Laplantine, françois aprender antropologia

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1.2. A FIGURA DO BOM SELVAGEM E DO MAU CIVILIZADO

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dade original”do estado de natureza. L´ery, entre os Tupinamb´as, interroga-se sobre o que se passa ”aqu´em”, isto ´e, na Europa. Ele escreve, a respeito de ”nossos grandes usur´arios”: ”Eles s˜ao mais cru´eis do que os selvagens dos quais estou falando”. E Montaigne, sobre esses u ´ltimos: ”Podemos portanto de fato cham´a-los de b´arbaros quanto a`s regras da raz˜ao, mas n˜ao quanto a n´os mesmos que os superamos em toda sorte de barb´arie”. Para o autor dos Ensaios, esse estado paradis´ıaco que teria sido o nosso outrora, talvez esteja conservado em alguma parte. O huguenote que eu interroguei at´e o encontrou. Esse fasc´ınio exercido pelo ind´ıgena americano, e em especial por le Huron,9 protegido da civiliza¸ca˜o e que nos convida a reencontrar o universo caloroso da natureza, triunfa nos s´eculos XVII e XVIII. Nas primeiras Rela¸co˜es dos jesu´ıtas que se instalam entre os Hurons desde 1626 pode-se ler: ”Eles s˜ao af´aveis, liberais, moderados. . . Todos os nossos padres que freq¨ uentaram os Selvagens consideram que a vida se passa mais docemente entre eles do que entre n´os”. Seu ideal: ”viver em comum sem processo, contentar-se de pouco sem avareza, ser ass´ıduo no trabalho”. Do lado dos livres-pensadores, ´e o mesmo grito de entusiasmo; La Hontan: ”Ah! Viva os Hurons que sem lei, sem pris˜oes e sem torturas passam a vida na do¸cura, na tranq¨ uilidade, e gozam de uma felicidade desconhecida dos franceses”. Essa admira¸ca˜o n˜ao ´e compartilhada apenas pelos navegadores estupefatos.10 O selvagem ingressa progressivamente na filosofia – os pensadores 9

Um dos primeiros textos sobre os Hurons ´e publicado em 1632: Le Grand Vayage au Pays des Hurons, de Gabriel Sagard. A seguir temos: em 1703, Le Supplement aux Voyages du Baron de La Hontan o¨ u ion Trouve des Dialogues Curieux entre 1’Auteur et un Sauvage; em 1744, Moeurs des Sauvages Am´ericains, de Lafitau; em 1767, Vlng´enu, de Vol-taire.. Notemos que de cada popula¸c˜ ao encontrada nasce um estere´otipo. Se o discurso europeu sobre os Astecas e os Zulus faz, na maior parte das vezes, referˆencia `a crueldade, o discurso sobre os Esquim´ os a sua hospitalidade, estes u ´ltimos n˜ao hesitando em oferecer suas mulheres como presente, a imagem da bondade inocente ´e sem d´ uvida predominante em grande parte na literatura sobre os ´ındios. 10 No s´eculo XVIII, um marinheiro francˆes escreve em seu di´ario de viagem: ”A inocˆencia e a tranq¨ uilidade est´ a entre eles, desconhecem o orgulho e a avareza e n˜ao trocariam essa vida e seu pa´ıs por qualquer coisa no mundo”(coment´arios relatados por ). P. Duviols, 1978).


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