Memorial

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Poucos dias depois do regresso de meus irmãos, meu pai, minha mãe e meus irmãos visitaram-me em São Vicente, mas na verdade não me visitavam, vinham simplesmente despedir-se. Eu tinha quase dezanove anos e minha família embarcava para o Brasil, deixando-me nas minhas próprias mãos e no auxílio de Abrão, que se comprometeu a ter-me sempre como filho. Tinha ganho uma nova casa, ganhava o meu próprio dinheiro em diferentes ofícios e estudava com meu tio Abrão, mas perdia o que restava da minha família. Somente reencontrei meus pais e meus irmãos muitos anos mais tarde, quando chegou minha vez de embarcar para as terras das oportunidades. Estávamos então no ano de mil novecentos e sessenta e quatro, e minha família embarcava para o Brasil. E em São Vicente as más-línguas começavam a lançar as suas sementes. Nos dias em que Clara frequentava a casa de Abrão, seu pai muito nos visitava. Aproveitava essas tarde para rever a filha, que mal lhe falava por vontade de Agostinha, que não o apreciava por não ser um bom exemplo. Nessas visitas ocasionais, conheci o mestre Ferdinando, que era mais novo que parecia, moreno e de cabelos grisalhos. Era ferreiro, concertava e fazia todo o tipo de ferramentas agrícolas, tinha sempre que fazer pois melhor não havia, apesar de ter uma relação particularmente próxima com o vinho. Ferdinando Jangão apenas tinha a sua filha Clara, estimava meu tio Abrão e não tardou a gostar de mim também. Apenas não lhe agradava que eu bebesse como um rapazinho de cidade, ou por outras palavras, bebesse pouco. E por isso, por simpatizar connosco, certa vez nos precaveu da mudança dos ventos. - Tenha cuidado senhor padre, se Agostinha sabe que o rapazinho tem escola com a minha pequena, decerto não ia gostar muito da graça - Ferdinando acautelava Abrão, mas meu tio desvalorizava. - Não se preocupe. A senhora Agostinha já viu Álvaro mais que uma vez nesta casa. - Mas olhe, senhor padre Abrão, não sei se ela sabe que o rapazinho não é rico como ela pensa. Se alguém lhe diz o que seja, ela fica levada do diabo. Olhe que ela é de feitio reles. - Ferdinando já havia bebido um pouco, para além do copo de vinho que Abrão lhe oferecia. Mas estava lúcido o suficiente. - Não se preocupe homem! A senhora dona Agostinha pensa que vou fazer da sua filha santa. E penso que ela acredita que sou da PIDE… - Desvalorizou Abrão com leveza.

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