Revista Cruviana

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demônios do fim, carapintados em cada um. O casal tinha o olhar perdido de um boi no matadouro, de um pedinte, de um moribundo de vida em fibras coloridas. Lágrimas em tecnicolor. Eles iam serpenteando os espaços do corredor central do ônibus. Eles não sabiam ser mais que essa podre sucata enferrujada. A escória dos perdidos, tristonhos e vermelhos. Roberto se abaixou para apanhar sua garrafinha de água. Talvez um gole dessa droga quente o fizesse engolir o pão de cada dia. O corpo das crises. O rosto do mundo. *** O inferno é e está a um palmo da alma. Coçava sua barbicha imunda enquanto perambulava no ônibus. Seu hálito corrosivo castrando as idéias de cada um dos passageiros. Incenso forte nas fuças. As mães mandavam os filhos olharem pra frente, evitando assim tocar a vista naquele monte de ossos e bucho. “Pra que uma certidão? Não tenho nome, não!” E as crianças crescem vendo a realidade síndrome de Down, daltônica, das novelas. O mundo é um lugar vazio. Secou. E ele ali, vértebras destruídas. A única poltrona dupla vazia estava esperando. Escritos de ódio, sexo, amor. Paixão. O cobertor das coxas, o apoio das costas, a poltrona dos solitários. Cada um num ônibus é uma cédula de solidão, paupérrima. Ele se sentou desajeitado, escorregadio, flácido, e esperou dentro de sua camisa azulada e rota. Ela já estava vindo, o cigarro apoiado nos dentes sujos e nos lábios. À surdina os sonhos se tornam caixas e mais caixas de anestésico vencido. As certezas são como duras pedras de gelo em meio a litros de um gole de cana de cabeça. E assim ele leva a vida, negociando almas no mercado das tristezas, vendendo bebida, bebendo o lucro e a diferença. Nos olhos de todos os passageiros, o nojo, o asco, a escara. Ferida aberta nas ventas limpas: O real. Sentado ali, no meio do mar de concreto, totalmente alterado, é como se ele pudesse de repente chutar a cadeira que sustenta seus pés na forca. Deixar de lado a grosseria faceira da cidade. Selvageria. Deus nasce e morre todos os dias! *** Misericórdia: o ato final da tragédia. Como um bolo de nicotina, como uma arma apontada para o útero, como um câncer familiar, como um filho perdido. Dois, três... A comédia dos porcos se desenlaça. Suicídio é uma


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