesus veio e morreu! Em Cristo Deus superou sua bondade porque em Cristo fomos libertados e salvos de uma vez por todas. Em seguida, no final do capítulo 15, onde encontramos o cântico de Moisés, encontramos ainda o cântico de Miriã. Embora seja parte do mesmo cântico, esse último representa a alegria pela salvação e pela vitória do Senhor. Assim, louvemos e festejemos junto com Moisés e Miriã por ter um Deus forte e defensor que nos salva e liberta de todos os males. Então cantaram Moisés e os filhos de Israel ao Senhor: O Senhor é o meu forte defensor; foi ele quem me salvou. Ele é o meu Deus, e eu o louvarei. Ele é o Deus do meu pai, e eu cantarei a sua grandeza. O Senhor é um guerreiro; N e seu nome é Senhor. TÂNIA CRISTINA WEIMER é teóloga e pastora sinodal do Sínodo Nordeste Gaúcho da IECLB em Estância Velha (RS)

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ESPIRITUALIDADE

Compaixão com paixão QUEM É O MEU PRÓXIMO? O MEU PRÓXIMO SÃO SEMPRE AQUELAS PESSOAS DAS QUAIS DEUS ME FAZ SER O PRÓXIMO DELAS. ESTA É A LIÇÃO DA PARÁBOLA DO BOM SAMARITANO.

C

erta vez, Jesus é confrontado com uma pergunta fantástica: “Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” (Lucas 10.25-37). Essa é uma das perguntas mais importantes da vida. Saber sua resposta é mais salutar ainda. Quem faz essa pergunta a Jesus é nada mais nada menos do que um intérprete da Lei, uma pessoa que conhecia as Escrituras e pela lógica deveria saber a resposta. Jesus percebe que por trás dessa pergunta havia uma pegadinha e, por isso, responde com outra pergunta: “O que está escrito na Lei e como você interpreta?”. Ambos concordam que o mandamento do amor a Deus e ao próximo é o que define a vida de quem crê em Deus. Jesus então lhe diz: “Faze isso e viverás!” Mas como não havia conseguido aplicar sua pegadinha, o mestre da Lei interroga Jesus mais uma vez, tentando justificar-se: “Mas, afinal de contas, quem é o meu próximo?”. Jesus passa, então, a contar-lhe uma das parábolas mais impressionantes da Bíblia: Certo dia, um homem, provavelmente um judeu, desce de Jerusalém até Jericó, um caminho deserto, cheio de precipícios, que em apenas 25 quilômetros baixava cerca de mil metros

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até chegar ao vale do rio Jordão. Era um caminho perigoso! Nesse percurso, ele é assaltado por ladrões, que, além de lhe roubar o que tinha, machucaram-no, deixando-o na estrada, quase morto. Muitas pessoas passavam por ali, pois era o único caminho que levava a Jericó. Curiosamente, Jesus cita duas pessoas que passaram por aquele lugar, mas que não se importaram com o homem jogado na estrada. O primeiro era um sacerdote e o outro um levita. Eram pessoas religiosas, que conheciam a Lei, o mandamento de amor a Deus e ao próximo. Mas por causa dessa mesma lei não se podiam contaminar ao ter contato com o homem jogado na estrada. Jesus cria aqui um clima de suspense. Quem será o próximo a passar pelo caminho e ver o homem na estrada? Talvez o mestre da Lei estivesse esperando Jesus dizer que alguém como ele passaria por ali. Mas então a surpresa! Jesus não cita um mestre da Lei, mas sim um samaritano, que seguia seu caminho bem tranquilo. Não sabemos, pelo texto, de onde ele vem nem para onde vai. Mas, ao se aproximar do homem quase morto, jogado na estrada há um bom tem-

O Bom Samaritano, obra de Vincent Willem van Gogh (1890)

por Roger Marcel Wanke

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po, esse samaritano faz de tudo para cuidar dele. De sua mochila ele tira óleo e vinho, que eram considerados remédios na época, e passa-os nos ferimentos. Ele o leva a uma hospedaria, montado em seu jumento, deixa-o aos cuidados do hospedeiro e ainda paga todas as despesas necessárias. Esse texto é fantástico, pois Jesus inverte toda a lógica. Ele não cita nenhum “bom judeu” que fosse capaz de ajudar aquele homem indefeso. Antes cita um samaritano, um povo mestiço, estrangeiro, com quem os judeus haviam rompido relacionamento há muitos anos. Judeus e samaritanos não se entendiam. Mas é um samaritano que Jesus usa em sua parábola para ser o modelo de compaixão. Aquele do qual a gente menos espera ajuda quem não tem mais nada a esperar. Esse texto desmascara completamente a tendência egoísta que temos. Enquanto o mestre da Lei está interessado em saber quem é seu próximo, Jesus inverte a lógica, quebra o paradigma. Jesus pergunta de quem nós somos o próximo. Para Jesus está claro que amor ao próximo não é uma questão de afinidade ou amizade. O meu próximo são sempre as pessoas que Deus me faz ser o próximo delas. O mestre da Lei não tem como dar outra resposta a Jesus, embora se negue a pronunciar o nome samaritano. Mesmo assim, faz uso da melhor palavra que alguém poderia usar ao se referir ao samaritano. Esse foi misericordioso, teve compaixão. Mesmo contra todas as evidências e contra todos os preconceitos, Jesus desafia o mestre da Lei: “Vai e procede tu de igual modo!”. Isso vale também para nós! Porém nossa espiritualidade, infelizmente às vezes, parece ser esquizofrênica. Nós sabemos o que N fazer, mas não o fazemos. ROGER MARCEL WANKE é teólogo e professor de Teologia na Faculdade Luterana de Teologia (FLT) em São Bento do Sul (SC) NOVOLHAR.COM.BR –> Abr/Jun 2016

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PENÚLTIMA PALAVRA

É preciso abrir os olhos

nos, geralmente em decorrência de litígios vinculados à terra. Ainda que a escravidão fosse abolida em 1888, somente com a Constituição Federal de 1988 foi reconhecida a propriedade das terras onde havia quilombos. Todavia, na prática, pouquíssimas comunidades quilombolas tiveram seu processo de titulação da propriedade concluído. Apesar de ser um processo lento, pois envolve várias etapas (identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação da propriedade em nome da comunidade quilombola), não pode levar décadas para ser concluído. Essa demora em delimitar e titular corretamente as terras tem resultado no aumento de conflitos e mortes, deixando as comunidades mais fragilizadas e vulneráveis a ameaças e violências praticadas por pistoleiros e fazendeiros. Além da dificuldade burocrática para concluir os processos de titulação de terras, tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação contrária ao decreto que regulamenta todo o processo em relação às terras quilombolas. E no Congresso Nacional está em análise uma proposta de alteração da Constituição que pretende restringir o direito à terra das comunidades indígenas e quilombolas, o que pode levar a um agravamento ainda maior dos conflitos. Todavia, diante de um quadro nada animador, enquanto sociedade plural, que quer ser justa, solidária, sem preconceitos e fundada no reconhecimento da dignidade de todas as pessoas, devemos abrir nossos olhos para enxergar o povo quilombola, estendendo-lhe nossas mãos e reconhecendo a terra como seu direito fundamental, pois a terra, para um quilombola, é a própria vida. N

por Catarina Volkart Pinto

A

inda hoje em dia, muitas pessoas vivem à margem da sociedade, excluídas não só pela falta de dinheiro, mas também por causa de sua cor, o que ocorre com os negros espalhados por todo o Brasil. Entre a população negra há aqueles que são vinculados a alguma comunidade quilombola. Os quilombolas muito contribuíram para a formação cultural plural do Brasil e possuem íntima ligação com a terra que ocupam, pois foi nesses locais que estabeleceram seu modo de viver ao deixar a escravidão. Atualmente, há cerca de 2.500 comunidades quilombolas certificadas pela Fundação Palmares em todo o Brasil. Estão nas mais variadas regiões, inclusive em cidades de tradição

tipicamente germânica, como, por exemplo, os Quilombos Paredão e Macaco Branco, localizados em Taquara (RS) e Portão (RS). No entanto, são desconhecidos, inclusive perante grande parte da própria população local. Parecem ser invisíveis, tal como os “ninguéns” de Eduardo Galeano: “Aqueles que não fazem arte, mas artesanato; que não têm cultura, mas têm folclore; que não têm nome, mas têm número (...); os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata” (em tradução livre). Essa invisibilidade social faz com que também não sejam notícia as violações de direitos que sofrem diariamente. Conforme recente relatório da Anistia Internacional, as comunidades quilombolas continuam enfrentando graves ameaças a seus direitos huma-

Foto: Alberto Banal

QUILOMBOLAS: Hoje há 2.500 comunidades certificadas no Brasil, mas que parecem invisíveis

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CATARINA VOLKART PINTO é Juíza Federal Substituta da 2a Vara Federal de Novo Hamburgo (RS)

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A santidade não é um tema popular nestes dias. Talvez porque as pessoas a associem com algo austero, espiritualmente elitista e bastante severo. Neste livro você contemplará os exemplos de Santidade que Jesus nos deixou e será motivado a viver uma vida de virtude.

Se está cansado de carregar o fardo de ser você,

viva a vida de Jesus. Experimente o alívio absoluto da Santidade.

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