Jornal de Abrantes - abril 2021

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ENTREVISTA /

Sentimos falta dos actos de fé públicos, dessas manifestações de profundo sentir religioso, como as procissões e outas festividades, e que são funda mentais. juntos, de olhar nos olhos, de sentir a força das palavras, do cumprimento próximo, amigo ou mais formal. No entanto, e apesar do distanciamento e confinamento que nos é imposto, isso não destrói a comunhão que nos une. Sentimos falta dos actos de fé públicos, dessas manifestações de profundo sentir religioso, como as procissões e outas festividades, e que são fundamentais. Eles cimentam a comunidade, num âmbito muito mais alargado. Nem todos estão nos mesmos níveis de consciência e vivência da fé, mas em todos há o apelo e o sentimento do religioso, essas manifestações que ocorrem no espaço público têm a capacidade da inclusão e promoção na experiência religiosa, são resposta mais ou menos consciente à necessidade de Deus. Formas em que todos e cada um à sua maneira podem tocar o sagrado.

E o Padre, dentro da sua espiritualidade, costuma celebrar a palavra para os fiéis, como se sente ao celebrar no seu íntimo?

A palavra de Deus é alimento para o crente, para todos, sendo padres ou leigos. Por isso, em cada dia a Palavra de Deus é central, como se fosse uma mesa sempre posta da qual nos aproximamos e nos alimentamos. O padre não celebra só para os outros, não exerce o seu ministério de forma profissional ou exercendo uma função. O padre celebra o encontro com Deus, escuta a voz de Deus, acolhe essa mensagem para si antes de mais e depois partilha-a com a comunidade como um dom, uma riqueza excelente e esta palavra escutada e acolhida tem a força de fermentar os ambientes. Celebrar sozinho ou celebrar com a comunidade é acolher a presença de Deus, o mundo em que vivemos, na sua dureza, tem necessidade de que haja quem a receba e a torne presente.

Vamos ao caso das suas Paróquias, há muitos fiéis que, apesar de tudo, o abordam, pedem ajuda espiritual, conselhos?

Sim, as pessoas sentem necessidade de compreender e agir de um modo humano cristão, logo, em inúmeras situações precisam de luz, de capacidade de discernir, de viver a vida adequadamente. Em momentos de grande escuridão e desolação pro-

O que poderá mudar é a roupagem da linguagem e das manifestações que sempre se adaptam à realidade huma na para dizer aquilo que na essência é de sempre, é inalterável. as igrejas têm os cuidados propostos para defender as pessoas do contágio. Podemos afirmar na generalidade que são locais seguros. A diferença que efetivamente faz diferença é a ausência das famílias que se deslocam para celebrar as grandes festividades, num ambiente familiar mais alargado. Mas mesmo aqui existe a boa consciência de que esta perda garante maiores ganhos, há um adiamento de desejo de encontro e celebração, que, com certeza, potenciará a celebração, quando as restrições estiverem ultrapassadas.

Está a preparar um sermão, uma sessão, diferente ou mais intenso quando a Igreja puder receber os Fiéis nas suas celebrações?

curam o padre, não para substituir a sua inteligência, nem a sua consciência, mas para verem com maior clareza o que é o mais importante. E tanto jovens como pessoas adultas, e mesmo idosos, procuram muitas vezes este apoio no meio do turbilhão que é o estilo de vida que hoje nos envolve. Sinto que o padre, não sendo perfeito, continua a ser uma referência de confiança.

Procuram esse “aconselhamento” por via das tecnologias?

Entendo que as tecnologias são mais uma forma de presença, de partilha, de informação. As novas tecnologias, na pandemia que nos isolou, em muitos lugares, permitiu dar continuidade a uma ligação. No entanto, não são uma solução absoluta. No contexto da nossa realidade, verificamos que a grande maioria das pessoas que enchem as nossas igrejas e pertencem às nossas comunidades não têm acesso a esses meios. No entanto, há alguns casos em que as abordagens são feitas através destes meios e algumas respostas ficam mais facilitadas e próximas. Não me parece que faça sentido o uso exclusivo destes meios, como forma de relacionamento em detrimento da proximidade pessoal e social.

E a despedida dos defuntos, esta alteração nas cerimónias fúnebres, é também uma marca profunda que a Pandemia deixa?

Este é um dos pontos fulcrais, a morte e a sua vivência é de extrema importância

na nossa existência. Deriva da nossa consciência de ser e atribui-nos uma grandeza particular. Por isso, os rituais da morte são tratados tão cuidadosamente e com uma presença que nos irmana na mesma condição de mortalidade, sofrimento e tristeza. Precisamos de fazer lutos, gerir perdas… As limitações de presença e de despedida são de tal maneira estranhas que as sentimos como agressões à nossa natureza, inquietam-nos e deixam-nos infelizes duplamente. É uma marca muito profunda que esta pandemia nos deixa. Por isso, no contexto da morte é necessária, ainda mais agora, a proximidade possível junto dos que sofrem perdas e não pode faltar nas palavras a força da esperança na vida, que vence todas as expressões da morte.

E a Semana Santa e Páscoa, que tem uma importância muito grande da Igreja, ser vivida sem as pessoas torna-a diferente?

A Páscoa é a festa central. A mais importante na celebração da Igreja. A Páscoa é a fonte de toda a vida da Igreja e de todo o seu agir. Tudo surge da vida e ainda mais de uma vida renovada pela ressurreição de Cristo. Felizmente que apesar das restrições podemos celebrar a Páscoa com as nossas comunidades cristãs. Há um despertar de confiança e encorajamento, consequência da vacinação que está em curso, as práticas de proteção já estão interiorizadas nos comportamentos individuais e

Não estou a preparar – melhor -, não preparei nada de diferente no reencontro com a comunidade. A palavra comunicada, até porque esse domingo o inspirava, foi no sentido da força de uma aliança que nenhuma pandemia poderá revogar ou pôr em causa. A fidelidade de Deus no amor pela humanidade é para sempre, é para todos, o apelo é, da nossa parte, correspondência a essa aliança. Talvez estivesse presente alguma intensidade, mas essa é consequência da saudade e do poder sentir de mais perto o afeto que nos une e reúne como família de Deus.

Padre Francisco Valente, esta pandemia vai mudar a forma de vivermos em sociedade e até naquilo que é a nossa Fé, que são as nossas crenças?

O futuro afigura-se-nos como uma realidade imprevisível. Não somos detentores de conhecimentos, que nos permitam definir vivências claras no pós-pandemia. Ainda não alcançámos esse lugar. Não sabemos o que é viver depois desta crise estar controlada. As atitudes que possam vir a alterar-se relativamente à vida social não terão, com certeza, grandes diferenças nas vivências religiosas. No que diz respeito à crença, ao núcleo da fé, não haverá alterações. O que poderá mudar é a roupagem da linguagem e das manifestações que sempre se adaptam à realidade humana para dizer aquilo que na essência é de sempre, é inalterável.

Abril 2021 / JORNAL DE ABRANTES

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