Blanchot, maurice o livro por vir

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o LIVRO POR VIR

pondendo com certa impaciência a um correspondente,

"dota assim de autenticidade nossa morada"13 Só moramos autenticamente ali onde a poesia tem lugar e dá lugar. Isso é muito próximo das palavras atribuídas a Holderlin (num texto tardio e contestado): " ... é poeticamente que o homem permanece". Há também este outro verso de Hblderlin: "Mas o que permanece, os poetas o fundam." Pensamos em tudo isso, mas talvez de uma maneira que não corresponde à interpretação acreditada pelos comentários de Heidegger. Pois, para Mallarmé, aquilo que os poetas fundam' o espaço - abismo e fundamento da palavra -, é o que não fica, e a morada autêntica não é o abrigo onde o homem se preserva, mas está em relação com o escolho, pela perdição e pelo abismo, e com a "memorável crise" que, somente ela, permite atingir o vazio movente, lugar onde a tarefa criadora começa. Quando Mallarmé dá ao poeta como dever, e ao Livro como tarefa: "a explicação órfica da Terra", "a explicação do homem", o que entende ele por essa palavra repetida, "explicação"? Exatamente o que essa palavra comporta: a exibição da Terra e do homem no espaço do canto. Não o conhecimento daquilo que uma e outro são naturalmente, mas o desenvolvimento - fora de sua realidade dada e naquilo que eles têm de misterioso, de não esclarecido, pela força dispersiva do espaço e pelo poder reunificante do devir rítmico - do homem e do mundo. Pelo fato de haver poesia, há não apenas algo de transformado no universo, mas uma espécie de mudança essencial do univer13. liA poesia é a expressão, pela linguagem humana devolvida a seu ritmo essencial, do sentido misterioso dos aspectos da existência; ela dota assim de autenticidade nossa morada, e constitui a única tarefa espiritual." E, no "devaneio de um poeta francês" sobre Richard Wagner: "O Homem, e depois sua autêntica morada terrestre, trocam uma reciprocidade de provas."

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PARA ONDE VAI A LITERATURA?

so, que a realização do Livro apenas descobre ou cujo sentido ela funda. A poesia sempre inaugura outra coisa. Com respeito ao real, podemos chamá-la de irreal ("esse país não existiu"); com respeito ao tempo de nosso mundo, "o interregno" ou 1/ 0 eterno"; com respeito à ação que modifica a natureza, a ação restrita". Mas essas maneiras de dizer não fazem mais do que deixar recair na compreensão analítica o entendimento daquela outra coisa. Uma observação é aqui necessária. Brinde fúnebre, o soneto Quando a sombra começou e Um lance de dados formam três obras em que, com vinte e cinco anos de inter~ valo, são igualmente postos em relação o espaço poético e o espaço cósmico. Entre esses poemas, há muitas diferenças. Uma é flagrante. No soneto, não há nada de mais certo do que a obra poética acendendo-se no céu como "um astro em festa"; de uma dignidade e de uma realidade superiores, sol dos sóis, em torno do qual os "fogos vis" dos astros reais só giram para testemunhar seu brilho. "Sim, eu sei ... " Mas, em Um lance de dados, a certeza desapareceu: tão longínqua quanto improvável, oculta pela altitude à qual a eleva a exceção, não presente mas so~ mente e sempre em reserva, num futuro em que ela poderia se formar, a Constelação da obra se esquece antes de ser, mais do que se proclama. Será preciso concluir que, tomado pela dúvida, Mallarmé quase não acredita mais na criação da obra, nem em sua equivalência estelar? Será preciso vê-lo aproximando-se da morte em estado de descrença poética? De fato, isso seria lógico. Mas, precisamente, vemos aqui o quanto a lógica é enganadora, quan~ do pretende legiferar para outra coisa (de que ela tenta fazer um outro mundo supraterrestre ou uma outra realidade, espiritual). Um lance de dados diz o contrário, de modo muito mais firme do que o soneto e de uma ma1/

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