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SEÇÃO 1: Introdução à Medicina Veterinária do Coletivo
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Como nasceu a Medicina Veterinária do Coletivo? Rita de Cassia Maria Garcia Adriana Maria Lopes Vieira Néstor Calderón Daniel Friguglietti Brandespim
esde a descoberta da presença do vírus da raiva na saliva de cães raivosos no século XIX por Louis Pasteur, os cães começaram a ser capturados e eliminados ao redor do mundo. Também surgiram as primeiras entidades de proteção aos animais e o início do alojamento e manutenção de grupos de cães: em locais públicos, para o controle da raiva; em locais privados ou do terceiro setor (ONGs), para a proteção dos animais. Afogamento, choque elétrico, câmaras de descompressão e morte por asfixia, pauladas, envenenamento e armas de fogo, foram métodos usados para a eliminação de cães errantes. Por exemplo, Nova York afogava os animais, Londres permitia a prática do tiro ao alvo em cães nas ruas. A falta de conhecimento e de políticas públicas para o manejo populacional, além da presença de zoonoses e aspectos socioculturais, fazem com que a eliminação de animais ainda ocorra em diversos países, nem sempre de forma humanitária. A partir da década de 30, nos Estados Unidos da América (EUA), iniciou-se informalmente o movimento No Kill (não matar), em defesa do fim da eutanásia de animais adotáveis, com o resgate de animais dos centros de controle animal e dos abrigos, por protetores individuais. Mas somente no início da década de 90 o movimento No Kill, com a missão de garantir um lar para todos cães e gatos adotáveis, ganhou força e visibilidade ao ser incluído como política institucional de uma das maiores entidades de proteção animal dos EUA, a San Francisco Society for the Prevention of Protection, Califórnia. Na época, o seu presidente, o visionário Richard Avanzino, reverteu uma política de eliminação de animais de mais de 100 anos, fazendo parceria com o centro público de controle animal de São Francisco a fim de oferecer uma chance para todos os animais adotáveis. Com o movimento No Kill aumentou também a participação dos médicos-veterinários nos abrigos. No Brasil, a captura e eliminação de animais “errantes”, ou seja, sem controle, aconteceu indiscriminadamente até os anos 90, como política de controle da raiva. O Ministério da Saúde preconizava a captura de no mínimo 30% da população canina estimada nas cidades1. Os profissionais que trabalhavam com a captura e eliminação não eram capacitados para o manejo dos animais, causando estresse e sofrimento e, em geral, não havia cuidados médico-veterinários para estes animais que, por vezes, eram mantidos por curtos períodos (3 a 5 dias) nos canis públicos e, então mortos. 20
A captura e eliminação de cães pelos órgãos públicos responsáveis pelo controle e prevenção das zoonoses tinha o enfoque na proteção da saúde humana. Não eram dispensados cuidados aos animais capturados até o dia da sua eliminação. A eliminação era a primeira opção para controlar a raiva e, posteriormente, para o controle da “superpopulação” dos animais. Essa ação não demandava expertise de médicos-veterinários, pois qualquer sinal de doença era a sentença de morte para os animais. Os conflitos entre os órgãos que praticavam a captura e eliminação de animais e os protetores de animais sempre foram históricos, além do conflito entre médicos-veterinários clínicos de pequenos animais e as atividades realizadas para o controle de zoonoses, que também sempre foram comuns. No Brasil, não era exigido que os médicos-veterinários que atuassem na área de saúde pública, em serviços de controle de zoonoses, conhecessem as doenças dos animais, estudassem etologia para um bom manejo e diminuição do estresse, ou desenvolvessem protocolos para a prevenção de doenças. A data da morte dos animais era certa! Animais doentes, feridos ou com fratura exposta não recebiam tratamento algum, apenas alimento e água durante a espera para o dia da morte. No Centro de Controle de Zoonoses de São Paulo, o dia que os animais eram capturados e adentravam os canis era chamado de dia 1. Eles permaneciam três dias aguardando resgate pelo proprietário. Na manhã do dia 4, eles eram eliminados coletivamente em câmaras de descompressão. Somente em 1999 esse método foi substituído pela eutanásia com barbitúricos, demanda gerada e custeada, inicialmente, pelo movimento de proteção animal. No Brasil, em meados da década de 90, as autoridades de saúde pública passaram a se preocupar com a eliminação de animais sadios devido à pressão da sociedade civil organizada. Santana e Oliveira (2008)2 dividem esses momentos históricos em duas etapas: “etapa da captura e eliminação de animais” e “etapa da prevenção ao abandono”. A “etapa da captura e eliminação” decorreu de uma primeira abordagem da Organização Mundial da Saúde (World Health Organization - WHO) em 1973, por meio do 6º Relatório do Comitê de Especialistas em Raiva da WHO3. Em 1984, a WHO reconhecia quatro métodos práticos para o controle canino e felino: a) confinamento de animais com proprietário; b) captura e remoção; c) controle do habitat, e d) controle reprodutivo4. Em 1990, WHO e World Society for Protection
Medicina Veterinária do Coletivo: fundamentos e práticas – 1ª edição