Marco Zero 19

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Número 19 – Maio de 2012

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MARCO ZERO

A vida à prova d’água

Sobrevivente do Bateau Mouche conta sua história Foto: Kellen Ribeiro

Kellen Ribeiro

O naufrágio do Bateau Mouche

M

aria de Fátima Almeida Gomes, de 50 anos, foi uma sobrevivente do Bateau Mouche, navio que estava a caminho de Copacabana e afundou no dia 31 de dezembro de 1988, nas proximidades do morro do Pão de Açúcar, na entrada da Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, faltando aproximadamente 15 minutos para o reveillón. Fátima nasceu em Salvador (BA), mas estava morando com seu marido em Madri, na Espanha, quando decidiu passar o ano novo no seu país de origem com alguns amigos que disseram que aquela noite seria maravilhosa e inesquecível. Inesquecível realmente foi. O embarque foi no pier do restaurante Sol e Mar, zona Sul do Rio, e Maria de Fátima lembra exatamente tudo o que aconteceu naquela noite. “Os corpos estavam com a barriga muito estufada, pois as pessoas tinham comido e bebido muito, e a maioria ainda bebeu litros e litros da água salgada; parece que foi um pesadelo. Foi como nascer de novo”, relata. Ela diz não guardar nenhum objeto como lembrança, que tudo foi parar no fundo do mar, e que quem a salvou foi Deus, mas quem a tirou da água foi um pescador, seu Jorge, e dois garotos, a quem, em reportagem ao Fantástico, da Rede Globo, em 2009, voltou para agradecer por sua vida. Vinte anos depois da tragédia, o sonho de Fátima ainda era encontrá-los, mas não tinha nenhum tipo de contato que pudesse ajudá-la. Então, o “Fantástico” a levou até o Rio de janeiro, próximo ao local onde a embarcação afundou. Ela pode então agradecer pessoalmente o pescador e os dois garotos. Maria de Fátima mora hoje no bairro Vista Alegre, em Curitiba, com as filhas Cindy Okino e Meysi Okino. Ela é esteticista e, apesar de não guardar nenhum objeto como lembrança, em momento algum mostrou-se resistente ao falar dos fatos que lhe sucederam com o naufrágio do Bateau Mouche. Ela recebeu a equipe do

“Fui a última a entrar naquele navio”, declara Maria de Fátima.

Marco Zero na sala de sua casa, onde contou a sua história. “Naquela noite que era para ser de alegria, eu era a última da lista e fui a última a entrar naquele navio. Estava com um vestido azul, única pessoa vestida com essa cor no meio dos 142 tripulantes. Percebi na entrada que ele estava superlotado, e desde que saimos não consegui “relaxar’’, pois sempre tive muito respeito pelo mar, já que meu pai me ensinou isso desde criança, pois era pescador’’. Ela disse ainda que naquela noite ventava muito. “Isso era também motivo de preocupação, pois perto da meia-noite ouvi o barulho de louças caindo devido à agitação do mar, que balançava muito o navio. Eu estava no banheiro quando vi a água entrando e não pude acreditar que aquilo realmente poderia acontecer. Subi

Foi um pesadelo. Foi como nascer de novo correndo as escadas e vi tudo bagunçado. Era inacreditável o que estava acontecendo”. Depois disso, ainda relatou: “O barco virou, e a água estava muito fria. Lembro das pessoas que seguravam em mim e dos gritos pavorosos de outras morrendo. Naquele momento, um filme da minha vida passou em questão de segundos em minha cabeça”. Apesar da história triste, Fátima conta que todos os dias 31, principalmente em dezembro, tem uma lembrança triste, mas ao mesmo tempo muita gratidão por estar viva.

No réveillon de 1988-1989, o Bateau Mouche naufragou, causando a morte de 55 pessoas entre as 142 que estavam a bordo. O barco era de propriedade de uma empresa que tinha nove sócios. O Rio de Janeiro promovia sua festa oficial de réveillon na praia de Copacabana, com fogos de artifício clareando a noite, mas alheio à tragédia que acontecia muito próximo dali. O barco já havia contornado o Pão de Açúcar, seguindo para Copacabana, quando seus ocupantes foram surpreendidos por ondas enormes. Logo após, balançando muito, o barco adernou para a direita. Era o caos. O mar, cada vez mais agitado, fazia entrar água pelas vigias, inundando o convés inferior. O Bateau Mouche prosseguiu assim mesmo. Às 23h45, com a casa de máquinas cheia de água, os motores pararam. Foi nesse horário que todas as pessoas se dirigiam à proa do navio para ver o show de fogos, o que contribuiu para o naufrágio. Descontrolado, o barco se inclinou para a direita e emborcou, espalhando seus passageiros no mar. Pessoas em outros barcos que estavam nas imediações, ouvindo os gritos, foram ajudar, jogando bóias e coletes salva-vidas, iluminando a área e recolhendo pessoas. Durante vários dias, trabalhou-se no resgate de corpos. A notícia abalou a cidade. Criou-se um clamor público, com a mídia induzindo a opinião pública contra os proprietários do barco. O resultado da perícia do barco apresentou uma série erros: superlotação, porque a capacidade máxima seria de 80 passageiros; o convés superior tinha peso excessivo, por causa de camada de cimento e aço, duas caixas d’água e outras peças móveis; a bomba de esgoto funcionavam mal; as vigias estavam mal vedadas. Em 18 de julho e 28 e 29 de dezembro de 1988, dois dias antes do naufrágio, o barco fora vistoriado pela Capitania dos Portos - durante todo esse tempo, as falhas descritas já existiam, sem que a Capitania fizesse qualquer advertência. Divulgação

Detalhe do barco Bateau Mouche: o resgate dos corpos durou vários dias


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