Jornal Plural N.8

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VISÃO DE TEMPO

Desvendar o presente Por José Carlos Henriques Falo aqui sobre a desafiadora compreensão do momento no qual nossa existência está situada. Isto mesmo, momento. E, com isto, já nos remetemos ao tempo. O existir se passa, estendido entre um antes e um depois. É um momento, irreptível, em todo o seu percurso. Mas além do tempo cronológico, medido e contado, em sucessões de instantes, há um outro, um tempo diverso, da memória, da duração, como afirmou Bergson. Este nos pertence de modo particular, carrega em si a marca do que somos. Em relação ao tempo, do antes, se podemos algo saber, sempre o fazemos a partir da memória, própria ou de outros, de narrativas. Mas, paciência! Se não há fatos, mas tão somente interpretação dos fatos, como ensinara Nietzsche, não há reclamar: também no nosso presente, não há fatos, mas sim suas interpretações. Bem assim, no plural. Fatos, puros, em-si, é metafísica, no mal sentido: indecifrável, afinal eles não falam por si, precisam de nossa voz, nós os intérpretes do mundo. Do depois, céticos, melhor esperar. É verdade que, também sobre o depois, outros já construíram suas narrativas. Não se deve negar que alimentamos as nossas, sejam quais forem. Mas, certeza, este porto seguro que sempre procuramos, nem no dito sobre o antes, nem no dito sobre o depois, ousamos ter, não ao menos de uma vez por todas. Certos estamos, até que tudo se agite, novamente. De crenças a dúvidas, de dúvidas a crenças, nos fazemos a meio termo entre saber e esperar saber. Então tudo, o antes, o depois e o agora,

é desafio. É parte do existir este susto diante do mundo que vem a mim e me exige que responda, antes mesmo que perguntem, antes mesmo que eu me pergunte. A história é um fio com o qual tecemos um nosso destino e por ele nos empenhamos. “Um nosso” destino, porque nos destinamos, sempre o que escolhermos é “um’ caminho, entre outros. Mas o tempo do agora é o mais desafiador a uma compreensão justa. Talvez, por isto mesmo tantos engrossam as fileiras dos erros históricos crassos e incompreensíveis. Nesta lista, grande certamente, podem ser incluídos muitos filósofos, literatos, médicos, sociólogos, teólogos, gente de letras de todo gênero. Pensam, pensaram ter vivido um tempo outro, que não foi o seu. Ansiaram por ações, ou as praticaram, movidos por objetivos e móbiles que não alcançaram. As tragédias humanas históricas que o digam: elas têm uma história própria, arraigada na existência de seus protagonistas. Quando muito de perto avistamos algo, se turba a visão. Aquele algo talvez esteja ali, num em si indizível. Mas ganha vida apenas pelo que dele se vê. E, visto muito de perto, turbada a vista, os maneirismos comparecem: a-vistamos. Nega-se o visto turbado que não se quer ver, não quer deixar-se ver, vê-se como se queira, a vista se dá mais aos anseios. O feio, o torpe não é visto, ou sim, depende dos propósitos, confessáveis ou não. Assim mesmo, como para Merleau-Ponty, somos sendo no mundo. O movimento nos joga daqui para ali, de lá para cá, jogamo-nos nele, pertencemos a ele e, como parece, ver em movimento requer atenção

redobrada. Mover-se, sabendo-se movente, pode tornar visível o que parece estagnado, mas é volta ou ida de nossos próprios pensamentos sobre o real. Não sei muito sobre o presente. Melhor que dizer “sei tudo sobre ele”. Enquanto penso no presente como algo a desvendar, permanece aberta a possibilidade do engano, de resto sempre existente e insistentemente ameaçadora. Mas tudo isto não deve fazer cessar o esforço: avistar o presente, de perto e de longe, tirar-lhe os véus, arrancar pela raiz a ignorância cega sobre o que me cerca. Esta uma disposição invejável! Sobretudo, em tempos ruidosamente apequenados, de valorização extremada do anti-gosto e das ranhuras e arremedos de interpretação. Mas será isto um charme de nosso tempo, uma sua marca flagrantemente procurada. Ou já estamos vendo de forma turbada o presente, o que hoje vige. A filosofia poderá, quem sabe, mais tarde dizer, quando este ora presente for passado, afinal ela pode compreender somente o já realizado, o real já feito, como a coruja da velha Minerva que, à noite, vê os trabalhos do dia. É Hegel a ensinar. O momento é o que nos desafia, o presente há de ser desvendado. Mas os véus, todos, podem mesmo se esvair? Talvez não, mas compreender o tempo em que se vive segue sendo a maior das tarefas. Ah, cuidado! Sempre se pode tender a pensar o presente como o pior dos mundos, a idade de ferro. O tempo vivido por outros alimenta um enigma especial: parecem melhores do que o nosso. Quem sabe seja este um primeiro véu a se remover. Coragem!

JORNAL CULTURAL PLURAL | NÚMERO 8 | DEZEMBRO DE 2014 A FEVEREIRO DE 2015

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