Jornal da ABI - Memória & Futuro

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MEMÓRIA E FUTURO

Aquele domingo não pode ir, uma gripe danada. No outro também, fecho de balanço, o gerente apelou para um extraordinário, não podia negar. Terça-feira recebeu carta. Começava assim: Quando olho para o pasto e não te vejo...” Clarice Lispector assinava (só com as iniciais) a crítica de livros ( e o editor fez questão de escrever que só ousava comparar o seu trabalho ao dos homens que jogam futebol na posição de goleiro). Antônio Houaiss fez a delícia dos linotipistas com o artigo “Nacionalismo”, um dos mais importantes que publicamos, matéria capaz mesmo de deleitar o mais requintado revisor, com seus tipos diferenciados, recorridos, números e composições especiais.

era assistente do Scliar o Ivan Meira, o diretor de propaganda. Anunciava-se a Vemaguete (DKV– Vemag), “sóbria, distinta e elegante, com motor 100, conforto excepcional, segurança extraordinária, capacidade de carga de um furgão e economia surpreende”. Voava-se de São Paulo até Bogotá, México e Los Angeles, duas vezes por semana, “sem troca de avião!”. A Real oferecida “o máximo em luxo e serviço que passageiros exigentes poderiam desejar numa viagem internacional”. O avião? Um super H Constellation, “equipado com radar” e com a cozinha do Barão Stukart (da badaladíssima boate Vogue, no Rio). Anunciavam Brisete, leve, compacto, silencioso, um ventilador para uso individual cujo potente motor deslocava 10 metros cúbicos de ar por minuto, “mais do que suficiente para lhe assegurar um brisa refrescante e agradável durante o tempo que você. desejar”. Anunciava-se, “finalmente, o grande carro brasileiro”, Aero Willys, “um automóvel inspirado nas modernas conquistas de espaço e conforto”. Mas o “novo ponto de atração na moderna paisagem brasileira” (a Brasília de Oscar Niemeyer e duas moças de saia balão) era o Simca – Chambord. A “essência legítima de alta classe”: English Lavander Atkinsons. Michel Burton ilustrava um anúncio informando que “em cada uma das cozinhas que a Varig instalou e mantém ao longo de suas linhas” havia um chef de cuisine, “um perito que viaja com você, transformando o tempo de viagem em verdadeiros momentos de prazer”. Kirongozi (Jorge Alves de Lima Filho, que tinha uma linda cunhada) anunciava um safari na África para caçar elefantes, búfalos, leões, rinocerontes e antílopes, e expedições fotográficas “com o máximo conforto e segurança!”. (Usava-se muito ponto de exclamação na publicidade daquele tempo!). A TV Itacolomi afirmava em anúncio que 110 cidades mineiras viam diariamente o Canal 4 e que tinha a programação comercial “dos grandes anunciantes do Brasil”. Guimarães Rosa escreveu, especialmente para Senhor, “A simples e exata estória do burrinho do comandante” (depois de meses de o importunarmos à procura de um original que ele, diplomática e mineiramente, nunca recusava ou prometia); Celso furtado escreveu sobre o “Subdesenvolvimento”; Darcy Ribeiro mandou, de Brasília, a “Segunda parte da carta de Pero Vaz de Caminha” (durante o carnaval, quando pretendia descansar); o conto era de Antônio de Alcântara Machado (“Guerra civil”); o irmão de Rubem Braga, Newton, nos dava umas “minicrônica” intituladas “Fatias finas de fato”. Eram jóias, como se dizia. Por exemplo: “Se aparecer um gato cantado por aí, toca fogo, que foi ele que comeu o meu canário belga.”Ou: “Um dia brigou. Tudo o que falava ou fazia era aquela chateação: o Nascimento é de morte”. E esta pérola: “O namoro começou na domingueira do clube da cidadezinha. A moça, filha de um fazendeiro da vizinhança; ele, funcionário do banco. Mais uns tempos e ia visitá-la na fazenda, no trem da manhã de domingo, que voltava à noitinha; descia na parada de um minuto, que nem estação era, ela estava na janela, descia a escada enquanto ele caminhava pelo campo, em direção à casa, uns setecentos metros de distância.

Com a informação: “Se V.Sª. (sic) adquirir CR$ 2.000,00 em livros durante o ano, o desconto que irá obter (30% na Companhia Editora Nacional e na Editora Civilização Brasileira) corresponde exatamente ao preço que pagou pela assinatura de Senhor”. O segundo número saiu como o Scliar queria, inclusive com “Três poemas de Mao Tse Tung” (escritos nos moldes clássicos, em versos de cinco caracteres, que Ivo Barroso traduzia do francês, ou melhor, da francesa Janine Mitaud). Entre outras coisas, informava que Bob Fleming, um enorme sucesso fonográfico com “Sax Spetacular”, era mesmo americano de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais - o pouco comprado Moacir Silva (provando que santo de casa não toca saxofone). E entre outros colaboradores, Alberto Deodato, Jânio Quatros, Ênio Silveira, Albino Pereira de Almeida, Vinicius de Moraes, Fúlvio Roiter, Marques Rabelo. A novela de Tolstoi (“A morte de Ivan Ilitch”) tinha tradução assinada por Carlos Lacerda. Lançamos Sergio Jockyman, um senhor humorista. Conseguimos muitos assinantes (quase 30 mil), mas as agências de publicidade só levaram em conta a venda avulsa, nas bancas, e tinham preconceito contra assinaturas, “porque nunca se sabe como foram arrancadas...”. Com esse segundo número aprendi muito, acompanhando o trabalho do Scliar. Editor-assistente executivo significa que, além de ser editor, eu secretariava a revista. O que fazia com que acompanhasse a diagramação, a impressão e a montagem. Ele usava uma diagramação em miniatura das páginas, que prendia na parede para poder “observar o ritmo da revista”, as massas, os pontos e contrapontos, os claros e os escuros. Depois é que fazia a diagramação definitiva e não raro pedia matérias, porque em determinado lugar era preciso “uma página leve, arejada” ou, ao contrário, “alguma coisa de peso, com densidade”. A diagramação do artigo sobre a África (Preto no branco: os negros tomam de volta suas terras) ganhou menção na Graphis da Suíça e ninguém soube como. Daí para frente, a revista engrenou. Logo nos mudamos, todos, das apertadas instalações na Travessa do Ouvidor, no centro do Rio (onde funcionava a editora), para a famosa Casa de Pedra da Rua Santa Clara, 344, em Copacabana. Um local que virou ponto de encontro e até de romaria. Glauco limpava pincéis pintando e nós aproveitávamos para colocar legenda, criando cartuns. Jaguar e eu tentamos a publicidade e não fomos compreendidos. Para a Varig, fizemos um cartum com os indefectíveis turistas americanos (ela de chapéu e ele de camisa havaiana e máquina fotográfica ao pescoço), olhando espantados para um muro onde estava pichada: “American, go home, fly Varig”. A companhia aérea não quis e, anos depois, a Japan Air Lines fez o mesmo anúncio, premiadíssimo no mundo todo. Outro foi para o cinqüentenário da Shell. Jaguar desenhou a Vênus de Boticcelli saindo das águas dentro da concha marca, segurando uma fita com a inscrição: “Shell, 50 anos de progresso feito nas conchas”. Em abril de 60, finalmente, a revista era Senhor, por extenso, tinha 45 mil assinantes e custava CR$ 100,00. Além do Glauco Rodrigues, Caio Mourão, Bia Feitler e Jaguar,

general Travassos morreu. Lauro Sodré, senador, e Alfredo Varela , deputado, foram presos. Assim, além das vítimas que ordinariamente causa, a varíola produziu essas...”. Apolon Fânzeres era engenheiro eletrônico, especialista em comunicações. Na “Gloriosa”, foi preso, torturado, interrogado pessoalmente pelo coronel Ibiapina, que queria saber dele “tudo”: - “Tudo? - Tudo, tudinho. - Mas é muita coisa. Tudo sobre o quê? - Não se faça de bobo.” Fânzeres acabara de montar um sistema de comunicação para as coletorias do Estado de Pernambuco, por encomenda do governador Miguel Arraes, e os militares tinham certeza de que aquilo era a “rede de subversão”. A prova? Todo o material era da CGT. - “Por que o senhor só usou material da CGT? - Porque é o melhor e o mais barato. - E desde quando a CGT produz esse material? - Há muitos anos.” Foi duro e doloroso esclarecer que CGT não era a confederação Geral dos Trabalhadores, como imaginava Ibiapina, mas a Compagnie Général du Téléphone. Esse mesmo Fânzeres escreveu, na Senhor de abril de 60, um delicioso artigo criticando os anunciados “grandes avanços tecnológicos em matéria de reprodução de som”, afirmando que o melhor de todos os receptores era o “compensador tonal subjetivo”. Receptores tecnologicamente avançados, reproduzindo música ruim, apresentavam um resultado ruim. Mas um aparelho pobre, reproduzindo um disco com chiado, mas de uma música maravilhosa, apresentava um resultado bom, graças ao tal compensador tonal subjetivo que cada um de nós tem dentro de si. Em agosto de 60, Scliar considerou cumprida sua tarefa: a revista existia, era sucesso, havia conquistado vários prêmios de qualidade gráfica no exterior (inclusive dos editores britânicos) e o reconhecimento da revista Graphis ( a suíça, a edição mais importante). O “Larousse”, mais uma vez, curvou-se ante o Brasil. Na minha opinião, muita gente boa, ótima mesmo, passou pela revista, mas nunca mais ela foi a mesma. Scliar saiu, voltou a dedicar-se exclusivamente à pintura, deixou Glauco Rodrigues em seu lugar. Senhor conseguira equilibrar receita e despesas. A Vemaguete continuava anunciando. Mas “o alto índice de nacionalização do Aero Willys” era “a melhor garantia de completa e permanente assistência técnica”; e o Dauphine era “o carro que você terá orgulho de dirigir”, leve e compacto, “o carro mais econômico do mundo!” ( mais de 16 quilômetros por litro de gasolina, 540 quilômetros sem precisar reabastecer). Enquanto o Simca Chambord era “produzido para nossas estradas e para as condições de tráfego das cidades brasileiras”,e a Volkswagen anunciava que “pelo sistema de refrigeração a ar eliminaram-se 21 fontes de avarias que há em motores de refrigeração a água”. O “carro mais desejado do mundo” era o Thunderbird 1960. Já o Gordini tinha um apelido popular baseado em outro anúncio: Leite

"Quando ela morreu, nem chorei, embora Senhor esteja entre uma das melhores coisas que fiz."

Na seção “Sr. e Cia, anunciávamos, pela primeira vez, o encontro de um “a” craseado no pára-choque de um caminhão. O que nos preocupava era a frase: “Eles virão à noite”. Das máximas de Clark Gable extraímos um filet mignon: “Sempre fui um tímido, principalmente com as mulheres. As cenas de amor me deixavam frio de medo, exatamente quando o diretor pedia uma expressão ardente. Até que resolvi pensar num grande e macio bife, e tudo deu certo. É no que penso até hoje”. Cientistas soviéticos estavam desconfiados de que alienígenas haviam destruído Sodoma e Gomorra com bombas atômicas... No cartum, um sapo dizia ao outro: “Dizem que beijo na boca dá sapinho...”. E a polícia carioca investigava um anúncio publicado no Diário de Notícias: “Dentadura de molas – em férias até o dia 7 de março”. Franz Heilborn (Franz Paul Heilborn era o nome de Paulo Francis na carteira de identidade) escreveu um artigo contando que os republicanos iam preferir Nixon, um político profissional, a Nelson Rokefeller. E anunciava: “A menos que Deus seja também americano, este é o futuro presidente dos Estados Unidos da América”. Bingo. Afirmávamos que “quem bebe cerveja estupidamente gelada é um estúpido”, frase que foi parar na capa do cardápio do falecido e saudoso Bar Zepelim, em Ipanema. E publicávamos a “Pequena História da República”, de Graciliano Ramos. Entre outros pequenos capítulos, o da Revolta da Varíola: “Oswaldo Cruz achava que era vergonhoso uma pessoa apresentar marcas de bexigas. Pensando como ele, o Congresso tornou obrigatória a vacina. E muita gente se descontentou. Estávamos ou não estávamos numa terra de liberdade? Tínhamos ou não tínhamos o direito de adoecer e transmitir as nossas doenças aos outros? A 10 de novembro de 1904, houve um motim; sublevou-se a Escola Militar, o

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