Tempo de Borboleta

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Quinta memória

OS IDIOTAS SÃO SEMPRE IDIOTAS porque têm uma miserável tendência a almejarem uma identificação de si mesmos, a se definirem – ou desejarem se definir – através do que fazem e do que pensam, ficando presos numa teia de perguntas casuais tolas e existencialistas que apenas geram mais e mais perguntas, mais indagações sobre algum sentido para vida, o quê, o por quê, o se, elementos que regem a vida de idiotas como eu, caminhando do bar de volta para casa curando a ressaca mais violenta que um homem pós-moderno já sentiu, a ressaca do coito interrompido, do se sentir vazio sem saber por quê, o quê, o se; casa, família, jantares silenciosos e por isso mesmo opressores, e eu comendo como um robô com meu estômago ardendo como o inferno, as chamas da culpa que nos perseguem desde o batismo, e eu pensando no se, na grande lei que rege os melancólicos compulsivos, os inconformados, a “lei do se”, e “se” tivéssemos feito aquilo, e “se” não tivéssemos feito aquilo, e “se” fôssemos mais bonitos, e “se” o mundo fosse mais justo, e “se” fôssemos outra pessoa, e “se” não pensássemos demais, e “se” Hitler ou Pinochet tivessem morrido criança num acidente banal qualquer, e “se” dobrássemos a outra esquina, e “se” nunca tivéssemos nascido, e “se” e “se” e “se” o amor tivesse sido feito pra mim, e “se” eu não tivesse tanto medo de viver, e “se” meu corpo fosse absurdamente perfeito, e “se” todos conseguissem ver o meu eu interior; o “se” é úlcera, câncer, aids, solidão,

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