Jornal mundo maio 2016

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união europeia

De Churchill a Cameron, Londres oscila diante da Europa

© Biblioteca do Congresso, Washigton D.C.

s dois estadistas-trovadores contaram-nos histórias sobre quem somos – os britânicos e os franceses – e, porque acreditamos neles, nos tornamos, em alguma medida, os povos que eles inventaram.” O diagnóstico, do historiador Timothy Garton Ash, refere-se a Winston Churchill, o primeiro-ministro que conduziu a GrãBretanha na prova de fogo da Segunda Guerra Mundial, e Charles De Gaulle, o general que se insurgiu contra o governo colaboracionista francês e ergueu a bandeira da resistência antinazista. As “histórias” narradas pelos “estadistas-trovadores” ajudam a entender as divergências entre Paris e Londres sobre a Europa e iluminam as raízes profundas da campanha pelo Brexit. De Gaulle contou a história da “França verdadeira”, ou seja, da nação em luta contra a Alemanha nazista e da potência europeia que rejeita a hegemonia norte-americana. “A Europa unida, do Atlântico aos Urais”, sua fórmula célebre, expressava o sonho impossível de restauração de um mundo destruído pela guerra mundial. Na visão do general, o futuro da França seria a liderança de um continente reconstruído, livre tanto do poderio norteamericano quanto do expansionismo soviético. A União Europeia não emanou do sonho do general, mas de uma radical correção dele promovida pela realidade. De Gaulle almejava perenizar a fragmentação da Alemanha produzida pelo Acordo de Potsdam, que desenhou as quatro zonas de ocupação na potência derrotada. Contudo, as crises que desaguaram na Guerra Fria provocaram, em 1949, a reunião das três zonas ocidentais na República Federal Alemã (RFA) e, ao mesmo tempo, o nascimento da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Com a Otan, veio o rearmamento da RFA. Com o Plano Marshall, a reconstrução industrial da Alemanha Ocidental. Então, a França tomou a iniciativa de lançar o Plano Schuman, de 1950, que resultaria na Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (Ceca), o embrião da atual União Europeia. A soberania nacional estava na base do pensamento de De Gaulle. O projeto de integração europeia nasceu justamente da ideia de superação da soberania nacional, único caminho para a conciliação histórica entre os interesses da França e da Alemanha. O Plano Schuman não seria possível com De Gaulle, mas o general afastara-se do governo francês desde janeiro de 1946. Entretanto, no conceito de integração europeia subsistia um fragmento decisivo da visão gaullista: a Europa unida, não “do Atlântico aos Urais”, mas com a França no seu núcleo. Do outro lado do Canal da Mancha, Churchill contou uma história muito diferente. Ele falou sobre a comunidade de interesses dos “povos de língua inglesa”, delineando para a Grã-Bretanha um futuro no qual a Europa continente ocuparia lugar apenas periférico. Na sua visão geopolítica, a monarquia britânica persistiria como potência mundial pela manutenção do império, na forma da Commonwealth, e por meio de uma aliança estratégica com os Estados Unidos. Churchill voltou à chefia de governo em outubro de 1951, a tempo de confirmar a

Winston Churchill sustentava uma visão imperial da Grã-Bretanha, na qual as relações com a Europa continental ocupavam um lugar secundário Gráfico 1

Comércio exterior britânico (2015) 250 200 150 Milhões de libras

“O

A corrente “eurocética” britânica manifesta-se no Partido Conservador e no ultranacionalista Ukip, mas suas raízes profundas estão fincadas no solo do imediato pós-guerra

100

43,7%

56,3%

53,2%

46,8%

50 0

Exportações

Importações

União Europeia

Resto do mundo

Gráfico 2 Efeitos do Brexit no ritmo de crescimento britânico (horizonte de 15 anos) % 0 -5 -10 -15 -20 -25 -30

Cenário norueguês

Cenário canadense

Cenário russo

Fonte: HM Treasury, abril de 2016

rejeição britânica à Ceca. Londres também decidiu não participar do Tratado de Roma, de 1957, que criou a Comunidade Econômica Europeia (CEE). Os britânicos são “eurocéticos” desde o início. A mudança de rota veio apenas na década de 1960, junto com a desintegração do Império Britânico. Contudo, a solicitação britânica de ingresso na CEE foi bloqueada precisamente pela França, presidida de novo por

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De Gaulle, que enxergava na Grã-Bretanha a sombra da influência norte-americana sobre a Europa. No fim, em 1973, mais de dois anos após a morte de De Gaulle, a Grã-Bretanha entrou, finalmente, na CEE. Mesmo assim, nunca ingressou em seu núcleo de decisão, articulado em torno da parceria franco-alemã. O “euroceticismo” definiu a rota britânica. Logo após a queda do Muro de Berlim (1989) e a reunificação alemã (1990), França e Alemanha dobraram a aposta na integração europeia, firmando o Tratado de Maastricht, de união econômica e monetária. Diante disso, Londres repetiu seu gesto original de rejeição, aferrou-se ao dogma da soberania nacional e decidiu ficar fora da Zona do Euro. Um pé na canoa europeia, outro na aliança estratégica com Washington – eis a política escolhida pelos britânicos na encruzilhada de Maastricht. O Partido Conservador, de Churchill, sempre funcionou como ponta de lança do “euroceticismo” britânico. A conservadora Margaret Thatcher recusou o Tratado de Maastricht, um quarto de século atrás. Nos últimos anos, diante das crises combinadas do euro e dos refugiados, a corrente “eurocética” ganhou o reforço, pela extremadireita, do xenófobo Partido da Independência do Reino Unido (Ukip). Sob pressão intensa, o primeiro-ministro conservador David Cameron prometeu o plebiscito sobre a permanência do país na União Europeia. Cameron opõe-se ao Brexit, assim como a maioria do Partido Trabalhista, de oposição, mas não têm o respaldo de seu próprio partido, que está cindido. Apesar dos “eurocéticos”, ao longo das décadas a GrãBretanha colou-se à Europa continental. Mesmo separada pela moeda, a economia britânica está profundamente integrada ao restante da União Europeia. Um indício disso encontra-se na distribuição do comércio exterior: quase 44% das exportações e cerca de 53% das importações britânicas realizam-se com países do bloco europeu [veja o gráfico 1]. Na hipótese do Brexit, a parceria comercial sofreria abalos maiores ou menores, alertam os defensores da permanência britânica. Um relatório técnico do Tesouro britânico analisou três cenários econômicos resultantes do Brexit no horizonte de 15 anos. No “cenário norueguês”, a Grã-Bretanha se associaria à Área Econômica Europeia. No “canadense”, Londres negociaria um acordo bilateral de comércio com a União Europeia. Finalmente, no “russo”, a GrãBretanha não teria nenhum acordo comercial específico com a União Europeia. A conclusão: em todos os casos, a expansão do PIB perderia velocidade, desacelerando-se entre 4% e 25% [veja o gráfico 2]. Não é por acaso que o Brexit carece de apoio no meio empresarial britânico. O Brexit parece uma péssima ideia econômica. Barack Obama ressaltou que não é uma boa alternativa, do ponto de vista dos interesses geopolíticos e de segurança da GrãBretanha. Mas, às vésperas do plebiscito, quase metade dos eleitotes estavam dispostos a arriscar. É que a história que o “estadista-trovador” contou tem seu peso.

2016 MAIO


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