Narrativas Juanita #2

Page 8

ARQUEOLOGIA DE UMA PRESENÇA DE ESPIRITO Ana Roxo

Segundo Mircea Eliade, em “O Sagrado e o Profano”, o rito (sagrado) se destaca da vida comum (profano) por apresentar um rompimento no contínuo de espaço e de tempo. As artes cênicas – que tem origem no rito – também são uma experiência desse mesmo rompimento. O que diferencia o rito de uma apresentação de teatro ou de dança é, grosseiramente falando, a presença da plateia e a falta da PRESENÇA - de quê? De Deus? Ou do que chamamos mesmo de presença: corpo presente, presença de espirito, presença de palco, FÉ CÊNICA. Nesse sentido, o trabalho de dramaturgia é organizar uma estrutura que propicie esse rompimento espaçotemporal, é uma linha traçada no chão por onde bailarinos se equilibram, é um guia que possa conduzir quem assiste pra lá do tempo, pra outra experiência do espaço. É uma estrutura firme o suficiente para dar sustentação aos saltos. Dramaturgia é osso. Mas onde está essa estrutura? Num primeiro momento, meu olhar - já mais ou menos treinado (ou deveria dizer viciado?) - pensou em assistir o que já havia sido feito para identificar e organizar ações e cenas já esboçadas num primeiro momento (afinal o processo de ensaio já havia tido um primeiro ciclo de cerca de um ano), ler um livro por mês e finalizar os nove meses de projeto com uma estrutura sólida de repertório e caminhos para improvisar. Mas logo no primeiro mês entendi que é um pouco antes, e um pouco mais devagar. Por isso um pouco mais profundo, por isso um pouco mais no osso do que eu pensava. Na estrutura. Mas não essa estrutura que estava treinada, acostumada, viciada, essa uma estrutura que resolve. Antes disso: a gente precisava de uma estrutura que REVOLVE. Por isso, fomos nós para o nosso corpo achar a nossa coluna. E o que é a coluna de uma trajetória de 9 livros, uma narrativa elíptica, que se auto refere, que se reescreve, que se refaz, que amplia seu olhar, que se distancia do ponto de partida não só em tempo, não só em espaço, mas na fenda xamânica e ritual da ampliação da consciência do narrador-personagem? A coluna, nesse caso é a espacialização do tempo: é um traçado no espaço que explicita esse tempo. Simplificando: é uma linha do tempo. Daquelas que a gente fazia na escola e escrevia “Queda da Bastilha” e puxava uma setinha em 14 de julho de 1789”. Nessa linha - que tem quase 12 metros de comprimento - traçamos sua coluna: um metro pra cada ano de ensinamento, de 1960 (primeiro encontro de Castaneda com D. Juan) até 1971 (fim do ensinamento). E traçamos os fatos minuciosamente tirados dos três primeiros livros de Castaneda: A Erva do Diabo (que teve anotações em vermelho), Uma estranha realidade (em verde) e Viagem a Ixtlan (em azul). Foi bonito de ver e entender como os livros, organizados por conteúdo e não por tempo, se interpenetram. Como se completam, revelando uma estrutura de narrativa muito muito muito complexa – como a vida. Um trabalho minucioso e, portanto, lento.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.