Revista Memories

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MEMORIES 3,90€ | TRIANUAL | JUNHO 2021

EDIÇÃO Nº1 | JUNHO

Alison Luntz Na praia ou na sala de estar? A verdade da “mentira” do confinamento de Alison

José Grilo “Para se ser um bom fotógrafo é preciso muita resiliência”

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EDITORIAL

Marta Gonçalves Editora

@martagoncallves

O berço de uma sociedade fotográfica Desde o início da raça humana que os seres humanos tentaram descobrir maneiras de eternizar os momentos vividos. No dia 9 de maio de 1816 a forma como passamos a olhar para o mundo mudou, pela primeira vez era possível gravar uma imagem numa folha de papel sensibilizado quimicamente. Graças ao francês Joseph Nicéphore Niepce a partir deste momento foi possível viver um acontecimento e “guardá-lo” fisicamente. Com passar dos anos assistimos ao aparecimento da fotografia analógica que levou de seguida ao surgimento da fotografia digital. Esta evolução trouxe consigo uma maior acessibilidade aos materiais fotográficos, pois devido ao aumento da produção de equipamentos fotográficos passou a ser cada vez mais fácil adquirir este tipo de equipamentos. No entanto, podemos dizer que uma das maiores alterações que existiram, no que se refere à relação do ser humano com o mundo fotográfico, aconteceu com a incorporação de objetivas nos telemóveis. Isto permitiu que todos nós nos tornássemos “pequenos” fotógrafos e de certa forma levou a que qualquer pessoa achasse que podia ser fotografo. As redes sociais, como o Instagram, são um espelho disto mesmo, sendo estas um espaço de partilha de arte digital.

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ÍNDICE

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Fotografia Na praia ou na sala de estar? A verdade da “mentira” do confinamento de Alison

12 Fotografia Entrevista a José Grilo

20 Arte Digital Um artista digital em ascensão

24 Imagem Representação, Interpretação

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Na praia ou na sala de estar? A verdade da “mentira” do confinamento de Alison

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Alison Luntz é fotógrafa de Nova Iorque e fotografa casamentos, eventos, retratos e projetos criativos pessoais há sete anos.

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In Spirit, uma colecção de auto-retratos realizados por Alison Luntz em tempo de pandemia, revela uma “mentira” fotográfica que faz questionar as fronteiras do que é real e imaginado na fotografia. “Nunca tive intenção de que isto se tornasse uma série de imagens”, refere a fotógrafa nova-iorquina Alison Luntz, em entrevista ao P3. “Mas depois de publicar a primeira no Instagram, por mera brincadeira, a reacção foi tão positiva que me senti tentada a continuar.” In Spirit nasceu durante a pandemia, quando Alison se retratou junto a uma imagem de uma paisagem escocesa de grandes dimensões que tinha na sua sala de estar, em Brooklyn. Vestiu-se a preceito — abrigada do frio e do vento que a fotografia sugeria existir no local —, preparou a iluminação para simular a luz que sobre si incidiria e fez um auto-retrato. Ou melhor, dois: um com a “mentira” de estar na Escócia, outro com o contexto em que realmente se encontrava. “Ao posar

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diante das minhas próprias fotografias — instantâneos, memórias com granulado de filmes, colagens — consigo transportarme para junto de lugares, pessoas e sensações que me foram vedadas durante o confinamento.”

Assim, Alison pôde sentir “a liberdade de nadar no mar” ou “o conforto de estar na presença de alguém querido”. Nas imagens fundem-se dois tempos fotográficos num só, criam-se novas interacções, novas narrativas. “Consigo transformar algo impossível numa realidade fotográfica”, reflecte. “Ao criar uma imagem que poderia ser real, transporto-me até ao local, em espírito.” Alison nunca tinha, até ter dado início à série, experienciado realizar auto-retratos. “Não tinha mais ninguém para fotografar, não tinha outra opção. Mas foi uma experiência exigente.”


“Consigo transformar algo impossível numa realidade fotográfica.”

A fotógrafa teve de desdobrar-se e iluminar, enquadrar, posar e controlar o disparo por controlo remoto. Agora em desconfinamento, por sentir falta de contacto humano, deseja estender o projecto e começar a fotografar outras pessoas sobre outros cenários bidimensionais.

“Existe algo de universal neste projecto”, conclui. “É significativo para mim e para muitas pessoas de todo o mundo, que me contactaram através das redes a propósito dele. Há algo real, verdadeiro, que as pessoas reconhecem nele por terem atravessado, como eu, o período de confinamento isoladas.”

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Entrevista José Grilo

“Aprendi a fotografar a ver muita fotografia.”

José Grilo tornou-se fotógrafo profissional em 2008, depois de tirar o curso na Oficina da Imagem - Escola Profissinal de Fotografia. Atualmente, é proprietário da JGrilo Fotografia.

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Como nasceu a ideia de seguir o caminho no mundo audiovisual? Eu separo um bocadinho as coisas quando me falam em audiovisual, porque eu acho que fotografia não tem áudio e não faço vídeo. Primeiro, eu acho que quem segue o caminho da fotografia é por hobby, por gosto. Eu tinha outra profissão até 2008 e a fotografia até então era ocupada como um hobby. Comprava máquinas, gostava de fotografia, lia livros de fotografia. No mesmo ano comecei a pensar que tinha muito dinheiro investido em material então resolvi enveredar pela fotografia. Eu era delegado de propaganda médica, não me sentia realizado com a profissão que tinha e olhava para as mochilas cheias de lentes e câmaras e dizia “Porque não?”. Então, cortei com a outra profissão e comecei a arranjar trabalhos e fazer contactos no mundo da fotografia. Desde 2008 até hoje é o meu modo de vida. A nível profissional, que projetos já realizou ou está a realizar na área da fotografia? A fotografia que faço é puramente comercial. Sempre fiz trabalho comercial. Acho que a fotografia autoral em Portugal é um bocadinho

elitista, ou seja, se eu me quisesse dedicar a fazer projetos de autor, teria de ter sempre outro meio de subsistência. Muitos colegas que fazem fotografia de autor também fazem a fotografia comercial. Eu trabalho com fotografia puramente comercial, portanto, não tenho nenhum trabalho que se destaque, que diga “Fiz isto, fiz uma exposição para isto ou um livro”. Já fotografou casamentos? Sim, claro. Acho que os casamentos são o começo para quem vai enveredar pela fotografia. Nós vemos ali uma forma de ganhar dinheiro. É uma coisa que ainda hoje faço, mas muito menos porque há mais gente a fazer do que na altura em que eu comecei. Acaba por se tornar num gosto. Há um estigma muito grande no meio fotográfico em que parece que o fotógrafo de casamentos é menos do que os outros. Hoje em dia isso já mudou um bocadinho porque já há trabalhos espetaculares, como reportagem de casamentos. O registo fotográfico, nos últimos anos, alterou-se e melhorou bastante.

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isso e depois fui evoluindo e reparei que não fazia sentido estar a estragar o dia aos noivos com a fotografia. Com este novo registo, conseguimos ter fotografias mais espontâneas e mais verdadeiras.

Como é o processo antes e depois de fotografar um evento? No caso dos casamentos, eu trabalho sempre com uma equipa. Fazemos sempre uma reunião com os noivos, um primeiro contacto para os conhecer, que acho que é importante. Depois há uma preparação, que basicamente é compor a agenda do dia e meter a fotografia lá pelo meio. Hoje em dia tentamos, pelo menos com a minha equipa, que a fotografia não atrapalhe o dia, como acontecia nos casamentos há muitos anos. Parece que aquilo foi uma coisa montada para o fotógrafo ganhar dinheiro. Hoje em dia, acho ridículo e tentamos sempre que não sejamos notados. Isso acaba resultar em fotografias mais espontâneas? Exatamente. A ideia é fazer uma reportagem e contar a história do dia sem grandes poses. Acho que já não se adequa aos tempos que correm andar a pedir aos noivos para virem para algum lado tirar fotografias. Eu passei por

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Onde é que vai buscar inspiração? Tem algumas referências? Quando me perguntam isso, eu nunca me lembro de nenhum. Por exemplo, fotografia de casamento, uma referência para mim e que eu gosto, é um fotógrafo francês, que se chama Eric René Penoy. Encontrei-o há pouco tempo, há coisa de um ano e gosto muito do registo dele. Uma que também gosto muito é Monika Frias, que é uma fotógrafa de casamentos e de retratos Esta nova abordagem que se faz dos casamentos é uma fotografia mais vanguardista. Prima muito pela luz natural, que acho importante e difícil de dominar, porque o sol está sempre onde nós não queremos. Estas são as minhas referências nos casamentos. Mais do que o curso de fotografia que fiz, aprendi a fotografar a ver muita fotografia. Olhava para uma foto e tentava recriá-la. Basicamente, era copiar e depois com os erros vamos aprendendo. Na moda, são muitas as referências que tenho, por exemplo, a nível nacional, Mário Príncipe. A nível internacional, gosto imenso do Steven Meisel e do Mario Testino. Agora, assim à pressão, não me lembro de nenhum, mas passa pelo registo destes dois. Às vezes acabamos por dizer “agora faço só isto, quero fazer só isto”. O meu trabalho não é aquele acomodar de “eu gosto de fazer isto, agora vou fazer isto o resto da vida”, como esses fotógrafos. Eles já são procurados para fazer aquilo, ou seja, quando um cliente lhes pede algo, já sabe o que vai levar, nem sequer é discutível. Eles são aquelas referências mundiais, o cliente se quiser fotografar umas calças e pedir ao Meisel para fotografar as calças, o fotógrafo vai fazer como quer. Eu aceito um bocado o que o cliente diz e tento fazer o meu trabalho contrabalançando com o que o cliente quer.


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Para se ser fotógrafo, é preciso ter formação? Para ser fotógrafo, acho que é preciso ter formação. Vou fazer uma analogia com a carta de condução. Nós temos a carta e sabemos conduzir carros, mas não sabemos conduzir carros de corrida, nem camiões, nem motas. E depois é um pouco a especialização de cada um. Ou seja, aprendemos a conduzir a fotografia. Acho que os cursos de fotografia, às vezes, são um bocadinho enganadores. Conheço muita gente que foi tirar um curso de fotografia e saiu de lá sem saber nada e depois nem sequer seguiu fotografia. E também existe o contrário, ou seja, muitas pessoas que são grandes fotógrafos, mas nunca fizeram um curso de fotografia. Tudo o que está ligado às artes nasce um pouco com a pessoa, não é nada que se adquira. Quer dizer, adquire-se o conhecimento, a estética por ver muito e depois achar um caminho, um gosto pessoal. É assim que se criam as correntes artísticas. Acho que um curso de fotografia é bom, tira-se muitas dúvidas. Não estou a dizer que não gostei de o fazer, eu gostei, mas também, metade do que aprendei no curso, já sabia, mas, pelo menos, tive a certeza de que eu estava correto. Quando tirei o meu curso, havia Internet, mas não havia a Internet e a informação que há hoje. Atualmente, democratizou-se a fotografia e toda a gente é fotógrafo. Alguns são bons, outros são maus, outros são mais ou menos. Acho importante o curso e sabermos trabalhar com as coisas. Já encontrei muita gente que tirou licenciaturas em fotografia, mas que levei para uma reportagem e eu tive que ensinar. Acho isso muito mau. Quais são as características necessárias para ser um bom fotógrafo? Principalmente, a resiliência. Muita resiliência porque há dias que isto parece muito bonito e não é, é uma dor de cabeça. É um mercado de altos e baixos, não é um mercado constante. Vivemos agora num momento de incerteza. Eu vendo um artigo que não é de primeira necessidade, não é comida, não é medicamentos. Portanto, as pessoas podem viver sem fotografia, à primeira vista, mas ela é necessária. As pessoas querem ver coisas, os jornais têm de ser ilustrados com fotografias, os livros também, a aprendizagem é com fotografia. Por exemplo, quando estamos a fazer o curso de fotografia, estamos todos os dias em contacto com o ambiente e é normal que estejamos sempre a evoluir. Mas depois acaba o curso e nós não sabemos o que vamos fazer.

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Há ali um período em que fotografamos e em que aprendemos e, depois, há um período em que deixamos de fotografar, que parece que já sabemos tudo. E eu notei que, quando fiz esse intervalo de não fotografar, parece que perdi a mão ao olho, devido ao facto de não estar em contacto todos os dias com a fotografia. Bastoume 15 dias, que, quando peguei na câmara, andei à procura dos comandos. Por isso, é importante estar em contacto com a fotografia todos os dias. Quando não estou a fotografar e a capturar imagem, estou a editar, todos os dias. Claro que ao fim de semana tento não fazer isso, porque o descanso também é importante. Eu acho que cumpro os mínimos para ser um bom fotógrafo. Se me procuram, é porque gostam do que veem. Para muitos, um bom fotógrafo pode ser isso, para outros, pode ser outra coisa totalmente diferente. Resiliência é o que se pede nisto, é, tipo, vamos trabalhar, vamos com calma. Enquanto fotógrafo profissional, ou seja, estar registado nas finanças com a atividade aberta, também há um período em que se quer agarrar os trabalhos todos e começa-se a baixar preços, o que é mau, porque acabamos por ser um fotógrafo de preço. E o fotógrafo de preço, tem clientes de preço, ou seja, o cliente tanto vem, como vai. Isto acontece porque existe uma falta de estética e de cultura visual em Portugal. Nós somos bons até um certo ponto, depois já não prestamos. Para muita gente, um bom fotógrafo é o mais barato.


Que conselhos daria a alguém que está a iniciar o seu percurso no mundo da fotografia? Como há tantos fotógrafos hoje em dia e toda a gente pode ser fotógrafo, eu perguntava à pessoa se ela se acha capaz de enveredar por uma profissão que, hoje em dia, está prostituída pelo preço. Eu fazia esta pergunta à pessoa, mesmo que não a conhecesse. Dizia-lhe para pensar duas vezes antes de ser fotógrafo. Como eu caminhei para aqui num período em que não havia tantos fotógrafos, noto que pessoal mais novo fica um bocado desiludido e depois trabalha muito por pouco dinheiro. Eu costumo dar um conselho aos estagiários que é: não se vendam por pouco. Em Portugal, nós temos um tecido empresarial em que existe a ideia de que o mais barato é que é bom. Quem começa a entrar na fotografia, às vezes, vende-se por pouco. Além disso, o equipamento é caríssimo e os clientes não querem saber se usamos uma

câmara de 70 mil euros ou de 10 euros. Eles querem o trabalho feito e barato. Se alguém me fizesse esta pergunta, eu daria estes conselhos: se tens noção de que o teu trabalho é bom para enveredar por um percurso profissional, não te vendas por pouco. Quando entrei no mercado, respeitei os fotógrafos que já cá estavam, sondei preços, comecei a olhar para os trabalhos deles e comecei a olhar para o meu e tentei dar confiança aos clientes, dizendo para investir em mim, mesmo que eu fosse mais caro, que não se iam arrepender. Quando comecei a trabalhar na fotografia, ofereci muito trabalho, porque achava que ainda não estava suficientemente preparado para cobrar. Até que dei aquele salto de estar confiante e achar que está bom, de olhar para o dos outros e achar que está parecido e até melhor em alguns aspetos e comecei a cobrar. Era esta a conversa que eu tinha com a pessoa que me fizesse esta pergunta.

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Um artista digital em ascensão Mauro Chainho

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Representação, interpretação Uma reflexão inultrapassável sobre o poder das imagens. Os seus detractores acusaram-na de oportunismo, mas os apoiantes louvaram o empenho e a coragem de mostrar quão forte é a cultura perante o horror. Muito para além das opiniões de uns e outros, a experiência serviu a Sontag para aprofundar ideias sobre a “representação” do sofrimento humano, um tema que atravessa toda a sua obra. Desde a altura em que publicou a colectânea de ensaios Contra a Interpretação (1966), o caminho foi longo, tortuoso, amiúde pontuado por opiniões contraditórias; e se, nos anos 60, escreveu que a interpretação (a abundância excessiva de significados) era “a vingança do intelecto contra a arte”, advogando uma “liberdade do vocabulário descritivo”, mais tarde, nos textos que integram Sobre a Fotografia (escritos entre 1973 e 1977), avançou com o argumento de que a proliferação de imagens fotográficas contribui para o aumento do cansaço no olhar do espectador, levando-o a nivelar ou a banalizar o seu significado intrínseco. Pelo caminho, não se escusou de criticar o “cinismo estético” de, por exemplo, Diane Arbus e Andy Warhol, “o sacerdote dos deleites da apatia”, que, segundo ela, preferiu criar “arte” a partir de imagens de desastres, mencionando a guerra apenas uma vez, na gravura com o cogumelo atómico de Hiroxima.

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Em Olhando o Sofrimento dos Outros, o seu último livro, (que surge agora numa reedição portuguesa com algumas alterações), Susan Sontag virou-se decididamente para a análise da forma como todos nós, seres humanos, observamos e reagimos à representação da dor nos nossos semelhantes. As imagens de guerra, de massacres, de torturas que nos entram pela casa dentro, tanto em suporte fotográfico ou, cada vez mais, pela televisão, serão passíveis de desencadear um tão grande choque e repúdio que se torna impossível repetir tais horrores? A própria Sontag reconhece a ingenuidade desse desejo — “Quem acredita hoje que a guerra pode ser abolida? Ninguém, nem mesmo os pacifistas” (p. 13) —, uma vez que, nesta sociedade do espectáculo, estamos todos tão profundamente anestesiados (ou enfadados) que as cenas dramáticas, de tantas vezes reproduzidas, acabam por ser descartadas como “banais”. Sontag confirma que as imagens de guerra estão sujeitas tanto à interpretação como à manipulação e que, por isso, a noção de que esse imaginário poderá ter um efeito dissuasor é ilusório. Apesar de todo o horror que perpassa perante os nossos olhos, a violência é perene e nada se pode fazer contra essa evidência. (Sontag morreu antes de assistir às decapitações em directo, devidamente ensaiadas, levadas a cabo pelo ISIS mas refere o caso do jornalista Daniel Pearl, cuja execução no Paquistão, em Fevereiro de 2001, desencadeou (mais) um fenómeno mediático.) Para levar a cabo a sua argumentação, Sontag recupera, ainda, uma leitura histórica da representação da dor alheia. Considerando a imagem do sofrimento como circunstância exemplar, a filósofa oferece exemplos concretos e analisa-os, desde a pintura de Ticiano que mostra o esfolamento do sátiro Mársias (1570-1575), uma representação mitológica mas horrivelmente real, passando pelos martírios dos santos (um incentivo ao sacrifício) e culminando nas gravuras de Goya Os Desastres da Guerra (1810-1815), que têm já uma dimensão diferente, documental, uma vez que foram acontecimentos que o pintor presenciou durante as invasões francesas. Sontag refere ainda a importância de uma obra como Os Três Guinéus, de Virgínia Woolf uma reflexão que é também uma resposta às fotografias da Guerra Civil de Espanha que foram dadas a ver à escritora, com um pedido de comentário — e o cinema de Abel Gance que, em J’accuse!, (1919) mostra rostos desfigurados — “les gueules cassées” — de soldados da Grande Guerra. Quanto aos primeiros registos fotográficos em campos de batalha — Guerra da Crimeia, Guerra da Secessão —, Sontag recorda que eram quase todas encenadas, uma vez que as câmaras eram pesadas e tinham de estar fixas e os modelos imóveis.


O uso da fotografia como possível agente dissuasor culminou nas atrozes imagens dos campos de concentração nazis, quando da sua libertação pelos aliados, no fim da Segunda Guerra Mundial, nas imagens dos ataques atómicos a Hiroxima e Nagasáqui e, mais tarde, na cobertura histórica da Guerra do Vietname; neste caso, Sontag lembra como as imagens tiveram importância como rastilho para os protestos pacifistas e refere duas fotografias icónicas do conflito, a (espontânea) da criança a gritar, nua, queimada por napalm, e a da execução de um vietcongue numa rua de Saigão pelo chefe da polícia, que arrastou o prisioneiro para aquele lugar propositadamente para ser fotografado. Quanto ao Holocausto, e também pela forma como se fixou na mente dos que, ainda hoje, olham para a sua representação com repulsa — em fotografias, livros, cinema —, seria de esperar que tão brutal acontecimento nunca mais se repetisse. No entanto, e apesar da condenação alargada, ainda se dão genocídios na Ásia e em África, o que leva a outra questão colocada por Sontag: será que a violência deixa de exercer o mesmo repúdio para quem está longe (muito ou pouco longe) e que, por isso, se sente, ainda que ilusoriamente, “em segurança”? Ser espectador de calamidades alarga ou não a consciência do sofrimento? E que diferença existe entre protestar contra o sofrimento ou apenas reconhecê-lo? Desde que surgiu o registo fotográfico que a tentação de registar o bem e o mal é demasiado intensa para ser ignorada. No entanto, como é que se escolhe o que se deve mostrar ou não? (Uma questão importante com o advento das redes sociais). E em que medida a revelação de acontecimentos fixados em imagens pode esclarecer ou distorcer e manipular a opinião pública?

exerce sobre muitos espectadores.

Olhando o Sofrimento dos Outros continua a ser um ensaio extremamente oportuno, nos dias de hoje. A filósofa morreu em 2004, ainda a tempo de escrever sobre toda a representação do fatídico ataque do 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque, e sobre a aceleração do processo de exposição de guerras e outras catástrofes — uma aceleração que, entretanto, atingiu tal intensidade que os códigos deontológicos dos fotojornalistas e dos que, nos media, escolhem as imagens, se alteram a cada instante.

Existe ainda outra questão abordada neste livro: se a violência e o sofrimento dos outros se inserem na categoria de espectáculo — basta recordar o circo, na Roma Clássica —, o que poderemos retirar da observação de fotografias “encenadas”, como a famosa imagem final do levantamento da bandeira pelos fuzileiros, em Iwo Jima, ou como a do soldado republicano espanhol a ser atingido por uma bala, captado por Robert Capa no momento da morte, um “instantâneo” que ainda hoje causa controvérsia por não se saber se o homem que cai “sobre a sua própria sombra” foi atingido propositadamente para o “disparo” da câmara do fotógrafo. Sontag avança com a ideia de que o significado de uma fotografia se obtém numa síntese que inclui o artifício, o contexto e a experiência, alertando para a inevitável distorção que consiste no filtro que é o olhar do fotógrafo. Adianta ainda que não é possível escamotear a atracção erótica que a imagem do sofrimento dos outros

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FICHA TÉCNICA Diretora Beatriz Sousa

Localização Leiria, Portugal

Editora Marta Gonçalves

Contactos editorial@memories.pt publicidade@memories.pt

Jornalista Beatriz Sousa Design e Criatividade Marta Gonçalves Fotografia Mauro Chainho

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Departamento de Publicidade Iris Vieira

CRÉDITOS Foto reportagem Ana Marques Maia

Imagens Foto reportagem Alison Luntz

Entrevista Beatriz Sousa Iris Vieira Marta Gonçalves Mauro Chainho

Imagens Entrevista José Grilo

Fotogaleria Mauro Chainho

Imagens Ensaio Crítico Helena Vasconcelos

Ensaio Crítico Helena Vasconcelos

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Imagens Fotogaleria Mauro Chainho


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