A relíquia

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Ao lado, a Vicência limpava o olho com a ponta do avental novo. O Pingalho descarregara a minha mala de couro. Então, erguendo o precioso caixote de pinho de Flandres benzido, murmurei, com uma modéstia cheia de unção: —

Aqui está ela, Titi, aqui está ela! Aqui a tem, aí lha dou, a sua divina

relíquia, que pertenceu ao Senhor! As emaciadas, lívidas mãos da hedionda senhora, tremeram ao tocar aquelas tábuas que continham o princípio miraculoso da sua saúde e o amparo das suas aflições. Muda, tesa, estreitando sofregamente o caixote, galgou os degraus de pedra, atravessou a sala da nossa Senhora das Sete-Dores, enfiou para o oratório. Eu atrás, magnífico, de capacete, ia rosnando: "ora vivam! ora vivam!" — à cozinheira, à desdentada Eusebia, que se curvavam no corredor como à passagem do Santíssimo. Depois, no oratório, diante do altar juncado de camélias brancas, fui perfeito. Não ajoelhei, não me persignei; de longe com dois dedos, fiz ao Jesus de ouro, pregado na sua cruz, um aceno familiar — e atirei-lhe um olhar, muito risonho e muito fino, como a um velho amigo com quem se tem velhos segredos. A Titi surpreendeu esta intimidade com o Senhor; e quando se rojou sobre o tapete (deixando-me a almofada de veludo verde), foi tanto para o seu Salvador como para o seu sobrinho, que levantou as mãos adorabundas. Findos os padre-nossos de graças pelo meu regresso, ela, ainda prostrada, lembrou com humildade:


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