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09 de Agosto de 2015
Concurso Paulo Setúbal
afilhado: Joaquim Maria Machado de Assis. No momento em que visitei a casa, muitas famílias haviam sido agregadas ao imóvel. O primeiro morador que vi foi o Sr. Paulo. Com uma perna amputada, descia lentamente a escadaria, apoiado em muletas. Do outro lado da rua, ele mantinha um carrinho de doces. A maioria do estoque ficava ali mesmo. Ninguém roubava. Ele me contou que havia perdido a perna em um atropelamento. Disse que o homem que o atropelou, figura engravatada, havia prometido ajudá-lo. Apareceu uma vez e depois nunca mais. “Quem liga pra pobre?” Abandonando a mágoa, logo mudou de tom. Disse que não queria depender de ninguém. Mas logo voltou o tom magoado e disse que de vez em quando dependia de alguém pra ir buscar pão. Descer e subir essa escadaria do morro não é mole não. Mas tentava adocicar a vida amarga, trabalhando com doces. — Gosto de vender doces, principalmente para as crianças. Adulto tá sempre reclamando, o produto tá barato e ele ainda reclama do preço, mesmo sem razão, só pelo prazer de reclamar. Criança não, vem, compra e fica com um sorriso no rosto. Só isso. Adulto reclama demais. Comprei pipoca doce, paçoca e biscoito do Paulo. A conta saiu barata. Não reclamei. Ele disse que gostava de manter o preço lá embaixo, para mais crianças poderem comprar. Ele disse que o sonho dele era abrir um supermercado. — Sabe o que eu faria? Botava o preço lá embaixo mesmo, pra todo mundo poder comprar. Para o pobre poder comprar. Sabe de uma coisa? Tem gente que diz que se eu fosse bonzinho não vendia, dava as coisas para os pobres. Ah! Que bobagem! Dar assim faz do outro mendigo. O bom mesmo é que as pessoas possam comprar as coisas com o suor do próprio trabalho. Eu sei que muita gente ganha pouco e trabalha muito. É pra essas pessoas que eu iria vender. Essa seria minha ajuda pra esse mundo. Apareceu um moço lá no alto da escadaria. Perguntou se era entrevista. Eu disse que era só conversa. Desde que especularam que aquela casa poderia ter sido o lar no qual nasceu Machado, muito repórter apareceu por lá. Até televisão. Depois do moço, apareceu a Dona Neuza, que “dorme” no quarto em que Machado nasceu. Pode ser sonho, mas mal não faz dormir na companhia de Machado. Conversamos um tanto. Ela reclamou dos repórteres, que vinham ali conversar só por interesse no escritor. — Nunca li Machado. Quando era nova, nem tinha livros. Agora, também não – alisou a cabeça grisalha e depois passou a mão no enrugado rosto. Ela me perguntou sobre o que eu fazia da vida. Respondi que era escritor e que por isso tinha me interessado pela casa. As crianças foram aparecendo. Distribuí os doces que havia comprado do Paulo. Sorrisos. Os cachorros também queriam, mas doce faz mal para os caninos. Conversas. E fala da vida da moça que tem tantos filhos e trabalha como louca. E tantas vidas ali, que se nascesse mais um não cabia não. Vi um rato passando por sobre um fio exposto. Não levou choque, continuou. Nada mais chocava naquele lugar. Na despedida, Dona Neuza disse para eu voltar outro dia. Desci a Ladeira do Livramento e fui até a Rua da Lapa, 264. Ali também viveu Machado de Assis. Naquela época ele suava como homem de letras para pagar o aluguel. Um caminhão com a caçamba lotada de ferro-velho descarregava em frente ao prédio histórico. A casa havia virado um depósito de ferro-velho! Visitei outra casa dele no Catete. Também decepcionante. Machado sempre viveu de aluguel e vivia se mudando. O que o bruxo teria a me mostrar no Cosme Velho? Desisti de qualquer magia, e sem mais capítulos, segui direto para o fim do livro. Estava cansado dessas residências temporárias. Procurei um lugar mais definitivo para me encontrar com a alma machadiana. No cemitério de São João Batista, perguntei ao coveiro sobre o túmulo de Machado de Assis. Ele me disse que Machado havia se mudado. Até em morte o danado se mudava? — Para onde? O corpo foi transladado para o Panteão da Academia Brasileira de Letras. Mas não haveria ninguém para me receber lá. A porta estava fechada. Não estava sendo fácil, o encontro com Machado. No dia seguinte, voltei para o primeiro capítulo, para a casa na Ladeira do Livramento. Dona Neuza me recebeu alegremente. Conversando com ela, um grito vem de dentro da casa: — A senhora deveria cobrar por cada entrevista que dá! — Ah, esse aqui não é repórter não. Esse aqui é meu amigo. Ele é um escritor, igualzinho ao Machado de Assis.
Ao ouvir aquelas palavras, primeiro, me senti profundamente lisonjeado, como se tivesse recebido o maior prêmio de minha breve vida literária. Afinal, fui igualado a Machado de Assis! Depois, senti tristeza. Afinal, aquela mulher de cabelos tão grisalhos e pele tão castigada pela miséria, apesar de viver na casa de Machado de Assis, nunca o conheceu. Do contrário, não teria dito aquilo. Nenhum de seus filhos tampouco leu Machado. Nem o vendedor de doces havia sentido o sabor dos escritos de Assis. Nem os jovens que lidavam com a dura realidade das ruas abriram qualquer volume machadiano. Nem as crianças sem camisa se interessavam por Machado. E a miséria de se estar tão perto da alma de um grande escritor, mas não poder tocá-lo, chega a ser quase uma maldição em vida. Como o legado de uma miséria...
2o
lugar
- Márcio Adriano Silva Moraes (Montes Claros-MG)
“Uma velhinha” Análise da comissão julgadora “Nostálgico, mas denso de angústia existencial, uma reflexão sobre o ser, sobre identidade, identidades. Tudo de uma forma leve, forma de crônica.” Hoje, revi, depois de quinze anos, uma velhinha, que, há quinze anos, já era velha. Naquele tempo, ela vendia panos de pratos bordados nas ruas da cidade. Eu a via em pontos de ônibus e ruas do centro. Mas também cheguei a vê-la em ruas do meu bairro, uma caminhada de uns quarenta a cinquenta minutos até a praça Dr. Carlos. Caminhada de passos largos. Imagino que ela caminhara por outros mais longínquos bairros, quiçá visitara outras cidades. Ela não parecia ter nenhuma condução própria. Seu transporte, sem dúvida, sempre fora os ônibus coletivos. Eu a via oferecer às pessoas os seus panos de pratos, cujos bordados, com certeza, eram frutos de suas mãos. Não me recordo de ter visto alguém comprá-los. E imagine, ela também os ofereceu a mim, que, como muitos, ignorei a oferta. Hoje, porém, eu a revi. Poderia hesitar, mas tenho certeza de minhas imagens fotográficas: essa velhinha, eu nunca a vi acompanhada. Contudo, não digo que vivia só. Não tenho essa onisciência. Sei, no entanto, que seus panos de pratos bordados a sustentara até este momento. Sustentara o seu corpo franzino e, por que não, sustentara uma família inteira, oculta, mas família. Depois de quinze anos, eu a revi. Não digo que ao longo desse período eu não tenha voltado a vê-la. Por vezes, ela me aparecia no seu contínuo labor. Mas nunca tinha fixado o meu olhar e coração em seu ser com tanta intensidade como neste momento, em que vivo, e que me exige tal força. A sua fisionomia se cravou em minha mente. Poderia dizer que ela lembrava minha avó paterna. Verdade, pois, de fato, lembrava. Porém, acredito que não foi isso que ela me deixou. Não. Não foi a recordação de um ente querido, uma mera semelhança física. Essa senhora de cabelos brancos me legou algo mais. Algo que espero compreender ao longo dessa escrita, em que a memoro. Hoje, eu a revi, estava próxima à Praça de Esportes. Eu saía de uma loja de informática, à procura de tecnologias, recurso indispensável para a vida moderna. Então, ainda no estacionamento, eu a revi. Ela estava segurando em um poste, desses de placas de trânsito. Não me atentei para a informação contida na placa. Seria irônico, mas muito mesmo, se a placa fosse de “pare”. Ela estava segurando, firme. Seus ombros curvados, numa postura tipicamente anciã, corcunda, de peles altamente enrugadas. Eu a encarei. Ela levantou os olhos e me olhou, como quem olha o nada, sem me fitar, sem dar por mim.