Blanchot, maurice o livro por vir

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o LIVRO POR VIR

bemos, a inovação de que Mallarmé desejaria orgulhar~se. Pela primeira vez, o espaço interior do pensamento e da linguagem é representado de uma maneira sensível A "dis~

tância ... que mentalmente separa grupos de palavras ou pa~ lavras entre elas" é visível tipograficamente, assim como a importância de tais termos, seu poder de afirmação, a aceleração de suas relações, sua concentração, seu espalha ~ mento, enfim a reprodução, pela aparência das palavras e por seu ritmo, do objeto que elas designam. O efeito é de grande poder expressivo: verdadeira~ mente espantoso. Mas a surpresa reside também no fato de que Mallarmé aqui se opõe a ele mesmo. Aqui ele devolve à linguagem, cuja força irreal de ausência havia considera~ do, todo o ser e toda a realidade material que ela estava en ~ carregada de fazer desaparecer. O "vôo tácito de abstração" se transforma numa paisagem visível de palavras. Não digo mais: uma flor; eu a desenho por vocábulos. Contradição existente ao mesmo tempo na linguagem e na atitude du ~ pIa de Mallarmé COm respeito à linguagem: ela foi muitas vezes apontada e estudada. O que nos ensina ainda Um lance de dados? A obra literária ali está em suspensão, entre sua presença visível e sua presença legível: partitura ou quadro que se deve ler, poema que se deve ver e, graças a essa altemância oscilante, buscando enriquecer a leitura analítica pela visão global e simultânea, enriquecer também a visão estática pelo dinamismo do jogo dos movimentos, enfim, buscando colocar~se no ponto de intersecção onde, como a junção não está feita, o poema ocupa somente o va~ zio central que representa o futuro de exceção. Mallarmé quer manter~se naquele ponto anterior - o canto anterior ao conceitol4 - onde toda arte é linguagem, 14. "O canto brota de fonte inata: anterior a um conceito .. ,"

PARA ONDE VAI A LITERATURA?

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e onde a linguagem está indecisa entre o ser que ela expri~ me ao fazê~ lo desaparecer e a aparência de ser que ela reú ~ ne em si mesma, para que a invisibilidade do sentido aí ad~ quira uma figura e uma mobilidade falante. Essa indecisão móvel é a realidade do espaço próprio da linguagem, do qual somente o poema - o livro futuro - é capaz de afirmar a diversidade dos movimentos e dos tempos, que o consti~ tuem como sentido ao mesmo tempo que o reservam como fonte de todo sentido. O livro está assim centrado no en~ tendimento que forma a alternância quase simultânea da leitura como visão e da visão como transparência legível. Mas está também constantemente descentrado com rela~ ção a si mesmo, não apenas porque se trata de uma obra ao mesmo tempo toda presente e toda em movimento, mas também porque é nela que se elabora e dela que depende o próprio devir que a desdobra. O tempo da obra não é tomado de empréstimo ao nosso. Formado por ela, ele se opera nela, que é a menos imóvel que se possa conceber. E dizer 110" tempo, como se só houvesse aqui uma única maneira de durar, é des~ conhecer o enigma essencial desse livro e sua inesgotá ~ vel força de atração. Mesmo sem entrar num estudo pre~ ciso, é evidente que, "sob uma aparência falsa de presente", possibilidades temporais diferentes não cessam de se su~ perpor, e não numa mistura confusa, mas sim porque tal conjunto (representado no mais das vezes por uma pá~ gina dupla), ao qual convém tal tempo, pertence também a outros tempos, na medida em que o grupo de conjuntos em que ele se arranja faz predominar uma outra estrutu~ ra temporal- enquanto, "ao mesmo tempo", como urna poderosa travessa mediana, ressoa através da obra toda a firme voz central na qual fala o futuro, mas um futuro eternamente negativo - "jamais abolirá" -, o qual, no en~ tanto, se prolonga duplamente: por um futuro anterior


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