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PORTO ALEGRE, TERÇA-FEIRA, 1º DE ABRIL DE 2014 www.readmetro.com

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GABRIELA DI BELLA/METRO

Cheios de ideais e na clandestinidade

SUZANA K. LISBÔA

Luiz Eurico e Suzana tinham apenas 20 e 17 anos, respectivamente, quando se casaram, em março de 1969. Jovens idealistas, resolveram entrar para a clandestinidade no final deste mesmo ano, quando Luiz Eurico ficou sabendo que havia sido condenado a seis meses de prisão. O motivo: a mobilização para reabrir o Grêmio Estudantil do Colégio Júlio de Castilhos, no ano anterior. O envolvimento de Luiz Eurico com a militância política vinha desde os 15 anos, quando morava em Caxias do Sul e escreveu panfletos contra o golpe de 1964. Em Porto Alegre, já na clandestinidade, ficou responsável por reestruturar a ALN (Ação Libertadora Nacional), movimento liderado por Carlos Marighella. Para isso, o casal passou dez meses em Cuba, onde aprendeu técnicas de guerrilha e se aprofundou nos

ideais de esquerda. Em 19 de agosto de 1972, Suzana foi para São Paulo. Luiz Eurico viajou alguns dias depois e o casal nunca mais se encontrou. Suzana seguiu todas as pistas possíveis, mas só encontrou o corpo do marido em meados de 1979, no cemitério de Perus, em São Paulo, enterrado com o nome de Nelson Bueno, um de seus codinomes. No inquérito policial, a data da morte foi 3 de setembro, por suicídio. A dona da pensão onde ele vivia, no bairro da Liberdade, reconheceu sua foto. O jovem gaúcho foi o primeiro desaparecido político brasileiro que teve seu corpo oficialmente reconhecido no país. Coincidentemente, foi na mesma época da votação da Lei da Anistia no Congresso, e a família usou a tribuna para denunciar os crimes da ditadura. MÔNICA KANITZ

Em 1972, Luiz Eurico Lisbôa, então um jovem militante da ALN, desapareceu. Foi encontrado sete anos depois, no cemitério de Perus. Há 40 anos, Suzana busca saber o que aconteceu com o marido e com todos as vítimas da ditadura

‘MINHA REVOLTA CONTINUA’ Como é, atualmente, a rotina da Comissão dos Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos? Lutamos pela mesma coisa desde a época em que este grupo foi formado, em 1978, ainda na época da luta pela Anistia: queremos saber o que aconteceu com cada um dos mortos e desaparecidos, quem matou, como foi a circunstância da morte. Queremos que os corpos sejam identificados e entregues para o sepultamento, queremos a punição para quem os matou. Nada disso foi alcançado desde aqueles anos, o Estado brasileiro até hoje não fez nada... Mas e o trabalho da Comissão da Verdade? A Comissão da Verdade não busca os desaparecidos, empurra isso para a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Este grupo foi criado pelo governo FHC com a Lei 9.140 e integrada ao Ministério da Justiça, fiz parte dele durante dez anos. Foi o único governo que assumiu parte dos desaparecidos, cerca de 130. E o governo Lula? No governo Lula, a comissão foi anexada à Secretaria Espe-

cial dos Direitos Humanos e deixou de ser um assunto de Estado. Quando vi que nada mais ia acontecer, saí. O governo brasileiro foi obrigado, pela Justiça, a dizer onde estão e identificar os mortos, mas o Lula sempre recorreu. A mesma sentença foi dada pela Corte Interamericana de Direitos Humano, mas o Brasil não cumpre a decisão. Existe um número certo de mortos e desaparecidos? No último dossiê chegamos a uma lista de 467. Pelo menos metade desapareceu no Araguaia, muitos outros no exterior. Os poucos corpos fomos nós, os familiares, que encontramos. Mas devem existir muitos outros... Posso dizer que eu tive a sorte de encontrar o corpo do Luiz Eurico, de poder enterrá-lo. Muitas famílias tiveram que fazer enterros simbólicos, convivem com a dúvida sobre o que realmente aconteceu há 40 anos. É isso que queremos que a Comissão da Verdade busque, pois o dossiê sobre os mortos já existe. Qual é o seu sentimento hoje, quando se lembra os 50 anos do golpe? Ainda é um sentimento de

profunda indignação e revolta. Eurico desapareceu em 1972, levei sete anos para ter a certeza de que ele estava morto e só há dois tive certeza de que ele não se matou. Um laudo pericial da Comissão da Verdade atestou que era mentira a versão de que ele teria se suicidado num quarto de pensão. A senhora nunca soube o que aconteceu realmente? Não, até hoje sonho com isso. Todos os dias, quando acordo, minha indignação se renova. É isso o que me dá força para continuar... Também me apeguei muito aos outros familiares, nos reunimos com frequência em São Paulo, participamos de várias atividades. Há pais e mães que já morreram e a lembrança deles me dá força para continuar. Vocês eram muito jovens quando entraram para a clandestinidade. O que esperavam do Brasil? A gente acreditava mesmo que poderia mudar o rumo da História. Nosso cotidiano era pesado, andávamos na rua distantes uns dos outros porque o primeiro da fila sempre podia morrer. Os militares venceram aquela guer-

ra, mas eu me sinto vitoriosa por ter sobrevivido. Tenho a cabeça erguida e posso chamar estes covardes de torturadores e assassinos. O que vocês, deste grande grupo de familiares, esperam do governo? Queremos que o Estado brasileiro venha a público e peça desculpas pelos crimes cometidos. Na semana passada, o coronel Paulo Malhães deu uma entrevista assumindo que torturou, matou, quebrou dedos, arrancou arcadas dentárias... E o Exército Brasileiro silencia diante disso, faz de conta que não é com eles. E porque a senhora acha que o governo Dilma não faz isso? Eu conheço a Dilma e sei o que ela pensa do assunto. Mas a presidenta deve estar seguindo os acordos do governo Lula, porque ele sim nos enganou. No momento em que o Lula assumiu a presidência ele optou por defender os militares. O Lula nunca nos recebeu para conversar. MÔNICA KANITZ METRO PORTO ALEGRE

Homenagem aos 10 anos da morte do militante | GABRIELA DI BELLA/METRO

Leis buscam Dossiê reúne verdades e mais de 400 fatos da época desaparecidos A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos políticos foi criada em 1995, pela Lei 9.140, e reconheceu oficialmente os desaparecidos políticos no período de 1961 a 1988. No governo FHC ficou ligada ao Ministério da Justiça e, em 2003, foi transferida para a Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Antes disso, às vésperas da promulgação da Lei da Anistia, os familiares já se organizavam e pediam reconhecimento à sua comissão que unia forças em busca de informações e investigações extraoficiais. Já a Comissão Nacional da Verdade foi criada em 2011 pela Lei 12.528 e tem por finalidade apurar violações graves de Direitos Humanos. MÔNICA KANITZ

Em quase 800 páginas, o “Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil – 1964-1985” (lançamento da Imprensa Oficial, de São Paulo) reúne informações detalhadas sobre as 436 vítimas da ditadura militar. São histórias reais, a maioria de jovens, que ainda aguardam uma explicação e um final – a maioria ainda segue desaparecida. O livro também apresenta um capítulo detalhado sobre as ações e os episódios que buscam esclarecer os fatos, como a promulgação da Lei da Anistia, em 1979; as investigações sobre as valas clandestinas, onde vários corpos foram descobertos; os episódios do Araguaia; e mobilização da sociedade civil em comissões. MÔNICA KANITZ


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