Centro de Estudos do Humanismo Crítico Portugal & América Latina
Grupo de Debates Noética
PIABIYU
1ª Ediç.2004 / 2ª Ediç. 2017
João Barcellos
ÍNDICE
Apresentação / Aziz N. Ab´Sáber O Eldorado Histeria Nas Bancas Da Sexta Idade Piabiyu: A Rota Que Os Jesuítas Escolheram Para O [Seu] Império Teocrático Piabiyu: A Rota Do Sonho A Importância Do Piabiyu Enquanto Rota De Progresso Dos Nativos Do Piabiyu
ANEXOS Piabiyu & Serra d´Itaqui João Barcellos
Piabiyu: a rota do velho americano Mário G. de Castro
Cepellos: do Certam do Piabiyu à Sampa Cultural João Barcellos
A Inquietude Intelectual No Piabiyu Figuera de Novaes
Um Teatro Piabiyuano Mary O´Connor
APRESENTAÇÃO Aziz N. Ab´Sáber
Acerca do Piabiyu Nas suas investigações acerca da “a rota primitiva de comunicação entre os Povos da Floresta sul-americana que levou a ‘sexta idade’ [a do mercantilismo selvagem europeu] a destruir a rica Civilização inca”, que ele diz, e assim escreve, ser o “piabiyu”, em vez do tradicional “peabiru”, João Barcellos é claro o suficiente nos seus esclarecimentos tendo em mãos documentos e investigações de campo – um trabalho “com mais de 20 anos, iniciado em Lisboa, em 1975, em ocasional olhada sobre uns ´papeis do brasil´ ali depositados”, como assinalou em duas palestras que pude assistir e participar, em Santana de Parnaíba e Carapicuíba. Este “piabiyu” é uma longa e cuidada pesquisa que agora virou livro, uma peça que ajudará a abrir outras ´janelas´ de investigação histórica. E, fora do âmbito acadêmico, João Barcellos vem retirando da poeira circunstâncias históricas que colocam em dúvida algumas ´certezas´ espalhadas em manuais escolares. “E basta uma leitura mais atenta nas atas da Vereança paulistana e nos papeis da Capitania vicentina para se verificar que parte da história em que se levantou o Brasil a partir da Sam Paolo dos Campi de Piratinin deixou de ser contada”, disse ele em uma das palestras. Esse ´algo´ também eu já havia percebido e muito particularmente em relação ao “piabiyu” em conversas com Hernâni Donato. Ao adentrar o “piabiyu”, este intelectual luso-brasileiro, com assento na velha Acutia dos guaranis, levantou da poeira uma geografia nativa e colonial que hoje é a base da moderna sociedade em que vivemos, além de deitar por terra mitos como “as aldeias construídas pelos jesuítas”. João Barcellos tornou-se um especialista nestes assuntos da luso-brasilidade referentes aos Séculos 16, 17 e 18; e, como já disse o Prof. Soares Amora, “este jovem intelectual está a bandeirar a sua própria essência além-mar”. Por outro lado, este “piabiyu” mostra que “a gente guarani teve uma importância geosocial ainda não estudada devidamente na relação com os portugueses de serr´acima (leia-se Affonso Sardinha) e os do litoral (leia-se Bacharel de Cananeia), relação que, inclusive, originou a primeira comunidade luso-brasileira na aldeia Gohayó”. Assim, entre a literatura já conhecida acerca deste assunto, o livro “Piabiyu”, de João Barcellos, chega para sacudir mais ainda a memória paulista e brasileira. AB´SÁBER, Aziz N. – Cotia-Br., 2004.
A história que somos é uma estrada tão local quanto mundial, porque a humanidade se fez, e faz, por rotas tão similares que a história de um caminho, por vezes, une vários povos. É o caso do Peabiru, cuja história guarani o luso João Barcellos nos traz para novos olhares, talvez uma releitura geográfica e social. DONATO, Hernâni – São Paulo / Br., 2004.
Entre a serrania da Jaguamimbaba e a d´Itaqui encontra-se o eixo dinâmico do Peabiru/Piabiyu, por onde passou o alemão Schmidel antes de encontrar o gentio do ´velho´ Ramalho no planalto. Em pesquisas com João Barcellos, e o apoio de Ab´Sáber e de Donato, lançamos um novo olhar para essa geografia que é a história pura dos guaranis aos portugueses. HARADA, Susumo – Itapevi/SP-Br., 2004.
1 O Eldorado
As notícias mercantis que chegam a Lisboa, Sevilha e Barcelona, os três portos ibéricos de grande influência decisória no universo do início do Séc. 16, dão conta de dois assuntos cuja discussão vai muito além da registrada no Tratado de Tordesilhas, em 1494, e que o cosmógrafo Duarte Pereira Pacheco [1], que ali representara o rei
português D. João II, teria conhecimento de algo mais para ter tido um discurso tão duro na defesa da ‘Insulla Brasil’... No ano 1524, o português Aleixo Garcia – um marujo desgarrado no Sul americano e aventureiro na região de Patos, onde, embora de essência migratória, predomina a nação nativa Karai-yó / Carijó [*] – sabe de um ‘rei branco que governa uma nação rica na serra nevada peruana’. É o que dizem os carijós, história confirmada a mais de um milhar de quilômetros pelos nativos ditos Charrua, e “...os charruas constituem a ‘porta de entrada’ para a Civilização Inca. Mas, para chegar ao povo charrua, o aventureiro português tem que ‘apanhar o Piabiyu’ [**], primeiro por via fluvial e depois por via terrestre... A ação do português e seus comparsas é de pura rapina: chegou, por relato de raros sobreviventes da expedição, a roubar prata e ouro e estanho, mesmo estando muito longe de Cuzco e de Huayna Capac [o famoso ‘rei branco’ do Império inca], mas acabou morto num ataque dos guerreiros da nação Payaguá, nas margens do Rio Paraguay” [2].
E assim chegou aos portos ibéricos a notícia do ‘eldorado’.
2 Histeria Nas Bancas Da Sexta Idade
Ouro, muito ouro! Prata, muita prata!... É o grito geral entre os marujos portugueses e castelhanos, fartos de ouvir falar e de cheirar cravo e canela, açúcar e noz moscada, pimenta e gengibre, e outras especiarias da Índia. O que é preciso é ouro e prata!, concluem. O grito dos marujos aventureiros, voz de um Povo sem direito à Cidadania, chega rapidamente aos detentores do Poder efetivo nas Coroas ibéricas: os banqueiros e armadores, em geral, e os financistas judeus, em particular, que se integram à Odisséia Marítima dos dois países que dominam o Mundo conhecido, e ainda sob controle da Igreja Imperial romana. Quer em Portugal quer na Espanha, os grandes senhores da Economia européia criam departamentos e interagem com as Coroas, reinventam a linha bancária e os juros criados pelos Templários. As cidades que concentram os ‘imperadores do dinheiro’, como Antuérpia e Augsburgo e Nuremberga, de onde saem os Imnhoff, os Welser, os Rott, os Hervarts, os Fugger, contando-se ainda com as famílias abastadas da Liga Hanseática [de cidades alemãs como Bremen e Danzic, entre outras], que já dialogam comercialmente com gentes e produtos ibéricos. Isto faz de D. Manuel I um ‘rei mercador’ com poderes que põem em alvoroço os bispos católicos da Igreja Imperial romana. Por outro lado, o sucesso português faz de Lisboa o porto preferencial derrubando as potências que foram Gênova e Veneza, de onde, para a pré-campanha marítima coordenada pelo infante-regente Pedro, duque de Coimbra, e em alguns aspectos com o irmão Henrique, haviam sido cooptados pilotos e cientistas de grande conhecimento naval e estabelecendo-se a serviço da Coroa, nas regiões de Lisboa e nas do litoral de Coimbra. E é sob a égide da visão científica e diplomática de Pedro que navegam todas as embarcações portuguesas já sob o novo conceito marujo de ‘navegação em mar de longo com vela e rota precisa e na certeza astrológica’ contra o antigo ‘rumo e estima’.
Consagrado território da Coroa portuguesa, em 1500, a ‘Insulla Brasil’ divide-se em duas partes pela passagem da ‘Linha de Tordesilhas’: um meridiano separador [370 léguas a Oeste das ilhas africanas de Cabo Verde] das terras descobertas e a descobrir entre lusos e castelhanos, sendo o Sul da costa domínio castelhano... Território demarcado, o qual até o Bacharel de Cananéia [dito o ‘imperador de Cananéia ao Sul’] respeita na sua ação de precursor do tráfico de nativos para mercadores europeus, para outras nações nativas, e ainda de mediador políticoadministrativo nas contendas locais! Ora, não existe dinheiro de banqueiro nem de armador ou comerciante que faça os portugueses lutarem, ao mesmo tempo, contra nativos e castelhanos ao Sul da tal ‘linha’, que Colombo queria ‘imaginária’ [***], mas que Duarte Pacheco, em Tordesilhas, define cartograficamente. Está em causa, nestes Anos 20 do Séc. 16, a conquista do Sul e do ‘eldorado’, já uma lenda viva e vivificadora entre banqueiros e marujos.
** Deve-se dizer que a ´Ilha do Brasil´ é assim designada em 1343 pelo rei Afonso IV, em carta ao papa Clemente VI, depois que o capitão Sancho Brandão arribou a Lisboa carregado de toras de ´páo vermelho´ (ou ´brazil´) e alguns nativos retirados da costa norte da ´ilha´, talvez além da foz de um ´ryo siará´; o capitão havido sido arremessado, em meados de 1342, para a outra banda atlântica por uma violenta e demorada tempestade. Quando, em 1500, a frota de Pedro Álvares Cabral faz a ´volta grande´ para apanhar a tal ´ilha´, ele celebra a posse da mesma e logo retoma a viagem para a Índia, pois, está na América e não na Índia. **
No momento em que, e corre o ano 1530, o rei D. João III nomeia o amigo e conselheiro Martim Afonso de Sousa para dirigir uma expedição destinada à conquista do Rio da Prata, ele abre mais uma longa contenda com a Coroa espanhola, que tem informações certas, reunidas e enviadas por Zuñiga, seu embaixador além-Equador. O certo é que esse homem de armas e de letras, ‘amigo do rei’, não tem como chegar à Rota do Piabiyu, nem conta com a ajuda de Cosme Fernandes... [3], que não quer saber dos interesses da Coroa, pois, ele é ‘senhor absoluto da Aldeia Gohayó e Porto das Naus até Laguna’, e tão ´senhor´ que faz de Gohayó o primeiro núcleo lusobrasileiro nascendo aí a primeira linhagem mameluca. E, sendo ele um judeu ibérico ilustrado, trata dos (seus) assuntos como castelhano, assim, mesmo derrotado pela armada de Sousa, acaba por obrigar o reinol a retornar para a vida boa de Lisboa. E mais uma vez a Coroa lusa se vê forçada a engolir os próprios erros diante da perseverança da Coroa espanhola. Ainda o ‘amigo do rei’ amarga suavemente o fracasso da sua expedição, quando toda a Europa fica a saber que, em Novembro de 1532, o imperador inca Atahualpa, filho daquele Capac, é cercado e destruído por uma tropa espanhola comandada pelo aventureiro Francisco Pizarro, cuja ação sanguinária é tão vergonhosa para a História que faz arrepiar o espírito ocidental da cristandade. A partir de então o ‘eldorado’ passa a ser uma lenda morta na Rota do Piabiyu, enquanto a Igreja Imperial romana entra em declínio, e os banqueiros e os armadores abrem novos departamentos em Sevilha, a Capital das capitais da Sexta Idade e do
Capitalismo selvagem em pré-globalização! Se a Liga Hanseática foi importante na era medieval, na era caraveleira o eixo é Lisboa e Sevilha, apesar do episódio histórico de 1342... Para os portugueses existem duas questões em relação ao Brasil: a] como anotara Caminha – o escrivão cabralino – a terra nova é um ótimo porto seguro para as embarcações que tenham de prosseguir outros rumos, logo, um porto de passagem e não um ´ilha´ a ser explorada de imediato; b] fazer a rota das especiarias é a tarefa mais importante que se impõe à Coroa, não o assentamento de arraiais coloniais na Insulla Brasil. A análise do industrial e estudioso Roberto Simonsen sobre este ponto é definitiva: as cargas comerciais na rota do Cabo valem dez vezes mais do que aquelas tratadas na rota do Brasil, por isso, a Coroa não tem interesse naquele pequeno valor econômico. Assentar colonos portugueses, que deveriam integrar-se de alma e corpo e espada à conquista dos sertões, escalada a ´muralha´ que é a Serra do Mar, não é coisa fácil. Então, os privilegiados da Coroa e os aventureiros mais sanguinários ganham sortes com a instituição da Capitania Hereditária e com a Sesmaria. Assim, o assentamento do Português na Insulla Brasil é geográfico e é ideológico: interessa a continuação da Monarquia nos domínios ultramarinos e o alargamento das Casas fidalgas e brasonadas. Entretanto, além da Serra do Mar estão certõens y mattos, e o Português tem de conquistar primeiro a serra, saber dos caminhos utilizados pelos Povos da Floresta; entre Maratayama e Gohayó, Sam Paolo dos Campi de Piratinin e Curitiba e o Rio da Prata, surgem boas novas: o que se alcança por mar e rios, também se alcança por terra. É aqui que o Português descobre não estar tão longe das suas terras serranas do Minho, de Trás-os-Montes e da Estrela. No seu sangue corre o espírito celta da aventura que ajudou a fazer Portugal. Mas, é preciso adentrar o Piabiyu. E decidem fazer do povo nativo a chave para a aventura sertaneja. E o Piabiyu vai, lentamente, abrir-se ao imaginário sedentário do Português e permitir, no aproveitamento dos sítios nativos, relações de miscigenação necessárias para o seu assentamento. Se é verdade que a Feitoria é a base do estabelecimento e da guarda do Português na costa brasileira [...e lhe é tão vital que um desgarrado, mas esperto aventureiro como Cosme Fernandes (o Bacharel) ousou fazer a sua própria ´feitoria´ e reinar sozinho!...], também é verdade que a lenta ocupação dos sítios nativos do Piabiyu cria, em definitivo, o arraial português nos certõens y mattos guaranis e tupis a ser imitado, a seguir, nas bandas baiana e pernambucana, quer com yngenhos d´açúcar quer com mineração. Os percursos do Piabiyu recebem, diga-se, os primeiros núcleos da luso-afrobrasilidade que, em si, iniciam uma outra geopolítica: o Brasil-nação. Quando a Coroa portuguesa se dá conta, à parte a Questão Jesuítica, de que o Português do Brasil é mais brasileiro do que português, uma nova histeria toma conta
da Sexta Idade lusitana e europeia. Ora, despovoada está a Nação lusa e povoada está a tão ignorada ´ilha´ sul-americana. E o Brasil começa a ganhar uma alma pátria. É que em Portugal se desconhece que o Piabiyu não é somente uma rota de povos longínquos, ele sinaliza o mais longínquo e elementar desejo de ter e amanhar um punhado de terra. E, aqui, Portugal abandona o status de nação primeira do mundo para vivenciar o seu umbigo ibérico, enquanto que em todos os sítios nativos da Insulla Brasil soam os tambores de algo novo e grande. E, isto, é algo que deve ser dito com todas as letras em ´bando´ lançado em todas as idades a toque-de-caixa ou música eletrônica!
3 Piabiyu: a rota que os jesuítas escolheram para o [seu] Império teocrático
Affonso Sardinha (o Velho) e Ulrich Schmidel
No início dos Anos 90, do Séc. 20, visito vários lugares de Cotia, São Paulo e Embu, e percebo que o nome Cotia e a Rota do Piabiyu, lembrando Hans Staden, Ulrich Schmidel e o ´velho´ Affonso Sardinha [cujas façanhas conheci por leituras na Europa], estão no memorial daqueles aventureiros. Então, por que Cotia, Santana de Parnaíba, Carapicuíba, Quitauna, Butantã, etc., não têm registro oficial das histórias que a colocam na fabulosa rota sul-americana? Logo, inicio os primeiros levantamentos. Após uma conferência na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, no ano 1991, aproveito para recolher ali dados sobre a Acutia carijó registrada entre os guaranis da Meiembipe por Hans Staden, em seu livro publicado em Essen. E, ali mesmo, surge a ligação naturalíssima com o Piabiyu, além de que o próprio nome Acutia, do guarani Koty [q.s. ‘ponto de
encontro’] e, Bacotia [q.s. ´seguir em frente´], demonstra por si como a Nação guarani se dispõe em migrações pela costa brasileira e no trajeto da Rota do Piabiyu – os guaranis são sentinelas avançadas, daí, dão o nome de Koty a quase todas as suas aldeias estratégicas, entre o litoral e as bocas-de-sertão, a sul e a norte.
De Acutia (Meiembipe) em Acutia (Piratininga), de Caucaia (Paranapiacaba) em Caucaia (Jaguamimbaba) e mais Caucaia (além Ryo Siará), e de Ibituruna (Meiembipe) a Ibituruna (certam de Cataguaz), eis o caminho geral guarani: o Piabiyu. A aldeia carijó Koty [Cuty, Acutia, Cotia] situada na campina do Caiapiã faz parte do complexo das bocas-de-sertão que sinalizam o Piabiyu, e está a poucos quilômetros da Aldeia Jesuíta mandada erguer pelo padre Manoel da Nóbrega no planalto dos Campos de Piratininga, e denominada de São Paulo, onde vive gente guarani. Para lá d´Acutia guarani, que dá nome a um rio que liga a Paranapiacaba ao Anhamby, existe uma outra aldeia denominada Japiuba, umas vezes, e Maniçoba, outras vezes, nas cartas de Nóbrega, mas também aldeamento de várias gentes nativas, que não servem aos intentos jesuíticos de adentrar na jurisdição castelhana pelo Piabiyu, pelo que, em posterior carta de Anchieta, que ajudara Nóbrega na instalação da aldeia Sam Paolo, sabe-se que os próprios jesuítas transferiram aqueles nativos, já catequizados nos fundamentos católicos, para uma localidade mais próxima da velha rota, à qual os nativos chamam de M’Boy [q.s. ‘cobra’ no Tupi-Guarani], de onde Embu. Quais são as intenções da Societa Jesu? No território português demarcado pela Linha de Tordesilhas eles sitiam os nativos e impõem, a par do Tupi-Guarani como Língua geral, a Língua portuguesa, em meio à catequização dos fundamentos católicos. Entretanto, a liturgia cristã não precisa dominar seja quem for para estar presente nas linhas coloniais portuguesas, como as africanas e as orientais, basta uma conduta diplomática adequada às circunstâncias. Por que, então, essa ação de evangelização colonial dentro do Império ultramarino português na América do Sul? Existem duas questões: a) no âmbito das dificuldades promovidas pela Contra-Reforma, a Igreja Imperial romana é obrigada a multiplicar as ordens religiosas, mas precisa ir mais longe, ou seja, precisa criar um corpo expedicionário miliciano que resguarde, no Novo Mundo, os seus interesses espirituais e capitalistas; b) e assim, em 27 de Setembro de 1540, por bula do papa Paulo III, é criado o ‘Regimini militantis Ecclesiae’, ou seja, Roma concretiza a Societas Jesus segundo o desejo de Inácio de Loyola [1491-1556], que a havia fundado em Paris dentro do mais puro espírito cavaleiresco do ‘padre em armas’, que Roma e os monarcas autodenominados cristãos tanto criticam nos Templários. Diante da explosão do Capitalismo e das Coroas cada vez mais independentes das ordens de Roma, a Igreja tenta uma opção radical e definitiva: a criação de um Império Teocrático sulamericano. Os jesuítas são o seu instrumento, a sua arma. Da América portuguesa para a América espanhola através do Piabiyu. Tanto assim, que o relatório quadrimensal de Anchieta [Maio/Setembro de 1554], já ordenado padre pelo próprio Nóbrega, mostra com todas as letras a disposição última e mercantil da milícia: “...descobriu-se uma grande cópia de ouro, prata, ferro e outros metais, até aqui inteiramente desconhecida (...) a qual julgamos ser um ótimo e facílimo negócio, de
que já por experiência estamos instruídos”, referindo-se à expedição na qual tomou parte o padre João de Aspilcueta Navarro, que conhece os carijós do Sul. Está desvendado o velho caminho para a Bacia do Paraná e as fortunas do Rio da Prata, onde é possível, e finalmente, estabelecer um Estado teocrático temporal e recolocar Roma no centro do Poder mundial. Os jesuítas precisam, também, de criar um foco místico para maior atração do Poder colonial e dos Gentios. Em torno de umas gravações indecifráveis encontradas em pedras e na narrativa nativa que dava conta de um tal pregador-sábio de nome Sumé, ou Zumé, os jesuítas aproveitam o evento e fazem o jogo: ‘se nós encontramos o caminho antes de adentrá-lo, isto é milagre, e só pode ter sido de S. Tomé, que evangelizou a Índia’, dizem e repetem. Eis a razão pela qual se diz do Piabiyu o ‘caminho de S. Tomé’. Enganam-se os jesuítas: nem S. Tomé catequizou a Índia, que não é as ‘Índias’ americanas, nem havia passado por estas, e só o imaginário explorador de uma circunstância tão radicalmente assumida poderia fazer rebatizar a velha rota nativa... De onde vêm o nome Sumé/Zumé e os ‘livros de baixo-relevo’ esculpidos nas pedras? Por que os jesuítas querem tomar para si e cristianizar o nome mitológico dos nativos, também conhecido entre mexicanos e equatorianos e peruanos? Eis nos diante da História que é feita pelos Documentos e, neste caso, do Códice Meso-Americano... 1-
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Nas regiões maias, mixtecas e astecas, encontram-se esculturas em baixorelevo, tidas como ‘livros de uma Civilização em formação’, ou seja, pictogramas e ideogramas com diferenciais fonéticos, mostrando uma base social e mística. As imagens são comuns a muitos povos nativos em todo o Continente americano, o que demonstra ter existido, de fato, uma grande via de comunicação apontando para um velho e imenso Continente. Em um dos relatos nesses ‘livros’ da idade da pedra, pelas notas do pesquisador John R. Hinnels, está o tratamento sobre colheitas, doenças, etc, o que idealiza, quase demonstrando, uma ligação estreita com a figura mitológica e civilizadora do Sumé ou Phaim Zumé, que ensina sobre a agricultura básica e o combate às doenças comuns; figura presente no imaginário nativo americano e bem anterior à chegada dos europeus e da catequização católica. E não é, com certeza, um, mas vários ‘Pahim Zumé’ [Pahim, no guarani, significa ´Claro´ e não ´Pai´, o que contribui para muitos, como os jesuítas, fazerem interpretações levianas]. Quer na América lusa quer na castelhana, os padres da Sociedade de Jesus ouvem os mesmos relatos sobre esse Sumé/Zumé, barbudo e de pele branca [tipo encontrado em várias partes das Américas e] que transporta imensa sabedoria, o que é comum aos sábios e sacerdotes que, em todas as civilizações, desprendem-se das obrigações sociais sitiadas e tornam-se profetas andarilhos... deixando marcas da sua passagem, particularmente baixos-relevos em pedras e árvores. Assim é, também, ao longo do Piabiyu. Entre as escolas místicas patrocinadas pela Igreja Imperial romana está a inaciana, escolas que aplicam a meditação discursiva no conjunto iniciático dos rumos a tomar. Ao tomarem conhecimento dos baixos-relevos padronizados ao longo do Piabiyu [tal e qual faziam, por exemplo, os soldados romanos, que esculpiam os seus miliares de pedra para sinalizarem os novos caminhos da Roma imperial] e das narrativas sobre um sábio Pahim Sumé ou Zumé, eles apelam para a introdução do nome do apóstolo Tomé... O plano é o mesmo utilizado pela Cristandade romana contra a Civilização Celta: tomar e cristianizar todos os eventos sociais e pagãos, de onde as
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festas das colheitas tornam-se festas de são João, santo Antônio e são Pedro, enquanto a festa do Solstício de Inverno, ou Ano Novo – a New-Heyl, é celebrizada como natal católico...! Eis por que Sumé/Zumé vira Tomé. Mas não vinga entre os Povos da Floresta, nem a Igreja Imperial romana, já tão santamente pançuda precisaria de mais um ‘santo’. Para melhor esclarecer esta questão, lembro que Alfredo Bosi, na sua utilíssima ‘Dialética da Colonização’, reforça as teses de muitos pesquisadores e a minha: “...os missionários fizeram uma partilha tática no conjunto das expressões simbólicas dos nativos. Colheram e retiveram das narrativas correntes só aquelas passagens míticas na quais apareciam entidades cósmicas (Tupã), ou então heróis civilizadores (Sumé), capazes de se identificarem [...] com as figuras pessoais e bíblicas”
Além do Códice Mesoamericano existem as referências arqueológicas que testemunham a passagem de variantes do tronco da Civilização Celta [****], talvez ´vikings´ ou talvez ´godos´ e ´fenícios´, tribos marítimas, e das quais se sabe da existência de uma ´Insulla Brasil´ - a mesma que aparece no Mapa de Bartolomeo de Pareto, de 1494, e, anterior ao Tratado de Tordesilhas. Os achados arqueológicos em relação às andanças dos Povos Celtas permitem, pela similaridade dos elementos, traçar outros percursos expansionistas em todo o Continente Americano. Mas não se pode esquecer que, quando se trata dos celtas, a sua Civilização foi simplesmente trucidada, primeiro, pelo Império Romano, depois, pela Igreja Imperial dos cristãos institucionalizados. Entretanto, os sábios andarilhos de pele branca, barbudos e cabelos vermelhos da mitologia nativa americana, têm toda a configuração céltica...
4 Piabiyu: a rota do sonho E se havia sonho e desejo de o concretizar isso estava no espírito guerreiro de Manoel da Nóbrega [4], que vai combater os franceses na tomada do Rio de Janeiro [1560], e depois caminha, como diz em carta de 31 de Agosto de 1553, “sertán adentro” na direção do Paraguay. O sonho do Império jesuítico não é mais sonho... Na mesma carta, ele afirma, sobre Piratininga: “fiz aquela casa”. Realmente, quando ele transfere os filhos de nativos de São Vicente para Piratininga cria, aí, a aldeia dos Campos de Piratininga, sendo esta carta o [seu] registro fundador, demonstrando que o ’25 de Janeiro de 1554’ é mais uma estória colonial e que ‘Anchieta, fundador de São Paulo’ é parte da mesma trama mistificadora... É que, com o evento dos Felipes, no Poder ibérico, Anchieta foi o melhor intérprete da política expansionista castelhana, e o diz em cartas dirigidas à Coroa luso-castelhana numa atitude de feroz antipatia com os portugueses. É com a atitude insensata de Anchieta,
nos percursos do Piabiyu, que se inicia, também, o ódio geral da diáspora lusa contra os inacianos! Em outra carta, para D. João III, de Outubro do mesmo ano, Nóbrega diz de Piratininga, que é “...a porta e o caminho mais seguro para entrar nas gerações do sertão”. Os jesuítas, no seu ímpeto miliciano, dispõem-se na boca-de-sertão e, paradoxalmente, abrem os caminhos para as odisséias bandeiristas de Raposo Tavares e de Fernão Dias Paes, por isso, Nóbrega é apelidado pelo papa de ‘bandeirante de Deus’. As expedições em que os padres tomam parte, ora com aventureiros lusos ora com castelhanos ou alemães, dão um tal ‘cabedal’ de conhecimentos para a Sociedade jesuíta que a colocam como centro de dados estratégicos, logo, com poder decisório político-administrativo. 1553 é o ano em que, na boca-do-sertão paulistano e com o Piabiyu a descoberto, os inacianos iniciam o estabelecimento do seu Império a expandir e fixar nas jurisdições sulistas da América espanhola.
Obs.: “Utilizo a grafia ´piabiyu´ em vez de ´peabiru´ por ser aquela que mais se aproxima da sonoridade da tradição oral guarani em relação ao ´piabiyu´ originário do povo inca; um caminho continental não acabado, mas amplamente utilizado pelos guaranis e, no Brasil, de sul a norte passando pelo eixo Paranapiacaba, Paranapanema e Jaguamimbaba, eixo que antes serviu o assentamento dos portugueses de serr´acima e, hoje, é o pilar da logística rodoviária do sudeste tendo o ´rodoanel´ paulista como imagem-mãe do progresso”, João Barcellos – in “Das conversas com caciques guaranis e tupis” [jornal Corpus, Cotia-SP, Br., 1991].
4a O que é o Piabiyu inca?
Desde o complexo serrano andino ao oceano atlântico estende-se um espaço-tempo histórico, e são mais de 3.000 km que atravessam a Bolívia, Paraguai, Peru e parte do Brasil onde, qual rede logística, une velhos sítios de povos dispersos, principalmente os guaranis de entre Meiembipe e Maratayama, cuja ligação do sudeste ao norte (além foz do Eyo Siará) é feita de Acutia a Acutia, de Ibituruna a Ibituruna, de Caucaia
a Caucaia, etc., sendo que a designação ´acutia´, ou ´aku´ti´ / ´bacutia´ significa ´a casa de´ / ´ponto de encontro´.
4b
Cosme Fernandes (o Bacharel)
Quando o judeu ibérico, Cosme Fernandes, feito bacharel em Salamanca e ouvidor nas feitorias portuguesas do golfo da Guiné, ao tempo do rei João II, desembarcou por interesse próprio [documentos da feitoria de S. Tomé] em Maratayma [municípios atuais de Cananeia e Ilha Comprida], e de lá partiu para formar a aldeia Gohayó e o Porto das Naus [hoje, S. Vicente] com os guaranis, tornou-se o defensor do ´mapa´ castelhano em torno do marco-sul da Linha tordesilhana, pela qual portugueses e castelhanos tentaram chegar ao Império Inca seguindo a orientação de sobrevivência e escambo alimentar dos guaranis, tanto de costa a costa – também aqui, outro exemplo de continuísmo logístico: de Itapema a Itapema – como entre certõens y mattos além da Serra do Mar. A aventura do alemão Ulric Schmidel, que fez o percurso piabiyuano de volta, por terra, de Asunción a Buenos Ayres e dali a Piratininga passando pela serra d´Itaqui, logo, apanhando Paneíbo e Carapocuyba para sair do Anhamby e tomar o Jerybatiba na direção do Porto das Naus, demonstrou que o Piabiyu era o ´filão´ para os escambos [trocas mercantis: sal, crustáceos e conchas, algodão, mandioca, prata e ouro, etc., além de estanho e ferro] que os portugueses buscavam enquanto medida certa para dominar os povos nativos e assentar a nova colônia. Das referências registradas por Schmidel (e também por Hans Staden, outro alemão) sabe-se que em muitas partes o caminho era calçado e com sinalização gravada em pedras indicando o “umbigo do mundo”, que na língua Quichua se diz “cusco”: o Piabiyu tinha um pouco mais de um metro de largura.
Foi este Piabiyu que exploradores e políticos como Affonso Sardinha (o Velho) transformaram na rota de uma economia liberal que sustentou os primeiros 70 anos do assentamento luso, entre os Sécs 16 e 17. Foi neste Piabiyu que Manoel da Nóbrega vislumbrou erguer um império teocrático jesuítico sobre as ruinas do império inca.
as missões jesuíticas em espaço inca-guarani
E foi neste Piabiyu que os portugueses se estabeleceram entre escambos e esbulhos (pilhagem) e ergueram um Brasil a se dizer nação. Dois nomes têm suma importância na tomada do Piabiyu em dois momentos diferentes da colonização: Raposo Tavares (Séc. 17) e o Morgado de Mateus (Séc. 18).
O primeiro, bandeirante, expulsou os jesuítas e o ideal teocrático de poder imperial; o segundo, governador da Capitania paulista, avançou na ruptura do poder fundiário jesuítico e nessa ação criou novos assentamentos e novas vilas.
5 A Importância Do Piabiyu Enquanto Rota Do Progresso
5a O Piabiyu tem uma influência decisiva na conquista ocidental do vasto território sulamericano dos Povos da Floresta, que, segundo alguns cientistas, tinham rotas de comunicação desde a Era Glacial, quando as regiões da Antártida, Austrália, Índia, África e Américas, formavam um só continente – o Continente Gondvana. Pelas anotações do Morgado de Mateus, o primeiro Governador paulista do Setecentos, o velho caminho tinha o mérito de aproximar regiões de importância estratégica, quer no Desenvolvimento quer na Defesa dos interesses urbanos da Capitania, até por que ele tinha em mãos documentação jesuítica de grande valor cartográfico... Ora, é com os padres inacianos, e a notória atividade de Nóbrega, no lado português, e de Bartolomé de las Casas e Anchieta, no lado castelhano, que a busca do Piabiyu ganha o favorecimento dos povos Karai-yó e Charrua, mas especialmente dos primeiros, de Maratayama a Patos, através das suas Koty estrategicamente assentadas. Por este caminho avança a conquista, a escravidão e a humilhação dos Povos da Floresta,
logo, todo comércio possível, legal e de contrabando. Por causa da falta de fiscalização pública, já em 1533, Tomé de Sousa, primeiro Governador-Geral do Brasil, proíbe a utilização da rota nativa. Com a formação das bandeiras paulistas, para prospecção de riquezas e para a destruição definitiva do Império Teocrático jesuíta, instalado precisamente ao longo do Piabiyu e tendo a região paraguaia de Guairá como centro de orientação e de decisões, o caminho volta a ser o complexo viário mais movimentado das Américas.
5b 1580 é o ano em que Portugal fica à mercê da Espanha e dos poderes filipinos, pelo que as Américas lusa e espanhola passam a ser uma só até 1640 e fica sem efeito a bula papal de Alexandre IV [‘inter coetera’, de 4 de Maio de 1493, a qual dividia o Mundo entre Portugal e Espanha]. Os jesuítas, já publicamente acusados de tratar inadequadamente a população paulistana, aproveitam o evento político ibérico e se internam nas aldeias de Guairá. 30 anos depois, as Reduções Jesuítas possuem dezenas de aldeias e a Ordem inaciana é rica, em trabalhadores forçados e em ouros e pratas. É de fato o Império Teocrático jesuíta. Mas é um Império politicamente artificial e socialmente utópico no quadro colonial: os inacianos, tão gananciosos quanto outros aventureiros, isolam-se de Roma e enfrentam o legado colonial de Portugal através do apoio dos Felipes. Esquecem que no quadro colonial português existem tipos tão caracteristicamente iguais ao feroz Bacharel de Cananéia que aguardam somente a restauração da Coroa lusa para ‘darem o troco à ousadia da inaciana enricada’... No final dos Anos 20, do Séc. 17, os paulistas armam uma Bandeira [5] capitaneada por Antônio Raposo Tavares e destroem as Aldeias Jesuíticas sulistas, ação que se prolonga pelos Anos 60. Os jesuítas não se levantam mais enquanto Império. Entretanto, a sua ousada odisséia imperialista abre o Piabiyu para o assentamento de aldeias e vilas, e condiciona as nativas, como Cotia, aos novos tempos. No entroncamento da Rota piabiyuana, Cotia tornou-se um centro produtor rural de abastecimento para São Paulo, e o mesmo veio a acontecer com Itapecerica da Serra, Embu, Taboão, Ibiúna, São Roque, Itapevi, Santana de Parnaíba e Barueri; e ao redor da Rota, agora denominada via Raposo Tavares, surgem outras de igual importância [Regis Bittencourt e Castello Branco], mas todas ligando São Paulo ao Sul, sendo que as velhas são do conhecimento inaciano, e particularmente de Anchieta [6]. Piabiyu está na História do desenvolvimento do Brasil através dos esforços urbanos e sociais da capitania de São Paulo, e principalmente com a administração do capitãogeneral Luis António [o Morgado de Mateus] que governou de 1765 a 1777, época em que se inicia o assentamento de infraestrutura urbana e educacional. Das notas cartográficas do capitão-general, assessorado pelo engº-militar José Custódio de Sá e Faria, e os estudos de Afonso Taunay, sabe-se mais da
Rota do Piabiyu: uma extensão de 3000 Km e uma largura média de 1,40 m; a ser alcançada fluvialmente pelos Tibagy, Ivaí e Piqueri, e por terra, desde Maratayama e Gohayó / Porto das Naus [S. Vicente], passando por Piratininga, Carapocuyba, Acutia, Paneíbo, Ybiraçoiaba e Botucatu, até Paranapanema.
Uma epopeia para se chegar a um “rio rico em prata, ouro e cobre”, como escrevera, em 1524, o embaixador castelhano Juan de Zuñiga ao imperador Carlos V, segundo o original guardado no Arquivo de Simancas, em Sevilha.
Obs.: E a propósito de anotações cartográficas, e a título de curiosidade..., lembro que a Linha de Tordesilhas corta percursos do Piabiyu e que, por estes, entre Sant´Anna de Parnahyba e M´Baroery, passa o Trópico de Capricórnio [Lat. 23º 27´ 00” – S]. Paralelos ao Equador estão, então, os trópicos de Capricórnio [hemisfério Sul] e de Câncer [hemisfério Norte]. Explicando o Zodíaco, a partir do Solstício de Inverno e da noite-mãe céltica [a ´modra-necta´ que foi transformada em ´natal cristão´], o filósofo francês Antoine Fabre D´Olivet [1767-1825] diz-nos, na sua ´História Filosófica do Gênero humano´ [Paris/Fr., 1905], que Capricórnio é um dos símbolos balizadores da Moralidade e da Transmigração das Almas, enquanto que Câncer simboliza a Meditação para o equilíbrio. A par disto, a Linha de Tordesilhas defende povos marítimos tecnicamente avançados e dispostos a barbarizar os Povos da Floresta americana, estes, tecnicamente indefesos diante de tal ferocidade colonial. Os nativos sabem, quase sempre, meditar para o equilíbrio e para o diálogo com os povos d´além-mar, e ganham, moralmente, daqueles que ousam destruí-los com tanta soberba bélica e religiosidade... Eis por que muitos pesquisadores também se interessam por estas particulares e interessantes leituras comparadas, talvez até para mais uma vez lembrarem que a Humanidade fabrica circunstâncias que a levam ao próprio extermínio! Também, que os percursos do Piabiyu estão assentes, ou melhor, estão sobre a maior reserva d’água potável da Terra – o Aqüífero Guarani, que abrange a Argentina, o Paraguay, o Uruguay e o Brasil, e contém 50 quatrilhões de litros. Isto mostra que os Povos da Floresta sabiam abrir os caminhos da comunicação entre eles sem nunca perderem contato com o bem mais precioso da sobrevivência: a Água.
Retornemos, então, ao que o Piabiyu oferece àqueles que o desbravam como fonte de uma Vida nova. Três exemplos de pujança econômica do Piabiyu ocidentalizado estão no eixo CotiaCaucaia-Ibiúna-Vargem Grande Paulista: 1- no início do Séc. 18, a aldeia sai da campina do Caiapiã, no sertão carapocuybano, e avança para o outro lado da rota e do rio, no sertão itapecericano, para poder absorver melhor, à época, as circunstâncias do Desenvolvimento paulista e à margem da via Raposo Tavares; 2- no início do Séc. 20, a sábia e operária emigração nipônica instala-se na região, transforma-a num dos mais importantes pólos hortifrutigranjeiros e cria a Cooperativa Agrícola Cotia abrindo espaço para a instalação de um pólo industrial de porte médio. 3- A origem deste progresso está no início do Séc. 17, quando a ação minifundiária de enriquecer a lavoura paulista se estendeu às margens do Piabiyu. As casas dos senhores abastados espalham-se por M´Boy, Acutia, Ibiúna, São Roque. No lado acutiano, encontram-se o Sítio do Pe Ignácio [sertão itapecericano] e o Sítio do Mandú [no Caiapiã, sertão carapocuybano]; no lado sanroquense, o Sítio de Santo Antônio; antes delas, os casarões de Affonso Sardinha, no Ybitátá e no Pico do Jaraguá.
um dos casarões de Affonso Sardinha
Estas construções, de arquitetura típica que lembra velhos casarões nos morgadios do norte de Portugal, abrigam as famílias de ‘cabedal’ que vivem no e do cotidiano sertanejo. Nesta época, o Guarani/Carijó e outros nativos encontram tarefas de pequena agricultura e pesca que os sitiam, e nas quais nasce a dita lavoura caipira de subsistência; de certa maneira, ficam urbanizados, enquanto o Negro, feito escravo na África, torna-se a mão-de-obra que vai movimentar os ciclos açucareiro e cafeeiro, também em São Paulo e ao longo do Piabiyu.
5c Piabiyu _ aquém e além Yby Soroc
É um imenso ponto de encontro de guaranis e outros povos dispersos pela hileia, entre a Amazônia e toda a costa no Oceano Atlântico. Sim, o Piabiyu permite no oeste píratiningo o encontro de gentes cujas línguas não são sequer parecidas, e o que não é guarani ou tupi é “goayanaz – no dizer de caciques tupi-guaranis: gente vizinha”. Assim, entende-se porque além e aquém das yby soroc [soroca: terra rasgada] com o Cerro Ybiraçoiaba sendo o eixo das paradas para as migrações nesta parte do Império Inca, as aldeias são habitualmente de gentes tupi-guaranis assentadas no Piabiyu e a sinalizar a compreensão territorial daquele imenso e próspero império: próspero, mas ignorante ao querer que além de ´cusco´ existisse apenas o Piabiyu... A queda do eldorado inca transformou o oeste piratiningo, entre a Paranapiacaba, o Paranapanema e a Jaguamimbaba, em um ponto de encontro [ou ´aku´ti] que logo revelou as potencialidades geominerais tão cobiçadas pelos europeus. E do Jerybatiba ao Anhamby, com Ybitátá e Byrapoera no meio, e logo os cais da Carapocuyba, da Quitauna e de Paneíbo fizeram a ligação natural à yby soroc – um histórico espaçotempo no qual se origina, de Ibituruna a Ibituruna, o ciclo bandeirístico e o ciclo tropeiro. E, conhecendo a história deste espaço-tempo pode se compreender o que é a São Paulo do Século 21 e o seu Rodoanel, só para dar um exemplo da continuidade logística entre as gerações luso-americanas e brasileiras.
Duas Observações devem ser feitas quando se analisa a questão econômica do Piabiyu:
O Assentamento Da Lavoura Caipira E O Desenvolvimento Da Lavoura Comercial Depois Do Escoamento Do Contrabando Milionário
Lavoura Caipira & Lavoura Comercial Por um lado, no início do Séc. 17, percebe-se já uma diminuição drástica da mão-deobra nativa mercê do genocídio a que ela ficou sujeita até ao final do Séc. 16, logo, os complexos agrícolas do ciclo do açúcar e da variável hortigranjeira e pesqueira, precisam de um novo tipo de gentio, e é aqui que se desenvolve uma das mais bestiais atitudes da Raça Branca européia: a Escravidão. Caravelas e mais caravelas transportam ‘peças’ da Raça Negra africana para formar o gentio trabalhador nos complexos agrícolas em todo o continente americano, além dos arraiais da mineração. Se já existem nativos em fuga e formando agrupamentos escondidos nas montanhas e nas florestas ao longo do Piabiyu e nas outras rotas que cortam o Brasil, juntam-se a eles os negros africanos, que criam quilombos sob perfeita organização miliciana para uma resistência eficaz, como acontece no Quilombo de Palmares dirigido por Zumbi, do qual só se conta a história de quem o destruiu para que a memória negra não se integre oficialmente à História do Brasil... O que, também, choca-se com a estória tipo ‘algodão-doce’ contada em ‘Casa Grande e Senzala’ [7], pois, o que é preciso é dizer do Brasil! Entre meados do Séc. 17 e meados do Séc. 18, localidades piabiyuanas como Cotia [e seus bairros: Caucaia e Ribeirão da Vargem Grande, principalmente], Embu, Ibiúna, São Roque, e outras, até Curitiba e no Alto sorocabano, recebem, quer os nativos quer os escravos que iniciam uma lavoura caipira de subsistência, que, aos poucos, vai formar, com as produções hortigranjeiras e vinícolas ‘dos brancos’ [portugueses, espanhóis e italianos], o primeiro momento de abastecimento, em comboios de carrosde-bois e mercadores-a-volante, para São Paulo. E tudo isto, apesar de problemas de solos de pouca fertilidade e carência de tecnologias: mas, o caipira e o negro sabem, por experiência ancestral, extrair da terra o sustento que os leva a tudo e para o canto sincopado da cantiga de roda, que mistura graciosamente crenças que demonstram, logo aí, o nascimento de algo que poucos intelectuais brasileiros gostam de tratar – a Cultura popular brasileira, e que, como poucos, Chiquinha Gonzaga, Mário de Andrade e Tarsila do Amaral celebram profundamente!... Tais assentamentos criam, ainda que precariamente, uma vida sistêmica que, antes, não seria possível, porque tanto o
nativo americano quanto o africano precisam, unicamente, de alimentação básica para viverem... Em razão da Colonização Ocidental e Católica obrigam-se a uma espécie de urbanização emergencial, como aconteceu na própria Europa, quando regiões de vários grupos étnicos, como Portugal, transformaram-se em territórios nacionais no assumir o que o filósofo Manuel Reis define como dimensão sócio-antropológica da regionalização que sustenta a pátria de fronteiras definidas. Quando, no início do Séc. 20, e com todo o apoio governamental do Japão e do Brasil, instalam-se em Cotia [Moinho Velho, Morro Grande e Ribeirão da Vargem Grande] as primeiras levas da emigração nipônica, a perspectiva é de batalhar em solos pouco produtivos procurando soluções e novas culturas de adaptação [8], daí que, com a idealização e desenvolvimento da Cooperativa Agrícola Cotia [CAC] a comunidade nipônica vem a instalar ‘aldeias’ de cooperados precisamente no traçado do Piabiyu e retirando da lavoura caipira brasileira os necessários ensinamentos.
Ou seja: a CAC transforma núcleos caipiras, como Caucaia, Moinho Velho, Cotia, Vargem Grande, Ibiúna e Piedade, em cinturão verde, e começa a lavoura comercial, que, por sua vez e através do cooperativismo, instala pólos de armazenagem e distribuição ao longo do Piabiyu com ramificações na Região Sorocabana até ao Norte paranaense, principalmente Curitiba. Esta ação leva, ainda, a um melhor aproveitamento da via Vargem Grande – Ibiúna – Curitiba e transforma a ‘picada’ São Roque – Cotia em via transitável... Caipiras e negros, emigrantes e velhos colonizadores, cada comunidade a seu jeito, encontram na arte de cultivar e comercializar um denominador comum destinado a fazer de São Paulo o maior centro produtor do Brasil e, do Piabiyu, a via do Progresso. Mas, se o novo Piabiyu traz outras e melhores condições de vida para as suas comunidades, também é verdade que aqui se instala
uma política local de mando coronelístico que impede o progresso auto-sustentado, i.e., gentes que “...com grande influência [...], e quando não eram ligadas por
laços de parentesco, eram-no por interesse ou por conveniência política, constituindo, assim, núcleos políticos”,
como lembra Hiroshi Saito [9] num apontamento atualíssimo de 1964. Tanto assim, que em pleno 2017, Cotia não se “acha”, ainda [ao contrário de Barueri...], como ´região de entorno´ no eixo da via Raposo Tavares, ligada ao grande complexo viário que é o Rodoanel.
Contrabando Milionário Assim como acontece no porto de Paraty, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, os portos que ficam ao sul do Piabiyu servem de escoamento de muita mercadoria, seja de gente escrava, seja de riquezas da terra. Embarcados no Rio da Prata, portugueses e ouros e pratas e pedras preciosas, fazem a alegria de Manchester e de Liverpool, e em breve, com tal ‘cabedal’ à disposição das manufaturas locais, é iniciada a Revolução Industrial Inglesa..., como o industrial e pesquisador Roberto Simonsen [10] gostava de anotar. O involuntário patrocínio do Brasil para a grande mudança tecnológica e humana é inegável nas páginas da História que dizem respeito ao velho Piabiyu! Para este contrabando milionário contribuem todas as classes e correntes de opinião, desde o padre ao banqueiro, do nativo ao escravo, do fidalgo ao mais reles vagabundo. É que a Sexta Idade desenvolve em todas as pessoas um conceito que vai chegar e se fixar no neo-liberalismo Capitalista: não existe liberdade política sem cabedal financeiro, para o qual não é preciso ser culto..., basta ter, o que já era uma das bandeiras culturais no Teatro vicentino.
6 Dos Nativos No Piabiyu Se ao Sul encontram-se, no Séc. 16, gentes Guarani/Karai-yó e Charrua, entre outras e principalmente a nação Tupinambá, em Piratininga e São Vicente, como em Maratayama e Embu e Acutia, estão as Guarani e Tupi, principalmente estas. A criação da Sesmaria da Terra dos Índios, em 12 de Outubro de 1580, engloba as aldeias de M´Baroery e Carapocuyba, e outras, o que mostra a disposição nativa na região. E é Teodoro Sampaio, no seu apontamento [para o 4° Centenário de S. Paulo, em 1954] “São Paulo de Piratininga no fim do Século XVI”, quem nos situa bem na questão nativa, ao demonstrar que outros nativos, com o apoio de Anchieta, foram transferidos do Ipiranga para as terras de Pinheiros, onde o juiz Fernão Dias tinha uma aldeia”, sabendo-se por outras fontes, da existência de tupis em Piratininga, daí a familiaridade de Anchieta com eles, mas que não se permite agrupá-los com os guaranis (assim como os guarus e os maromomis da Jaguamimbaba, na Caucaia da
outra banda da Villa jesuítica, não a Caucaia itapecericana e da Paranapiacaba. Assim, na propriamente dita Rota do Piabiyu estão e dominam os guaranis (também ditos karay-ós/Carijós), da boca-de-sertão paulista a Desterro e Laguna, pelo litoral e pela mata. A não ser assim, Acutia não seria um nome guarani.
aldeia guarani e guarani tecendo rede
Em relação aos Povos da Floresta sul-americana, em geral, e aos do Piabiyu, falta, na concepção da Sexta Idade, uma ação sócio-antropológica que valorize a sustentabilidade local; falta que logo é base imprópria na extração do ‘pau-brasil’ e na escravização e genocídio dos nativos, quer nas expedições particulares de aventureiros quer nas armadas pelas coroas lusa e castelhana. O que se pretende é uma coesão social e de unidade imperial, de onde saem as famigeradas ‘capitanias hereditárias’. O que se pretende não é conhecer outros povos, trocar experiências e culturas, o que se pretende é instalar a máquina administrativa das políticas que algemam economicamente países e grupos. Nesta idade primeira do Capitalismo selvagem e global e da Igreja bestialmente enclausurada em Poder próprio e imperial, a Cidadania é um palavrão politicamente incorreto para quem não está ou não é Poder. É esta política meramente econômica que a Sociedade Jesuíta implanta, primeiro na São Paulo dos Campos de Piratininga e depois, ao longo do Piabiyu, no seu Império teocrático. Naquela velha rota, os inacianos enfrentam o próprio Poder colonial em expansão, a própria política imperial da Igreja romana e assentam, em fantasia ideológica, um possível Poder paralelo aos próprios desígnios da Palavra jesuana, que defende a universalidade do Ser humano, não a sua escravidão econômica e psicológica. Na sua obra ‘Regionalização...’, o filósofo Manuel Reis [11], teoriza estas questões esmiuçando-as no contexto lusitano, mas que podem e devem ser aplicadas ao Mundo, porque a máquina administrativa é a mesma para qualquer Poder estabelecido. Assim, temos que o Piabiyu vem a ser conhecido como rota estratégica da mercancia, com origem nos povos que nele se abrigavam e se comunicavam, a partir do Seiscentos colonial, mas sem que isso desse a tais povos o direito a serem parte integrante do Piabiyu ocidentalizado. Pelo que, até finais do Oitocentos, tanto o Guarani como o Tupi, entre muitos outros, desaparecem da cena social e passam para a memória folclórica e museológica do Brasil [já nação]. Certo é que o Europeu jamais vai admitir na sua roda social e familiar, na sua polis, a socialização do nativo americano, a sua personalização no contemporâneo afazer da Sociedade, enquanto que o nativo já não tem nem força própria e, muito menos, instrumentos políticos; e, por outro lado, “o Brasil-nação é uma ação da Sociedade branca que vai subjugar economicamente todas as etnias minoritárias e jogá-las em reservas administrativamente demarcadas segundo interesses das famílias imperiais” [12], na análise da moçambicana Céline Abdullah, autora de um estudo profundo sobre esta questão. Eis por que, no Piabiyu encontram-se, hoje, raríssimos exemplos
arqueológicos e arquitetônicos daquilo que ele representou para a Política e a Cultura ocidentais no âmbito do expansionismo colonial e do genocídio dos Povos da Floresta. O que diz respeito à Cultura nativa americana é de pouca monta para os poderes estabelecidos que, ainda hoje, estabelecem ‘reservas educacionais’ para a Cidadania colorida... Conhecer e estudar a Questão Piabiyu é dar a conhecer uma das memórias históricas do Brasil, que o é culturalmente! Florianópolis/SC, 1991; Cananéia/SP, 1993; São Paulo e Cotia/SP, 1993 a 1999. Texto revisado em 2017.
Notas [*] Carijó – do dialeto guarani Mbyá [= Karai-yo], no tronco Tupi-Guarani. [**] Piabiyu - do dialeto guarani Mbyá, q.s. pe/py = caminho/rota e biyu/biru = Peru // Caminho do Peru. [***] O navegador genovês, 1451-1506, que primeiro esteve nas Américas, defendia uma ‘linha imaginária’, mas efetivamente separadora para os interesses das Coroas lusa e castelhana... [****] Povos Celtas nas Américas? – Desde o México ao Brasil, foram encontradas inscrições idênticas às utilizadas pelos povos celtas [bárbaros, vikings, fenícios, godos, etc], e se existem referências arqueológicas da passagem deles pelo arquipélago dos Açores e América do Norte, nada nos impede de os ligar às tribos do mar que visitaram o continente americano, e às quais os diversos povos chamam de kupe-ki-kambleg [do Guarani, q.s. tribo estrangeira de cabelos vermelhos]. [1] PEREIRA, Duarte Pacheco – autor de ‘Esmeraldo de Situ Orbis’ e representante do Estado português no Tratado de Tordesilhas. [2] BARCELLOS, João – in palestra de apresentação do livro ‘de costa a costa com a casa às costas (sobre as origens do nome koty)’, Ed Edicon, São Paulo/Br., 1993. [3] Segundo dados recolhidos por Ernest Young, em 1954, o ‘bacharel’ (‘individuo que habla mucho y fuera de propósito y de tiempo’, in Dicionário de la Lengua Castellana, de 1516, também citado por Tereza de Oliveira na sua palestra ‘O Senhor Dos Escravos Na Terra Brasilis, Ou Um Bacharel Que Se Fez Imperador’, proferida no âmbito do Grupo Granja, Buenos Aires/Arg., 1996) seria o desterrado Cosme Fernandes Pessoa, o Mestre Cosme, de origem judaica, e que deve ter chegado ao Brasil com a turma de Fernando de Noronha, a quem foi outorgada, em 1501, a primeira concessão para a exploração do ‘paubrasil’. [4] NÓBREGA, Manoel da -
Portugal, 1517 – Brasil, 1570.
[5] Agrupamento militar da tradição árabe de ‘salteo’ para cerco e dominação. A ‘bandeira’ foi utilizada no traçado principal e no complexo viário do Piabiyu pelos ‘bandeirantes’ Antônio Raposo Tavares [português, 1598-1658] e Fernão Dias Paes [brasileiro, dito ‘governador das esmeraldas’, 1608-1681]. [6] ANCHIETA, José de [1534-1597] [7] FREYRE, Gilberto, [1900-1987] “...escreveu ‘Casa Grande e Senzala’ em terrível demonstração de clareamento da História, i.e., só conta a visão dos vencedores” [BARCELLOS, João – in ‘Por que não contar a História de um país chamado Brasil, de uma vez?’, pal., 1990, RJ/Br.]. [8] SEABRA, Manoel – in ‘Vargem Grande: organização e transformações de um setor do cinturão verde paulistano’ [1971] e ‘As cooperativas mistas do Estado de São Paulo’ [1977], obras publicadas pelo Instituto de Geografia, da Universidade de São Paulo / USP, dirigido por Aziz Ab’Sáber. [9] – in ‘O cooperativismo e a comunidade: caso da Cooperativa Agrícola Cotia’ [Ed. Sociologia e Política, SP/Br., 1964].
[10] – autor de ‘Evolução Industrial do Brasil’, entre outros livros, Roberto Simonsen [1889-1948] foi um dos principais incentivadores da organização industrial no país. [11] REIS, Manuel – ‘Regionalização: o que não foi dito!...’ [Ed Estante, Aveiro/Pt, 1998] [12] ABDULLAH, Céline – ‘As Estradas da Escravidão Colonial e do Terror Místico, entre o Ocidente e o Oriente’ [conf., Paris/Fr., 2000]
Fontes Para Consulta ´A verdadeira História Dos Selvagens Nus E Ferozes Devoradores De Homens´ - STADEN, Hans [Essen, 1548-1555]. Atas da Câmara Municipal de São Paulo´ - Arquivo do Estado de São Paulo. ´Bibliografia do 4º Centenário de São Paulo´ - 1954. ´Cartas da Companhia de Jesus´ - Arquivo do Estado de São Paulo. ´Cotia – da odisséia brasileira de são Paulo nas referências do povoado carijó - BARCELLOS, João; Ediç. Samper-Gonçalves, SP/Br, 1993. ‘Brasil, 500 Anos’ – BARCELLOS, João; Ed Edicon, SP/Br, 2000. ´Dialética Da Colonização´ – BOSI, Alfredo; Companhia das Letras, SP/Br 1992. ´Dicionário de Religiões´ - HINNELLS, John R.; Cultrix, SP/Br s/d. ´Documentação Colonial + Papeis do Brasil´ - Torre do Tombo / Biblioteca Nacional, Lisboa/Pt ´História Econômica do Brasil´ - JÚNIOR, Caio Prado [Ed Brasiliense, SP/Br 1945]. ´História do Brasil´ - SOUTHEY, Robert [Vol 1], Edusp, SP/Br 1981. ´Jaguamimbaba e Serra de Itaqui´ – HARADA, Susumo. Itapevi/SP-Br., 2011. ´Monções´ - HOLANDA, Sérgio Buarque de; Ed Brasiliense, SP/Br, 1945. ´Morgado de Matheus´ - BARCELLOS, João; Ed Pannartz, SP/Br 1991; 2000 e 2002. ´O Embu Na História De São Paulo´ - JORDÃO, Moacyr; Embu/SP Br, 1964. ´Pequeno Ensaio Do Peabiru´– HARADA, Susumo. Itapevi/SP-Br., 2008. ´Sobre o Itinerário de Ulrich Schmidel Através do Sul do Brasil´ (1552 – 1553 – MAACK, R.; Curitiba/PR, Br., 1959. ´Vocabulário Guarani-Português´ - SAMPAIO, Mário Arnaud; L&PM, Porto Alegre, RS/Br, 1986.
Imagens desenhos do poeta J. C. Macedo (1975) e de João Barcellos (1991 e 92), fotos ´guaranis´ de Egon Chaden (1949) e desenho inca de Pedro Cieza de León (1553); outras imagens, pinçadas da Web e s/ restrição autoral para publicação.
ANEXOS
Piabiyu & Serra d´Itaqui João Barcellos
Piabiyu: a rota do velho americano Mário G. de Castro
Cepellos: do Certam do Piabiyu à Sampa Cultural João Barcellos
A Inquietude Intelectual No Piabiyu Figuera de Novaes
Um Teatro Piabiyuano Mary O´Connor
Piabiyu & Serra de Itaqui O quadro geopolítico da expansão colonial jesuítica tendo Maniçoba como entreposto idealizador antes da Sam Paulo dos Campus de Piratinin João Barcellos
Introdução É preciso chegar às “terras dos guaranis”, eis o grito geral. “É preciso subir a serra do mar e adentrar os matos do planalto, pois, um alemão veio pelos caminhos nativos até Piratinin depois de atravessar muitos paranás e muitas aldeias e dar de cara com as terras do Ramalho, lá na borda do campo ao adentrar o planalto”. Os portugueses e os castelhanos sabem, então, que no Piabiyu existem rotas marítimas, fluviais e terrestres – uma malha de comunicação entre os povos nativos. A aventura da expansão territorial de portugueses e de castelhanos tem diferenças substanciais – a saber: a) aos portugueses interessa a missionação católica e, a par dela, o lucro com a divisão das riquezas entre o Estado e a própria Igreja; b) aos castelhanos interessa também a missionação, entretanto, para eles está em primeiro lugar o assentamento do seu modo de viver nas terras ocupadas. Conclui-se, portanto, que a ação colonizadora do Novo Mundo tem circunstâncias diferenciadas, e que os portugueses chegam e vão se ´aclimatando´, como fazem João Ramalho, Cosme Fernandes, Diogo Álvares Correia, enquanto os castelhanos tomam posse efetiva das terras e dos povos impondo a sua característica urbana. Mas, portugueses e castelhanos são, ao mesmo tempo, a ´besta´ que mata e esfola em nome de ´deus´... E assim é que uns e outros fazem os povos escravos, pelo ´cunhadismo´ e pela espada, e lá vão mato adentro em busca das riquezas. “Ninguém se faz ao mato sem ter uma perspectiva idealizada: por aqui eu chego lá”. Recepcionados com a oferta de esposas e filhas de caciques [aqui começa o ´cunhadismo´], o que não é norma para todas as tribos, os portugueses desgarrados da ação institucional colonizadora começam a forma[ta]r uma nova raça através dos três náufragos nas costas do norte e do sudeste, e ao longo da Linha de Tordesilhas. Quanto o Portugal institucional chega para colonizar encontra núcleos de lusoamericanos que facilitam, de certo maneira, o intercâmbio. Longe da modernidade do pensamento que gera urbanidade, os nativos americanos são simplesmente destituídos da sua alegria de viver a vida na exuberância da hiléia e passam a servir os colonos, tanto os fundiários como os místicos, e todos em busca das pedras preciosas. Durante a expedição do jesuíta Manoel da Nóbrega ao planalto da Serra do Mar, ele encontra-se com Ramalho, que lhe mostra a Aldeia Piratininga, e, pelos guaranis, fica a saber do caminho ancestral que liga as regiões sul do Novo Mundo – o Piabiyu. Não existe interesse de Nóbrega em relação a Piratininga, pois, o seu olhar alonga-se pelas bocas de sertão à procura de uma aldeia que possa tomar, catequizar, e dela saber como chegar aos grandes povos guaranis no entorno da ´montanha de prata´.
Conhecer o Piabiyu é, para os jesuítas, a chave para assentar no sul o seu império teocrático... Naquele olhar alongado e sob condução de guias guaranis, Nóbrega passa pela Koty guarani, embarca ali ao lado no portinho Carapocuyba e atravessa a Serra de Itaqui para, milhas depois, ´achar´ a aldeia-entroncamento à qual vem a dar o nome de Maniçoba. Entre a aldeia Maniçoba e a Serra de Itaqui inicia-se a expansão jesuítica e, com ela, a dominação colonial efetiva de Portugal na Insulla Brasil, porque se os ibéricos [lusos e castelhanos] chegam aos guaranis e aos incas no rumo sul, faltava-lhes o rumo suloeste para a expansão total e conquista da América do Sul, e o dado topográfico surge nos cadernos de Ulrich Schmidel. 1 Com os olhos no Piabiyu que leva aos guaranis Do planalto piratiningo, Manoel da Nóbrega e João Ramalho podem observar os picos de Jaraguá e de Itaqui, serras que lhes surgem como atalaias diretas dos povos goaynazes e guaranis, entre outros. No entorno de Jaraguá e de Itaqui vários povos aldeados observam, também, os movimentos do ´guerreiro´/cunhado Ramalho e do homem de preto. Já sabem do homem de preto pelas informações que lhes chegam no sistema de comunicação que é o Piabiyu [rede de caminhos ancestrais abertos e mantidos pelos guaranis no continente sul-americano, e de grande agitação nas bocas-de-sertão ´alimentadas´ pelas kotys [pontos de encontro] entre aqueles picos e o planalto da Serra do Mar. Entre a Serra de Itaqui e o alto maciço da Serra do Mar estão aldeamentos que se comunicam numa mistura de línguas, mas que têm o guarani e o tupi como base, e só não o fazem as ´nações´ que ainda têm o canibalismo como costume na sua sobrevivência alimentar. De resto, a vasta região a oeste do planalto piratiningo é um manancial de riquezas vegetais e animais – e mais uma: porta de entrada terrestrefluvial para locais de possível mineração de ouro, prata, ferro, esmeraldas, etc., e que é já, em meados do Séc. XVI, cobiça maior de aventureiros como o Bacharel de Cananéia, uma vez que João Ramalho é o português inteiramente integrado aos costumes nativos tupi-guaranis. É, pois, através do já luso-americano Ramalho que o chefe da milícia jesuítica tem de se entender para adentrar o ´sertão dos carijós´ e conseguir estabelecer um ponto estratégico favorável ao contato direto com os guaranis ditos carijós [karai-yos], e tal evento deve ser realizado além da boca de sertão, mas com comunicação terrestre e fluvial... A aldeia Carapocuyba é a primeira parada obrigatória, porque, ao lado da aldeia guarani Koty, é também um entroncamento terrestre e fluvial tão importante que só [d]aí é possível perspectivar outras possibilidades de expansão. Entretanto, os jesuítas talvez tenham utilizado a Koty por algum tempo, pois, foi aldeia importante por muitos anos, até ser abandonada e, depois, mudada para perto da nascente do rio que atravessa: algumas sugestões apontam até a Koty como o primeiro posto avançado jesuítico em terra guarani e no planalto itaquiano, mas é pouco provável que o olhar de Nóbrega tenha parado por aqui muito tempo, porque esse olhar além quer, então, um contato mais interiorano, e vai até próximo de Arassay [do tupi-guarani, q.s. “rio do araçá”], aldeia na margem esquerda do rio Anhamby, sob o morro do Ybituruna, e avança para as bandas de Jundiaí onde consegue, enfim, e ao que parece, estabelecer o contato tão desejado. E aqui começa a Questão Maniçoba. Na mente de Nóbrega, a sinalização exuberante das várzeas nas planícies serranas de Itaqui e sua gente não menos exuberante insinuam caminhos sutis que levam aos povos guaranis e aos povos da prata. Logo, os guaranis devem ser ´iscados´ e catequizados: impõe-se, então, a tomada de uma aldeia interiorana. Quando lhe é servida uma comida da dieta nativa que havia conhecido entre as gentes da Serra de Itaqui – a ´maniçoba´, uma iguaria feita com folhas [moídas e cozidas] de mandioca,
com preparo que demora mais de uma semana para a extração de um ácido venenoso, ele decide-se: Maniçoba, eis a nossa primeira aldeia no Piabiyu.
* É bom lembrarmos a narrativa do alemão Hans Staden sobre a iguaria “maniçoba”: “[...] As mulheres fazem bebidas. Tomam as raízes de mandioca, que deixam ferver em grandes potes. Quando bem fervidas tiram-nas [...] e deixam esfriar [...] Então as moças assentam-se ao pé, e mastigam as raízes, e o que fica mastigado é posto numa vasilha à parte”. O livro de Staden é a primeira ilustração literária acerca do Novo Mundo e, particularmente, sobre a fauna, a flora e os costumes dos povos sul-americanos, entre eles, os guaranis, que “Acreditam na imortalidade da alma” [idem]. O termo “maniçoba” é tão comum entre tupis-guaranis que os jesuítas não poderiam substitui-lo simplesmente, como tentaram, e em vão, fazer com outros termos guaranis da linguagem m´byana, e, inclusive, transformar a figura mítica guarani “Zumé” em “S. Tomé”...! *
O Piabiyu [do tupi-guarani pi q.s. caminho e abiyu q.s. pisado/amassado], e há quem diga que “abiyu” significa também “Peru” na língua antiga dos guaranis m´byanos, o que não deixa de ter relação direta com o ´caminho´, e que eu, inclusive, tenho adotado nos meus livros, artigos e conferências buscadas entre caciques tupis e guaranis. E adiante... Como aparece este ´caminho´ entre os afazeres dos marujos que ficam meses e meses na beira-mar, acosteados, e entre os colonos que ainda ´caranguejam´ no sopé da serra do mar? Durante os Anos 20 do Séc. XVI, o explorador do norte do Novo Mundo, o castelhano Cabeza de Vaca, após ter sido prisioneiro dos nativos norte-americanos, retorna para casa e é encarregado de conquistar a bacia do Rio da Prata, ao sul da Linha de Tordesilhas, em 1540. E, já no campus tordesilhano, assim o faz partindo de Porto de Patos e passando pela Foz do Iguaçu até chegar em Asunción, na prática, o mesmo percurso do português Aleixo Garcia, que se quedara a poucos quilômetros de Potosi, a fabulosa montanha de prata. É o percurso do lado sul do Piabiyu, entre o mar e os paranás que dividem o continente. Cabeza de Vaca encontra pessoas ligadas ao Bacharel de Cananéia que haviam estado com Garcia. Mas, por que o ´bacharel´ não quis saber de montanha de prata? Ele não era, como o Ramalho do planalto piratiningo e o Correia [Caramuru] da costa norte, o náufrago, mas aquele que quis ser o marco sul da linha tordesilhana e que também soube aproveitar a oferta do ´cunhadismo´ nativo e transformar-se no “imperador da costa sudeste”. Que mais lhe interessava?... O ´bacharel´ é, nos primeiros 40 anos da precária ocupação do litoral da Ilha Brasil, a referência do colono por excelência: eu posso, quero e mando. E, por isso, enfrentou a ´ordem´ institucional quando esta aportou na região que ele mesmo ajudara a povoar e que logo vai ganhar nome católico, como é da praxe colonial luso-vaticana: S. Vicente. Na verdade, se o ´bacharel´ se interessa pelas notícias que recebe dos guaranis do sul, acerca de Potosi, ele mesmo alcança a região e se declara independente do reino de Portugal. Nada mais justo, e a história da Insulla Brasil passa a ser outra, com Tratado de Tordesilhas ou não. Mas não é o que acontece. E as notícias que o ´bacharel´ não quis trabalhar são as mesmas que chegam a Cabeça de Vaca cerca de 10 anos depois. E o lado sul do Piabiyu cai nas mãos dos seus proprietários, porque entre a Cananéia e o Paraguay passando por Patos está o Poder castelhano e não o português.
O lado sul-oeste do Piabiyu só vem a ser conhecido com a aventura do retorno de Ulrich Schmidel para a Alemanha: ele faz o percurso do Piabiyu terrestre-fluvial pelo interior, de Asunción aos paranás da Insulla Brasil até chegar ao planalto de Piratininga e dar de cara com as terras e a filharada de Ramalho.
* É preciso ter a noção da grandeza continental hidrográfica da Insulla Brasil para se entender as particularidades da odisséia no espaço-tempo da aventura colonizadora – a saber: O território possui um sistema hídrico diverso e complexo entre as bacias fluviais e o oceano atlântico, com rios, lagos, arquipélagos, cataratas, golfos, baías. Na maioria dos casos, um rio caudaloso e com extensão a perder de vista dá o nome a uma bacia, como é o caso do Paraná, do Tocantins, do S. Francisco, do Paraguai, do Amazonas, etc., e a região demarcada pela Bacia do Rio Paraná, que mais diz respeito à história da colonização européia, abrange 879.860 km2 entre Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Paraná, Santa Catarina e Goiás, sendo que o Rio Paraná tem afluentes como o Rio Grande, o Rio Paranapanema, o Rio Iguaçu, o Rio Paranaíba e o Anhamby, todos cercados por um denso sistema florestal do tipo ´mata atlântica´, ´cerrado´ e ´araucárias´. Percorrer, ou, como dizem os lusos, ´palmilhar´ tão vasta região da hiléia sulamericana, não é tarefa para qualquer pessoa, e os europeus valem-se principalmente do apoio logístico dos guaranis para realizarem o desejo de ir em frente. *
A odisséia de Schmidel tem uma particularidade historiográfica: ele anota os detalhes geográficos em seus cadernos... Na data de 26 de Dezembro de 1552, acompanhado de 20 guaranis e 6 castelhanos, Schmidel quer, após 18 anos de aventuras, retornar a casa e sabe que tem embarcação aportada em S. Vicente. Antes de deixar Asunción, ele registra todos os dados possíveis sobre a ancestral trilha dos guaranis e cerca-se, então, de guias que já conhecem o percurso. Se o Cabeza de Vaca chegou a Asunción a pé depois de navegar o rio, eu vou pela banda do sertão, onde os perigos são menores, deve ter pensado Schmidel. Pelos nativos, sabe que a maior dificuldade é atravessar as 7 Quedas [´Saltos de Guaíra´ ou ´Guita´ ] rodeadas de vários povos não muito interessados em ´conversa´ com gente estranha, nem com outros povos do mesmo continente. O grupo sobe o Rio Paraná [Parabot] em canoas por 26 milhas até à foz do Jejui, onde encontra dois portugueses que decidem seguir a mesma trilha. Sobem mais 15 milhas pelo Rio Jejui até Barey; e mais 4 dias para 16 milhas até Gebarerge. Logo, e a pé, 9 dias para 54 milhas até Jbaroti, onde começam a descer o Rio Monday para alcançar o Rio Pamau [Paraná] e entrar em Giengáe. No total estão percorridas 100 milhas até onde começa a terra do rei de Portugal, segundo a anotação de Schmidel. Ele está na região que, poucos anos depois, seria cobiçada pelos jesuítas: a Argentina. A marcha que se segue é de 6 semanas até às aldeias dos Thopis [Tupi] por cerca de 126 milhas, com parada numa aldeia em Karieseba, onde dois europeus são mortos e devorados pelos nativos. Perito em armas de fogo, Schmidel sabe o que é fazer barulho, por isso, alimentamse de plantas e raízes em vez de saírem caçando animais, até que chegam a uma região com gente Biessaie [Mbiazàs], e podem aqui permanecer por 4 dias
abastecendo-se de provisões. Estão entre os guaranis m´byanos na região do urquaie [uruguai]. A partir de Biessaie, o chefe do grupo não registra quaisquer comentários e são 100 milhas, pois é uma caminhada de quase 4 semanas. Ao atingir um grande aldeamento, dito seherebethueba, o grupo descansa por 3 dias. Daqui, o grupo chega ao planalto piratiningo, território de Jahann Kaimunelle [João Ramalho], e deste percurso também não é feito registro sobre tempo ou distância. E mais 20 milhas serra abaixo, Schmidel alcança o porto de S. Vicente, com 2 europeus e os 20 nativos guaranis. É o dia 13 de junho de 1553. Um navio está pronto para zarpar rumo à Europa e levar o alemão de volta para casa, após uma marcha de 476 milhas, ou cerca de 2.500 km. No seu estudo sobre a marcha de Schmidel e os seus registros geográficos, dir-se-á ´precariamente topográficos´, diz-nos Susumo Harada que antes de chegar ao planalto da Serra do Mar, o aventureiro alemão passou por boa parte do Tape [ ou Paraná] e teve de passar pela Serra de Itaqui, porque era aí que se encontravam alguns dos nós mais importantes da malha do Piabiyu na entrada/saída de Piratininga, com passagem por Itu, Araçariguama, Koty e talvez Carapocuyba. Ora, não é por acaso que Schmidel dá de cara com a ´casa´ de Jahann Kaimunelle, é que pelo percurso guiado pelos guaranis essa era passagem. Na análise de Susumo o fato de não haver anotações sobre o percurso entre seherebethueba e o planalto piratiningo pode indicar que Schmidel já se sente a salvo, i.e., em Maniçoba... As anotações de Schmidel são um registro preciosíssimo que ajuda a mapear a malha piabiyuana sul-oeste, pois, a do sul já é bem conhecida desde os tempos de Aleixo Garcia e muito utilizada por Cabeza de Vaca. E, voltando a Susumo, ele faz a comparação necessária com os traçados da linha férrea que liga o planalto da Villa piratininga ao interior caipira do oeste. Resultado: um novo olhar historiográfico sobre a malha piabiyuana. A questão se coloca na relação Trem-Piabiyu não está apenas no maciço itaquiano e sua exuberância florestal [grande celeiro de araucária] para alimentar os fornos das marias-fumaças, mas e principalmente no assentamento dos trilhos que religam os velhos nós daquela malha de via terrestre, do planalto piratiningo aos campos rachados [´sorocaba´] do grande interior caipira que absorveu a maioria das tribos tupiguaranis após a intervenção de colonos como Afonso Sardinha. Espelhar o mapa do Piabiyu sobre o traçado da linha férrea sorocabana é verificar que, após os jesuítas e após os bandeirantes, e logo depois os tropeiros, mais uma vez a trilha guarani serviu de base para o progresso colonial.
2 Serra de Itaqui: a trilha pré-bandeirística. Pouco tempo depois, as trilhas da malha piabiyuana na Serra de Itaqui servem também à expansão dos negócios fundiários e minerários de Affonso Sardinha [o Velho], o mais rico e poderoso colono português, proprietário do primeiro trapiche [armazém de produtos e produção de cachaça] na Villa Piratininga, e vereador da Câmara Municipal: da sua fazenda no Ybitátá toma a aldeia-portinho Carapocuyba e segue para o Byturuna para minerar ouro e prata, mas volta para tomar o Jaraguá e aí minerar ouro além de estabelecer a sua principal fazenda, e vai a Araçoyaba, na Serra de Ypanen, para estabelecer a primeira siderurgia da América. Por que o ´velho´ Sardinha segue a trilha piabiyuana-jesuítica? Porque é ele, então, o principal financiador da Societas Jesu [SJ] e tira proveito do seu inteligente investimento. E, entre os seus negócios estão ajudas de custo e empréstimos ao capitão Jerônymo Leitão, que vem a estabelecer fazendas na região itaquiana de Mbaruery; o mesmo capitão que, em 1580, idealiza e executa a “sesmaria dos índios do pinheiros e barueri” para, justamente, proteger os interesses jesuíticos, os próprios,
e os de amigos e compadres como Affonso Sardinha, diante da queda do Trono luso nas mãos dos castelhanos. E é ele, o ´velho´ Sardinha, quem estabelece o mais produtivo curso mercantil entre as regiões agro-minerárias do oeste paulista e a recém fundada ciudad Buenos Ayres, momento em que as regiões de M´barueri e de Santana de Parnaíba ganham importância social e mercantil e disputam o espaço político com a Villa piratininga. Os percursos da malha piabiyuana no entorno da Serra de Itaqui vêm a formar as primeiras entradas das bandeiras paulistas rumo aos paranás que conduzem às pedras preciosas e aos confins da Amazônia. 3 Da distante Maniçoba para a entrada de sertão M´boy Pelo elementar e político desejo de ir/estar na ´terra dos guaranis´ é que o jesuíta Nóbrega avança sertão adentro e, tomando e refundando uma aldeia nativa lhe dá o nome de Maniçoba. Dizem algumas pessoas, entre elas jesuítas, que Maniçoba está a 90 milhas da Villa Piratininga, e outras, a cerca de 35 milhas, tendo a Villa vicentina como marco zero. Entretanto, certeza não existe. Pode estar naquele lugar que é o Rio dos Arassaris, logo após a velha Koty e a Carapocuyba, no lado esquerdo do Anhamby, indo por Jandira, ou mais além, talvez Araratiguaba [´onde os arassaris bicam na areia´]... mas, sabe-se, pelos próprios escritos jesuíticos, que os padres, a certa altura, são tão submetidos a ataques que têm de deixar Maniçoba, e vão se fixar numa aldeia guarani mais próxima ao maciço da Serra do Mar, que pode ser M´boy, ou Quitaúna, próximas ao portinho carapicuybano. O elementar e quase psicopata desejo de ir/estar na ´terra dos guaranis´ é, em Nóbrega, o exercício miliciano de constituir um império teocrático jesuítico no coração da América do Sul. Nem a São Paulo dos Campos de Piratininga nem a Maniçoba, nem qualquer outra aldeia, têm importância no quadro geopolítico nobreguense. São focos do instante da expansão, e só. A tal quadro de ação colonial junta-se, em 1554, o padre Anchieta, que dá seguimento ao plano teocrático gizado pelo seu superior hierárquico. Por isso, também, é que colonos e políticos importantes como Affonso Sardinha dão apoio fundiário-financeiro, mas não se integram na marcha jesuítica através da Serra de Itaqui, complexo geo-social que vem a ter importância fundamental no assentamento das riquezas agro-minerárias em torno de Santana de Parnaíba e M´Baroeri. Com exceção da Família Sardinha, todas as famílias poderosas arrancham-se entre Koty e M´baroeri, Carapocuyba e Santana de Parnaíba e Arassara-y[i], enquanto a São Paulo dos Campos de Piratininga quase se transforma num deserto de padres de várias ordens religiosas... com aluguéis a pagar ao economicamente parrudo Afonso Sardinha, o Velho, como sabemos pelo seu testamento. Eis que o abandono da Maniçoba o é em função da segurança dos religiosos e seus catequizados, e não em função do plano teocrático jesuítico, pois, a Maniçoba inicial dera os frutos tão desejados por Nóbrega: as informações sobre as rotas do Piabiyu. Tão importante é Maniçoba ao tempo de Nóbrega que este a batiza com nome nativo, e não com nome de santo católico... E, talvez pelo mesmo motivo, a velha Koty da beira do Anhamby continuou com o seu nome nativo embora tenha perdido a importância estratégica, assim como a perdeu Carapocuyba. No caso de M´boy, os jesuítas empenham-se com mais um colégio, mas tudo fica por isso mesmo, como que a demonstrar a passagem efêmera de Maniçoba pela história luso-jesuítica na ´terra dos guaranis´. No entanto, lá em Arassara-y[i], o arraial da mina de ouro no Byturuna explorado pelo ´velho´ Sardinha, e este sempre acompanhado por um padre jesuíta, dá lugar a outros arranchamentos e fazendas, tendo pelo meio o Rio do Colégio... que, cronologicamente, é um rio assim denominado por causa da fazenda da Família Pompeu de Almeida cuja capela interna
está sob o mando jesuítico, conforme se sabe pelos testamentos coevos, e uma vez que não há relato de ter o ´velho´ Sardinha patrocinado no seu rancho de mineração algum colégio, além da capela em honra de Sta Bárbara, a padroeira dos mineiros. A finalizar... Quando o reinol Tomé de Souza desembarca na Insulla Brasil para ser, então, o Governador-Geral, logo ele toma decisões para disciplinar o que a Coroa lusa acha ser o ´ato libertino dos colonos´, que não acatam ordens e ainda ordenam em causa própria... Um desatino. Na verdade, a cosmopolita e gorda Lisboa desconhece a realidade da pré-colonização estabelecida por Correia, Ramalho, Pessoa, e logo seguida mercantil e politicamente por Sardinha e outros: obviamente, vale em meados do Séc. XVI ´brasileiro´ o que vale no norte luso, i.e., “pra cá do Marão mandam os que cá estão”! Mas, por que um ato disciplinador acima da Serra do Mar? Com a organização de Asunción e a reorganização de Buenos Ayres, a linha comercial entre essas regiões da dita América espanhola e os ´barões´ libertinos lusoamericanos que nelas apostam os seus ´cabedais´, verifica-se a ascensão política e mercantil da região itaquiana [Koty, Carapocuyba, Santana de Parnaíba, Barueri], e tudo isso, sob o riso escancarado do político e minerador e banqueiro Affonso Sardinha [o Velho], porque é o Piabiyu o caminho que mais engorda os negócios entre luso e castelhanos. Entretanto, existe ainda uma guerra diplomática declarada pelo Tratado de Tordesilhas, e é o que governador Tomé de Souza quer ´disciplinar´... 1563, eis o ano em que um reinol quer mudar a história à qual os primeiros náufragos deram início: ele proíbe a circulação de pessoas e de bens pelo Piabiyu. Proibir é uma ´coisa´, ver isso concretizado é outra ´coisa´. Dizer a quem faz um ´outro Portugal´ para parar é dizer ´morra!´. É o que os colonos entendem e logo mandam o governador ´às favas´, ou num termo mais brasileiro, ´pro brejo´. Pela desobediência categórica, ´libertina´, os luso-americanos assentados ao longo da Capitania de S. Vicente transformam a velha rota de comunicações dos místicos guaranis, o Piabiyu, na rota continental das riquezas e da expansão colonial. A proibição do governador Souza fica no ar como o sinal que abre as porteiras para o mundo maravilhoso das descobertas que o padre Nóbrega já havia vislumbrado em Maniçoba. A arquitetura de um outro Portugal na imensa hiléia da Insulla Brasil [até meados do Séc. XVI, o Brasil é ainda a ´ilha´] passa pela desconstrução do habitat nativo americano, a sua colonização através da missionação [a Capela católica como marco zero em cada ex-Aldeia] e o assentamento da urbanidade ibérica. Tudo isto pode ser lido nos relatos de Staden, Schmidel e nos testamentos de Sardinha e Pompeu de Almeida, etc. Mas, também, na releitura de Susumo Harada acerca da Questão Maniçoba.
PIABIYU a rota do velho americano
Mário G. de Castro
No capítulo “O Transporte Fluvial”, do livro Monções, o historiador Sérgio Buarque de Holanda refere-se ao famoso Piabiyu afirmando que “(...) o mantimento da fazenda beneditina de São Caetano era levado ao mosteiro de São Bento, ou o das Canoas, talvez mais público, de onde os produtos roceiros iam ganhar a antiga vila pelo caminho de Cotia (...) sertão do Carijó”; este Carijó era o primitivo americano que habitava a campina do Caiapiã e onde, segundo os estudos do historiador João Barcellos, no livro Cotia/ da odisséia brasileira de são paulo nas referências do povoado carijó, estabeleceram a Aldeia Koty. No ano 1770, recordo o livro Morgado de Matheus, também de João Barcellos, o capitão-general de São Paulo, o iluminista D. Luiz (o Morgado), escreveu sobre a tradição do Piabiyu - a antiga rota dos que saindo de São Paulo passam por Cotia e Sorocaba até Woutucatu, sítio que em 1719 era dos Jesuítas, e dali embarcavam para o Paraguay. Era a Trilha do Sul que ligava o Povo Carijó entre as diversas aldeias denominadas Koty (do tupi-guarani: habitação, ou ponto de encontro) e Kotyo (do tupi-guarani: em direção a). O notável livro De Costa a Costa com a casa às Costas (sobre a origem do nome Cotia), de João Barcellos, é um marco na História de Cotia a este respeito. E esta Trilha do Sul levava padres, bandeirantes e sertanistas (todos na aventura da conquista da terra, do ouro, e deixando milhares de nativos americanos dizimados e escravizados) até ao Sertão dos Patos. O livro O Embu Na História De São Paulo, de Moacyr Jordão, tem também boas referências sobre o Piabiyu, além das circunstâncias que ligam Embu, Cotia, Carapicuíba e Itapecerica da Serra. A rota do Piabiyu foi buscada loucamente pelos primeiros europeus que subiram a Serra do Mar e, também, percorrida desde a Koty erguida no Desterro (Santa Catarina) à Koty que servia de entrada/saída do “sertam carijó”. A história de Cotia ainda tem muito para ser pesquisada, mas, sem dúvida, o jornalista W. Paioli, no jornal Gazeta de Cotia, e o historiador João Barcellos, contribuíram muito com seus trabalhos de pesquisa contrariando a apatia das políticas administrativas que na região, de 1856 até hoje, fazem pacto pela ignorância em torno da própria História! CASTRO, Mário Gonçalves de – Fotojornalista e Serigrafista.
CEPELLOS do Sertam do Piabiyu à Sampa Cultural João Barcellos
Famoso em todo o Brasil através da publicação de seus poemas e artigos em jornais como A Evolução (de Artur Fonseca) e A Musa (de Júlio Prestes), o poeta Baptista Cepellos viria a transformar-se em jornalista/editor ao fundar, em 1896, a Revista Azul, com António Oliveira e Francisco de Castro Junior - e, em 1909, o Diário da Manhã, com Francisco de Castro Lagreca. Baptista Cepellos era um contemplativo. “Quantas vezes alguém de minha aldeia,/ Não me viu, pensativo, nas estradas,/ Como Anchieta, escrevendo sobre a areia...”, cantava ele no soneto “A Velha Escola”, recordando o seu berço vargengrandense (Bairro de Vargem Grande, da Vila Cotia; depois de ser denominado Distrito Raposo Tavares é, hoje, o Município de Vargem Grande Paulista). Homem nascido, em 10 de Dezembro de 1872, na boca do sertam cortado pelo velho caminho que os Carijós chamavam de Piabiyu, o militar e advogado e escritorjornalista Baptista Cepellos teve na Imprensa a via que libertou a sua alma de interiorano letrado: isso o fez famoso e reconhecido pelos maiores intelectuais brasileiros, de Afonso Schmidt a Olavo Bilac passando por João do Rio. Introvertido, o poeta do olhar azul e da bengala extravagante impressionou a todos pela vontade enérgica de mostrar que ele era, também, parte do Brasil cultural em desenvolvimento: o livro “Os Bandeirantes” e o jornal “Diário da Manhã” provam isso. Pleiteou, por isso, um lugar na Academia Brasileira de Letras que lhe foi negado por duas vezes, e fez-se fundador da Academia Paulista de Letras... Aquele intelectual nascido nas margens do Ribeirão da Vargem Grande, e pelas quais tinha leito, também o Piabiyu - o caminho pelo qual, tantos quiseram passar em busca de fortuna e glórias -, não quis saber da floresta, fez o caminho inverso dos Bandeirantes: quis a cidade e, na cidade, abrir espaço para um talento literário que sentiu ainda menino nas estradas empoeiradas e na Escola Rural da casa onde nascera! Frequentando os cafés da moda, como o “xpto”, no centro paulistano, direcionou as suas atividades intelectuais para a Imprensa e a Poesia (cantando o rio Tietê, a São Paulo Antiga e a São Paulo dos Estudantes, dos Bandeirantes, dos Amores...) em meio a uma paixão louca por Sofia, a filha bonita do senador paulista Peixoto Gomide e irmã de um colega dos bancos da Faculdade de Direito de S. Francisco. Nessa paixão encontrou o poeta do sertam vargengrandense o auge de uma cotidianidade urbana que só os ousados merecem. E, nessa ousadia, fez-se guarda da Força Pública chegando ao posto de capitão! Quem, na pacata e humilde Vargem Grande, poderia supor tal feito social e cultural na ação daquele jovem franzino? Corria nas veias de Baptista Cepellos o sangue do Dr João Cepelos Correia, o seu avô cruelmente assassinado em Campinas quando exercia a sua atividade de Promotor Público na ousadia de mexer com os costumes para gerar evolução social. Esse evolucionismo esquentara a vontade do menino que queria ir além da paisagem bucólica do cotiano Ribeirão da Vargem Grande. E naquele instante terrível em que, cedendo a pressões sociais da burguesia paulistana, o senador Peixoto Gomide mata filha Sofia e depois se mata, logo, o poeta Baptista Cepellos ficou a saber que nem um
grande amor pode mover as fronteiras do racismo social... Para ele, foi a prova final da intolerância que conhecera nas queimadas que abriam pastagens ao redor da Escola Rural e que ele nos canta em “A Derrubada”, mas, esta queimada, acabava de lhe tirar uma paixão chamada Sofia. Como sobreviver a um instante terrível como este? Nem a ousadia herdada do avô lhe dava mais forças... No entanto, continuou participando ativamente da Vida através de jornais, de novos livros e de uma aproximação mística mais forte com o cristianismo, como se pode verificar pela leitura da sua peça “Madalena”, levada ao palcos cariocas com sucesso antes da sua morte, em 15 de Maio de 1915. Alguns críticos preferem não falar em suicídio, mas, na verdade, depois de uma luta tão árdua para chegar ao nível cultural que o tornou famoso, Baptista Cepellos ficou sem saída... Sem a sua Sofia a vida não lhe servia para nada! E depois da morte, foram intelectuais amigos que lhe levaram a enterrar o corpo que as gentes da Cotia e da Vargem Grande quiseram esquecer após o Caso Gomide. Mais tarde, o corpo, que os políticos da Cotia (nem os familiares) não requisitaram, foi lançado na vala-comum. Interessante é encontrar a força intelectual do poeta vargengrandense nos escritos deixados na Imprensa, particularmente nos jornais da Sampa cultural: foram fruto de uma força cívica entranhada pela vivência da paisagem bucólica que muitos críticos literários ainda não souberam ler em “A Derrubada” e em “Os Bandeirantes”. Por isso, o Jornalismo foi em Baptista Cepellos a grande via da libertação e a chama temperada por um fôlego culturalmente assumido como essência da Vida! A ousadia de um brasileiro do sertam paulista lembrou ao Brasil a existência do brasileiro genuíno: o brasileiro do caminho do Piabiyu, das Bandeiras... esse que o poeta cantou em “Os Bandeirantes” e, também, o caminho que levava mantimentos a São Paulo – a cidade que ele cantou em versos imortais, razão que levou os paulistanos a chamarem-no de O poeta da São Paulo. Este é o Poeta brasileiro lá do Ribeirão da Vargem Grande, na Vila Cotia; este é o Jornalista que se integrou à Cultura brasileira com o charme do aldeão peregrino e ilustrado!
A Inquietude Intelectual No Piabiyu Figuera de Novaes
O percurso do próprio escritor e pesquisador Mestre JB lembra o caminho ancestral que unia os povos do Continente Gondvana. Por onde este português passa deixa a sua marca de inquietude intelectual. Creio que era isso o que muitos sábios gondvanianos – fossem chilenos, mexicanos, peruanos, ecuatorianos ou brasileiros – faziam: eles largavam os afazeres condicionados às instituições dos poderes locais e partiam com as suas inquietudes sociais e culturais em busca de respostas para o eterno Mistério da Vida. Disseminavam, assim, saberes e culturas entre os vários povos, pelo que é possível encontrar os Livros de Pedra desde os caminhos mexicanos até aos que, no Peru, Paraguay e Brasil, faziam o sistema viário do Piabiyu - ´caminho para o Peru´, que os marujos quinhentistas conheciam como ´caminho para o eldorado´, ou, a possível ação de destruição de outros povos pela ganância de riquezas fúteis. Por inépcia, os portugueses não chegaram lá, mas os castelhanos cercaram e destruíram a Civilização Inca, o famoso eldorado peruano. A dívida dos europeus com os velhos povos gondvanianos, fez com que muitos intelectuais se debruçassem sobre a Questão Colonial ibérica e o papel da Cristandade Imperial no mesmo evento, através da milícia inaciana. O olhar de João Barcellos sobre o Piabiyu mostra claramente que aquela dívida colonial está muito presente no dia a dia dos intelectuais europeus que visitam ou vivem nas Américas. O trato que este luso-brasileiro dá à Questão Piabiyu é o da necessária revisão histórica, o que já fizera em torno da figura do governador D. Luis António (o Morgado de Matheus), porque é preciso ler a História com a documentação disponível e não à luz das místicas discursivas que deformam e destroem a História Local, como foi o caso dos inacianos em relação a uma das figuras da mitologia americana – o Pay Zumé, precisamente um daqueles sábios gondvarianos que passou pelo Piabiyu, e que a Ordem de Jesus de imediato associou à figura bíblica do apóstolo Tomé. Foi mais um entre os muitos erros estratégicos dos inacianos. A leitura e a escrita de João Barcellos sobre o Piabiyu reforça a tese de que, apesar da inquietude de intelectuais europeus como ele, ainda é preciso fazer muito para ajudar na História que corresponde aos Povos da Floresta americana. (Quito/Ecuador, 1998)
Um Teatro Piabiyuano Mary O´Connor
As pequenas peças teatrais escritas por João Barcellos e reunidas no opúsculo intitulado ´Teatro´, seguem o ritmo daquelas reunidas em ´Outros Escritos´ [Ed. MYS, São Paulo – Brasil, 1998]. O termo ´piabiyu´ tem ganho mais notoriedade com as últimos achados arqueológicos que ligam esse caminho velho à dimensão continental sul-americana, das regiões brasileiras do sudeste às mais altas regiões peruanas e mexicanas, levando-se em conta que, como ensina o próprio João Barcellos, o padrão de aferição histórica é, neste caso, o ´Códice Meso-Americano´... pelo qual se acham relacionamentos pan-americanos que, entre os nativos carijós e charruas, que viviam nesse e desse ´Caminho do Peru´ (´piabiyu´), eram coisas perfeitamente naturais – ora, tão naturais que eles levaram os europeus ao tão desejado Império Inca, pensando que estavam abrindo a Roda do Piabiyu a gente de bom coração. É esta discussão que está presente, entre o Tratado de Tordesilhas e o Piabiyu, nas peças ´Bar Dois Mundos´, ´As Casas Da Memória Piabiyuana´ e ´Sábio Achador´; uma maneira genuína que este escritor português encontrou para disseminar, ainda mais, o diálogo histórico e cultural na América do Sul. Entre os intelectuais da chamada ´onda alternativa´, ou seja, aqueles que rejeitam o contato formal com as instituições e buscam outros caminhos de pesquisa-de-campo e de diálogo comunitário, João Barcellos tem sido um dos mais produtivos, na área jornalística e na área editorial, tanto mais que é um ´agitador cultural´ de méritos reconhecidos. Mobilizar culturalmente as comunidades para se olharem historicamente através da visualização da rota nativa que permitiu o crescimento e o assentamento do Brasil-nação, é uma ação que só um intelectual-agitador da envergadura de um Mestre JB pode lançar mão e pé. Ele lembra-me, pela atitude mais do que humana, o brasileiro Mário Schenberg, a galega Tereza de Oliveira, o português Francisco Igreja, o ecuatoriano Figuera de Novaes e o português Manuel Reis. Porque, o que é preciso é mobilizar com a consciência cultural de abrir novos caminhos pelo conhecimento do que fomos no passado! E o Piabiyu dramatizado é mais uma lança do Mestre JB na ainda farta Ignorância! O´CONNOR, [Rose]Mary – Paris-Fr., 2000.
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BARCELLOS, João
Escritor, pesquisador de história, especialista em luso-brasilidade, conferencista, autor de conteúdos também na área tecnológica, jornalista e crítico literário, João Barcellos é membro do Grupo de Debates Noética (que substituiu o Grupo Granja), do Centro de Estudos do Humanismo Crítico (Portugal & América Latina), da Associação dos Poetas Profissionais do Estado do Ripo de Janeiro (APPERJ), correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina (IHGSC), editor-fundador dos jornais Corpus e O Serigráfico, e da revista Impressão & Cores, entre outros. Coordena, com o CEHC, G. D. Noética e a Edicon, as coletâneas ´Debates Paralelos´ e ´Palavras Essenciais´ (ambas c/ 14 volumes). //////////