O guarani

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E com o mesmo desprezo e a mesma nobreza, o cavalheiro desarmou a sua clavina; voltou-se para continuar o seu caminho fazendo um sinal a Peri para que o acompanhasse. O índio, enquanto se passava a rápida cena que descrevemos, refletia profundamente. Quando ouvira o que diziam há pouco Loredano e seus dois companheiros, quando pelo resto da conversa compreendera que se tratava de fazer mal à sua senhora e a D. Antônio de Mariz, a sua primeira idéia tinha sido lançar-se aos três inimigos e matá-los. Foi por isso que soltou aquela palavra que revelava a sua indignação; mas imediatamente lembrou-se que ele podia morrer, e que nesse caso Cecília não teria quem a defendesse. Pela primeira vez na sua vida teve medo; teve medo por sua senhora, e sentiu não possuir mil vidas para sacrificá-las todas à sua salvação. Fugiu então com bastante rapidez para não ser visto pelo italiano que subia à árvore; afastou-se deles; chegando à beira do rio, lavou a sua túnica de algodão, que ficara manchada de sangue; não queria que soubessem que estava ferido. Enquanto se entregava a este trabalho, combinava um plano de ação. Resolveu não dizer nada a quem quer que fosse, nem mesmo a D. Antônio de Mariz: duas razões o levavam a proceder assim; a primeira era o receio de não ser acreditado, pois não tinha provas com que pudesse justificar a acusação, que ele, índio ia fazer contra homens brancos; a segunda era a confiança que tinha de que ele só bastava para desfazer todas as tramas dos aventureiros, e lutar contra o italiano. Assentado este primeiro ponto, passou à execução do plano; esta reduzia-se para ele em uma punição; aqueles três homens queriam matar, portanto deviam morrer, mas deviam morrer ao mesmo tempo, do mesmo golpe. Peri receava que, combinados como estavam, se um escapasse vendo sucumbir seus companheiros, se deixaria levar pelo desespero e anteciparia a realização do crime antes que ele o pudesse prevenir. A sua inteligência sem cultura, mas brilhante como o sol de nossa terra, vigorosa como a vegetação deste solo, guiava-o nesse raciocínio com uma lógica e uma prudência, dignas do homem civilizado; previa todas as hipóteses, combinava todas as probabilidades, e preparava-se para realizar o seu plano com a certeza e a energia de ação que ninguém possuía em grau tão elevado. Assim dirigindo-se para a casa onde o chamava um outro dever, o de avisar a D. Antônio da eventualidade de um ataque dos Aimorés, ele tinha passado junto de Bento Simões e Rui Soeiro, e guiado pelos olhares destes viu ao longe Loredano no momento em que apontava sobre o cavalheiro. Correr, cair sobre o italiano, desviar a pontaria, e dobrá-lo sobre os joelhos, foi um movimento tão rápido que os dois aventureiros apenas o viram passar, viram ao mesmo tempo o seu companheiro subjugado. A realização do projeto de Peri apresentava-se naturalmente, sem ser procurada. Tinha o italiano na sua mão; depois dele caminhava aos dois aventureiros para os quais bastava a sua faca; e quando tudo estivesse consumado, iria ter com D. Antônio de Mariz e lhe diria: — Esses três homens vos traiam, matei-os; se fiz mal, puni-me. A intervenção de Álvaro, cuja generosidade salvou a vida de Loredano, transtornou completamente esse plano; ignorando o motivo por que Peri ameaçava o aventureiro, julgando que era unicamente para puni-lo da tentativa que acabava de cometer perfidamente contra ele, o cavalheiro a quem repugnava tirar a vida a um homem sem necessidade, satisfez-se com o juramento e a certeza de que deixaria a casa.


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