A experiencia do do cinema

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do touro passa em primeiro plano, ela não está empalhada, o resto vem atrás. Talvez eu esteja um pouco deslumbrado pelo talento de Myriam. Ela soube montar o material com diabólica habilidade, sendo preciso muita atenção para se dar conta de que o touro que entra em campo pela esquerda nem sempre é o mesmo que havia saído pela direita. Faltaria ver o filme na moviola para se distinguir com alguma certeza as tomadas autónomas das seqüências inteiramente reconstituídas a partir de cinco ou seis tomadas diferentes, tal a perfeição com que os cortes em movimento dissimulam a articulação dos planos. Uma "verónica" principiada por um matador e um touro termina com outro homem e outro animal sem que percebamos a substituição. Desde O romance de um trapaceiro (Le Roman d'un Tricheur, Sacha Guitry, 1936) e sobretudo de Paris 1900 (Paris 1900, Nicole Védres, 1948), tínhamos Myriam na conta certa de montadora de grande talento. Com A Corrida de Touros (La Course de Taureaux, Pierre Braunberger, 1949), o confirmamos uma vez mais. Nesse nível, a arte do montador ultrapassa singularmente a sua função ordinária para tornar-se um elemento primordial da criação do filme. Haveria, por sinal, muito a dizer acerca do filme de .montagem assim concebido. O que seria constatado é algo bem diverso de um retorno à antiga primazia da montagem sobre a decupagem, tal como postulava o primeiro cinema soviético. Paris 1900 ou La Course de Taureaux não são "cine-olhc", são obras "modernas", esteticamente contemporâneas da decupagem de Cidadão Kane (Citizen Kane, Orson Welles, 1941), A Regra do logo (La Regle du leu, Jean Renoir, 1938), Pérfida (The Little Foxes, William Wiler, 1941), e Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette, Vittorio de Sica, 1948). Nelas a montagem não visa a sugerir relações simbólicas e abstratas entre as imagens, como na famosa experiência de Kulechov com o primeiro plano de Mosjoukine. O fenómeno ilustrado por essa experiência não deixa de ter algum papel nessa nova montagem, mas a serviço de um propósito inteiramente outro: dotar a decupagem ao mesmo tempo de uma verossimilhança física e de uma maleabilidade lógica. A sucessão da mulher nua e do sorriso ambíguo de Mosjoukine significava lubricidade ou desejo. Ou melhor, a significação moral era de algum modo anterior à significação física: imagem de uma mulher nua + imagem de um sorriso = desejo. Não há dúvida de que a existência do desejo implica logicamente que o homem olha para

a mulher, mas essa geometria não está contida nas imagens. Essa dedução é quase supérflua; para Kulechov, era secundária; o que importava era o sentido conferido ao sorriso pelo choque das imagens. Bem diversa é a relação no nosso caso: o que Myriam visa em primeiro lugar é ao realismo físico. A fraude da montagem se aplica à verossimilhança da decupagem. O encadeamento de dois touros em movimento não simboliza a força do touro, mas substituise insensivelmente à imagem do touro inexistente que cremos ver. É somente a partir desse realismo que o montador estabelece o sentido de sua montagem, bem como o diretor a partir de sua decupagemo Não mais a câmera-olho, mas a adaptação da técnica da montagem à estética da caméra-stylo.2 Eis porque os leigos como eu encontrarão nesse filme uma iniciação tão clara e completa quanto possível. Pois o material não foi montado ao capricho de suas afinidades espetaculares, mas sim com rigor e inteligência. A história das touradas (e do próprio touro de combate), a evolução do estilo até Belmonte ,e desde então são apresentadas com todos os recursos didáticos do cinema. Na descrição de um passe, a imagem se detém no momento crítico e o narrador explica as posições relativas de animal e homem, Por não contar, pelo visto, com tomadas em câmera lenta à sua disposição, Pierre Braunberger recorreu à truca~m, mas o congelamento da imagem mostra-se igualmente eficaz. '. Sem dúvida, as virtudes didáticas desse filme constituem também' sua limitação, pelo menos aparentemente. A empresa não é tão grandiosa, tão exaustiva quanto a de Hemingway em Death in the Afternoon. Le Course de Taureaux pode parecer um apaixonante documentário de longa-metragem, mas afinal de contas apenas um "documentário". O que seria

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2 Caméra-stylo: termo cunhado por Alexandre Astruc ver artigo "O nascimento de uma nova vanguarda: a caméra-stylo" (Écran Français n.o 144, 1948) - para se referir ao cinema de autor, onde o cineasta trabalha com a câmera como o escritor sério manuseia a pena, ou seja, visando à expressão pessoal, à comunicação de sentimentos e idéias os mais complexos. A aproximação cinema-escrita no contexto francês está associada, nos pós-guerra, ao cinema de Robert Bresson, ou do próprio Astruc, e não tem relação com o cinema de montagem de Eisenstein, de quem a teoria francesa, até 1968, permanecerá distante. A fórmula de Astruc constitui uma das bases do que, nos anos 50, será denominado "política dos autores" - traço marcante da militância critica dos Cahiers du Cinéma, que têm em André Bazin um dos seus fundadores (em 1951). (Nota do Org.)

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