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42 CULTURA CRÍTICA 8 tam o consumo como etapa determinante da produção cultural. A literatura passa pelo mesmo processo de reificação que transforma os bens materiais em mercadorias, constituindo-se, ela também, em uma síntese das relações sociais. Por analogia, pode-se dizer que o ato de ler um livro é a conclusão do processo de reificação da literatura, sendo o leitor um novo objeto dessa cadeia de relações. Para preservar a literatura desse processo, muitas vezes o escritor a torna hermética, na crença de que isso contribui para recuperar o leitor de sua consciência reificada, pela exigência de que ele seja capaz de penetrar na obra, desafiado por um texto desautomatizador de sua relação com a linguagem. Esse é um problema da arte moderna, que adquire aspecto peculiar nos países colonizados, quando o escritor tem que lidar com a ambivalência da literatura como instrumento de dominação e como espaço que permite a manifestação das vozes reprimidas

nesse processo. Os dilemas da representação, então, adquirem dimensão de aporia, em homologia com os dilemas das personagens representadas no texto. Quando, nessa situação, o escritor problematiza o ato de escrever e questiona sua condição de escritor, torna-se

iniciando a difícil empresa de narrar suas memórias, outro ainda demonstra intimidade com a linguagem escrita – e suas narrativas parecem entrecortadas por reflexões, comentários e alusões, em que o narrador duvida do poder da literatura de representar o mundo

...a n úst ia lt r tr nsf ma toda ... qu lq er f ma d a ja n idad em lgo o ercado. também personagem de sua literatura. Pela aguda compreensão do processo de formação da sociedade brasileira e pela percepção dos elementos conflitantes na modernização do país é que Graciliano Ramos produz uma prosa de ficção fortemente marcada pelo autoquestionamento, ocorrência esta que chega a constituir uma categoria de análise cujo epicentro é a negatividade decorrente da percepção do escritor das contradições entre a literatura e a vida. É, portanto, um modo de elaboração da escrita literária que recusa o mero artifício estético de a literatura voltar-se sobre si mesma para perscrutar técnicas e procedimentos discursivos; ela passa a questionar sua função mesma enquanto elemento do conjunto das práticas de dominação que se processam no interior do processo civilizatório e são, geralmente, escamoteadas pela historiografia. Por isso, freqüentemente seus narradores estão às voltas com o fazer literário – um tenciona escrever um romance histórico, outro se encontra

e da eficácia do discurso como representação do irrepresentável, que é a complexidade da vida social (Bastos, 1998b, 38). A tematização dessa impossibilidade, nas obras de Graciliano, resulta em um duplo efeito: as obras realizadas estão aí, fechadas, mas no interior delas os projetos nãorealizados são textos abertos. As obras não realizadas não substituem os projetos (...): são comentários à impossibilidade de realização e, ao mesmo tempo, forma de manter os projetos no horizonte do possível. (Bastos, 1996, 40)

A insistência no autoquestionamento é um indicador de que a ficção de Graciliano pode ser analisada como produção de quem se reconhece portador de uma especificidade, do escritor como intelectual cuja função na sociedade é distinta das demais, por ser o detentor do poder da linguagem. Sintoma disso é o fato de que os protagonistas manifestam, paradoxal-


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