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entrelinhas

Pensar

por ALINE PRÚCOLI E VERA MÁRCIA SOARES DE TOLEDO

INSTANTÂNEOS DE UMA VIDA

A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 14 DE JANEIRO DE 2012

As Coisas da Vida: 60 Crônicas António Lobo Antunes. Alfaguara. 232 páginas. Quanto: R$ 27,90

DIVULGAÇÃO

“Aquilo a que costumamos chamar circunstâncias e não passa, muito simplesmente, do que consentimos que a vida e as pessoas nos façam, obrigaram-no cada vez mais a refletir sobre si mesmo. Aos vinte anos julgava que o tempo lhe resolvia os problemas: aos cinquenta dava-se conta de que o tempo se tornara o problema. Jogara tudo no acto de escrever, servindo-se de cada romance para corrigir o anterior em busca do livro que não corrigiria nunca, com tanta intensidade que não lograva recordar-se dos acontecimentos que haviam tido lugar enquanto os produzia.” (“António 56 1/2”, p. 59)

A

ntónio Lobo Antunes diz em sua crônica, “Receita para me lerem”: “Sempre que alguém afirma ter lido um livro meu fico decepcionado com o erro. É que meus livros não são para ser lidos no sentido em que usualmente se chama ler: a única forma parece-me de abordar os romances que escrevo é apanhá-los do mesmo modo que se apanha uma doença.” (p. 51). Longe de afastar as pessoas com depoimento tão direto e cru sobre seu trabalho, Lobo Antunes só faz aumentar seu plantel de leitores. E eles são fiéis. Como os de Virginia Woolf, Clarice Lispector, V.S. Naipaul ou Enrique Vila-Matas. Escritores estranhos, controversos, intensos, talentosos e inquestionáveis tradutores da alma moderna e pós-moderna. Lobo Antunes, nascido em 1942, em Lisboa, foi médico psiquiatra até 1985. A partir desta data, passou a se dedicar integralmente à antiga profissão a qual abraçou “por volta dos oito anos de idade”: a literatura. Em “Retrato do artista quando jovem”, ele diz: “E apenas por falta de vocação para reformado, mártir ou refém, acabei romancista.” (p. 41). Atualmente, é um dos escritores portugueses mais traduzidos e premiados, com vasta obra de ficção (romances, contos e crônicas). Sua voz narrativa vai além de uma realização meramente portuguesa. Ela alcança um terreno mais amplo na tentativa de explicitar a natureza do europeu pós-moderno. Impõe-se também por meio de linguagem inusitada que, não obstante a singularidade, traduz uma notável consciência crítica da situação histórico-cultural contemporânea. Faz-se ainda grande crítico da

As crônicas de Lobo Antunes traduzem uma notável consciência crítica da situação histórico-cultural contemporânea

memória cultural portuguesa como expressa e delineada, no século XX, debaixo da ditadura salazarista. Nestas crônicas, a vida se apresenta através da memória, do humor, do cotidiano, do horror, do tédio, das atrocidades, do amor, da mesquinhez e da poesia silenciosa da passagem do tempo. São 60 crônicas/episódios que misturam realidade e ficção, revolvendo nostalgicamente e autobiograficamente os anos de vida de Lobo Antunes. São, como o título sugere, um álbum de linguagem fotográfica que guarda instantes. Que simplesmente registra “As coisas da vida”. São, ainda, trampolins que nos fazem saltar de um sorriso displicente e, por vezes, involuntário, para o choro manso e pesado da solidão a cada virada de página. São mentiras e confissões sinceras de um adulto ainda criança que recria, com invejável facilidade, os episódios e personagens de

sua vida, escancarando minúcias conjugais de seus familiares (reais ou imaginários?) como um pirralho, nada parvo e muito curioso, que não se cansa de olhar pelo buraco da fechadura alheia. Este é, enfim, um livro de ensinamentos pueris e, por isso mesmo, precioso que não deve ser atravessado com pressa. Afinal, é um espaço em que “as palavras são apenas signos de sentimentos íntimos, e as personagens, situações e intriga os pretextos de superfície” (p. 51) que nos conduzem ao fundo avesso da alma humana para

logo nos fazer renascer. “Imensamente.” (p. 83) Ao fim das 231 páginas, a surpresa nos vem do fato de “não existir narrativa no sentido comum do termo, mas apenas largos círculos concêntricos que se estreitam e aparentemente nos sufocam. E sufocam-nos aparentemente para melhor respirarmos.” (p. 52) Paradoxalmente, terminamos a leitura com duas certezas: a de que não há como definir certeza alguma sobre as coisas da vida e a de que estas coisas são feitas de lágrimas, gargalhadas, brigas, sonhos, Vergílios e Verlaines, cicatrizes, rugas, Almanaques do Tio Patinhas, bichos da seda, guarda-chuvas de chocolate e daquilo que está guardado no mais recôndito espaço de nossa memória, em um entre lugar escorregadio, etéreo e atemporal que, como num passe de mágicas mandrakeano – Hop aparece e desaparece.


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