O PIONEIRO 09 DE FEVEREIRO DE 2014

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O PIONEIRO O

8 | OPINIÃO DOMINGO, 09 DE FEVEREIRO DE 2014

| MONICA CAETANO

| SAGRAÇÃO LITERÁRIA

Mônica Caetano Gonçalves mcaetanogoncalves@gmail.com

Antonio Bezerra Neto bezerrapoesia@gmail.com

Monica é Psicológa, poeta e cronista residente em Belo Horizonte Esta coluna é publicada todos os domingos

Esta coluna é publicada todas as quintas e domingos

Fernando Gabeira, sinos e reminiscências

Há uma razão

Divulgação

| Mãos desenhando-se – M.C. Escher

longo exílio de Fernando Gabeira lhe fez bem. Voltou da Escandinávia refinadíssimo politicamente (já defendendo bandeiras ambientais) e altamente cordial, como se não tivesse perdido seus umbigos mineiros. E o melhor: talhado como intelectual seguro, requintadíssimo e antissectário diante de alguns partidos que conservavam no Brasil caminhos stalinistas. É bom vê-lo, já com mais de 70 anos, trilhando caminhos impregnados de humanismo e com brilhos de rejuvenescimento. Vejo-o na GloboNews soberanamente apresentando um curioso e elegante programa sobre os sinos de São João del-Rei, cidade que guarda muito das tradições religiosas das Minas Gerais, notadamente aquelas advindas da tradição colonial. Gabeira conduz o programa com uma informalidade que chega a criar um estilo cheio de pessoalidade; sua proximidade com os sinos e sineiros é de uma beleza diferenciada. “Os sinos estão em mim, amo-os”, é o que diz um dos sineiros entrevistados. Fico embriagado com o sotaque que surge do atavismo das Minas Gerais, estado emblemático da Federação. E me vem algo dito por Autran Dourado, escritor muito acarinhado pelo pro-

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fessor Cidinei De Carli Favalessa: “Escrevo para entender a loucura humana em geral e a loucura particular que é Minas Gerais.” Há momento em minha vida que me imagino sendo salvo por Minas; falo em tom de metáfora, talvez desejando abraçar as camadas surreais do mundo das Gerais. Um velho pároco certa ocasião me disse que o Toque dos Sinos em Minas Gerais, ou Linguagem dos Sinos, é uma tradição católica praticada especialmente na cidade de São João del-Rei, conhecida como “a terra onde os sinos falam”. Os estudos mostram que, nas cidades analisadas, os toques são religiosos e têm finalidade social ou de defesa civil. Os repiques foram criados pelos sineiros durante o “tempo colonial” e transmitidos oralmente. Os mais conhecidos são Ângelus, exéquias, cinzas, finados, passos, treva, toque da ressurreição, Te Deum, incêndio, agonia, fúnebres, festivos, de parto, posse de irmandade, de almas, de missas, Natal, ano-novo, das chagas ou morte do Senhor. Digo sem medo: a grande obrigação de Minas é espalhar e manter suas tradições. Gabeira capta do entrevistado o inusitado. A linguagem dos sinos segue um conjunto de regras litúrgicas, mas deixa certa liber-

dade para a intervenção do sineiro. No filme Andrei Rublev (URSS, 1966) a vida de Andrei Rublev, o grande pintor de ícones da Rússia do século XV, um período de intensa agitação e também de diversas dificuldades pelas quais passavam o povo russo. Na época, o país sofria com a indigência, o rigor da igreja ortodoxa e também com as invasões tártaras. Nesse cenário caótico, estão inseridos os diversos episódios da vida de Andrei, que, mais tarde, abandonaria seu trabalho como pintor, para se dedicar a Deus. Uma das cenas mais curiosas é a colocação de um enorme sino numa bela Igreja Ortodoxa. A cidade festeja por dias! O imaginário dos sinos está presente em todo mundo dito cristão, além de permear bastante o budismo; mas em Minas, particularmente em São João, o sineiro tem de ter o perfume das horas e dispor de um bom ouvido. Em Ouro Preto, ouvi de Dona Lilli, proprietária do Pouso Chico Rei, que a poeta norte-americana Elizabeth Bishop assustava-se com os sinos. É explicável: ela era filha da Reforma. Uma verdade curativa e curiosa: cada sino tem um nome, uma história, um som.

odos ouvimos ou lemos em algum lugar que a vida é um livro com páginas em branco a ser escrito. O quê e o porquê são as questões centrais e individuais. Seria um diário de bordo? Não,os dias corriqueiros e as rotinas cotidianas se condensam em um único capítulo, bem parecido com os “procedimentos operacionais padrão”, isso ou ISO a que estão obrigadas as empresas segundo as normas de qualidade. Os melhores capítulos serão aqueles que passam em lampejos em nossas memórias como estrelas cadentes ou - menos poeticamente – como mini flashbacks. É nesta linha que seguimos, os que nos atrevemos a escrever mais do que o próprio livro da vida – livros e páginas impressas a serem lidas por outros, muitos ou alguns, seja como meio de transmitir informação, conhecimento ou entretenimento e acima de tudo assegurar o registro histórico e cultural, o dito “zeitgeist” da língua germânica, a melhor síntese linguística para o espírito de um dado mo-

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mento em determinado tempo e lugar. Exatamente aí estão os cronistas, dedicados ao estilo literário ainda sem reconhecimento unânime. Crônica vem de Cronos, deus do tempo na antiguidade clássica, Saturno para os gregos. Ao cronista cabe escrever inclusive sobre mitologia, mas especialmente sobre assuntos do tempo, este efêmero e etéreo que ultrapassa a tudo e todos. Assim, presume-se que a crônica acabe passando, como as notícias no dia seguinte. Entre as grandes exceções, cito somente dois, Drummond e Braga, mestres nos ensinamentos deSchopenhauer: “É preciso ser econômico com o tempo, a dedicação e a paciência do leitor, de modo a receber dele o crédito de considerar o que foi escrito digno de uma leitura atenta e capaz de recompensar o esforço empregado nela. É sempre melhor deixar de lado algo bom do que incluir algo insignificante”. A elesuma adaptação dos versos de Rimbaud: “Mudem nossa sorte, livrem-nos das pestes, a começar pelo tempo”.


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