Tenda dos milagres jorge amado

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decifrando tua adivinha. Rosa, nós não somos os bonecos da marmota, temos honra e sentimento. Rosa, nós não somos degenerados em promiscuidade imunda, uns animais ou, pior, uns criminosos. Sim, Rosa, exatamente isso: “Mestiços degenerados em sórdida, em imunda promiscuidade”, foi o que escreveu um professor de medicina, um doutor, um catedrático. Mas é mentira, Rosa, é calúnia desse sabe tudo que não sabe nada. Archanjo rompe o sonho num esforço extremo, abre os olhos, nasce a manhã no mar e os veleiros partem. A sueca é feita de jasmim e exala um perfume suave, matinal. Um menino escuro correrá na neve. Dissolve-se a imagem de Rosa na distância, toda nua. Na gringa te esquecerei, e em Sabina, em Rosenda, em Risoleta; te esquecerei em muitas outras, livre de tormento e aflição. Livre? Esquecerei ou buscarei em desespero? Em campo de jasmim e trigo, teu negrume. Em todas elas, Rosa de Oxalá, tua indecifrável adivinha, teu proibido eterno amor. 9 Mais abaixo, na dobra da Ladeira, em vão de porta, o velho Emo Corró manteve a freguesada cadeira de barbeiro e um armário de mezinhas, além do boticão de arrancar dentes. Ensinou o ofício e a medicina aos dois filhos: Lucas e Lídio. Este último, porém, cedo abandonou a navalha e a tesoura. Atendendo ao convite de seu padrinho, Cândido Maia, mestre tipógrafo, foi aprender com ele no Liceu de Artes e Ofícios. Aluno de inteligência viva, cheio de interesse pelo ofício, rapidamente o dominou, de aprendiz a mestre em pouco tempo. Nessa ocasião conhecera Artur Ribeiro, estranho personagem, soturno e solitário. Tendo cumprido pena de prisão, não lhe era fácil obter trabalho estável. Cândido e outros antigos camaradas arrumavam-lhe biscates no Liceu. Gravador em metal e em madeira, não tinha rival em todo o Norte do país. Em 1848, de acordo com um libanês e um russo, montara secreta oficina de gravura: impossível distinguir as notas falsas, gravadas por Artur, das verdadeiras do governo, feitas na Inglaterra. O negócio prosperou até demais: Ribeiro na oficina, o libanês e o russo trocando moeda falsa, mercadoria de muita aceitação. Iriam longe, não fosse o libanês um louco. Deu-lhe o delírio do luxo, fez misérias: mulheres, champanha, cabriolé. Acabou-se o que era bom, o segredo foi parar na Chefatura de Polícia. Ribeiro e Mahul, o libanês, bateram com os costados na cadeia, do russo nunca mais notícia, dera o fora em tempo com a maleta repleta de dinheiro, cédulas do governo, verdadeiras. Artur Ribeiro, fechado, carrancudo, sem conversa, ainda nas grades da vergonha embora livre do xadrez, tomou-se de interesse pelo moleque esperto, jeitoso no desenho, e lhe ensinou a riscar milagres — outro de seus bicos naquele podre fim de vida — e a gravar em pedaços de maneira; não no metal, pois nunca mais tomara de uma placa de cobre, jura feita na prisão. Num dia de cachaça e confidência, disse a Lídio ter um único desejo: matar com suas próprias mãos o miserável Fayerman; o russo soubera com antecedência dos passos da polícia, escafedera-se com o lucro, sem um aviso sequer aos sócios da guitarra. A morte do irmão Lucas, trouxe Lídio de volta para a tesoura, a navalha, o boticão. Emo perdera a firmeza do pulso nos anos e no trago, alguém devia garantir as despesas do velho e as


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