Revista Noize #84 - Gilberto Gil - Janeiro 2019

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Como você começou a trabalhar com música?

Comecei a frequentar programas de rádio e acabei me tornando uma espécie de secretário do Picape do Picapau, do Walter Silva. Daí meu pai ficou doente, precisei começar a trabalhar, falei com o Walter e ele disse: “Olha, eu tô saindo da gravadora”, que era a RGE, “vai ficar o lugar de um boy do departamento, interessa?”. Eu falei: “Claro”. Meu primeiro chefe chama-se José Bonifácio Oliveira Sobrinho, mais conhecido como Boni, que era o diretor de divulgação e promoção da gravadora. Tô falando de 1959 pra 1960. O Boni me chamou e entregou um disco, com “Balada Para um Homem Sem Deus”, do Agostinho do Santos, era um 78 rotações, e fui levar na rádio Excelsior, em São Paulo, pra ser tocado no programa do Ricardo Macedo. Esse foi meu primeiro trabalho real. E como começou a ser produtor?

Nessa brincadeira, passaram-se quatro anos. Aí o Walter foi produzir um show de bossa nova no Teatro Paramount e me chamou pra ser o assistente de produção e de direção dos espetáculos. Fizemos uma série de shows, o mais marcante foi o 2 Na Bossa, da Elis Regina e Jair Rodrigues, em 1965. A Record contratou a Elis e o Jair e a Tupi também queria fazer alguma coisa de bossa nova. Aí chamou o Walter e ele me chamou, mesmo esquema, como assistente de direção e produção. Aí o Cassiano Gabus Mendes, que era superintendente da rede Tupi, me viu trabalhando e perguntou se não queria cuidar da direção musical. Com 23 anos, fui ser diretor musical da TV Tupi, mas o mundo do disco me fascinava. Eu queria aprender violão, acabei não aprendendo porque não tinha habilidade, mas quem tentou me ensinar foi

o Toquinho. Vendo ele tocar, e já tendo relacionamento com gravadora, falei pra ele: “Vamos pro estúdio gravar um disco?”. Minha primeira produção em disco foi o disco solo do Toquinho [seu LP de estreia, A Bossa de Toquinho (1966)]. Depois, fui pra gravadora RGE como assistente de produção do Julio Nagib, que era diretor artístico, e aí começou minha carreira de produtor. Comecei produzindo Zimbo Trio, Cláudia, Erasmo Carlos... Através do Toquinho, conheci o Chico Buarque e o levei pra gravadora. Não fiz o primeiro [compacto] do Chico porque o Julio era o diretor artístico, fui assistente da gravação. No ano seguinte acontece “A Banda”, aí o Julio me diz: “Pega o Chico e vai você pro estúdio”. Com a produção de “A Banda”, começaram a vir mais coisas até que, em 67, mudei de gravadora e fui parar na Tropicália. Você encontrou a Tropicália ou a Tropicália encontrou você?

Estava na RGE quando Luiz Mocarzel, que era gerente do departamento comercial da Phonogram, me ligou perguntando se eu não queria ir trabalhar lá porque eles estavam precisando de um diretor artístico. Aí lá vou eu, fascinado porque já sabia o que era o casting da Phonogram: Caetano, Elis, Jair, Tamba Trio, uma nata da música brasileira. Lá, a primeira reunião foi sobre o Festival da Record de 67. Ficou muito na minha mão gravar os artistas, principalmente os que estavam radicados em São Paulo. Das 36 músicas classificadas, gravei 23. Acabei produzindo “Domingo no Parque”, “Alegria, Alegria”, “Roda Viva”... O Caetano e o Gil vieram com a ideia de colocar guitarra elétrica dentro do arranjo, que não era usual naquele tempo pra música popular brasileira - e que era o meu sonho também. Eu sonhava com buscar novos caminhos pra música popular brasileira. E eles simplesmente colocaram o prato com a comida pronta na minha frente. Então,

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me encontrei ali. O que estava ouvindo quando começou a trabalhar com eles?

Ah, o que todos nós ouvíamos, né. Beatles, Rolling Stones, era isso que acontecia no mundo, e acontecia a Jovem Guarda no Brasil. Então, o rock abria um caminho. Essa referência era uma ponte pra você se basear e usar dentro da música brasileira. Acho que conseguimos porque estamos aqui, 50 anos depois, falando do mesmo acontecimento que veio da criatividade dessas pessoas e que veio a mexer com toda estrutura da música brasileira. Do mesmo jeito que a bossa nova, o Tropicalismo mexeu com a estrutura da música brasileira, abrindo caminhos. Mutantes, pra pegar um exemplo, abriu caminho pra bandas, maestros, arranjadores. Esse era o objetivo. Não copiar ou repetir aquilo que já tinha sido feito dentro da música brasileira, fazer algo mais. Em 67, havia muita resistência à influência estrangeira e à presença da guitarra na música brasileira. Como você sentia isso?

Sentia como uma coisa muito natural. Era o óbvio. Não tem nada que você faça na vida, quando tenta modificar alguma coisa já existente, em que você não vá encontrar o “pró” e o “contra”. É absolutamente impossível. Isso é natural do ser humano. Então, sentia aquilo como normal. Obviamente, que “normal” é um modo de dizer. Você estando, como eu estava, na coxia do Teatro da Universidade Católica em São Paulo, no Festival Internacional da Canção de 68, com o Caetano cantando “É Proibido Proibir” e você tem que entrar no palco e ajudar Os Mutantes a tirarem os instrumentos porque não tinha condição de continuar e, quando você olha, passa uma coisa voando por cima da tua cabeça.


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