Os sentidos da paternidade. Dos "pais desconhecidos" ao exame de DNA

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Prefácio | 13

relações familiares, avaliam o passado e recriam suas memórias à luz das categorias do presente. E também como se enredam na ideia modelar de família que teima em subsistir apesar da diversidade de configurações nesse domínio. A frase singela, mas pungente, de Samanta, uma das entrevistadas, condensa essa realidade: “talvez eu poderia ser um pouco melhor do que eu sou hoje, se tivesse tido uma vida normal, com pai, mãe, gato, papagaio. Ou talvez não”. A dúvida de Samanta ecoa a afirmação fulminante de Bourdieu sobre a família: “um privilégio instituído como norma universal, uma ficção, um artefato social, uma ilusão bem fundamentada, já que produzida e reproduzida com a garantia do Estado”.7 A ideia da família normal, com pai, mãe, gato e papagaio, contraposta à experiência de sofrimento dos filhos decorrente da ausência real do pai, é exacerbada no calendário social de exibição compulsória de felicidade como são os dias dos pais, os aniversários e o natal. Mas se o sofrimento existe, ele não elimina a dúvida sobre a ficção familiar, expressa por Samanta, incitando o protagonismo dos filhos e, por extensão, a análise fina da autora neste livro inquietante e esclarecedor. Inquietante por descortinar, com filtro antropológico, a atualidade da frase de Tolstói: “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”,8 com a qual o escritor abre um dos livros mais geniais da literatura russa. Esclarecedor por revelar mudanças, sem desconhecer permanências, que informam as concepções, as práticas e os sentidos contemporâneos da paternidade, da família e do parentesco. Crítica e compreensão, análise e pesquisa, etnografia e história, escrita desempenada e capacidade expressiva, aliadas à sólida formação da autora, tais são os ingredientes que sustentam a força deste livro.

Cf. Bourdieu, Pierre. 1966. “O espírito da família”. In: Razões práticas. Sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, pp. 130, 131, 135. 7

Cf. Tolstói, Liev. 2009. Anna Kariênina. Tradução de Rubens Figueiredo, São Paulo: Cosac Naify, p. 17. 8


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