Morangos Mofados

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A voz dela ficou um pouco mais aguda. - E vir aqui, quem sabe. Também você não quer, não é? Tenho uma vodca ótima. Daquelas. Você adora, nem abri ainda. Só não tenho limão, você traz? - A voz ficou subitamente tão aguda que ele afastou um pouco o fone do ouvido. Por um momento ficou ouvindo a melodia distante, lenta e arranhada do piano. Através dos vidros da porta, com a luz acesa nos fundos, conseguia ver a copa verde das plantas no jardim, algumas folhas amareladas caídas no chão de cimento. Sem querer, quase estremeceu de frio. Ou uma espécie de medo. Esfregou a palma seca da mão esquerda contra a coxa. A voz dela ficou mais baixa quando perguntou: - E se eu fosse até aí? Os dedos dele tocaram o maço de cigarros no bolso da calça. Ele contraiu o ombro direito, equilibrando o fone contra o rosto, e puxou devagar o maço. - Sabe o que é - disse. - Lui? Com os dentes, ele prendeu o filtro de um dos cigarros. Mordeu-o, levemente. - Alô, Lui? Você está aí? Ele contraiu mais o ombro para acender o cigarro. O fone quase se desequilibrou. Tragou fundo. Tornou a pegar o fone com a mão e soltou pouco a pouco o ombro dolorido soprando a fumaça. - Eu já estava quase dormindo. - Que música é essa aí no fundo? - ela perguntou de repente. Ele puxou o cinzeiro para perto. Virou a capa do disco nas mãos. - Chama-se “Por um desespero agradável” - mentiu. - Você gosta? - Não sei. Acho que dá um pouco de sono. Quem é? Ele bateu o cigarro três vezes na borda do cinzeiro, mas não caiu nenhuma cinza. - Um cara aí. Um doido. - Como ele se chama? - Erik Satie - ele disse bem baixo. Ela não ouviu. - Liii? Alô, Lui? - Dique.


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