Brasil Periferias: a Comunicaçao Insurgente do Hip Hop

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tem no novo disco uma música [...]chama ‘despreparados pra função’. Função no sentido de trabalho, de agir [...] Na letra fala que a gente foi abordado uma vez na Faria Lima, pela polícia, ridicularizado total... A gente tava voltando de ensaio: ‘põe a mão na cabeça todo mundo’, oito pessoas, oito pessoas!!! Tava de carro, parou os dois carros, maior saco... tivemos que tirar sapato, meia... ‘porra, nós somos músicos, meu, não temos nada... alguém fuma? Ninguém fuma’. [...] Não dá, imagina, o cara abrir sua carteira e puxar cinqüenta reais... pegar assim e você não pode fazer nada. Aconteceu isso comigo. Meu amigo fala ‘a gente não tem nada, você já viu que a gente não tem nada, a gente não é ladrão, não é nada’ e ele diz assim ‘cala a boca!’. Pra que? Fazer tirar a meia... absurdo! Outra vez a gente tava com um amigo DJ eles ficaram seguindo a gente na avenida Ipiranga toda, chegou na av. 9 de Julho a gente foi abordado. Um monte de viatura, metralhadora, a coisa toda. Revistaram o carro. A gente não tinha nada! Nada! Nós somos músicos, meu... tinha vinil... não levaram grana, porque a gente não tinha também (VIEIRA, 2007, depoimento para a autora)

A música “Despreparados pra Função”, citada por Vieira, faz parte do segundo CD da banda, lançado em 2008: mas e a lei, serve pra quê? [...] estão capacidados para julgar, bater, extorquir e matar / agir de má fé, com violência e malícia / virar celebridade, ser condecorado na notícia do jornal / do bairro, do estado, em rede nacional [...] transformam qualquer sujeito em suspeito / jogam na viatura, dão um jeito / desempregado indefeso é preso / político ladrão sai ileso / trabalhador paga o preço / a prepotência nas ruas é tanta / de noite, de dia, que ironia / como se gambé não morasse em bairros de periferia / cheirados na ronda noturna [...] dizem que ela existe pra combater / o crime, mas abusam do poder / mesmo sem dever temos que sofrer / com o enquadro, te param pra bater [...] sirene tocou, gambé parou / arma apontada pra cabeça, mão no capô / vasculhou, fuçou, com a gente nada encontrou [...] te param na rua do nada / por causa da sua aparência ou da sua cor [...] passam por cima dos seus direitos / negam até a morte, mas são movidos por preconceitos [...] querem manter o pobre calado à base de algemas e cacetetes (NÚCLEO, Despreparados pra Função)

Nesta letra é relatada a desigualdade de tratamento proporcional à desigualdade social: o político sai ileso, o desempregado vai preso, ambos identificados sob uma hierarquia social, na qual o político diz respeito a uma classe abastada e o desempregado (ou trabalhador), às classes pobres. Outro fato recorrente narrado pelo Núcleo é a maneira como são feitas as abordagens policiais, muitas vezes com base em preconceito e não, como diz a polícia, por conta de “atitudes suspeitas” (“te param na rua do nada / por causa da sua aparência ou da sua cor”). A polícia é, deste modo, o instrumento de controle social do Estado contra as “classes perigosas”, visando “manter os pobres calados à base de algemas e cacetetes”. Com efeito, grande parte da população que vive nos bairros pobres tem alguma história pra contar sobre a ação policial na periferia, não rara, acompanhada também de extorsão, como relata outro dos entrevistados para esta pesquisa: era um dia que eu tava no campo aí, não tinha essa reforma ainda, aí desceu a Polícia Civil e a Polícia Militar e fechou o campo, fechou tudo. Tava atrás de algumas pessoas


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