Blanchot, maurice o livro por vir

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o LIVRO POR VIR

indiferença e esquecimento - para com suas próprias vicissitudes históricas. Quando André Breton nos lembra o manifesto que escreveu com Trotsky, e que exprime a "vontade deliberada de apoiar-se na fónnula: toda licença em arte", isso é naturalmente essencial, e o encontro desses dois homens, sua escrita unida na mesma página em que se afirma essa fórmula, permanece, depois de tantos anos, um sinal exaltante 1 Mas "toda licença em arte" é ainda apenas a primeira necessidade. É dizer que todas as palavras - quer sejam de uma ordem humana a ser realizada, de uma verdade a ser sustentada ou de uma transcendência a ser preservada - nada podem fazer em prol da palavra sempre mais original da arte, elas só podem deixá-la livre, simplesmente porque não a encontram nunca, definindo, pelo menos na história presente, uma ordem de relações que só entra em jogo quando a relação mais inicial, manifesta na arte, está já apagada ou recoberta. A palavra liberdade não é ainda suficientemente livre para nos fazer pressentir essa relação. A liberdade está ligada ao possível, ela sustenta o extremo do poder humano. Mas trata -se aqui da relação que não é um poder, a da comunicação ou da linguagem, que não se realiza como poder. Rilke desejava que o jovem poeta pudesse perguntar a si mesmo: /I Sou verdadeiramente obrigado a escrever?" I a fim de ouvir a resposta: "Sim, é preciso." "Então, concluía

ele, edifique sua vida segundo essa necessidade." Esse ainda é um subterfúgio para elevar até a moral o impulso de escrever. Infelizmente, a escrita é um enigma, mas não fornece oráculos, e ninguém está em condições de lhe fazer perguntas. "Sou verdadeiramente obrigado a escrever?" 1. André Breton, La Clé des champs.

A QUESTÃO LITERÃRIA

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Como poderia interrogar-se assim aquele a quem falta toda linguagem inicial para dar forma a essa pergunta, e que só pode encontrá-la através de um movimento infinito que o põe à prova, o transforma, o desaloja daquele "Eu" seguro, a partir do qual ele acredita poder questionar sinceramente? "Entre em você mesmo, busque a necessidade que ofaz escrroer." Mas a pergunta só pode fazê-lo sair de si mesmo, arrastando-o à situação em que a necessidade seria antes a de escapar àquilo que é sem direito, sem justiça e sem medida. A resposta "é preciso" pode, de fato, ser ouvida, ela é mesmo constantemente ouvida, mas aquilo que no "é preciso" não se ouve é resposta a uma pergunta que não se descobre, cuja aproximação suspende a resposta e a torna desnecessária. "É um mandato. Não posso, segundo minha natureza, dei-

xar de assumir um mandato que ninguém me conferiu. É nessa contradição, é sempre apenas numa contradição que posso viver. "2 A contradição que aguarda o escritor é ainda mais forte. Não é um mandato, ele não o pode assumir, ninguém lho conferiu; é preciso que ele se torne ninguém para o acolher. Contradição na qual ele não pode viver. Eis por que nenhum escritor, mesmo que seja Goethe, pode pretender reservar a liberdade de sua vida à obra que o pressente; ninguém, sem ser ridículo, pode decidir consagrar-se à sua obra, e ainda menos salvaguardar-se por ela. A obra exige muito mais: que não nos preocupemos com ela, que não a busquemos como um objetivo, que tenhamos com ela a relação mais profunda da despreocupação e da negligência. Aquele que foge de Frédérique não o faz para ficar livre, ele nunca foi menos livre do que naquele instante, pois aquilo que o libera dos laços o en2. Kafka.


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