Jornal i

Page 25

Medina Carreira. O problema de fundo não é o euro mas a desindustrialização MARGARIDA BON DE SOUSA

margarida.bondesousa@email.pt EDUARDO MARTINS (Fotografia)

fotografia@ionline.pt Medina Carreira não gosta de se deixar fotografar mas acedeu ao fim de muita insistência e com a promessa de que a sessão iria durar apenas alguns minutos. O ex-ministro das Finanças de Mário Soares admite que se exercesse hoje o mesmo cargo não faria muito diferente de Vítor Gaspar. Lembra-se que no seu tempo os portugueses também perderem poder de compra, mas como os aumentos eram significativos as pessoas não tinham a noção de que ganhavam menos por causa da inflação. O economista considera que o grande problema da Europa não é o euro mas a desindustrialização e o preço do petróleo. Duas realidades que também afectam os Estados Unidos. Situa as origens da actual crise portuguesa há sete ou oito anos atrás. Pode ser mais explícito? Nos últimos 20 anos a nossa economia registou uma taxa de crescimento médio anual de 1,8%. E entre 2005 e 2010 ela quedou-se nos 0,3%. A tendência geral das duas últimas décadas é decepcionante, mas nos cinco últimos a economia portuguesa afundou-se dramaticamente. Creio que a sua pergunta tem em vista afirmações minhas neste sentido. Com uma taxa de 1,8% e, pior, uma de 0,3%, o nosso nível de vida só pôde manter-se, ou mesmo melhorar, à custa de enormes e insuportáveis endividamentos do Estado, das famílias e das empresas. Foi portanto o recurso ao crédito, para conservar níveis de bem-estar sem correspondência na produção de riqueza, mas também para realizar obras públicas faraónicas, que desencadeou a situação de grande crise que vivemos. A fragilidade económica explica em boa parte o volume do endividamento nacional. E é nesta situação de pré-bancarrota que nos encontramos. Pode explicar porque é que acha que vivemos de uma esmola periódica e ainda por cima a juros... Em termos globais e simplificados, o endividamento externo bruto de Portugal teve uma expansão galopante que se expressa no salto de 342 mil milhões de euros em 2005 para 506 mil milhões em 2010. Qualquer coisa como 33 mil milhões de euros/ano, 90 milhões/dia ou quase 4 milhões/hora! Com uma economia ras-

tejante, como referi, e um tal valor do endividamento externo, os credores perceberam depressa que não poderíamos pagar as nossas dívidas. Surgiu então a troika com a solução das esmolas periódicas, sob condição de bom comportamento e de sujeição a juros elevados. Apesar de tudo, esta foi a solução que evitou a cessação de pagamentos pelo Estado português em 2011. Se fosse ministro das Finanças hoje, faria muito diferente de Vítor Gaspar? No essencial não. A austeridade é inevitável e não é muita nem pouca, apenas aquela que os défices anuais acordados com a troika impõem. Com o acordo que subscrevemos, ninguém poderia agir de modo muito diferente quanto ao grau dessa austeridade: o dinheiro de que dispomos para gastar é apenas o que a troika assegura. Esta sujeição não dispensa o governo de uma explicação simples e entendível pela grande maioria. Na sua

ticas activas de emprego destina-se a anestesiar a sociedade, como há muitos anos se sabe. Será muito longo o tempo que teremos de esperar até que a economia cresça o suficiente para criar empregos em número satisfatório. Não imagino quando chegará esse tempo. A austeridade é imprescindível? E é a solução para a crise? É uma condição necessária mas não suficiente. Existe porque não há dinheiro para que o Estado provoque défices mais altos e gaste mais. E também porque sem ordem nas contas públicas, com dívidas brutais, com impostos selvagens e com juros demolidores, não se investirá em Portugal. Sem se investir na produção de bens exportáveis ou que evitem as importações, o que vamos dizendo destina-se apenas a ludibriar-nos uns aos outros. O congelamento das reformas antecipadas resolve o problema de fundo da Segurança Social? Ou é preciso ir-se muito mais longe? Creio que não passa de um expediente de tesouraria. A sustentabilidade tem muito mais que se diga e exige um trabalho sério, ainda não iniciado. Quer isto dizer que é indispensável uma reforma global do social e não apenas cortes de circunstância aqui e ali. Preocupante é que nenhum responsável político, que se saiba, tenha feito qualquer alusão a esta tarefa, essencial e urgente. E a sucessiva utilização dos fundos de pensões para pagar despesa corrente e amortizar dívida pública, ao invés de a transferirem para a Caixa Geral de Aposentações ou a Segurança Social? São apenas expedientes. É precisa uma reforma. Quanto a isso, e como já disse, deploro a passividade do governo. O problema das políticas sociais será, talvez antes de 2020, explosivo. Na verdade, só a preservação do Estado social – adaptado às novas realidades económicas, financeiras e demográficas – poderá evitar uma situação ainda mais dramática em Portugal. Critica muito os políticos por só olharem para as folhas em vez de para a floresta. Quais são os verdadeiros problemas de Portugal? Tenho para mim como certo que a ori-

“A austeridade é uma condição necessária mas não é uma solução para a crise que Portugal atravessa”

“Sem se investir na produção de bens exportáveis, o que dizemos serve apenas para nos ludibriarmos” “Deploro a passividade do governo na reforma que é preciso fazer na área das políticas sociais” falta, a nossa sociedade interroga-se quanto ao porquê dos sacrifícios a que está a ser submetida. E é legítimo que o faça. Sofrer já é muito duro. Não se saber porque se sofre é de mais. As metas de crescimento do governo adiam para as calendas gregas a criação de emprego. Há outro tipo de resposta? Não são as metas do governo. São as que resultam da situação de penúria e de desorganização a que fomos conduzidos. Não temos acesso ao financiamento externo, não dispomos de poupança que se veja e ninguém no seu perfeito juízo vem investir em Portugal. O melhor que se consegue é vender partes de capital em empresas monopolistas, ou quase, onde o lucro é seguro e muito alto. Sem investimentos novos e adequados não haverá crescimento suficiente nem criação de empregos. O que por aí se diz das polí-

O problema das políticas sociais será explosivo antes de 2020. Se a crise persistir e o governo se limitar a cortar em vez de reformar, tudo pode acontecer em Portugal

gem da presente crise do Ocidente emerge da sua desindustrialização e da dependência energética, com custos crescentes. Foi isso que afundou as economias e foi esse afundamento que motivou os endividamentos já referidos, destinados a evitar uma quebra acentuada do padrão de vida ocidental. Entre nós, sentem-se também os efeitos da incompetência e da irresponsabilidade governativa vigente nos últimos anos. A fragilidade económica ocidental gerou os endividamentos e foram estes que originaram o subprime americano, tanto quanto a chamada crise das dívidas soberanas na Europa. A crise da zona euro surge na sequência desses factos. Sem se enfrentar esta realidade mais ampla, os esforços em curso na Europa do euro, mesmo que bem sucedidos, não evitarão a progressiva decadência do Ocidente. Neste emaranhado de circunstâncias, de que ainda não se fala em Portugal, as árvores são a austeridade, a falta de crescimento e o desemprego. Estão na orla da floresta e por isso são visíveis por todos. Mas a reviravolta do mundo, que é tudo o resto que a liberalização económica provocou, ultrapassa a Europa e o euro, e constitui a verdadeira floresta em que avançamos, desorientados. Na sua opinião, este governo fez ou mediatizou as reformas? Das muito urgentes e decisivas, creio que pouco. Talvez distracção minha! É altamente preocupante a lentidão na execução dessas reformas. E sem explicações públicas para este arrastamento de pés. Concorda com o novo Código do Trabalho ou ainda estamos longe dos nossos mais directos concorrentes, que neste momento são os ex-países de Leste? Há muitos anos que não trabalho nessa área. Tenho por isso dificuldade em me pronunciar acerca da adequação das soluções a introduzir no Código do Trabalho. Nunca escutei uma palavra acerca do ponto de referência que foi escolhido, por isso tenho a convicção de que o método tenderá a falhar. Portugal precisa de atrair investimentos, para o que se impõe escolher medidas competitivas como as adoptadas, nestas e noutras áreas, pelos países europeus que nos têm roubado os investimentos. De facto, se é essencial sermos competitivos em relação ao que produzimos, é indispensável que o sejamos também no que toca ao que se investe. Trata-se de uma consequência inexorável do funcionamento continua na página seguinte >>

—2 Junho 2012

25


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.