Conviver com o Semiárido

julho de 2017 13

Atualidade Reportagem

BULLDOG_M

DA

Falta de chuva e influência do El Niño levam população do semiárido a praticar uma economia solidária com olhar sensível aos frutos e potencialidades da região

Karla Maria

C

hegou a desolação da primeira fome. Vinha seca e trágica, surgindo no fundo sujo dos sacos vazios, na descarnada nudez das latas raspadas”, escreveu Rachel de Queiroz, em seu O Quinze, em 1930. Nele, Rachel explorou o significado da seca na vida do povo nordestino e amarrou os efeitos desse fenômeno climático à vida de 14 revista família cristã

seus personagens ao longo da trama.

Passados 87 anos dessa publicação, o clássico é um convite à reflexão e à atualização do olhar do cidadão brasileiro à realidade do povo que vive no semiárido e que, nos últimos cinco anos, tem de fato vivido a pior seca do século, influenciada por mudanças climáticas e pelo fenômeno El Niño.

O semiárido é caracterizado pela má distribuição das chuvas no tempo e no espaço, levando em consideração a precipitação média anual inferior a 800 milímetros, um índice de aridez de até 0,5 e risco de seca maior que 60%. No Brasil, dez estados estão caracterizados como semiárido, numa área de aproximadamente 970 mil quilô-

A seca e o amanhã – “A gente tem medo do futuro, sim. Nem no poço artesiano não está tendo mais água.

Antes eles ofereciam 30 mil litros d’água por hora, agora são 2 mil litros por hora. Não dá para nada. A fonte está secando”, conta a mulher.

A tendência é que a seca se mantenha na região de Berenice, já que os modelos oceânicos analisados pelos principais centros de meteoBerenice Leal Guimarães Sales vive em Poções, na zona rural, sabe lidar com o clima do sertão e tira proveito dos frutos que o semiárido possibilita

Família se alegra com a chegada da chuva em Irecê, na Bahia DE IRECÊ

FOTOS: ARQUIVO PESS OAL

metros quadrados, na qual vivem 24 milhões de pessoas.

Essa região abrange os estados do Nordeste, com exceção do Maranhão, além de um do Sudeste, ocupando os seguintes estados: Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe.

Berenice Leal Guimarães Sales, 52 anos, nasceu em Gandu, cidade ao sul da Bahia, e vive em Poções, na zona rural do estado, a cerca de 450 quilômetros de Salvador. Cozinheira e mãe de três filhos: Lucas, 31 anos , Mateus, 29, e Marcos, 25, a mulher de José Gomes Sales, 64, confeiteiro, conta o que tem observado e vivido sobre a seca em sua região.

“Aqui na área rural nós plantávamos tomate e agora o rio secou e plantamos bem menos. Quando eu cheguei aqui, há um ano, ainda a represa estava cheia, aí foi secando.

O povo desmatou muito. O clima já é seco, aqui é sertão, mas na realidade os gestores da cidade não

O rio a que Berenice se refere é o mesmo do estudo. “Morei aqui há 25 anos, e naquela época era muito diferente. Tinha muita água, tinha floresta, muitas árvores e depois de muito desmatamento o clima ficou mais seco ainda. Os fazendeiros abriram represas e desviaram a água do rio para fazer grandes plantações, e isso contribui mais ainda para acabar com a água”, desabafa Berenice, que convive em um rodízio de quatro dias sem água e dois com.

ARQUIVO DA CÁRITAS DIO CESANA

SERGIO AMARA L_MDS

Francisca de Assis do Assentamento Paraíso, no município de Madalena (CE), com sua cisterna, um reservatório de armazenamento que aproveita a água das chuvas

contribuem. Eles cortaram muitas árvores da beira do rio para fazer plantação”, conta a baiana, de olho no rio que tem em seu horizonte.

A sabedoria de Berenice é atestada pelo estudo da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, intitulado Rio das mulheres: diagnóstico ambiental das áreas no entorno de nascentes em Poções, que apontou a existência de apenas 60% de cobertura vegetal nos mananciais, enquanto os outros 40% exibem um quadro de degradação ambiental de escassez de cobertura vegetal nativa e proximidade das nascentes com áreas de lavouras.

julho de 2017 15

Atualidade Reportagem

Perfil do semiárido

Precipitação média anual inferior a 800 milímetros

Índice de aridez de até 0,5 e risco de seca maior que 60%

No Brasil, dez estados estão caracterizados como semiárido englobando 24 milhões de pessoas

FOTOS: ARQUIVO PESSOAL

Berenice mostra a parte seca do Rio das Mulheres, que é o principal manancial de água doce da cidade de Poções

rologia do mundo apontam a possibilidade de o El Niño influenciar negativamente o regime de chuvas no Nordeste brasileiro. As informações são do Instituto Nacional do Semiárido (Insa), unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC).

“A continuidade da seca no semiárido trará insegurança alimentar e hídrica para uma população rural e urbana de mais de 24 milhões de pessoas que vivem na região”, aponta relatório do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), em parceria com o (Insa).

A convivência – Como, portanto, viver com esses dados e a realidade 16 revista família cristã

que visita e aquece a vida de tanta gente? Convivendo.

A cobertura vegetal do semiárido é a caatinga, e, no período chuvoso, ela fica verde e florida. Abriga, nos ensina Roberto Malvezzi, colaborador da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) e da Articulação Popular Semiárido Vivo, uma das maiores biodiversidades brasileiras de insetos, inclusive a abelha, o que a torna muito favorável para a produção de mel.

“O segredo da convivência está em compreender como o clima funciona e adequar-se a ele. Não se trata mais de acabar com a seca, mas de adaptar-se de forma inteligente. É preciso interferir no ambiente, claro, mas respeitando as leis de um ecossistema que, embora frágil, tem riquezas surpreendentes”, afirma Malvezzi, em seu artigo “Pensar o Brasil: semiárido”.

Segundo ele, o segredo da convivência com o semiárido passa pela produção e estocagem dos bens em tempos chuvosos para se viver ade-

quadamente em tempos sem chuva, sendo a água o principal bem a ser estocado. De acordo com a pesquisadora Marilene Melo, do Instituto Nacional do Semiárido, tecnologias sociais foram desenvolvidas para captar água da chuva nos telhados das casas e levá-la por meio de canos para cisternas, garantindo o consumo das famílias e dos animais.

Já a água acumulada nos barreiros, que são tanques escavados no solo, pode ser usada nas plantações. “No semiárido, a água é um recurso limitado. Por isso é importante estocar”, afirma.

Ainda segundo a pesquisadora, as criações também são fundamentais para garantir renda aos pequenos produtores. “Os agricultores foram percebendo que a melhor estratégia para enfrentar um longo período de estiagem é manter um rebanho com pequenos animais, como cabras e ovelhas. Além disso, também foram reduzindo a quantidade de animais em suas propriedades”, explica.

Estocar e repensar o uso daquilo que a natureza fornece é uma das práticas

ANA LIRA/ASA BRASIL

FOTOS: LEO DRU MOND_NITRO

As cisternas são o principal elemento de um projeto de aproveitamento de águas pluviais, variam em volume e material e garantem água no período da estiagem

realizadas pelo povo que vive no e do semiárido. Outra, muito comum, observada diariamente, é a solidariedade.

Berenice, a baiana de Poções, explica.

“Aqui nós fazemos assim, plantamos, e o que fica bom nós trocamos com os vizinhos”, diz, referindo-se aos pés de quiabo, fava, andu, maracujá, coco, mamão, salsa e aipim, que planta e compartilha com os vizinhos.

Doce alternativa – Em Serrinha, cidade baiana a cerca de 360 quilômetros de onde vive Berenice, o Grupo de Mulheres Trabalhadoras Rurais desenvolveu, com o apoio da Cáritas local, uma estratégia ecológica e social que aponta alternativas econômicas à realidade do semiárido: a produção de geleias.

“A gente percebeu que se perdiam muitas frutas. Hoje essas dez famílias produzem as geleias que estão na merenda escolar alimentando as crianças”, diz Angelita Miranda, coordenadora do Grupo de Mulheres Trabalhadoras Rurais, explicando que o principal desafio do grupo CÁRITAS

DIOCESA

é a regulamentação que garante a inclusão de informações como o valor nutricional e código de barras, que permitirão a comercialização do produto em supermercados.

A experiência não é exclusiva de Serrinha. Em 2005, sete mulheres do Assentamento Novo Zabelê, em plena caatinga, no município de São Raimundo Nonato, no Piauí, começaram a aproveitar o umbu e o maracujá do mato, transformando-os em doces. Com a assessoria da Cáritas Diocesana de São Raimundo Nonato, o projeto cresceu e atualmente são 25 mulheres e 2 homens que se envolvem com a produção e a colheita da matéria-prima.

A produção cresceu tanto que foi construída uma unidade de beneficiamento de frutas, erguida com muito esforço e em meio a várias viagens em busca de fortalecer laços com os mercados e garantir a venda das diversas delícias, ainda produzidas de modo semiartesanal.

Os recursos para a construção da Unidade de Beneficiamento (UB) e

de diversos equipamentos vieram do Projeto Dom Helder Câmara, uma iniciativa de ações referenciais de combate à pobreza e apoio ao desenvolvimento rural sustentável no semiárido do Nordeste.

“Além de já estar gerando essa renda às famílias, o grupo possui um caixa que permite pagar nossas contas. Temos um capital de giro para compra da matéria-prima, pagando preço um pouco acima do mercado local, e já estamos até investindo em novos equipamentos com recursos próprios”, afirma Maria Luciene Miranda, agricultora da equipe de gestão da UB. Além de produzir e comercializar os doces, polpas e geleias, o grupo vem apoiando as famílias na venda de produtos da roça. “Intermediamos a venda de mais de 20 toneladas de abóbora só neste ano”, informa Maria Luciene, que segue adoçando sua vida e a de outros pelo semiárido nordestino.

(Com informações da Cáritas)

NA DE SE RRINHA

A geleia de frutas silvestres é fruto de um dos projetos apoiados pela Cáritas em Serrinha, na Bahia, que visa a saídas economicamente sustentáveis à realidade das famílias do semiárido

julho de 2017 17