Dona do meu Quilombo

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3º Edição •Dona do meu quilombo • 11/2017

Perife

DONA DO MEU QUILOMBO


Essa edição pretendia traçar uma linha que liga as mulheres das primeiras organizações sociais negras no Brasil, os quilombos, com as mulheres dos quilombos atuais, as periferias. Queríamoss investigar se há uma herança social que essas mulheres carregam até hoje. A ideia parecia meio louca no ínicio, mas ao começarmos as seções de fotografia, entendemos que a lógica que tentávamos captar, não é a lógica que essas mulheres vivem. A vida pra elas é prática, sem muitos rodeios, mas não nos enganemos, é uma vida cheia de poesia e alegria também. A Perife precisou adentrar a casa dessas mulheres, um dia de suas vidas, precisou escutá-las acima de tudo, pra entrar em suas lógicas, pra poder transcrever aqui, o que ELAS pensam sobre suas antepassadas, e como isso se relaciona com SUAS vidas. E não tentar impor uma lógica nossa, ou uma pré-visão disso. Entendemos que o processo

necessário para a construção dessa edição (que foi a mais demorada até agora) era o de escutá-las, não só com o ouvido, era escutá-las de corpo inteiro. Escutá-las com os olhos e os poros bem abertos. Essa edição não oferece textos de pessoas que estudam sobre, não há aqui a escrita acadêmica, essa é uma revista vivida, com relatos de quem vive. Uma revista que quer entrar na sua casa pra ser ouvida. Imaginemos que essas páginas seja um dia na casa dessas figuras tão importantes nas quebradas e que tem tanta coisa pra dizer e muitas vezes poucas pessoas pra escuta. Imaginemos o cheiro do café recém passado, o cheiro de limpeza, e almoço de domingo no ar. Sejam bem vind@s à terceira edição da Perife. E assim como nós, se encantem com essas que são muito mais que Donas de casa, as Donas de seu próprio quilombo.


CRIAÇÃO: Rafael Cristiano PRODUÇÃO: Rafael Cristiano FOTOGRAFIA: Andreza Dias DIAGRAMAÇÃO: Rafael Cristiano AUDIOVISUAL: Francisco Renner MODELOS: Ana Lúcia Edna Oliveira Marlene Domingos


EDNA a Fenix Cantinho do Céu Empregada Doméstica




Perife: Você se considera uma mulher forte e independente? Sim, independente porque eu trabalho, tenho independência né? Tenho meu trabalho, num dependo de ninguém. Eu criei meus filhos praticamente só né? Então... Independente. Perife: É diferente ser mulher aqui na periferia, do que ser em outro lugar? Não... Ser mulher aqui? Pra mim é de boa, se for pra fazer tudo de novo, começar a vida, vou começar de novo. Eu enfrento de boa.


Perife: Conta um pouco dessa vida pra gente... Da minha história? Sobre o problema que eu passei? É.... Há 8 meses atrás, eu comecei a sentir uma dorzinha de barriga, como eu sou vaidosa eu só fui no médico por causa da vaidade, se não fosse a vaidade eu não teria ido. Quando a barriga começou a crescer um pouquinho, eu falei nossa, vou no médico!, a dor de barriga não me incomodava, mas a barriga crescendo sim, aí eu fui no médico, e ele falou tudo que eu tinha. Câncer no ovário, líquido no baço, aí quando eu cheguei lá, no Hospital São Paulo. (Pode contar o que a médica falou?), aí eu cheguei lá, e olha só como eu sou forte, não me abateu, meu coração não bateu forte. Não me abateu saber que eu tava com câncer! Mas o que me abateu foi ela falar assim: “Você não vai perguntar nada?”, eu falei sim doutora, você vai me deixar aqui pra fazer o tratamento? Aí ela falou assim: “Não! Você vai pro posto do seu bairro.” Aí a lágrima

caiu. Eu falei doutora, mas um hospital desse? Não vai me deixar aqui? E ela disse: “Só fica aqui quem tá muito mal.” Aí eu pensei e falei, então eu tenho que ir em casa, morrer pra voltar? Aí pronto! Aí eu fiquei tipo desamparada. Desamparada! Essa é a palavra certa. Mas não foi o câncer que me abateu, ou fez uma lágrima minha cair, porque eu fui forte. Aí eu fui em um outro hospital, encontrei uma médica muito boa, eu tava com todos os exames , e eu só chorava depois do que a outra médica falou pra mim, aí a dr. Conceição falou pra mim: “Filha não chora, deita aqui que eu te examino.” Ainda me chamou de filha.

...Não foi o câncer que me abateu, ou fez uma lágrima minha cair, porque eu fui forte...




Ela explicou o que eu tinha, começou a me dar conselho, falou pra eu não chorar, e me deu um abraço. Eu só chorava porque eu pensei, poxa um hospital bom, não me deixou ficar. Mas depois que eu passei com essa médica, a palavra dela de conforto sabe? E também da atendente, porque a consulta seria só pra dois meses, aí eu chorei mais, e ela perguntou: “O que a senhora tem?” Aí eu expliquei e ela falou: “Então pera ai”, foi lá dentro e voltou com uma consulta pra amanhã. E ainda disse “Se todas as pessoas atrás de um balcão ouvisse as pessoas, não morreria tanta gente. Hoje é você que tá aí, amanhã pode ser eu.” Aí fiz um mês de exame, já tava andando muito ruim, depois de um mês fiz a

cirurgia, fui pra sala de cirurgia, fiquei em coma, depois de três dias, eu saí do coma, porque a cirurgia foi grande né? Aí tirou o útero, o ovário, o baço, um pedaço do intestino, 9,5lts de liquído da barriga, mais um tumor encostado no fígado. E fiz 18 seções de quimio. E aí só lutei, minha vida não parou. Mesmo eu ruim, lutei, levantava vinha fazia almoço, passava mal, debruçava na mesa, depois voltava pra fazer. Mas olha... Tem que ter força. Eu não pensei assim: Vou morrer. Não passou na minha cabeça. Só chorei porque a médica tinha dito aquilo, mas... Não me abateu! Cabelinho caiu né? Aqui é uma peruquinha, nem na hora de raspar a cabeça que as pessoas diz que chora, eu... Normal!




Perife: Você se considera uma mulher bonita? Bonita? É assim, vou dizer pra você: Eu me amo! Eu me amo! Gosto de andar produzida, gosto de sabe? De andar desse jeito. Mesmo quando sai do coma, com três dias eu já tava de batom. Três drenos, dois na bariga, um no tórax e de batom. Meus filhos chegaram e falaram: “Mainha tá aqui sua maquiagem.” Eu passava o batom que eu gosto, o vermelho, o dr. Passava e falava: “E esse batom aí?” E eu falava, “ai Dr. tem que ficar bonita.” Não conseguia nem levantar da cama, mas tava lá. Maquiada.

Perife: Nega conta pra gente sobre suas tatuagens? A âncora eu fiz sem saber o significado, achei bonita. E uma flor no braço. E a fênix nas costas, a fênix ressurge das cinzas, e aí eu fiz minha história. O médico liberou, sabe? Os médicos de lá são demais, eles perguntam como tá em casa? Porque olha é difícil, tem médico que num quer nem tocar em você, tem nojo de chegar perto. Mas o de lá tá de parabéns. Eu tava pensando assim, eu queria tanto fazer uma homenagem pro médico que fez minha cirurgia, é verdade... No dia 20 eu vou passar com ele, e vou falar, vem doutor vamo tirar uma foto, vou tirar uma self com ele.

Perife: Você conhece alguma história de mulheres quilombolas? Não conheço. Perife: Mas você acha que elas deixaram alguma coisa de ensinamento pra você, pras mulheres de hoje?


Eu acho que ainda existe... Tem muitas mulheres fortes. Que ainda resiste. Que tรก sozinha, e vai vencer na vida.





ANA a Bailu Jd. LucĂŠlia Costureira


Perife: Conta um pouco dessa vida pra gente...

Perife: Da onde você acha que veio essa sua força? Veio da minha mãe, porque minha mãe sempre lutou muito, junto com meu pai pra criar a gente, nós éramos só em três mas a dificuldade sempre existiu, acho que foi uma coisa que todas as famílias de classe baixa passam por isso, por fases ruins, fases de passar não fome, mas aperto sim. Então eu sempre vi essa garra, dela nunca desisti, eu nunca vi minha mãe com a cara amarrada, reclamando da vida, a gente podia tá

ali, no limite, não tem mistura pra comer, ela fazia aquele bolinho de feijão, colocava o dedo no meio, dava pra gente e “ó tá com mistura.” Só pra vc colocar e falar que tinha alguma coisa, e você falava ué cadê a mistura? rs. Mas ela tinha essa preocupação, sabe? de dividir o que tinha, de olha, se tá bom tá bom, se tá ruim tá bom também, tá vivo, tá com saúde, tá todo mundo junto, então... O que vale é que a gente tá junto, ela sempre colocou isso, sempre como prioridade.


O que vale ĂŠ a gente tĂĄ junto, ela [mĂŁe] sempre colocou isso, sempre como prioridade.



Perife: Você se considera uma mulher bonita? Me acho! Não é aquela beleza plástica, aquela beleza que a mídia espera né? Impõe pra sociedade, pras mulheres, aquela beleza de você ser magra, de você ser linda, maravilhosa. Mas... Tem dias que eu me arrumo, me acho assim maravilhosa, independente de alguém me achar bonita ou não, eu me sinto bonita, porque eu tenho dois braços, duas pernas, Deus me deu saúde, me deu inteligência, me deu uma família maravilhosa, me deu um dom que eu tenho, que é esse de costurar, então... Eu me acho maravilhosa. Independente do que pensam ao meu respeito.

Perife: Você conhece alguma história das mulheres quilombolas? Do período escravocrata? Não conheço. Perife: Você acha que herdou alguma coisa delas? Você acha que elas deixaram algum ensinamento pras mulheres de hoje? Ah! eu acho que sim, principalmente esse lance da mulher negra, que passou por tudo isso, a minha avó é descendente direta de escravos, e ela era muito forte, forte até demais, ela era uma fortaleza, sabe aquela pessoa que pra você penetrar ali, era muito difícil, era difícil ver ela chorando, igual a minha mãe, podia tá na situação que tivesse. E essa força acho que vem dessas mulheres né? Desse exemplo. Eu não sei nenhuma assim especificadamente, eu sei o que eu vejo em filmes que eu assisto, e realmente eram mulheres muito guerreiras, que deram a vida pra lutar pelo seu objetivo de liberdade, não só pra si mas pelos seus descendentes, eu me espelho muito nisso. Eu tenho né? Sangue negro.




Eu to na periferia eu to em casa. Eu amo isso aqui.


Perife: E o que é pra você ser uma mulher na periferia? É diferente de ser mulher em outro lugar? Sinceramente, eu sou mais eu aqui, do que... Eu vejo muitas pessoas conhecidas, que moram em lugares muito bons, mas elas não tem um pingo da liberdade que eu tenho. Porque aqui, por mais que falem que é perigoso, eu vou, 1h da manhã ando pela rua de boa, cumprimento todo mundo, tenho amizade com os nóia, eles tem uma biqueira em frente da onde eu to construindo, e me dou super bem com eles, e essas mulheres não tem essa liberdade, na verdade acho que somos mais privilegiadas, porque a gente tem essa noção de mundo melhor do que elas. Elas vivem em um mundo que é paralelo, pra mim não existe. Elas tem medo de tudo, a partir das 10 num sai de casa, se sai sai apavorada, fecha vidro de carro, se vem alguém pedir troquinho já entra em desespero, eu sei porque já vi. Eu to na periferia eu to em casa. Eu amo isso aqui.



Perife: Tem alguma história que você quer compartilhar? Acho que a maior história que eu compartilho é a de quando eu me separei desse último relacionamento, porque quando me separei fiquei esperando a tristeza chegar, mas no lugar veio um alívio, uma paz de espírito tão grande, uma certeza de que tá tudo bem. Foi uma libertação muito grande uma das melhores experiências que tive na minha vida. 6 meses depois conheci meu atual marido, 1 ano depois a gente se casou e eu to muito feliz. Eu sou muito feliz.




MARLENE

a Dançarina

Cantinho do Céu Cozinheira




Perife: Você se considera uma mulher forte e independente? Com certeza! Onde quer que eu vou ou esteja, eu vou ser sempre eu. Não me esconder de ninguém do mundo, do nada. Minha força vem da minha mãe, de mim mesma, vem de mim. Eu vou me enturmar, e ser quem eu sou, aonde for, no meio de rico, de pobre. Quem gostar de mim, vai gostar do jeito que eu sou. Já aconteceu de tá perto de pessoas mais requintadas, e eu disse, vai me aceitar do jeito que eu sou. Perife: É diferente ser mulher aqui na periferia, do que ser em outro lugar? Não, pra mim é normal. Pelo menos pra mim é né?


Perife: Você se acha uma mulher bonita? Ahhh. Com certeza. rs. A meu filho. E eu com certeza sou vaidosa, eu cuido de mim como eu posso, eu tento ser melhor pra mim, pra minha pele, pro meu cabelo ficar assim bonito, essa pele num é de graça que eu tenho, eu tenho 47 já to chegando nos 50 e quero chegar nos


80 assim bonita, com essa pele bonita, maravilhosa. Eu já falo logo, eu me gosto, eu me amo, e isso é muito bom. Eu mesma não me desprezo em nada, eu num preciso de ninguém falando que eu sou bonita, porque eu sou. Eu me sinto bem, eu mesma. Não quero mudar nada.

Eu já falo logo, eu me gosto, eu me amo, e isso é muito bom.




Perife: E da onde vem a sua beleza? Essa beleza vem de mim mesma, da cor, do meu bronzeado. Perife: O que é ser mulher negra? A eu já sofri, não na sociedade assim, mas em outros lugares, mas eu num ligo pra essas coisas não. Geralmente eu mostro que eu sou mais eu, eu sou eu aonde eu vou, eu num fico com aquela coisa de tipo assim: “A porque eu sou negra, que eu vou me encolher assim em qualquer lugar.” Não! Eu sou assim em qualquer lugar, aonde eu for.


Perife: Você não muda o seu jeito pra agradar ninguém. Com certeza não! Eu mostro meu jeito. Aí que eu mostro mais quem eu sou.



Perife: Você conhece alguma história de mulheres que lutaram contra a escravidão? Conheço. Já me contaram algumas, é difícil né? É muito difícil, tem umas que sofrem até hoje por causa disso, fica com isso na cabeça né? E acaba se tornando na sociedade um bicho. Tem medo de ser ela mesma, de ficar perto das pessoas. Perife: Você acha que herdou alguma coisa dessas mulheres? Assim de lutar, com certeza. Mas de se sentir presa, como se tivesse num poço, que é a escravidão. Não. Jamais. Perife: Qual o seu sonho? É ver meus filhos (a coisa mais importante da minha vida) serem felizes, e que cada um tenha sua vida, que meus filhos sejam sempre eles. E que sejam feliz, que é tudo que eu desejo nessa vida. O que eu já passei pra chegar até aqui, eu tenho bastante coisa, eu quero agora que eles tenham, mas que sejam felizes, sem sofrer, eu já sofri bastante. É o meu sonho, cada um deles, e que sejam unidos.




Foi bom pra vc?


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